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Padrões cromáticos do design gráfico vernacular | Fernanda de Abreu Cardoso*

Neste artigo apresentamos uma análise dos padrões de uso das cores em peças de design gráfico vernacular, também denominado design gráfico popular. O termo “design gráfico vernacular” refere-se a um campo de produção de bens simbólicos relacionado à produção de material gráfico por indivíduos pertencentes a espaços sociais economicamente desfavorecidos. Trata-se de um campo informal, que se define por exclusão do campo do design institucionalizado, formal e erudito, representando, portanto, o design não oficial.

As diferenças sociais e econômicas entre os grupos sociais produzem diferentes “estilos” de vida, padrões de avaliação e formas de representações visuais. É nesse sentido que a linguagem visual do design gráfico vernacular se distingue da linguagem do campo oficial do design em diversos aspectos. E por considerarmos que a linguagem visual desse tipo de produção é fruto de condições sociais específicas, mesmo se tratando de um campo informal de produção de peças gráficas, é possível identificar alguns padrões de representação bastante característicos desse tipo de produção.

Identificamos o uso das cores nessas peças como um dos aspectos mais distintivos dessa linguagem. As escolhas que resultam nos padrões cromáticos das peças gráficas populares não são movidas pelas regras de representação da norma culta sendo, portanto, bastante distintas da produção do campo institucionalizado do design. Neste texto, apresentamos padrões cromáticos do design gráfico vernacular examinando as possíveis motivações para as escolhas referentes ao uso das cores. Analisamos a aplicação das cores nas peças gráficas observando quais utilizações ocorrem com maior frequência, acabando por se tornar características da linguagem visual do design gráfico vernacular.

Este artigo tem como base os resultados de uma pesquisa de doutorado sobre o universo simbólico do design gráfico vernacular, realizada pela autora. Nessa tese, o enfoque foi dado ao modo como as estruturas sociais operam a criação da dimensão imaginária ou do universo simbólico, que vem a ser o chão das representações sociais. Dessa forma, a produção de bens simbólicos seria reflexo de seu habitus[1], e a linguagem comum utilizada pelos designers populares representa, em última análise, esquemas de percepção, de pensamento e de ação particulares de seu grupo.

Com base no fato de que a linguagem visual característica das peças de design gráfico popular, sejam elas artesanais ou impressas, é reflexo de condições de existência semelhantes entre seus produtores, suas construções formais podem ser vistas como representações de valores sociais. Parte daquela pesquisa resultou em uma análise dos aspectos formais da linguagem do design gráfico vernacular, sendo examinados os padrões mais comuns nesse tipo de representação e caracterizadores dessa linguagem. Consideramos o modo como são utilizadas as cores um elemento básico e fundamental para caracterizar e identificar o estilo de representação visual dessa produção. Por isso, selecionamos o aspecto da linguagem visual do design popular para desenvolver o presente texto.

Na amostra dos objetos analisados incluem-se tanto o design popular artesanal quanto o material gráfico impresso, logo, para este artigo, selecionamos um conjunto de letreiros confeccionados artesanalmente e embalagens de diversos tipos de produtos. Optamos por objetos produzidos de formas bastante distintas para demonstrar que, nesse caso, a linguagem visual das peças é a mesma, independente de ser uma peça artesanal ou impressa industrialmente. Cabe destacar que, na grande maioria das vezes, em ambos os casos, a forma de produção se dá com recursos reduzidos.

A linguagem visual popular

Fruto de um contexto social, cultural e histórico específicos, podemos dizer que uma produção visual tende a se assemelhar em grupos com habitus semelhantes. Para cada campo são criados códigos próprios, de modo formal ou tácito, que se instauram, são reconhecidos e aplicados por seus pares. Se as representações visuais são reflexo de condições sociais específicas, mesmo que não existam regras preestabelecidas, podemos supor que existe uma tendência a uma uniformidade nas representações populares. Mesmo sem regras enunciadas ou formalizadas, verificamos a existência de padrões visuais, já que podemos observar a constância de alguns elementos gráficos, algo em comum que constitui uma linguagem visual do design popular. Como não existe a consciência de campo nem uma escola, tampouco normas a serem seguidas, mas apenas o fato de indivíduos dividirem condições semelhantes de existência e tenderem a se expressar de forma similar, esses padrões não são enunciados ou transmitidos pela academia, como ocorre no campo formal. Mesmo que não haja um padrão institucionalizado de representação, de alguma forma existem semelhanças muito claras entre diferentes produtores.

