Ano X 0201
1° semestre de 2015
artigo
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Polymedia e culturas juvenis: estudo de caso em uma favela carioca

Este artigo apresenta as reflexões centrais de minha pesquisa de pós-doutorado no Departamento de Antropologia Digital da University College London (UCL)[1] e converge com a linha de pesquisa que venho trabalhando ao longo dos últimos anos e que é objeto de discussão do livro que publiquei em 2011: Consumo e politização: discursos publicitários e novos engajamentos juvenis, assim como mantém forte conexão com a linha de investigação adotada no Laboratório Universitário de Publicidade Aplicada (LUPA), onde sou uma das coordenadoras, na Escola de Comunicação da UFRJ.

Na proposição central desses estudos dialogamos sobre os usos sociais da publicidade e das novas tecnologias e suas relações com as culturas juvenis. E também em 2012, durante dez meses, como docente do projeto de extensão da UFRJ, Rio Geração Consciente, nas favelas da Maré, Cantagalo e Manguinhos trabalhei com os temas sobre sociedade de consumo e direitos e acessos.  A proposta envolveu a coordenação geral da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social no Rio de Janeiro (Sedes), em parceira com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), o Ministério da Justiça e o Governo Federal. O projeto também teve apoio institucional da Escola de Comunicação da UFRJ, formalizado como um projeto de extensão da escola. Em função dessa parceria, lecionei durante esses meses, no ano de 2012, nos núcleos: Rede CCAP, em Manguinhos, no Imagens do Povo, do Observatório de Favelas da Maré e no Museu de Favela do Cantagalo. O compromisso assumido para minha disciplina foi o de sensibilizar os discentes nesses territórios para os diálogos acadêmicos em mídia, consumo e mediações socioculturais, bem como atuar na concepção e no planejamento de uma campanha institucional sobre o tema da sociedade de direitos, incluindo, nesse debate, o tema do direito ao consumo.

O conteúdo pedagógico do curso objetivava refletir sobre a emergência da sociedade de consumo e seus pressupostos socioculturais, percorrendo as diferentes tradições teóricas que tratam o tema, mas com ênfase em discutir consumo a partir do viés antropológico: como um modo de manifestação de linguagem e um sistema de representação sociocultural ativo.

Nos primeiros registros dos trabalhos de campo, contudo, pude observar de imediato que para a maioria dos discentes prevalecia a visão da sociedade de consumo em um única tradição: como signo do declínio contemporâneo. Esse modo de compreensão da alta modernidade aparecia bem ao estilo da releitura do “fetichismo da mercadoria” na proposição da Escola de Frankfurt: as representações da sociedade de consumo, assim como as produções publicitárias, eram frequentemente narradas como símbolos do desencantamento e estandardização do mundo. Nos discursos dos estudantes do projeto, a sociedade de consumo aparecia como reprodutora do território da exclusão, da representação simbólica da desigualdade e produtora de regimes de visibilidade e hierarquização social. As leituras dos jovens sobre consumo reduziam a expressão à ideia de sociedade consumista onde o princípio da racionalidade e da lógica científica produziria a sociedade da alienação. Por muitas vezes os (as) estudantes me solicitavam leituras de textos que se referiam à tradição crítica. A valorização dessa perspectiva estava fortemente associada à ideia de que, em um contexto de baixa escolaridade, o investimento na formação crítica é o caminho para a compreensão do mundo contemporâneo e seus impasses.

O desafio, portanto, no quadro da minha proposta, configurou-se como de dupla ordem: contextualizar e refletir sobre a ideologia fundante da sociedade de consumo, bem como promover outras possíveis leituras: o entendimento do campo do consumo – sem necessariamente associar o conceito à emergência de um modo de condição social contemporâneo do consumismo – mas como signo sensível de todo o processo comunicativo, ou como sugere Douglas (2004) como modo de “dar visibilidade e estabilidade às categorias da cultura”. Ou ainda a visão predominante nas teses de Canclini (2007) de que as experiências do campo do consumo são agentes de uma racionalidade sociopolítica interativa.

