Resumo: Virginia Woolf nos remete à androginia em um complexo metafórico ao final de A Room of One’s Own (1929). O presente artigo retoma o andrógino como mito fundador do humano que Woolf tenta pôr em movimento numa escrita que anule as sentenças puramente masculinas ou femininas. Desse modo, nos propomos a pensar como tal questão se faz cada vez mais urgente em nossos tempos. Traçaremos, portanto, diálogos entre Woolf e Hélène Cixous, Julia Kristeva, e outros pensadores, no intuito de iniciar um mapeamento de certa poética da androginia a partir da obra da escritora inglesa, uma empreitada que reafirma a atualidade do pensamento woolfiano.
Palavras-chave: Androginia; écriture féminine; Virginia Woolf.
Abstract: Virginia Woolf refers us back to androgyny in a metaphorical complex at the end of A Room of One’s Own (1929). This article reclaims the androgyne as the founding myth of the human that Woolf tries to set in motion in a writing that nullifies the purely masculine or feminine sentences. Thus, we engage in thinking how such a question becomes more and more urgent in our times. We shall therefore foster dialogues between Woolf and Hélène Cixous, Julia Kristeva, and other thinkers, in order to map out a certain poetics of androgyny that stems from the work of the English writer, which reaffirms the contemporaneity of Woolfian thought.
Keywords: Androgyny; écriture féminine; Virginia Woolf.
You hit off my taste in reading very well. I should have thanked you before, but writing was forbidden. I shall tell you wonderful stories of the lunatics. By the bye, they’ve elected me King (…). I had other adventures, and some disasters, the fruit of too passionate and enquiring a disposition. I avoided both love and hatred. I now feel very clear, calm, and move slowly, like one of the big animals at the zoo. Knitting is the saving of life (…).
Virginia Woolf (née Stephen) para Leonard Woolf em 05/03/1912, após voltar de uma casa de repouso. Os dois se casam em 10/08/1912.
Ao final de A Room of One’s Own, “after all this reading” (1929, p. 124), Virginia Woolf volta à janela, tropo constante em sua obra, um umbral entre as negociações internas e as projeções linguísticas do nosso olhar sobre o mundo, nossas dobras e desdobras, como diria Deleuze na esteira de Foucault. De cima, vê homens e mulheres correndo por Londres, um fluxo de corpos que estão alheios à dor do pensamento que acomete a autora. De repente, o fluxo para, ninguém vem ou vai – “nobody passes” (Woolf, 1929, p. 124). Em uma dessas pausas tão características das pequenas ruas londrinas ao redor das grandes avenidas, Woolf diz que apenas a árvore mostra sinal de vida. Como um sinal à calçada, uma folha se separa, e então ela rememora um outro fluxo: o das folhas em direção ao rio e o do rio em direção ao mar, a grande massa que nos escapa nos confins das cidades. É ali, no fluxo desse ninguém que passa na rua deserta, que Woolf nos indica a androginia.
Essa volta ao inumano, aos símbolos do silêncio da voz humana, grifa a resposta de Woolf, que, após uma pesquisa com o intuito de historicizar a exclusão da mulher do mundo público, diz que “talvez pensar (…) em um sexo como distinto do outro seja um esforço” (1929, p. 125). O esforço se revela no entendimento do feminino e do masculino enquanto as sentences que ela examina, frases e condenações à performance que a autora tenta quebrar, reorganizar. Os primeiros passos na rua suspensa no tempo, após a passagem de ninguém, são de um homem e de uma mulher que caminham em ruas paralelas em direção à mesma esquina, bem abaixo da janela da observante Virginia Woolf. Ao chegarem ao ponto em que seus caminhos se entrelaçariam, Woolf diz que o homem para, e que a mulher para; um táxi que vinha de uma terceira rua faceando a mesma esquina também para, e nele entram o homem e a mulher (Woolf, 1929, p. 126).