Bourdieu (2002) aponta que as práticas de agentes da mesma classe possuem afinidade estilística, pois são produtos de transferências de um mesmo esquema de ações. Essa sistematização nos produtos poderia ser explicada pela sistematização de uma estrutura, como a configuração de um campo de produção de bens simbólicos. Ainda conforme o autor, um estilo poderia ser definido como um modo de representação que expressa um modo de percepção próprio de um período, de uma classe ou fração de classe, de um grupo de artistas ou de um artista. Seria, portanto, uma categoria de expressão visual modelada pelo ambiente cultural. Os estilos são criados espontaneamente e se caracterizam por reproduzirem aspectos comuns da forma visual, pois estabelecem tradições e simbolismos próprios, além de combinarem técnicas visuais específicas, que são empregadas por produtores e agentes de um campo, como o do design gráfico vernacular.

Podemos, portanto, identificar convenções, regras e princípios básicos que são seguidos para se reproduzir determinado estilo, mesmo que esse estilo seja criado espontaneamente. Desse modo, podemos considerar a existência de um estilo próprio do design gráfico vernacular como resultado do uso de uma linguagem comum entre os produtores desse campo. É possível identificar formalmente tanto esse estilo popular, bastante característico e marcante, quanto sua reprodução em outros meios que não o seu de origem.

De um modo geral, é possível observar uma forma de representação mais direta e imediata das classes populares, especialmente pelo uso de imagens que fazem referência explícita ao produto ou serviço anunciado: o naturalismo das ilustrações e o uso das cores, que devem chamar atenção do observador. Verificamos que a informação deve ser transmitida de forma muito clara, para que não haja dúvidas em relação ao seu entendimento.

O uso das cores

Os processos de percepção da cor variam também de acordo com o grupo social, uma vez que a percepção seria resultado do processo biológico da visão associado ao entendimento, aos processos cognitivos do cérebro e às demais formas de conhecimento. Assim, a percepção da cor não seria uma ação unicamente física, resultado de um processo físico e químico de visão da cor; ela não seria uma simples reação a estímulos luminosos, que provocam uma série de reações bioquímicas, seguida da transmissão desses estímulos ao cérebro, responsável por processar a informação visual com uma determinada cor. Na realidade, o aspecto cultural seria fundamental nesse processo de percepção ou entendimento da cor.

A forma de perceber e interpretar a cor depende de uma série de fatores, conforme apresenta Frank Manhke (1996) em seu modelo de etapas do processo de construção da percepção das cores. O autor apresenta a cultura, a influência da moda e de tendências, a relação pessoal, os simbolismos e as associações, sem esquecer das reações biológicas aos estímulos da cor, como etapas importantes desse processo. Com isso, podemos entender a construção do gosto ou aceitação de uma determinada cor como um processo em que a cultura, o habitus e o grupo social ao qual pertence um indivíduo influenciam na percepção de tal cor, bem como no seu entendimento e na sua relação com a mesma. Cada grupo social pode atribuir valores, associações, significados às cores ou às suas combinações.

Para Pastoureau (2002), a cor não seria apenas um fenômeno natural, tampouco matéria para estudos biológicos do olho humano ou de suas relações com o cérebro humano. Logo, decorre daí sua emulação apenas com a neurociência ou com a psicologia, tratando-se de uma construção cultural complexa, cuja análise não pode ser generalizada. Na análise de uma cor deve ser levado em consideração o que faz parte do universo simbólico de uma sociedade: o léxico e as denominações, as técnicas, os códigos de vestimenta, o lugar dessa cor na vida cotidiana e na cultura material, enfim, tudo que possa afetá-la.