A partir dessa experiência prévia, a pesquisa se desdobrou para o exercício de refletir sobre as formas de relacionamento de jovens residentes na favela do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho com a comunicação digital do Museu de Favela (MUF) da comunidade. Compreendendo o digital como uma experiência sociocultural, passamos a estudar como revelar os modos de interação, os sistemas de mediação dos jovens da comunidade e o fortalecimento de seus vínculos com a proposta museológica do território.

Importante salientar que, no decorrer do ano de 2013, os bolsistas do nosso projeto de extensão LUPA-ECO-UFRJ desenvolveram diversas plataformas digitais para o Museu de Favela como a revista digital[2], a criação de um hotsite e a revitalização da fanpage no Facebook.

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Segunda edição da Revista Digital do Museu de Favela
(Fonte: http://issuu.com/museudefavela/docs/revista_4_final_issuu)

Reconhecendo, portanto, o universo digital como uma possibilidade de articulação e diálogo com os jovens moradores do Cantagalo, Pavão, Pavãozinho, e ainda, compreendendo o repertório da memória como uma ação ativa, que pode encontrar no campo das mediações digitais espaços para o exercício de suas práticas, esse estudo visa:

i)Investigar o conceito de cultura material como representação antropológica, portanto, como mediador de significação pública em representações rituais para ampliar o debate sobre os modos de consumo de meios digitais no espaço da favela. Cabe investigar a experiência digital tanto como prática de empoderamento quanto como forma de exclusão.

ii) Explorar o conceito teórico de polymedia – como uma proposição teórica para o campo da comunicação – produzido por Daniel Miller e Mirca Mandinou (2013). Polymedia é uma categoria teórica que aborda o processo de escolha na ambiência dos usos de meios digitais. Cabe, portanto, investigar como tais escolhas de mídias digitais se exercitam no espaço de relacionamento de jovens com o Museu de Favela do Cantagalo, Pavão, Pavãozinho.

Contribuições da Antropologia para o estudo do digital e dos processos comunicativos

O olhar da antropologia do consumo para os modos de mediação sociocultural na contemporaneidade abre uma perspectiva de análise com foco nos usos sociais que os sujeitos fazem da cultura material. Nesse sentido, a tese de Douglas é referencial quando propõe pensar o consumo “como a ponta do iceberg que revela toda a dinâmica sociocultural em curso” (2004, p.41).

Desse modo, essa perspectiva contribui para relativização da tese de que a fragmentação dos vínculos sociais na ambiência contemporânea é decorrência da cultura de consumo. A leitura de Miller (2010, 2011, 2012) é referencial para essa visão ao sugerir, no espírito da tradição antropológica, que as práticas do consumo são sistemas comunicativos que falam de dinâmicas socioculturais mais amplas. Suas teses contribuem para afinar o olhar para os bens de consumo como categorias socioculturais, como espaços de produção de sentido, como ancoragens sociais.

Nos meus primeiros trabalhos de campo em 2012 com os discentes nos três Núcleos – Cantagalo, Pavão, Pavãozinho; Maré e Manguinhos – embora o registro dominante das representações da sociedade de consumo como símbolo do desencantamento e da estandardização do mundo tenha prevalecido, é possível sugerir que, ao longo das aulas, os estudantes afinaram o olhar para uma nova leitura simbólica. Aos poucos, as visões dos jovens sobre consumo, que reduziam a expressão à ideia de sociedade consumista, onde o princípio da racionalidade e lógica científica produziria a sociedade da alienação, foram dando lugar a um novo olhar mais antropológico. A cultura material pode, por fim, ser observada como linguagem e dinâmica que fala em rica sintonia sobre os dramas mais expressivos da vida social. Paradoxos revelados, tanto pelas contribuições positivas como pelos riscos da cultura de consumo.

