Um contrato com Deus é uma trilogia formada por Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço (1978), A força da vida (1988) e Avenida Dropsie: a vizinhança (1995), que se passa na Avenida Dropsie, uma vizinhança ficcionalizada por Will Eisner, localizada ao sul do Bronx, em Nova Iorque. Com Um contrato com Deus, Eisner inaugura a produção do que ficou conhecido como graphic novels. Muito já se discutiu sobre a origem da expressão, se fora ou não criada por Eisner, quando o próprio veio a identificar o uso anterior do termo. A originalidade de Eisner, no entanto, reside em propor uma espécie de obra literária popular tendo os quadrinhos como meio. Eisner repensa o uso do espaço, o formato, a relação entre o texto e a imagem e toda a estrutura narrativa. No período em que desenvolveu o primeiro volume da trilogia, Eisner começa a ensinar na School of Visual Arts, o que o levou a sistematizar os seus métodos, dando origem à publicação dos manuais Quadrinhos e arte sequencial (1985) e Narrativas gráficas (1996) e postumamente Expressive Anatomy (2008). A partir da trilogia e de suas reflexões teóricas analisa-se, neste artigo, a concepção e produção das graphics novels, problematizando-se as analogias que o quadrinista estabelece entre a linguagem verbal e a narrativa gráfica da ação. É significativo o fato de Eisner concluir sua trilogia com Avenida Dropsie: a vizinhança, um relato histórico protagonizado pelas relações de vizinhança, enquanto os dois primeiros têm como foco alguns moradores residentes na avenida. Avenida Dropsie é um épico que trata dos períodos de vida das vizinhanças, as quais, segundo Eisner, “nascem, evoluem, amadurecem e morrem” (2004). O foco não é o declínio dos prédios, pois “as vidas dos habitantes são a força interna que gera a decadência. As pessoas, não os prédios, são o coração da matéria” (idem). Eisner se expressa em personagens preocupados com os desafios da vida cotidiana e suas relações nem sempre amistosas.
Dropsie seria o sobrenome de uma família de fazendeiros holandeses, os primeiros a ocuparem o local ainda no século XIX. A chegada de ingleses marca a primeira tragédia. Hendrik Dropsie, ao lado da filha, da mulher e de Dirk, o irmão bêbado, observa com admiração e complacência o crescente domínio estrangeiro. Revoltado, Dirk resolve atear fogo no cultivo daqueles que por ele são considerados usurpadores e acaba atingindo a sobrinha que tentava impedi-lo. Hendrik, ao ver com desgosto a perda da filha, mata o irmão a tiros e os enterra no jardim. Duas décadas depois, Hendrik Dropsie, em situação de pleno abandono, acidentalmente ateia fogo na própria casa. Nesse momento, a avenida já era dominada por casas de luxo, sonho de consumo de qualquer boa família inglesa. A nova configuração é perturbada pela compra do terreno dos Dropsie por novos ricos irlandeses. E, nesse relato histórico da avenida, sucedem-se diversas transformações urbanas, acompanhadas de conflitos étnicos, sobretudo entre ingleses, irlandeses, judeus, negros e latinos. Pessoas que, segundo Eisner, em sua maioria não arredavam o pé dali, pois vieram de lugares bem mais hostis (Eisner, 2007, p. 9). As relações de vizinhança descritas por Eisner são violentas, apaixonadas, solitárias, desequilibradas e, sobretudo, humanas. Todos procuram uma forma de sobreviver.