De acordo com o historiador francês, a cor é definida como um fato de sociedade, isto é, uma verdadeira forma de representação social. É a sociedade quem “faz” a cor, atribuindo-lhe definição e sentido. O meio social constrói seus códigos e valores, organiza suas práticas e determina suas apostas, uma vez que “os problemas da cor são sempre problemas sociais, pois o ser humano não vive só, mas em sociedade” (Pastoureau, 2002, p. 8). Os simbolismos atribuídos às cores variam, dessa forma, em função do valor que lhes é atribuído em cada grupo social. As cores não possuem, portanto, valor em si, mas valores que podem variar de acordo com o contexto geográfico[2], histórico e social. O que pode ser considerado como uma combinação de cores adequada no contexto de produção do campo do design popular pode ser inaceitável para os padrões do campo oficial. A partir disso, nos deteremos na análise de alguns aspectos característicos do design gráfico vernacular em relação ao uso das cores.

Podemos verificar que, de uma maneira geral, existe uma tendência nas representações gráficas populares a utilizar cores fortes, muito saturadas e combinações com bastante contraste. Talvez sejam recursos que permitam uma maior visibilidade da peça gráfica, o que identificamos com o modo característico das representações populares, ou “gosto da necessidade”. Se a função é informar, chamar a atenção para um produto ou local, as cores devem ser chamativas. Em relação aos letreiros pintados à mão e às embalagens, essa seria uma de suas características mais marcantes.

Figura 1: Embalagem de grampos <i>Ki-grampo</i> e embalagem de incenso <i>Quebra olho gordo.</i>
Figura 1: Embalagem de grampos Ki-grampo e embalagem de incenso Quebra olho gordo.

Em grande parte dos letreiros, as cores são vivas e aplicadas em áreas chapadas, não sendo comum o uso de sombras e degradês, exceto em ilustrações que tentam se aproximar de uma representação mais realista. A preferência por cores chapadas poderia ser vista como uma limitação técnica, uma vez que é mais simples pintar dessa forma do que usando degradês, por exemplo. Em relação à cor de base dos letreiros pintados em lona, que geralmente é a do próprio material do suporte, sem pintura, também existe uma preferência por cores mais vivas. Já no caso de letreiros pintados diretamente sobre paredes e muros, costuma-se manter a cor original do fundo.

Figura 2: Letreiros artesanais.
Figura 2: Letreiros artesanais.

A saturação de uma cor, ou cromaticidade, pode ser definida como a vivacidade ou pureza da cor. Portanto, as cores puras seriam consideradas saturadas e as cores misturadas com preto, branco ou cinza, menos saturadas. As cores consideradas “pastéis” seriam cores pouco saturadas. De um modo geral, não é comum o uso dessas cores, assim como daquelas muito claras em peças de design gráfico popular, exceto em algumas filipetas em que são usados papéis coloridos como suporte para impressão.

Em uma pesquisa que buscava examinar as diferenças em relação ao uso das cores em jornais voltados para diferentes públicos (Guimarães, 2000, p. 111), foi observado que os valores cromáticos variavam de acordo com a faixa sociocultural. Em jornais mais populares, foi observado um contraste maior entre as cores, combinações entre complementares e a predominância de cores primárias e secundárias chapadas em 100% (sem atenuações ou degradês), ao passo que nos jornais voltados para as classes A e B, as combinações de cores eram mais sóbrias, com menos contraste e com uso de degradês suaves em boxes e pequenas áreas de fundo.

Em outro estudo, a designer Deborah Sharpe (1974, p. 136-137) também aponta que os grupos socioeconomicos desprivilegiados expressam uma preferência por cores fortes e saturadas e considera tal fato como resultado direto da monotonia (sic) existente em seu entorno. A autora cita o caso de uma cadeia de loja de departamentos que construiu duas filiais utilizando como cores principais o preto e o branco em bairros com perfis bastante distintos. No bairro sofisticado, de classe alta, a loja foi um grande sucesso, mas no bairro proletário, com muitas fábricas e habitado por trabalhadores, foi um fracasso. Além das diferenças sociais e psicológicas entre os dois grupos, a autora atribui o fracasso da filial também ao fato de as cores se misturarem à fuligem, à sujeira e ao tédio generalizado da paisagem local.

Podemos associar o gosto por cores fortes e saturadas a uma preferência característica das camadas populares. A preferência por cores vivas pode ser observada também em outras áreas da prática popular, como, por exemplo, em pinturas naïfs, nos desfiles carnavalescos e na decoração, situações em que podemos identificar padrões de uso de cores bastante distintos daqueles utilizados por grupos economicamente privilegiados.