O conceito de cultura digital na abordagem antropológica também se mostra como uma fértil contribuição teórica. No livro Digital Anthropology, editado por Horst e Miller (2012), o conceito do digital é traduzido como tudo que tem sido desenvolvido ou pode ser reduzido à lógica binária, aos bits constituídos de 0 e 1. Desse modo, os autores argumentam que pensando o digital como binário é possível delinear seus precedentes históricos. Afirmam, portanto, que o sistema monetário moderno e suas consequências para a humanidade são análogos às questões da cultura digital. Assim como o dinheiro, o digital representou uma nova fase da abstração humana: produziu, paradoxalmente, a comoditização, mas também a pluralidade de culturas e a diferença. Nesse sentido, ambos os processos se fundam na dialética: o virtual e as trocas simbólicas ampliam e democratizam as relações sociais, bem como produzem reflexos negativos. No clássico estudo de Simmel (1978), o dinheiro é a base para a mercantilização das culturas e a vasta produção de bens materiais. Esse aumento quantitativo é também uma potente fonte de alienação, pois ultrapassa nossa capacidade de apropriação cultural. Em certa medida, o debate entre o digital e o humano coloca em perspectiva a profusão de abstração virtual que nos invade e supõe algum nível de superficialidade e dispersão. Assim, a expansão do ambiente digital vai produzindo efeitos positivos e negativos. A pesquisa de Karanovic (2008) sobre os softwares livres relaciona tanto os efeitos positivos das novas formas de ativismo político juvenis pelas redes sociais, como salienta os conflitos institucionais que se agravam com a política de gratuidade no ambiente da internet. Na discussão entre políticas de gênero e ativação digital, Kelty (2008) documenta que a participação feminina em processos de open source é de apenas 1,5%. Verifica-se também que somente 13% dos autores que postam informações na Wikipedia são mulheres. Assim, a cultura digital reproduz desigualdades entre gêneros.

Um outro princípio relacionado à cultura digital refere-se ao debate sobre a autenticidade. A tese, por exemplo, de Turkle (2011) trabalha no sentido de revelar que a socialidade contemporânea gerou a perda do humano e como resultante, o processo tecnológico digital cria uma sociedade robotizada. Em contrapartida, Mandianou e Miller (2011) demonstram que a narração sobre a maternidade das mães filipinas que migraram para Londres e estabelecem relações transnacionais com os filhos é construída na mediação digital. Assim, a autenticidade das relações de parentesco, nesse contexto, pressupõe uma arena de mediação com as novas tecnologias. O mundo online é simplesmente outra arena ao lado do mundo offline para a prática expressiva da maternidade e não há nenhuma razão para privilegiar um em detrimento do outro.

O debate da cultura digital a partir do viés antropológico refere-se também à experiência etnográfica e o quanto é possível traduzir suas interpretações de modo holístico. Embora possamos considerar toda etnografia como uma descrição densa de uma cultura local, como já afirmava Geertz (1997), há três dimensões do processo antropológico: os registros da análise do indivíduo na cultura, as questões que dizem respeito à própria etnografia e as questões que traduzem visões globais. Na discussão entre o local e o global, o debate antropológico sobre o relativismo cultural se insere na análise sobre o digital. Miller (2011) ao analisar os modos de interação social de moradores de Trinidad com o Facebook, afirma que internet é sempre uma invenção local de seus usuários. Mas esses modos de apropriação devem ser depois relacionados com experiências correlatas de outras culturas para visões mais holísticas.

Por fim, ainda um ponto de reflexão sobre o discurso antropológico no ambiente digital é a ambivalência entre a abertura e o fechamento da visão de mundo. A teorização do dilema aparece na análise de Slater e Miller (2007) sobre o uso da internet em Trinidad. Os autores afirmam que a internet promove novas formas de aberturas, mas em seguida sofre novos constrangimentos e controles que geram ambivalência quando se pensa nas liberdades. O trabalho de Livingstone (2009) sobre crianças e os riscos da internet revela que, associados aos benefícios dos novos usos sociais da cultura digital, nota-se o crescimento do bullying virtual, da pornografia na rede, da profusão de sites pró-anorexia e imagens violentas que são compartilhadas por menores. Tais riscos são cada vez mais monitorados por pais, instituições escolares e governos. Morozov (2011) também observa que, assim como o Twitter, o Facebook e o Wikileaks ajudaram a facilitar os movimentos da Primavera Árabe, os regimes opressivos do Irã e da Síria usaram as tecnologias digitais para identificar ativistas e puni-los.