Após a imagem poética do carro, da coisa em si – sua peroração, “pensem as coisas em si mesmas!” – que une o homem e a mulher, Woolf conclui que uma mente “puramente masculina não pode criar, como também não pode criar uma puramente feminina” (1929, p.128) e começa a traçar o que seria o seu grande projeto inacabado em direção a uma poética da androginia.
Somente quando a fusão da sentença feminina com a masculina “acontece na mente é que ela é totalmente fertilizada e utiliza todas as suas faculdades”, afirma Woolf (1929, p. 128). Essa fusão dá origem à androginia nesse complexo metafórico para o encontro do homem e da mulher na era de Woolf. O problema da androginia se insere em uma questão que Virginia Woolf empreende em toda sua escrita: o da linguagem como representação, comunicação de sentidos que não atinge as potências da imaginação no silêncio do pensamento. De alguma maneira, anunciada em sua obra, existe uma massa humana maior que se comunica com o inumano, o cósmico, um tensionando o outro em um continuum ao infinito. É nesse nível que a junção das sentenças deveria se dar, o que seria a única possibilidade de escapar do mero feminino ou masculino. Essa volta ao mito do andrógino nos abre para uma glosa milenar na obra de Woolf: é em direção aos silêncios que nos direcionamos, então.
Como texto fundador do mito do andrógino, O banquete de Platão nos dá acesso ao pensamento de Woolf, que começou a estudar grego e a ler os diálogos platônicos aos dezessete anos. Lá, Aristófanes discursa sobre a eterna procura pelo amor do outro, seja no sexo oposto ou no mesmo,[1] como resultante da nossa divisão originária. Nós, humanos, teríamos resultado de três seres esféricos: os Andros, as Gynos, e os Androgynos. Separados pelos deuses para enfraquecê-los, nascem os Homens e as Mulheres, e nasce a procura eterna pelo outro perdido. O verdadeiro amor se daria, então, quando achássemos aquela outra cara metade cortada de nós.
Essa imagem mítica primordial do andrógino marca as seitas gnósticas nos primeiros séculos do cristianismo. Santo Hipolito diz que Simão, o Mago, denominava o espírito primordial arsenotéles, macho-fêmea. Os naasenos também concebiam o homem celeste, Adamas, como arsenotéles. O Adão terrestre seria então uma imagem do arquétipo, e por isso andrógino também. Pelo fato de cada humano descender desse Adão, o arsenetéles existiria virtualmente em cada ser humano. Por isso a perfeição seria procurá-lo e encontrar em si mesmo essa androginia. Segundo Mircea Eliade (1999), a androginia é então um drama cósmico que se divide em três momentos para os naasenos: (1) o Logos preexistente, o grande espírito; (2) a engendração e a queda de Adão – separação em dois sexos; (3) e o messias que reintegraria em sua unidade os fragmentos que constituem o universo.
Esse entendimento mítico da origem humana alcança os primeiros românticos alemães. Johann Wilhelm Ritter, médico ilustre e amigo de Novalis, diz que, como o Messias, o ser humano do futuro será andrógino. Nas palavras de Ritter,
Eva foi engendrada pelo homem sem a ajuda da mulher; o Cristo foi engendrado pela mulher sem a ajuda do homem; o Andrógino nascerá dos dois. Mas o esposo e a esposa vão confundir-se em um só e mesmo clarão. O corpo que nascer será então imortal (apud Eliade, 1999, p. 103).
É a partir dessa imagem que o andrógino chega a Virginia Woolf, leitora voraz tanto dos românticos alemães quanto dos ingleses – afinal, é Coleridge que ela cita ao final de A Room of One’s Own quando diz que “toda grande mente é andrógina” (Table Talk, 1 September 1832).