Além da preferência por cores fortes e muito saturadas, é possível identificar no campo de produção do design gráfico vernacular outros padrões no uso das cores, característicos desse tipo de produção. Muitas vezes esses modelos se estabelecem a partir de uma relação entre cor/tipo de produto ou podem ser determinados pelas limitações dos recursos de produção disponíveis. Em alguns casos, esses modelos podem surgir sem um motivo aparente mas, pelo uso constante e pela reprodução por parte dos criadores instauram-se e se tornam característicos desse tipo de linguagem. Tal análise, porém, não é o escopo deste trabalho, pois não pretendemos identificar o porquê do uso das cores, mas sim verificar quais são seus usos mais frequentes.

Em relação aos letreiros pintados à mão, foi observada a predominância do uso de três cores principais: amarelo, azul e vermelho. Essas cores podem surgir combinadas em tríade, em dupla ou como a cor principal da composição. Pensando em termos de sensações provocadas pelas cores, estas são sempre bem alegres e vibrantes. Não é comum nesses objetos o uso de cores pouco luminosas para grandes áreas, como preto, marrom, azul marinho e cinza escuro, que são mais usadas para a pintura de texto.

Figura 3: Letreiros artesanais.
Figura 3: Letreiros artesanais.

Cabe notar que o vermelho, o azul e o amarelo seriam as três cores primárias para teóricos da cor, como Johannes Itten (2004), que as considerava as cores básicas para a pintura. Por meio da mistura dessas cores, em diferentes proporções e combinações, seria possível produzir quase todas as tonalidades. A combinação dessas três cores também pode ser classificada como uma harmonia de tonalidade, por serem cores muito saturadas ou também como uma harmonia em tríade, uma das combinações de cores mais marcantes, de acordo com Itten.

Conforme pretendemos demonstrar, a identificação de um sistema de cores que apresenta tais combinações como principais carrega um significado simbólico, típico dos letreiros pintados à mão. Essa estrutura de três cores é reproduzida em diversas peças, de diferentes artistas e em diferentes tipos de negócios. As combinações das cores primárias de Itten também são bastante usadas em embalagens e impressos populares. Observamos ainda que essas três cores aparecem com frequência combinadas também aos pares.

Questionamo-nos por que nesses objetos o número de cores é reduzido, uma vez que não existem regras formalizadas para a aplicação de cores nem, aparentemente, restrições em relação ao uso de outras cores. Com a mistura dessas três cores de base seria possível criar várias outras, mas isso raras vezes ocorre. Talvez a solução adotada pelos letristas seja a mais simples, ou seja, usar as cores prontas seguindo padrões de combinações que já funcionam. Consideramos que, nesse campo, tais padrões correspondem aos valores simbólicos que se estabelecem a partir de tradições criadas em relação às suas aplicações.

Em letreiros que não tenham essas cores como principais, o número de cores é reduzido. Exceção a esse padrão é observada em desenhos mais realistas, especialmente de figuras humanas, onde são usados sombreados e cores variadas.

Além do uso predominante das cores primárias nos letreiros pintados à mão, identificamos outras tradições relacionadas ao uso das cores em peças gráficas populares. A cor amarela, por exemplo, é uma das mais utilizadas nessas peças. Usado como fundo, puro ou combinado a outras cores, o amarelo surge em diversas aplicações. Trata-se de uma cor de grande visibilidade e talvez por isso seja frequentemente aplicada nas peças populares, seguindo a estética funcional dessas representações.

Figura 4: Embalagens de pipoca de canjica.
Figura 4: Embalagens de pipoca de canjica.

Algumas cores podem ainda se tornar ícones de determinados produtos, como o rosa das embalagens de pipoca de canjica[3], que é utilizado por várias marcas desse produto. A cor de rosa, que é simbolicamente associada ao sabor doce, apresenta-se sempre em um mesmo tom e com grande saturação em diversas embalagens. Essa cor permite uma rápida identificação do produto, tanto por sua visibilidade quanto pela sua já consagrada associação ao mesmo. Outros elementos permitem relacionar esse produto à classe popular: o uso de outras cores fortes (além do rosa) e as imagens ilustrativas que mantêm uma identificação imediata com o nome da marca. Nesse exemplo foi criada uma tradição no uso dessa cor, que se tornou tão forte que passou a identificar o produto e seu público consumidor. Dessa forma, podemos dizer que tal cor tem um forte significado simbólico para o grupo consumidor.