Todos os conceitos aqui alinhavados são fundamentais para a compreensão das narrativas digitais, em especial, o conceito de polymedia (Mandinou; Miller, 2011) que se apresenta como uma categoria teórica que compreende o processo de mediatização como uma questão que envolve escolhas dos sujeitos sociais. Como vimos, pesquisando sobre as relações de parentesco de famílias nas Filipinas em um contexto transnacional – as mães migraram para Londres a fim de buscar inserção no mercado de trabalho – Mandinou e Miller (2011) observam, por intermédio de um estudo etnográfico, como as famílias se relacionam por meios digitais: e-mail, SMS, voice, mensagens audiovisuais por Skype ou Facetime. Em seus relatos dessa experiência observam que, embora uma multiplicidade de meios esteja disponível para interação social, as escolhas para o uso são marcadas pelos vínculos socioculturais mais amplos, por questões afetivas e simbólicas. E é exatamente a compreensão desses relatos que interessa à narrativa antropológica.

Portanto, a partir do quadro teórico acima desenhado, cabe refletir agora sobre as formas de articulação da comunicação digital no Museu de Favela do Cantagalo, Pavão, Pavãozinho. Nesse sentido, investigo como os jovens se comportam socialmente ao interagir com as plataformas digitais.

Primeiras impressões do trabalho de campo no Museu de Favela – Cantagalo, Pavão, Pavãozinho

O Museu de Favela é uma associação de interesse comunitário, sem fins lucrativos, fundada em novembro de 2008 por moradores das favelas de Cantagalo, Pavão e Pavãozinho, entre Ipanema e Copacabana. O projeto nasceu como um plano museológico experimentalista, sem modelos nos quais se inspirar. O conceito: um museu a céu aberto com ênfase na libertação e afirmação cultural comunitária.

O museu territorial integral de cultura de favela, talvez o primeiro no mundo, tem dois modelos de acervos: exposições permanentes instaladas nas galerias, casas ou circuitos de visitação do museu a céu aberto (como na proposta do Circuito Casas Tela) e exposições temporárias (oficinas, festivais, intercâmbios em modo de eventos). Trabalha com a ideia de um museu vivo. Os circuitos também têm importante viés político porque dinamizam a região da favela com visitação, e a agência de negócios turístico-culturais do Museu de Favela (MUFTUR) colabora para que a comunidade produza ações de gastronomia, oficinas culturais, performances musicais e dança no contexto dos circuitos. Assim dinamizam também os fluxos de recursos financeiros na comunidade.

O primeiro circuito de exposições permanente do MUF são as Casas Tela. O projeto pinta a fachada de casas com temas ou narrativas de memória escolhidas pelos moradores. A ideia é que a experiência que conjuga memórias dos moradores e arte se expresse como um novo sentido de cidadania.

02. Casas Tela

Grafite das Casas Tela, a exposição permanente do Museu de Favela

A missão institucional do MUF é realizar a visão de futuro de transformar o Morro do Pavão, Pavãozinho e Cantagalo em Monumento Turístico Carioca da História de Formação das Favelas, das origens culturais do samba, da cultura do migrante nordestino, da cultura negra, de artes visuais e danças[3].

Exatamente no espírito dessa proposta, o curso Rio Geração Consciente foi oferecido. Nesse território me cabia discutir o tema da sociedade de consumo associado às práticas de preservação cultural da memória e de experiências culturais sócio-históricas que se revelassem nos registros simbólicos de linguagens contemporâneas do consumo.

Outro tema mobilizador no debate é a referência às novas tecnologias e aos projetos de afirmação cultural. Começamos investigando as redes sociais e seus modos de representação do mundo. Em debate, levei para o diálogo um capítulo do livro de Miller em Tales from Facebook, que reflete sobre todas as mudanças que as tecnologias digitais vêm produzindo na vida social: o direito à privacidade versus o excesso de exposição. Também a supervalorização do culto ao hedonismo, as práticas e regimes de visibilidades, bem como as novas formas de conexões, os novos acessos à informação e a possibilidade de atualização de vínculos. A ambiguidade do tema da inclusão e exclusão digital sempre norteou nossas conversas: a percepção dominante é a de que todos os atores sociais na favela desejam inclusão digital. A afirmação hegemônica dos discentes em 2012 era de que todos os amigos e parentes dos estudantes do curso, moradores de favela, eram usuários regulares das redes sociais, especialmente do Facebook, mas ainda alguns adeptos do Orkut. O ponto sensível ainda estava circunscrito na qualidade da conexão, na lentidão para downloads de produtos audiovisuais. E também na questão do tempo de dedicação, na medida em que computadores eram compartilhados ou usados em lan houses. Vale observar que, ao longo do ano de 2012, pudemos observar o fechamento de diversas lan houses no território do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho. De acordo com os jovens da comunidade, a facilidade de conexão via celulares (smartphones), que passaram a ser mais acessíveis financeiramente para as classes populares, está progressivamente concentrando o acesso à internet e retirando o interesse de plataformas mais fixas, como computadores de mesa. Esse novo comportamento pode ser curiosamente observado em áreas de convivências na favela onde existem pontos de conexão wifi: jovens passam horas animadamente sentados nas áreas de influência da rede, produzindo novos ambientes híbridos: tanto físicos, de sociabilidade, onde a interação ocorre no espaço da comunidade, como também pelas redes sociais.