Mas se Ritter enverga a alquimia para explorar o mito do andrógino, Woolf tenta empreender o mito como o lugar da escrita, e por isso a referência aos românticos ingleses é importante. Orlando, que recebe o tempo em clarões, para usarmos a palavra de Ritter, e que foi publicado um ano antes de A Room of One’s Own, demora quatrocentos anos para escrever seu poema The Oak Tree, pois ele/a precisa viver a experiência tanto do menino inglês, quanto da cigana nas montanhas da Turquia, e por fim da mulher moderna. Ele/a é todos ao mesmo tempo, e seu corpo acompanha sua mente: nasce homem, transforma-se em mulher e termina andrógino. A preocupação de Woolf é então revelar o humano de Orlando, aquele lugar silencioso que escapa das representações das sentenças.
É interessante notar que Orlando, se é certamente homem ao nascer no Renascimento inglês, fecha o romance-biografia como uma mulher em 1928 com os seios à mostra, um convite ao seu outro, ilustrado pela figura de seu marido, Shelmerdine. Afinal, esta é a questão de Orlando, a mulher do presente cujas vidas passadas precisa afirmar: como acolher o Outro de si mesma. No silêncio poético de suas últimas imagens, quando Orlando recebe os últimos choques do tempo e se encontra a segundos do tempo simultâneo ao tempo da narrativa, Woolf parece anunciar a mulher como porta-voz da mudança.
Nos últimos parágrafos do romance, vemos Orlando de volta à árvore de carvalho, onde dizia amarrar seu coração flutuante quando menino na corte elisabetana, com seu poema que, ao contrário de seu coração de menino, não se quer raiz, mas as folhas que se desgarram dali. Orlando sente Shelmerdine chegar a quilômetros de distância e imediatamente exibe os seios para lua “para que suas pérolas brilhassem como os ovos de alguma imensa aranha lunar” (Woolf, 1928, p. 215). Orlando se opõe ao avião que paira sobre ela, símbolo para a guerra que Woolf diria ser resultante da sentença masculina apenas, de uma língua sem mãe (Woolf, 1938). Orlando é então um convite para leitores que, em 1928, como Shel, poderiam escolher não repetir os horrores da última guerra ao bater da décima-segunda hora, o presente. Mas o impasse viria mais uma vez. E em 1938, dez anos após Orlando, Woolf mais uma vez chama o ser humano a efetivar o andrógino em Three Guineas. O impasse ainda continua para as novas gerações, testemunhas das mudanças trazidas pela arte e pelos movimentos sociais que transformam a maneira que conhecemos os outros. Hoje, ainda precisamos pensar o que é o andrógino e como se ganha acesso a ele em uma linguagem que tem por princípio aniquilar o outro, objetificá-lo, ao delimitar nossos lugares de fala.
Orlando é mulher e é a chave para um mundo-linguagem de deslugares, andrógino, de ninguém. Isso porque as mulheres, na obra de Virginia, parecem estar mais perto dessa volta ao andrógino, pois são elas que, no silêncio que lhes foi imposto historicamente, intuem uma forma que funde a posição masculina de sujeito da linguagem com a feminina de objeto da linguagem. Em toda a obra de Woolf fica então a questão de como acessar essa sentença andrógina, e a questão é: como quebrar a própria palavra, os nomes, para que o silêncio histórico do feminino seja um lugar outro de enunciação.
Em “Men and Women” (1920), ela repete a frase de Bathsheba, que no romance de Thomas Hardy, Far From the Madding Crowd (1874), diz ter os sentimentos de uma mulher, mas a linguagem de um homem. A questão então é “testar as formas aceitas, descartar as inadequadas, e criar outras mais adequadas” (Woolf, 1920, p. 67). Em “Women Novelists” (1918), ela afirma que algumas escritas parecem conseguir escapar dos limites dessa linguagem destruidora que cristaliza posições de sujeito e objeto, o que em 1924, em seu artigo para a Vogue, “Indiscretions”, ela chama de uma escrita sem sexo definido. Fica claro, assim, que o percurso crítico de Woolf, que culmina nesse trânsito do sexo para o sem sexo definido, da mulher e do homem para o que ela chamaria de andrógino em A Room of One’s Own (1929) e indiretamente em Three Guineas (1938), quer transcender os limites epistemológicos de seu tempo e achar a quebra ontológica que uniria os fragmentos e nos permitiria a todos ser, para além de sujeito e objeto.