Outro exemplo seria a embalagem do biscoito Globo, cujo esquema de cores auxilia a identificação dos sabores do produto: sobre o fundo branco do papel, o desenho é estampado em amarelo e vermelho para a versão doce, e em amarelo e verde para a versão salgada. Podemos dizer, então, que as combinações de cores das tradicionais embalagens são facilmente reconhecidas por seu público consumidor, sendo inclusive reproduzidas por uma marca concorrente. O biscoito Extra, que utiliza uma embalagem bastante parecida, segue um esquema de cores semelhante, sendo que em sua versão salgada o verde é substituído pelo azul. Apesar da mudança de uma das cores, o resultado final é bastante parecido. Nesse caso, a última marca se aproveitou do simbolismo das cores já consagrado pela marca mais famosa.

Figura 5: Embalagens de biscoito <i>Globo</i> e biscoito <i>Extra.</i>
Figura 5: Embalagens de biscoito Globo e biscoito Extra.

A combinação de vermelho e amarelo presentes em embalagens de estalinhos pode ser considerada também um exemplo de padrão de utilização de cores. As cores quentes que fazem referência à “explosão” provocada pelo produto foram observadas como principais em todas as marcas encontradas. Cabe observar que as embalagens são bastante semelhantes: crianças brincando com os estalinhos e os nomes das marcas dentro de balões estrelados.

Figura 6: Embalagens de estalinhos <i>Du-mano</i> e <i>Guri.</i>
Figura 6: Embalagens de estalinhos Du-mano e Guri.

Muitas vezes, o uso de cores que identificamos como característico ou típico do design popular é resultado da forma como as peças são produzidas. No caso das peças impressas, podemos dizer que, na maior parte das vezes, são utilizados métodos de impressão econômicos ou recursos que os tornam menos dispendiosos, como o uso de poucas cores. Com isso são criados alguns padrões, como os que identificamos a seguir.

Em embalagens padronizadas de papel para pipocas, churros e produtos de padarias podemos perceber o recurso de imprimir um mesmo desenho em cores variadas, o que indica o aproveitamento da chapa de impressão. Esses exemplos representam uma forma econômica de obter resultados distintos a partir de um mesmo original. Nas embalagens do “pipocão amor”, o mesmo grafismo pode vir impresso nas cores verde, vermelho ou azul. Essas embalagens, que não são produzidas para marcas ou fornecedores específicos e podem ser compradas pelos comerciantes em lojas especializadas, vêm sendo produzidas há muito tempo e em grandes quantidades. Supomos que o processo de impressão utilizado seja a flexografia, cuja matriz é dispendiosa, mas possui grande durabilidade, podendo ser usada por muitos anos. A impressão em cores distintas seria, portanto, uma forma de atualizar essas embalagens, modificando a aparência final de forma econômica.

Figura 7: Embalagens de pipoca impressas a partir da mesma matriz.
Figura 7: Embalagens de pipoca impressas a partir da mesma matriz.

Na grande maioria das embalagens, também observamos o uso de poucas cores, mas que seguem o padrão popular de cores com bastante contraste, como vemos na embalagem de henê Pelúcia impressa com uma única cor. Nesses casos, há o aproveitamento do branco da cor de fundo, ou a transparência que deixa a cor do produto à mostra, como na embalagem do henê, o que visualmente proporciona a sensação de uma segunda cor, mas que não é fisicamente impressa.

Figura 8: Embalagem de henê <i>Pelúcia</i> impressa em uma cor.
Figura 8: Embalagem de henê Pelúcia impressa em uma cor.