03. Facebook MUF

Cover da página do Facebook do Museu de Favela produzida pelo LUPA – ECO/UFRJ

Como já abordei, durante todo o ano de 2013 produzimos no Laboratório Universitário de Publicidade Aplicada (LUPA) ECO-UFRJ, uma parceria com o Museu de Favela para a criação colaborativa de uma revista digital, do hotsite do Favela Tour Cultural e da ativação da página do Facebook. Para o desenvolvimento desses materiais institucionais de comunicação, realizamos diversas investigações qualitativas sobre os hábitos de consumo de mídia digital na favela.

Estamos nesse momento realizando as primeiras reflexões sobre um survey com quatrocentas entrevistas desenvolvidas nas comunidades de Cantagalo, Pavão e Pavãozinho, com a população de ambos os sexos, de 18 a 30 anos, classe socioeconômica C1 e C2, público que é o mais expressivo em termos demográficos na favela, como relatam os documentos de pesquisa do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS) e os dados da UPP-Social, com base no censo demográfico do IBGE de 2010. O tema central do estudo é investigar hábitos de mídia dos jovens moradores da favela, além de a imagem do Museu de Favela, e captar sugestões para ampliar o relacionamento da comunidade com o museu por meio da ativação digital.

Após o survey, selecionamos desse universo uma amostra não intencional qualitativa para produção de investigação antropológica sobre os modos de uso das redes sociais, sites, blogs e aplicativos para smartphones. O objetivo foi, por intermédio da observação participante, acompanhar os processos de escolha de mídias digitais, as formas de postagens, as narrativas preferidas, os gostos compartilhados socialmente de ambientes digitais na favela, assim como investigar os caminhos para potencializar as relações dos jovens com o Museu de Favela. Foi também realizado o acompanhamento de vinte jovens da comunidade, distribuídos em função da faixa etária, do local de moradia, bem como do grau de familiaridade com o projeto do Museu de Favela.

Todo esse material empírico coletado está sendo analisado e compartilhado com o grupo de pesquisa de Digital Anthropology coordenado por Daniel Miller, propiciando, assim, uma análise comparativa dos usos sociais que jovens moradores de uma favela no Rio de Janeiro fazem da tecnologia digital com aqueles efetuados por outros atores em países como Inglaterra, Trinidad, Indonésia, China, entre outros, frutos dos estudos de outros pesquisadores do grupo da University College London. Ao fim desse artigo apresentaremos os primeiros insights dos resultados desse estudo.

Afinando o olhar para investigar hábitos de consumo de mídia digital na favela

De acordo com pesquisa divulgada em fevereiro de 2014 pela Secretaria de Comunicação do governo federal, sob o título Pesquisa Brasileira de Mídia, a internet é o meio que mais cresce em todos os segmentos sociais no país. Embora o resultado ainda revele que um pouco mais da metade, (53%) da população brasileira não tem acesso à internet, outros (47%) são usuários frequentes, sendo que 26% acessam todos os dias da semana. Importante salientar também que entre os jovens brasileiros, apenas 21% não acessam, enquanto 48% usam a internet todos os dias.