No conto “Um contrato com Deus”, Eisner coloca em questão as possibilidades de aliança com Deus, seu valor e o sentido do infortúnio. O personagem Frimme Hersh tem todas as suas crenças destruídas após a morte de sua filha adotiva. Fato que não era para ele admissível, pois Hersh havia cunhado em pedra um contrato com Deus, no qual se comprometia a se dedicar ao bem, o que, supostamente, o livraria de todos os reveses. Com o infortúnio rompe seu contrato e, se apossando dos títulos de uma sinagoga que lhes foram zelosamente confiados pelos rabinos, adquire um prédio na Avenida Dropsie e se torna um empresário e proprietário implacável. Os proprietários são sempre os inimigos comuns dos moradores da avenida, já anunciara Eisner na introdução ao conto. Mais tarde, já rico e poderoso, devolve com juros o dinheiro extraído da sinagoga e solicita aos rabinos, em troca de uma doação, um novo contrato com Deus. Este, agora, seria validado por sábios conhecedores da palavra santa. Os rabinos relativizam a demanda para não confrontarem a lei de Deus. De posse do “genuíno” contrato, Hersh chora na expectativa de uma nova vida — se casar e ter uma filha. Logo a seguir, num rompante, Hersh desafia Deus a violar um contrato com testemunhos e cai fulminado por um enfarte. Anos mais tarde, Eisner, que havia perdido sua única filha para a leucemia com a idade de dezesseis anos, assumiria a natureza autobiográfica de sua história. Para Eisner, escrever a história seria uma forma de exorcizar sua “raiva contra uma divindade que eu acreditava que havia violado a minha fé” (apud: Schumacher, 2013, p. 232).
Em A força da vida, o personagem Jacob se vê desempregado após sua “tarefa sagrada” de construir uma sala de estudo numa sinagoga. Caído em um beco e completamente desiludido, se questiona sobre os desígnios de Deus: “se o homem criou deus…então a razão pra viver está apenas na cabeça do homem. Por outro lado se… Deus criou o homem.. então, a razão da existência ainda é só um palpite… no frigir dos ovos… quem realmente conhece a vontade de Deus?” (Eisner, 2007, p. 24). Em sua angústia, Jacob deduz que o ponto em comum entre a sua vida e a de uma barata é simplesmente manter-se vivo. A coletânea detalha a coragem, a alegria e a tragédia do cotidiano da cidade na fluência do estilo gráfico de Eisner, que faz uso evocativo da textura e da atmosfera.
Eisner inicia sua carreira nos anos 1930, quando os quadrinhos rompem com a fronteira das charges e das tirinhas de jornais e passam a ser veiculados também em revistas e em livros. Em sua origem os livros de histórias em quadrinhos pouco tinham de literários mas conquistavam espaço junto aos jovens e já se via a necessidade do desenvolvimento de uma linguagem específica. Eisner, preocupado com o alcance do meio e sua colocação no mercado, teve participação ativa em todos os campos do processo de produção. Ele veio a atuar como empresário, editor, sindicalista e, sobretudo, como autor e desenhista de histórias em quadrinhos. Com o lançamento do primeiro volume da trilogia Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço, em 1978, Eisner se aventura a pensar um produto que obtivesse atenção do adulto e dimensão literária.
Realiza um álbum com configuração distinta de uma revista em quadrinhos, adotando o formato brochura e ilustração de capa que se distanciasse da literatura infantil. Schumacher relata o diálogo de Eisner com um livreiro e a dificuldade deste em encontrar o setor adequado para o livro em sua livraria, em função da pouca familiaridade com a graphic novel naquele momento. A publicação passa pela seção de destaque com certo sucesso. Com a chegada dos novos lançamentos, é deslocado para a seção de livros religiosos. Após protestos de um cliente, passa à seção de humor e, enfrentando novas insatisfações, termina numa caixa alojada no sótão (Schumacher, 2013, 241).