Muitas embalagens utilizam ainda duas cores de impressão, mas provocam a sensação de uma terceira cor ao deixar transparecer o branco do fundo. Observamos esse recurso nas embalagens do defumador Quebra mandinga, do perfume da Pomba Gira (Figura 9) e na do incenso Quebra olho gordo (Figura 1), impressas com duas cores. Se, por questões econômicas, muitas vezes nos impressos populares a quantidade de cores de impressão é restrita, a opção por cores muito vivas ou saturadas seria uma forma de criar contrastes que chamem a atenção do consumidor. Algumas combinações poderiam parecer estranhas se usadas pelo campo oficial, como as tonalidades de rosa e azul do incenso Quebra olho gordo, ou o amarelo com preto e branco do defumador Quebra mandinga. Cabe destacar, ainda, que encontramos poucas embalagens impressas em quatro cores.

Figura 9: Embalagem de defumador <i>Quebra mandinga</i> e perfume da <i>Pomba Gira</i> impressas em duas cores.
Figura 9: Embalagem de defumador Quebra mandinga e perfume da Pomba Gira impressas em duas cores.

Observamos por meio dos exemplos apresentados os padrões cromáticos característicos da linguagem do design gráfico vernacular. Destacamos que alguns recursos, como o uso de poucas cores por restrições de ordem econômica, não são exclusivos desse tipo de produção, apesar de bastante comuns nela, e muitas vezes determinam o resultado final da peça. Vimos que é bastante comum o uso da combinação das cores amarelo, vermelho e azul, sendo que essas cores também são as que surgem com mais frequência de forma isolada, especialmente o amarelo. Verificamos ainda que é corriqueira a associação entre determinadas cores e tipos de produtos, sendo certo que algumas cores, ou combinação delas, podem se tornar icônicas para uma categoria de produto. Por último, podemos afirmar que o padrão cromático mais distintivo entre os apresentados parece ser a preferência por cores muito fortes e saturadas, a fim de destacar a informação. Tais padrões parecem ser aplicados de forma espontânea pelos designers populares e, certamente, são um elemento distintivo desse tipo de linguagem visual.

* Fernanda de Abreu Cardoso é doutora em design e professora do curso de Comunicação Visual Design da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EBA/UFRJ).


Referências

BOURDIEU, Pierre. Distinction –  A social critique of the judgment of taste. Cambridge: Harvard University Press, 2002.

BOURDIEU, Pierre. “O mercado de bens simbólicos”. In: A economia das trocas simbólicas. Organização Sérgio Miceli. São Paulo: Editora Perspectiva, 1974, p.99-181.

CARDOSO, Fernanda de Abreu. Design gráfico vernacular: a arte dos letristas. Dissertação (mestrado em Design). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/ RJ), 2003.

CARDOSO, Fernanda de Abreu. O universo simbólico do design gráfico vernacular. Tese (doutorado em Design). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/ RJ), 2010.

GUIMARÃES, Luciano. A cor como informação – a construção biofísica, linguística e cultural da simbologia das cores. São Paulo: Annablume, 2000, p. 111.

ITTEN, Johannes. The art of color: the subjective experience and objective rationale of color. New York: John Wiley & Sons, 2004.

MAHNKE, Frank H. Color, environment and human response. New York: Van Nostrand Reinhold, 1996.

PASTOUREAU, Michel. Bleu – histoire d’une couleur. Paris: Éditions du Seuil, 2002.

SHARPE, Deborah T. The psychology of color and design. Chicago: Nelson-Hall Company, 1974, p. 136-137.

Notas

[1] Pierre Bourdieu relaciona as estruturas dos espaços sociais aos estilos de vida, construindo um modelo de relações que associa as condições econômicas e sociais de um grupo a um universo simbólico próprio, ainda que suas fronteiras sejam difíceis de identificar. Seu conceito de habitus se refere a condições de vida e existência que geram determinadas opções por parte dos pertencentes a um grupo.

[2] Quando pensamos que o meio geográfico pode ser determinante no uso das cores, referimo-nos ao fato de que um grupo social vivendo isoladamente constrói seus padrões e definições para as cores que emprega e não que o meio geográfico em si possa influir na escolha de uma cor. Ainda que possamos dizer que o sol dos trópicos tenha encantado muitos pintores de paisagens mais setentrionais, essa é uma questão não muito clara e fora do escopo deste trabalho.

[3] A pipoca doce, produto tipicamente popular, de preço baixo, é facilmente encontrada à venda em barraquinhas nas ruas ou por vendedores ambulantes.