Entre os 47% de usuários do ambiente digital, a média de horas gasta em um dia no computador é de 3h39. No Rio de Janeiro a média aumenta para 3h56. Quando se avalia qual (is) os meios digitais mais utilizados, 64% dos que usam a internet acessam o Facebook, com maior destaque para o público feminino (68%) e os de 15 a 25 anos (72%). Os demais sites, blogs ou redes sociais têm baixa adesão. Os mais citados: Globo.com (7%); G1 (5,8%), Yahoo (5%); Youtube (4,9%) e UOL (4,8%). Na avaliação nacional, 84% dos 47% que usam internet acessam do computador. Já do celular são 40%, contra 8% que usam tablets.

Em pesquisa realizada em 2010 pela Firjan discutindo posse de bens e acesso às tecnologias de informação e comunicação em favelas ditas pacificadas no Rio de Janeiro, observou-se que 70% dos moradores do Cantagalo possuem celulares, contra 79% do Pavão Pavãozinho. São 45% os que possuem computador no Cantagalo, mas apenas 16% com acesso à internet. Já no Pavão- Pavãozinho, 31% possuíam computador e apenas 11% com acesso à internet.

Outro estudo realizado pelo IETS, também em 2010, revela que 60% dos moradores do Cantagalo têm contratos de celular pré-pago em 2010, contra 54% que usam telefonia fixa. Observa-se que a inclusão digital é crescente no morro, uma vez que mais de 50% dos domicílios possuem computadores, sejam eles com ou sem acesso à internet. No Pavão-Pavãozinho, 71,5% possuem contratos de celular pré-pagos contra 35,7% que preferem telefonia fixa. Em 2010, 7% da população tinha preferência por celular pós-pago. Quase a metade dos domicílios possui computadores (49%), com ou sem acesso à internet.

Em ensaio exploratório que fizemos no Cantagalo, Pavão, Pavãozinho em 2013, identificamos que entre os jovens de 20 a 34 anos, de ambos os sexos, as atividades mais realizadas na internet são:  acessar sites em comunidades virtuais como Facebook, Orkut e Myspace (34%); atualizar/publicar em comunidades virtuais (29,5%); enviar/receber e-mails (21%); enviar/receber mensagens instantâneas como MSN ou Facebook Messenger (19%); ler notícias nacionais (17%); consultar mapas, rotas, endereços tais como Google Maps (15%); assistir ou baixar fotos e vídeos (15%); fazer upload de fotos ou vídeos em sites de compartilhamento (13%); consultar guias de informações locais (12%). As mulheres gostam também de consultar sites de astrologia/horóscopo (22%); consultar a previsão do tempo (23%); procurar parceiros online/namoro (23%). Já homens estão mais inclinados a jogar games virtuais online (21%) e visitar sites esportivos (20%).

As informações levantadas nos sugerem que o crescimento da ativação digital no complexo do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho já é uma realidade, assim como em outras favelas. Um fato relevante do comportamento de uso dos meios digitais é a profusão de interesses por redes interativas. A cultura colaborativa de enviar e receber fotos, vídeos, trocar mensagens por SMS ou Facebook Messenger é recorrente. Assim como a vivência lúdica de jogar games interativos. Tais experiências nos levam a crer que os laços de sociabilidade e a cultura interativa entre os moradores da favela se desdobram para o mundo digital.

Nesse sentido, propomos para o Museu de Favela a ampliação de suas ferramentas interativas digitais como página no Twitter, maior ativação do Facebook, a criação das hashtags (#museudefavela; #cinemufcaixadagua; #casastela; #mulheresguerreiras) para compartilhar vivências que os moradores experimentaram no MUF; assim como o Instagram para produção em rede de olhares fotográficos da própria comunidade sobre o Museu ou sobre as cenas que os moderadores desejarem documentar do seu dia a dia. Nosso estímulo se deu na direção de imaginar que o processo de memória do território pode ocorrer em um ambiente colaborativo com os próprios moradores sendo atores e autores de seus registros (fotos, vídeos, produções artísticas, textos) de suas experiências, não só com o Museu de Favela, mas com a narração da vida e dilemas da juventude que reafirma seu papel social em um território que ainda vive da dualidade da inclusão e da exclusão.