Em 20 de abril de 1937, enquanto Virginia Woolf fazia pesquisa para o seu Three Guineas, ela concede uma entrevista para a BBC intitulada “Crafsmanship”, parte de sua série simbolicamente chamada “Words Fail Me”.[2] Na única amostra existente de sua voz, a escritora parece calma mas decisivamente afirmar a liberdade que jaz na palavra, que para ela tem que ser entendida para além de craftsmanship: uma brincadeira com a palavra craft, que no inglês pode significar tanto criar coisas úteis, como no substantivo artesanato, quanto astúcia, engano, magia. Para ela, palavras estão sempre para além dos dois sentidos de craft, pois elas são a verdade completa sobre nossos silêncios se permitidas sua liberdade simbólica. Em suma, a prática de “fechá-las em um sentido, em seu sentido prático” é o motivo pelo qual Woolf diz não existir um grande poeta, um grande crítico, ou um grande escritor em seu tempo (Woolf, 1937, p. 154).
A sentença andrógina é aquela que, então, rememora a liberdade das palavras, que não as fecha em antigos casamentos, mas desfaz e refaz a costura concomitantemente. Ela é livre de seu sexo, sua nacionalidade, dos “nomes antigos”. É significativo que tanto Hélène Cixous, na década de 1970, quanto Woolf, na de 1930, enxerguem em Shakespeare essa habilidade de se retrair e nutrir, de recosturar um mundo literário que seria como um ventre sempre produtivo, de onde nascem seres humanos diversos cujas perspectivas seriam afirmadas em suas diferenças.[3] Ventre, em Cixous, é metáfora para este lugar da escrita; uma afirmação daquilo que antes era impetrado como o feminino natural, inerente ao corpo, enquanto possibilidade na linguagem, na escrita de um ninguém que permite todos, uma nova sentença. Digo ser significativa a referência a Shakespeare porque a imagem se desprende do corpo feminino, mas o usa como anunciador da volta ao que somos nos mitos, um elo entre a androginia de Woolf e a écriture féminine de Hélène Cixous.
Mas quando Woolf declara que “enquanto mulher, eu não tenho país”, e continua, “enquanto mulher eu não quero país. Enquanto mulher, meu país é o mundo inteiro” (1938, p. 313), ela ressalta o porquê da mulher ser a porta-voz da mudança em seu século, o porquê de Cixous chamar a escrita de feminina décadas mais tarde. Diferentemente mesmo de Shakespeare, nem mesmo a um país pertenciam as mulheres, o que as desligava de mais um dever que aprisiona a mente: o patriotismo. Esse seria apenas um dever pater, já que até mesmo a nacionalidade da mulher estava condicionada ao casamento pelas leis de seu tempo. Como Rachel diz para Hewet em The Voyage Out, a mulher gozava de certa liberdade por não ser representante do progresso. É em sua diferença, no legado silencioso do Anjo do Lar, que a mulher no século de Woolf encontra o lugar do andrógino. E o feminino cultural historicamente construído, o lugar à janela, é afirmado como lugar da escrita de ninguém.