Propondo estabelecer linguagem apropriada ao novo gênero literário, Eisner relata suas exigências:
Ao contar essas histórias, tentei me ater à regra do realismo, que requer que a caricatura ou o exagero aceitem os limites da factualidade (…) Para atingir essa dimensão, tive que deixar de lado dois limitadores básicos que constantemente inibem a criação nesse meio — o espaço e o formato. Cada história foi, portanto, escrita sem preocupação com o espaço que iria ocupar, e seu formato surgiu da própria narrativa. Aos quadrinhos normais associados à arte sequencial (HQ) foi dada a liberdade de tomar suas próprias dimensões. Por exemplo, em muitos casos uma página inteira é usada para um único quadro. O texto e os balões estão interligados à arte. Eu os considero como fios de um mesmo tecido e faço uso deles enquanto linguagem. Caso eu tenha atingido meu propósito, não haverá interrupções no fluxo da narrativa, porque figura e texto serão tão interdependentes a ponto de serem inseparáveis (apud Schumacher, 2013, p. 234).
Estas definições são o fundamento da escritura gráfica de Eisner. O uso recorrente da monocromia em suas graphic novels favorecem a relação estreita entre o universo do verbal e da imagem, mantendo-os sob os mesmos atributos gráficos. Em Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço o autor chegou a cogitar o uso de cores, mas terminou por optar pelo uso da cor sépia, conferindo não só uma maior dramaticidade às histórias, como também uma visualidade estrutural que integra, em princípios comuns, o universo do verbal e da imagem. A linguagem gráfica é definida pela linha, elemento próprio da escritura, que serve tanto ao desenho da letra, como aos personagens e aos cenários. Estabelece-se, assim, uma coerência formal e visual entre os elementos, reforçando-se um princípio de síntese em que os planos cromáticos nem sempre favorecem. A escritura se dá na contraposição do negro do traço e do branco do papel.
Eisner inicia suas reflexões teóricas sobre a estrutura narrativa dos quadrinhos, apropriando-se de uma gramática estabelecida na escrita alfabética:
A descrição da ação nesse quadro pode ser esquematizada como uma sentença. Os predicados do disparo e da briga pertencem a orações diferentes. O sujeito do “disparo” é o vilão, e Gerhard Shnobble é o objeto direto. Os vários modificadores incluem o advérbio “Bang, Bang” e os adjetivos da linguagem visual, tais como postura, o gesto e a careta (Eisner, 1999, p. 10) (Figura 1).
A relação estabelecida não é incomum. Com a vulgarização do uso do alfabeto a partir da imprensa, cresceu no mundo ocidental a confiança e a primazia das virtudes do alfabeto abordando-se a escritura somente sob o ângulo do fonetismo. O sistema alfabético foi tomado como fundamento universal para todo tipo de composição, estabelecendo-se uma espécie de relação hierárquica entre o alfabeto e a imagem.
No entanto, Eisner não se detém na questão da imagem, mas na da narrativa. Sua discussão aponta justamente para a necessidade da compreensão da atividade de leitura num sentido mais geral, sobretudo como forma de atividade de percepção. Ele procura nesse processo não somente a analogia entre a compreensão da palavra e da imagem, como também a organização destes elementos numa escritura articulada. Para Eisner, a escritura verbal deve ser lida como imagem inserida no universo gráfico. São signos óticos associados à linguagem oral. O universo sonoro, entretanto, não se apresenta como no cinema, ele depende das projeções feitas pelo leitor, a partir das modulações propostas pelo autor. Não é incomum aficcionados por determinada história em quadrinhos se decepcionarem com as vozes quando transpostas para um filme de animação. Esses leitores já haviam introjetado uma voz própria para os personagens. Sem dúvida, os signos sonoros e os signos óticos remetem a imagens diversas, mas estão relacionados pela dimensão tátil dos elementos da página.