Achados preliminares sobre ativação digital no Cantagalo, Pavão, Pavãozinho

Para ampliar o nosso conhecimento sobre os usos sociais das mídias digitais no morro e tornar a ativação digital do Museu de Favela mais integrada à comunidade, iniciamos nosso trabalho de campo com um survey que buscou identificar o tempo dedicado às redes sociais, as plataformas preferidas, hábitos de usos e motivações. A intenção de iniciar nosso projeto com uma amostra quantitativa vai de encontro à problemática da escassez de dados secundários quando se estuda um tema de vanguarda como mídia social, especialmente no espaço político da favela, que sofre historicamente com essa falta de informação. Portanto, de acordo com a nossa amostra[4] de 400 entrevistas com jovens moradores de 18 a 25 anos e adultos de 26 a 45 anos, verificamos que 76% dos residentes vivem com uma média de um salário-mínimo como renda familiar mensal. Embora a taxa de desemprego seja pequena, o grau de informalidade com o mercado de trabalho é alta: 59% são registrados como trabalhadores formais; 18% são trabalhadores informais; 4 % são servidores públicos ou militares; 13% trabalham por conta própria e 7% não sabem definir em que categoria trabalham. Se a taxa de desemprego é baixa, a informalidade gera muita insegurança. Quando apresentamos esses dados para as lideranças locais do Museu de Favela, debatemos sobre a correlação entre a instabilidade da relação com o mercado de trabalho e o hábito de consumo de celulares e a viabilidade econômica de acesso à internet. Um representante local do Museu de Favela argumentou que os moradores de favela sempre desejaram os objetos de consumo da classe média. Lembramos do desejo de consumo de jovens das classes populares por tênis de marca e compreendemos esse processo menos como tradução de símbolo de status e muito mais como signo de acesso e inclusão social nos espaços públicos frequentados por jovens de classe média, como shoppings, por exemplo. Assim, podemos concluir que, atualmente, o desejo de consumo de aparelhos celulares aparece como oportunidade de inclusão no ambiente sociocultural da internet. Mais do que aparentar poder com um celular moderno no bolso, para o jovem da favela, usar uma tecnologia como 3G viabiliza navegar na internet com velocidade, já que os sistemas operacionais de internet discada são muito precários em rapidez para downloads. Os dados da pesquisa revelam que 76% dos moradores da favela entrevistados têm acesso à internet, comparados com os 24% que ainda são digitalmente excluídos. Dos que têm acesso ao mundo digital, 42% usam computadores pessoais; 32% têm telefones celulares; 4% acessam de lan houses; 4% da escola/trabalho; 1% de tablets e 1% da casa de amigos. Nossos achados também endossam que o movimento de ativação digital só vem crescendo na comunidade. São 25% os que ficam conectados o dia todo; 35% dedicam a noite para acesso à internet; 19% as tardes e 4% as manhãs. O número de horas de acesso também é bem expressivo: 15% ficam conectados o dia todo, enquanto 27% passam em média três horas por dia na internet; 25% em média duas horas; 15% até cinco horas; 7% mais de uma hora; 6% em média quatro horas e 4% em média oito horas. As plataformas preferidas na comunidade são: Facebook (99%), Whatsapp (85%) e Instagram (62%). Também investigamos as motivações centrais para o uso das redes sociais: 98% usam para enviar e receber mensagens de texto e fotos; 75% usam o chat ou inbox, especialmente do Facebook; 60% costumam falar por mensagens de voz no celular; 50% enviam áudio e vídeo pela webcam; 30% usam e-mail para trocar mensagens e 25% têm o hábito de enviar mensagens via SMS. O uso do telefone celular vem crescendo muito também: 91% dos respondentes têm acesso à telefonia móvel; destes, 54% já usam celulares smartphones. E o sistema operacional dominante é o Android / Google com 85% contra 8% que usam Apple / IOS e 7% que usam Windows / Microsoft.