O exercício da mente andrógina é então o de reabrir a linguagem, de testar a memória das palavras. “E esta é uma das principais dificuldades de escrevê-las hoje – que elas estejam tão amontoadas de sentidos, de memórias, que elas tenham adquirido tantos casamentos famosos”, diz Woolf sobre a dificuldade de ressignificar as palavras (1937, p. 157). Sua questão é, desse modo, costurar uma nova forma que desse às palavras sua liberdade para lembrar todos os seus sentidos, sem negar nenhum, mas criando novos sentidos em novos casamentos de palavras, o que as impediria de perpetuar os antigos casamentos, pois “combinar novas palavras com velhas palavras é fatal para a constituição da sentença” (Woolf, 1937, p. 157). Cixous, quando escreve seu prefácio para o The Hélène Cixous Reader (1994), organizado por Susan Sellers, diz a mesma coisa em palavras surpreendentemente parecidas:
Nós somos os cuidadores sabidos ou ignorantes de várias memórias. Quando eu escrevo, a língua lembra sem o meu conhecimento ou mesmo com o meu conhecimento, lembra a Bíblia, Shakespeare, Milton, toda a literatura, cada livro. Então, eu que escrevo, eu inscrevo uma memória adicional na língua […] (Cixous, 1994, p. xxi).
Logo, se usadas em sua liberdade, as palavras podem dizer para além dos discursos vigentes, dos limites. Nessa escrita, a palavra fala “em nome de ninguém”, o que significa dizer que o sujeito se dissolve nele mesmo através dos diálogos que tem com os outros em si (Cixous, 1974a, p. 28). A écriture féminine de Cixous se aproxima da androginia de Woolf justamente porque propõe uma efetivação dessa posição de outro, só que agora um outro que fala; um ser ninguém, ser Outro apenas. Trata-se de um “embaçar os espelhos”, como Cixous diz em seu First Names of No One (1974a, p. 33), de uma afirmação dos elos pré-linguísticos entre o self and m/other. A analogia de Cixous é entre o lugar da escrita e a mãe, esse Outro-mãe, lugar que enquanto ventre permite uma experiência de sermos mais que um. A écriture féminine é um lugar que
não está economicamente ou politicamente em dívida com toda a vileza e o pacto. Que não é obrigado a reproduzir o sistema. Que é escrita. Se há um outro lugar que consiga escapar dessa infernal repetição, ele está nessa direção, onde ele[4] escreve ele mesmo, onde ele sonha, onde ele inventa novos mundos (Cixous, 1975, p. 79).
O pacto para o qual Cixous aponta, a vileza, é o acordo velado que todo sujeito faz ao se afirmar em oposição ao outro. É contra a constatação de Freud de que “todo o progresso da sociedade repousa sobre a oposição entre gerações sucessivas” (Freud, 1909, p. 298) que Cixous vislumbra uma escrita que seja pura afirmação da diferença, já que a linguagem nunca é neutra[5] mas múltipla, e que promova a efetivação dos tempos cíclicos e monumentais apontados culturalmente como femininos. Efetivar o tempo do corpo feminino, em oposição ao tempo do progresso, significa perceber que tanto o masculino quanto o feminino contribuem para o tempo da história. É por perceber que o feminino culturalmente construído está mais próximo dessa escrita possível – escrita que Cixous enxerga claramente em Shakespeare, como vimos, mas também em Clarice Lispector[6] –, que ela propõe que a mulher efetive essa escrita das múltiplas vozes, uma escrita louca, no limiar da comunicação, que faz da arte o lugar para a afirmação desse lugar de um ninguém que fala.
Cixous aponta essa escrita como a “passagem, a entrada, a saída, a morada dos outros em mim – os outros que eu sou e não sou, não sei como ser, mas que eu sinto passando, que me fazem viva – que me rasgam, me perturbam, me mudam, quem?” (Cixous, 1975, p. 86). Écriture féminine, então, é uma ultrapassagem tanto da linguagem masculina quanto da feminina; é reconhecer o nutrir da escrita – nutrir, que antes se opusera ao conhecimento nos binários metafísicos. Está aqui a imbricação da escrita feminina com a androginia de Woolf. O verbo que no princípio era era o verbo do pai. As escritoras e escritores devem exercitar o verbo da mãe, que é a possibilidade de todos os verbos, de todas as falas. Assim, através dessa escrita de outros, nasce a mente andrógina.