Na abertura do conto “Um contrato com Deus”, não só o personagem Frimme Hersh e o cenário parecem se dissolver sob a chuva que cai “sem piedade”, como também a informação verbal pontua e reforça a dramaticidade da cena. Os quadros únicos das páginas estendem o tempo de caminhada do personagem e de sua profunda desilusão. A textura verbal é constituída da mesma matéria gráfica da imagem. O letreiramento é organizado em blocos, reforçando o clima e a inflexão sonora. Alguns blocos ganham as mesmas hachuras que dramatizam toda a cena. As terminações das letras n, m e h se estendem em movimento descendente como garras. O balão é usado, segundo Eisner, como “recurso extremo” para “captar e tornar visível um elemento etéreo: o som” (2001, p. 26). A disposição dos balões em relação à fala e à ação contribuiriam para a compreensão do tempo. O letreiramento e a configuração do balão servem para caracterizar o som e acrescentar significado à narrativa, assim como para dar dimensão ao personagem. O título do conto é iconizado como um texto gravado numa pedra, numa alusão, segundo o autor, à permanência e evocação aos dez mandamentos de Moisés. A mistura da “letra hebraica versus uma letra romana” teria o “intuito de forçar esse sentimento” (Eisner, 2001, p. 11) (Figura 2).
As letras do alfabeto e a imagem visual amalgamadas dão expressividade e sentido à narrativa. Os elementos que compõem a linguagem gráfica são contextuais, não têm um sentido absoluto. Implicam noções de possibilidade. Trata-se do exercício do olhar, indefinidamente subjetivo, antes de nomear. A leitura é operada entre os elementos, no que está em aberto, de acordo como estes são estruturados. O sistema de fenômenos visuais exige o pensamento plenamente mobilizado, trabalhando sucessivas interpretações, o reconhecimento das mais visíveis similitudes, do encadeamento das coisas, por suas atrações e afinidades. Eisner apresenta como referência os princípios ideográficos por deixarem espaço para a interpretação do leitor (2001, p. 15). A questão não se coloca somente na leitura, mas na perspectiva de envolvimento profundo daquele que o lê. Na classificação de McLuhan os quadrinhos são meios frios, o leitor deve construir e completar a informação. A construção ideográfica exige um esforço de leitura que ultrapassa as linhas visíveis ou a assimilação metódica das coisas. Em prol da intenção original, o desenho indica o movimento gerador. Investe-se de articulações poéticas, por confrontos entre diferenças e semelhanças. Surgem, dessa maneira, as metáforas, as alegorias oriundas do contato momentâneo entre as coisas e o movimento que se distancia da representação da coisa em si. Na exploração dessa escritura, introduzindo variações nos dados, ensaia-se a realidade de maneira virtual.
Como estratégia, Eisner parte do “símbolo básico, derivado de uma atitude bem conhecida”, e este “é amplificado por palavras, roupas, plano de fundo e interação (com outra postura simbólica) para comunicar significados e emoção” (2001, p. 16) (Figura 3). Valendo-se dos princípios econômicos, o que é próprio de qualquer natureza de escritura, Eisner faz uso de códigos já assimilados pelo leitor, da representação da coisa em si mesma – a pictografia antes da ideografia. Um clichê, visto que se trata de uma imagem sensório-motora da coisa, do qual, introduzindo esquivas, propõe metáforas (Deleuze, 2005, p. 31). Aos modos de um calígrafo, a obra de Eisner prima pela plasticidade e pela relação espacial dos elementos. Os movimentos dos traços são imprecisos e equívocos, não proporcionam a legibilidade “transparente” das expressões. Os traços não são retilíneos, esquemáticos ou padronizados. O intento de seu desenho não é a conquista do valor construtivo ou o detalhe claro e bem delineado proporcionado pelo talhe da pena, ele está muito mais voltado às possibilidades de modulação de um pincel, em traços fluidos, turvos e embaçados. Desse modo, o caráter expressivo dos personagens e dos demais elementos ganham potencialidade de sentido e extensão.
A questão do tempo e do enquadramento é recorrente nos estudos teóricos de Eisner. Ele evidencia a influência da estrutura narrativa do cinema sobre os quadrinhos, guardadas as particularidades das tecnologias apropriadas aos mesmos. A emulação da estrutura narrativa de outras mídias deve considerar as especificidades de um meio impresso. No cinema, as cenas seguem uma a outra e precedem outra, dispostas ao longo de uma linha animada de um sentido, girando em torno de um eixo. Segundo Butor (1962), desagradável seria procurar um detalhe nesta sequência e verificar qualquer coisa. O espectador se veria obrigado a desenrolar esta linha com base num tempo que se julga aproximado do momento em que viu determinada cena. Butor sugere a vantagem primeira do livro impresso que é fazer durar os elementos ali dispostos — o que permite não somente reproduzir a narrativa uma centena de vezes, como deixar à disposição dos olhos o que se teria deixado escapar.