Miller (2011), quando analisou os modos de interação social dos residentes em Trinidad com o Facebook, concluiu que os usos sociais da internet são essencialmente locais. Por exemplo, eles chamam o Facebook de “fasbook” ou “macbook”, pois “fas” ou “maco” na cultura de Trinidad remetem à noção de afetividade, vínculo social. Esse caso revela a importância do relativismo cultural no mundo digital. Em nossas etnografias com jovens da comunidade pudemos observar que os residentes do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho sempre chamam o Facebook “face” como um carinhoso apelido, revelando a boa relação que mantêm com a interface. Enquanto isso, Whatsapp é jocosamente nomeado de “zap, zap”. A expressão se popularizou na comunidade através de um vídeo viral na internet de uma senhora de classe popular que, em um depoimento autoral, reclama da dispersão das filhas adolescentes depois que passaram a usar o Whatsapp. Ela sugere que suas filhas não se engajam em mais nenhuma atividade que não seja “falar no zap, zap”. O tom da sua fala é muito engraçado e reflete as concepções que nós propomos aqui. É interessante extrair um trecho de seu depoimento: “… antes minhas filhas chegavam em casa e varriam a casa, tiravam pó do chão, arrumavam as camas, mas agora acordam e de camisola mesmo começam no zap, zap, nem escovam mais o dente… mesmo que eu grite, é só no zap, zap… por Deus, quem inventou esse tal de zap, zap? Se alguém está me ouvindo, se alguém souber alguma reza pra livrar minhas filhas do zap, zap, alguma autoridade… é só zap, zap, meu Deus!”. Depois que esse vídeo se espalhou pelas redes sociais, uma vasta produção digital foi criada no Youtube com a paródia do zap, zap. O clipe mais popular na rede é do Mr.Galiza com mais de um milhão de visualizações e trata-se de uma dança com a coreografia do zap, zap. Um pedaço da letra é sugestivo do imaginário social sobre a plataforma: “Oh meu Deus… é na escola ou no trabalho / todo mundo viciado no zap, zap / Quem tem zap, zap levanta a mão?”. Há ainda outro vídeo de Mark Ball que sugere: “Ela não anda, ela desfila / Ela é fashion, capa de revista / Tira foto no espelho para postar no Facebook”.

Toda a produção cultural salientada reflete como, no imaginário social das classes populares, as plataformas digitais já estão incluídas nas retóricas sobre a vida cotidiana. As preocupações dos pais são com a intensidade de uso social da internet pelos filhos: a dispersão, os riscos, o desejo de controle. Os dados apontam também para a reflexão sobre a afetividade com as plataformas pela forma carinhosa como tratam Facebook e Whatsapp. E ainda a temática da produção de subjetividade via selfies, assim como evidencia o cruzamento dos discursos religiosos e políticos de acesso à inclusão digital.

Todas essas expressões, em suma, nos ajudam a delinear os aspectos culturais associados à dimensão da democratização do acesso digital em contextos populares de usos de tecnologia com baixo custo. Assim, como primeiros achados de nossas investigações sobre usos sociais da internet no Cantagalo, Pavão e Pavãozinho, podemos inferir que a qualidade da ativação digital na favela mantém profunda correlação com a dinâmica do território. O forte senso de sociabilidade, as representações da espiritualidade, o tom do humor e o clima jocoso do estilo de vida, bem como o desejo de reafirmação da favela como um espaço criativo e socialmente relevante e em interação constante com a cidade são os temas predominantes nos usos sociais do Facebook e do Whatsapp.  Assim, convergimos com a percepção de Miller (2014) de que as mídias sociais são espaços culturais privilegiados para compreensão antropológica das dinâmicas sociais e que refletem profundamente as contradições contemporâneas de cada localidade em sua especificidade.

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* Monica Machado é professora adjunta da Escola de Comunicação da UFRJ. E-mail: monica@insider.com.br

 

Referências

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Notas

[1] Este estudo de pós-doutorado também faz parte do grupo de pesquisa “Imaginários Urbanos”, do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC), vinculado ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ. O projeto também pertence ao núcleo de pesquisa de Coordenação Interdisciplinar de Estudos Contemporâneo (CIEC) vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Escola de Comunicação da UFRJ.

[2] As duas primeiras edições da revista digital do Museu de Favela (MUF) produzidas por nosso núcleo LUPA ECO/ UFRJ podem ser consultadas em:  http://issuu.com/bernardoremus/docs/muf_revistadigital_n1. Acesso em 17 dez. 2013.

[3] Mais detalhes sobre o Museu de Favela podem ser obtidos no site: www.museudefavela.org. Acesso em 10 abr. 2014.

[4] A amostra foi quantitativa e estratificada por cotas, com base nos dados estatísticos do Censo de 2010 e nos relatórios da UPP-Social Cantagalo, Pavão, Pavãozinho também de 2010.