Esta é a afirmação de Woolf: quero ser muitos, ao mesmo tempo, em ondas, todos costurados em mim. A própria forma do romance que Woolf revigora metaforiza esse tempo feminino, cíclico e monumental. O desditoso termo “fluxo de consciência”, em Woolf, que sempre escapa de uma mente isolada para rastrear os pensamentos complementares de personagens distintas, pode ser reaprendido como uma tentativa de quebrar o tempo masculino com o feminino, um redimensionamento temporal. Se o tempo da história se define, culturalmente, como o tempo dos grandes desbravadores, dos conquistadores, do progresso, esta outra temporalidade se define como objeto desse tempo, o tempo da permanência. O tempo matrilinear é entendido culturalmente por seu lugar fora da história, e à mulher então afixou-se o tempo cíclico – que se metaforiza corriqueiramente pelo ritmo biológico feminino –, e o monumental – tempo resultante do cíclico, que dá à eterna repetição dos ciclos femininos uma aura mística, como se ela sempre ficasse, se renovasse, permanecesse.[7] O tempo dos romances de Woolf tenta remontar esse tempo cíclico e monumental, culturalmente feminino, como ondas que nos passam por muitos outros de nós mesmos, mas que ainda assim organizam uma história. A escrita de Woolf faz da arte, da escritura de vida e obra, um lugar de possibilidade para um novo sujeito e seu novo tempo, nem masculino nem feminino, sem lugar fixo para a fala, um ninguém que acessa o nada e o tudo.
Somente em seus escritos derradeiros, Woolf nos dará sua visão organizada, sem medo de chamá-la de sua filosofia. Ela escrevia o que seria uma coleção de memoirs quando entregou-se ao rio Ouse em 1941, aos 59 anos. Moments of Being, momentos de vida/ser, foi publicado em 1974, quando Julia Kristeva, em Des Chinoises (1974), começava a discutir o suicídio de Woolf na França. Esses momentos de ser são momentos de conexão, momentos em que a superfície é perfurada e que as profundezas são aventadas. Como em um tecido que revela seus pontos quando observado de perto, Woolf nos diz que esses momentos pareciam dar a ela uma noção de que somos constituídos por conexões para além de nosso entendimento, para além da representação do corpo.
Tais momentos vêm em choques, nos diz Woolf, novamente como os de Orlando, que conectavam a escritora a uma outra temporalidade, a outros corpos e mentes, e lhe davam acesso à androginia de Shakespeare. Em meus percursos pelas imagens woolfianas, percebi que seus momentos de vida são aqueles nos quais a prosa do dia a dia é tomada pela obscuridade da poesia; momentos de troca entre êxito prosaico e fracasso poético. Chamarei então aqui esses moments of being de momentos andróginos, que acontecem entre o demônio e as profundezas do mar, para usar as palavras da autora. Eles são momentos que desafiam o Eu, o Outro, e que agrupam toda a experiência humana em um aglomerado de experiências diversas, como as múltiplas possibilidades no palco que é o mundo, uma abertura no fechamento.
por trás da lã de algodão está escondido o padrão; que nós – quero dizer todos os seres humanos – estamos ligados a ele; que o mundo inteiro é uma obra de arte; que somos partes da obra de arte. Hamlet ou um quarteto de Beethoven é a verdade sobre esta vasta massa que chamamos de mundo. Mas não há Shakespeare, não há Beethoven; certamente e enfaticamente não há Deus; somos as palavras; somos a música; nós somos a própria coisa. (Woolf, 1978, p. 84)
O andrógino fora no começo, se voltarmos aos mitos dos humanos primordiais, e será novamente no fim, se pensarmos com Virginia Woolf. Como o fim é sempre um lugar no presente, já que o futuro é uma instância da nossa linguagem no agora, que chegue a nós a androginia de Virginia, sua confusão de lugares de fala, de vida, de existência – sua forma de ver por trás da costura e reatar os pontos na escrita. A androginia se apresenta à janela, na imagem da escritora que tenta negociar um outro futuro para si mesma ao final de A Room of One’s Own. Hoje, somos nós à janela e o limiar é a nossa questão. Descosturar e recosturar: uma nota para os leitores e escritores de hoje.