Sobre a forma de disposição das linhas decompostas umas sobre as outras a formar uma coluna, tais como se configura no livro tradicional, ele assinala que o ideal seria que este corte nas linhas corresponda a uma unidade já articulada metricamente, permitindo que cada linha da escrita, cada movimento contínuo do olho, corresponda a uma unidade de significação e de audição. Butor afirma que “numa coluna de prosa, a linha é cortada não importa onde, segundo um módulo de números de signos que é perfeitamente independente do texto ele mesmo” (p. 931). O corte nas linhas seria, então, determinado aleatoriamente conforme a bitola da coluna, que pode variar de edição para edição. Essa unidade de significação estaria no discurso, de acordo com Butor, na estrofe ou parágrafo – “a estrofe é a página perfeita como o verso é a linha perfeita” (p. 932). Conclui:
O livro tal que nós o conhecemos hoje em dia, é portanto a disposição do fio do discurso no espaço em três dimensões segundo um duplo módulo: comprimento da linha, altura da página; disposição que tem a vantagem de dar ao leitor uma grande liberdade de deslocamento em relação ao desenrolar do texto, uma grande mobilidade, que é o que se aproxima mais de uma apresentação simultânea de todas as partes de uma obra (Butor, 1962, p. 932).
Butor explicita o livro como uma certa unidade e sua decupagem em outras unidades linguísticas. Uma totalidade de informações à mão do leitor recuperáveis a partir de determinadas operações. Pode-se avançar linearmente a leitura, retornar, saltar parágrafos e páginas, deixar o livro de lado e retomá-lo com facilidade.
O livro deve ser projetado de forma a criar dispositivos de localização das informações e de conexões entre elas. Explora-se potencialmente o caráter indicial do livro. A compreensão de sua estrutura permite o acesso a elementos diversos que se conectam a partir de ações espaço-temporais que integram a informação: o folhear, a localização da página e o movimento da vista na página. A entrada e a saída respondem à dinâmica de leitura e à sinestesia do pensamento. Assim como no cinema, os quadros definem os recortes que promovem o espaço que está inscrito no interior do enquadramento e aquele exterior ao enquadramento. A participação afetiva, porém, é distinta numa mídia e noutra. Para Eisner “o cinema pretende transmitir uma experiência real, enquanto os quadrinhos a narram” (2005, p. 75). A leitura dos filmes se dão no plano da tela, e objetivam o efeito janela de captura do espectador. A câmera, em sua expressividade, pode movimentar-se traduzindo uma infinidade de pontos de vista, o que é objetivamente permitido pela montagem, mantendo o fluxo contínuo de imagens. Os fotogramas se sucedem em tempo linear e congregam tanto a visualidade da superfície como a espacialidade do som (Flusser, 2007, p. 109). Nos quadrinhos o leitor domina o seu tempo de leitura, pode folhear, deter-se numa imagem ou retornar.
Para Eisner, os quadrinhos devem se apropriar dos clichês cinematográficos já introjetados pelos espectadores, mas seria improdutivo simular a câmera cinematográfica, já que eles propiciam um ritmo de leitura mais lento e dependem da informação intelectual derivada da experiência real do leitor. A montagem dos quadros e o seu uso como indicativo da duração do evento não estão atrelados a formatos e a tamanhos fixos como ocorre no cinema ou nos quadrinhos tradicionais, nos quais os quadros têm um único formato e seguem o movimento da esquerda para a direita e de cima para baixo. Na prática, não há uma norma absoluta. O autor parte do princípio que a unidade é a página e ali constrói uma cena relacionada à sequência de páginas e de outras cenas. A cena pode ser composta de um quadro que preenche toda página ou de uma sucessão de quadros, ditando-se o ritmo da narrativa. O leitor, num primeiro momento, apreende a página como um todo e a explora temporalmente, num movimento que não segue, necessariamente, o modo de se ler um texto verbal. A leitura é topográfica e exige do leitor compreender e combinar a sequência das palavras à narrativa das imagens. O recorte no quadro permite destacar determinado detalhe, num processo metonímico de se apresentar a parte pelo todo, num jogo entre o espaço contido e o fora do quadro, o que provoca o leitor a completar a imagem de acordo com a sua experiência. As molduras, ou os requadros, podem variar e são elementos de linguagem, traduzindo atmosferas de sonhos, de conflito, de ação e de infinitude.
As vizinhanças da avenida Dropsie são fruto das experiências vividas por Eisner em Nova Iorque. Vizinhanças de molecagens, paixões, violências e crimes. Rostos e corpos carregados de infortúnio diante do irremediável. Um local pleno em vozes e de escuros labirintos que fazem dos cortiços as imagens do fundo do poço social, sem reverberação dos cânones reivindicatórios que apresentem uma alternativa. Na avenida Dropsie, um jovem soldado idealista que retorna da guerra é coagido a mudar uma estação de local, o que acaba por transformar a avenida num grande cortiço. Uma jovem paralítica vive sonhos se dedicando ao jardim da última casa da avenida e termina por se casar com um ladrão mudo que, desavisado, se refugia no seu jardim. Décadas depois ela retorna como uma magnata capaz de comprar a região, já totalmente destruída, para fundar uma nova comunidade residencial de casas com jardins. Uma beata se mobiliza contra a presença de um prostíbulo e é jogada do terraço de um prédio. Um catador e vendedor de quinquilharias extrai, dos resíduos da cidade, a possibilidade de comprar um prédio. Uma menina seduz um porteiro solitário, envenena seu cachorro e rouba suas economias. O porteiro, se vendo acusado de maníaco sexual ao persegui-la, se mata com um tiro na cabeça. Uma enamorada grávida que aborta é estigmatizada como vagabunda e vê o seu destino selado. Eisner traduz em seus traços a crueza da vida. A marca de cada gesto é definitiva e não pode ser velada. Ao mesmo tempo não é possível colocar um ponto final na história de um lugar enquanto ali houver pessoas. Não existem lugares, existem pessoas. Eisner pensou os desígnios dos quadrinhos e construiu uma literatura completamente particular. Ele constituiu, com a criação da avenida Dropsie, um mundo imaginário inspirado em suas próprias observações sobre a cidade, nas quais se manifestam os desejos, os sonhos e os mitos do homem.
* Rogério Câmara é doutor e mestre em comunicação pela Escola de Comunicação – UFRJ, graduado em comunicação visual pela PUC-RJ e professor adjunto da Universidade de Brasília. Atua nos programas de pós-graduação em artes e em design, ambos da UnB. Realiza pesquisas sobre poesia visual com interesse nas relações entre escrita e cidade, é autor do livro Grafo-sintaxe concreta: o projeto noigandres e organizador dos sites Enciclopédia Visual e Poema Processo, entre outras publicações.
Referências
BUTOR, Michel. “Le livre comme objet”. Critique, Paris, n. 186, p. 929-946, nov. 1962.
DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2005.
EISNER, Will. A força da vida. São Paulo: Devir, 2007.
______. Avenida Dropsie: a vizinhança. São Paulo: Devir, 2004.
______. Narrativas gráficas. São Paulo: Devir, 2005.
______. Quadrinhos e arte sequencial. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
______. Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço. São Paulo: Brasiliense, 1988.
FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosacnaify, 2007.
MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 2000.
SCHUMACHER, Michael. Will Eisner: um sonhador nos quadrinhos. São Paulo: Globo, 2013.