* Davi Pinho é doutor em Literatura Comparada e Professor Adjunto de Literatura Inglesa no Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Autor de Imagens do feminino na obra e vida de Virginia Woolf (Appris) e co-organizador de Eros, Tecnologia, Transumanismo (Caetés/Faperj).
Referências
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Notas
[1] É importante notar que Aristófanes, o comediógrafo, faz um discurso jocoso. É Sócrates, através de Diotima, que atinge o amor, Eros, na ascese dialética de O banquete. Aristófanes, no entanto, dá uma origem mitológica para o humano que ecoa em outras organizações mitológicas pelos tempos, e é isso que nos interessa aqui.
[2] Publicada postumamente como um ensaio em Death of the Moth and Other Essays (1942).
[3] “There was that being-of-a-thousand-beings called Shakespeare. I lived all the characters of his worlds: because they are always either alive or dead, because life and death are not separated by any pretense, because all is stunningly joined to nothing, affirmation to no, because, from one to the next, there is only one kiss, one phrase of bliss or tragedy, because every place is either abyss or summit, with nothing flat, soft, temperate. There man turns into woman, woman into man – a slaveless world: there are villains, powers of death. All the living are great, more than human” (Cixous, 1974b, p. 98).
“For though we say that we know nothing about Shakespeare’s state of mind, even as we say that, we are saying something about Shakespeare’s state of mind. The reason perhaps that we know so little about Shakespeare […] is that his grudges and spites and antipathies are hidden from us. […] All desire to protest, to preach, to proclaim an injury, to pay off a score, to make the world the witness of some hardship and grievance was fired out of him and consumed. Therefore, his poetry flows from him free, unimpeded. If ever a human being got his work expressed completely, it was Shakespeare. If ever a mind was incandescent, unimpeded, […] it was Shakespeare’s mind” (Woolf, 1938, p. 63).
[4] Do inglês it: o lugar se inventa, se sonha.
[5] Cixous tem um livro intitulado Neutral (1972), um de seus primeiros grandes escritos, em que discute, em prosa, poesia, ensaios e crítica, que é “impossível pensar o um sem o outro e sem tanto o um quanto o outro: o apropriado aqui empalidece, o coração escurece” (1972, p. 8). A escrita aparece ao mesmo tempo como um trabalho de neutralização e desneutralização. De neutralizar, anular, tornar imparcial, o acesso ao mundo da linguagem, e ao mesmo tempo desneutralizar, afirmar, a diferença. Isso porque os sexos, os gêneros e as nacionalidades, como tudo mais, se neutralizam na escrita da diferença, já que não existe um olhar sobre o outro, mas entreolhares, apenas outros. A escrita não é neutra porque não é indiferente a tais olhares, mas afirma a possibilidade de todos.
[6] Em seu ensaio “The Apple in the Dark: The Temptation of Understanding”, de sua coletânea sobre suas leituras das obras de Lispector, Reading with Clarice Lispector (1990), ela diz: “Clarice does not lose herself in the silliness of sublimation. She stays where love stories take place, near the body and the unconscious. Two beings never reach each other in the way of Tristan and Isolde. In Clarice, protagonists burn themselves while en route; they fall down and do all the kinds of things that signify: I do not want to. The more one wants, the more one does not want to. That is what Clarice signals. Otherwise, there would be neither love nor desire” (p. 81-82).
[7] Para uma discussão sobre matrilinearismo, conferir Stabat Matter, de Julia Kristeva (1986).