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Pré-histórias: uma arqueologia poética do presente | Veronica Stigger*

Em 2010, fui convidada a fazer uma intervenção na Mostra Sesc de Artes, em São Paulo. O espaço designado para o meu trabalho foram os tapumes da construção da futura unidade da Rua 24 de Maio, bem no centro da cidade. Já fazia tempo que eu vinha coletando fragmentos de conversas ouvidas na rua ou frases ditas por amigos e familiares. Nem todas as frases eu tinha anotadas. Algumas, sabia apenas de memória, outras, por sorte, havia postado no Twitter e, desse modo, tinha o registro delas. Quando surgiu o convite do Sesc, achei que era a oportunidade perfeita para trabalhar esses fragmentos. Ao expô-los nos tapumes da construção, era como se eu devolvesse à rua aquilo que havia extraído dela.

A quantidade de frases que recolhera até então não era suficiente para preencher os 375 metros quadrados de tapumes. Precisaria de muito mais, e tinha pouco tempo. A primeira providência foi passar para o computador todas aquelas frases que lembrava de memória. “As vacas só existem para me alimentar”, falou uma vez um amigo num almoço de domingo. “Fome é meu estado natural”, respondeu uma amiga quando perguntada se não era muito cedo para irmos jantar. “Um dia todos estarão mortos, você vai querer fazer um churrasco e não vai ter quem convidar”, disse um primo do Eduardo Sterzi, meu marido, para implicar com o caçula da família. O curioso é que as pessoas que pronunciaram essas frases não se lembravam de tê-las dito, enquanto eu nunca as esqueci.

Mas, como comentei, necessitava de mais frases. Apurei então os ouvidos. Na ocasião, estava em Porto Alegre. Enquanto passeava com os cachorros da minha mãe, prestava atenção a tudo o que diziam a minha volta. Num desses passeios matinais, com a vira-lata Dora na coleira, um sujeito, de uns cinquenta anos, se aproximou de mim e, olhando fixo para a Dora, saiu com esta pérola: “Quando morei na Ásia, comi muito cachorro. A carne é boa, bem boa”. À tarde, de posse do meu bloco de notas, pegava o ônibus que fazia o trajeto mais longo até o shopping mais distante da casa da minha mãe e passava horas lá, sentada numa confeitaria, bem no meio do corredor, em frente a uma loja da Swarovski, diante da qual ouvi uma senhora reclamando para a outra: “Não são joias. Não brilham. Não dá para tomar banho com elas”. Nunca entendi a parte sobre a falta de brilho… Eram cristais – como poderiam não brilhar?

Encarava essas idas ao shopping como uma espécie de trabalho de campo, como uma pesquisa, em certa medida, arqueológica e etnográfica. Dentre os tantos fragmentos que ouvi aqui e ali, no shopping, no ônibus, nos parques de Porto Alegre, descendo a Rua Augusta, em São Paulo, na fila do cinema etc., selecionei aqueles que possibilitavam as mais diferentes leituras e que chamaram a minha atenção pelo inusitado do assunto ou pela maneira especialmente significativa como foram ditos. Acredito que certo momento da nossa sociedade está inscrito nessa sequência de frases. Algumas delas são apenas engraçadas, como, por exemplo, aquela que diz: “Essa lagoa é ótima para quem quer casar. Basta dar três mergulhinhos”. Outras, no entanto, são obviamente terríveis, na medida em que colocam a nu aquilo que as pessoas gostariam que permanecesse escondido no âmbito privado. Minha intenção ao registrar e expor frases que foram ditas à boca pequena, como “Me diz uma coisa, ele é débil mental ou só feio mesmo?” ou “Minha mãe rezava para que eu não namorasse uma negra”, era justamente expor o preconceito que impregna esses diálogos íntimos, preconceito que por vezes só fica claro quando é deslocado para a esfera pública. Meu plano era que o espectador, confrontado com frases que foram efetivamente ditas por outras pessoas, mas que talvez pudessem ser ditas por ele mesmo, fosse, ao menos idealmente, levado a refletir sobre seus próprios preconceitos. A ideia primeira era que as frases, que foram transpostas para placas propositalmente toscas, de madeira, feitas de modo artesanal pela artista plástica Edna Nogueira da Silva conforme minhas orientações, fossem vistas sobre um fundo metálico ou sobre um papel espelhado, a fim de que o espectador olhasse a si mesmo enquanto as lesse, ou seja, que ele também se incorporasse à obra. Mas o papel espelhado não resistiria à chuva e o metal extrapolava o orçamento.

Percebi, ao longo da coleta, que, em geral, os fragmentos giravam em torno da tríade mais frequentada nas conversas brasileiras (e talvez não só nestas, mas vivemos aqui…): sangue, sexo e grana. Esta tríade era o nome inicial do projeto para a Mostra Sesc de Artes, mas os textos que falavam abertamente de sexo foram censurados, já que se tratava de um espaço institucional em área pública. Cheguei a incorporar a esta instalação dois comentários irônicos ao corte sofrido: “Não imagina o que ficou de fora”, dizia o primeiro; “Não pode. Por que não pode? Porque não pode”, brincava o segundo, num diálogo imaginário que, para mim, já se tornou um clássico, virando até cartaz em algumas manifestações de que participei. Na falta de um dos elementos da tríade, precisava encontrar outro nome. Foi aí que me dei conta de que este projeto era, de certo modo, uma continuação de um conjunto de textos que compunha Os anões, livro lançado naquele mesmo ano.

Os anões é dividido em três partes: Pré-Histórias, Histórias e Histórias da Arte. Todas as partes são compostas de textos curtos – o maior deles, o conto que dá título ao volume, tem cerca de seis mil caracteres. Mas há uma seção, a das Pré-Histórias, em que esses textos são tão curtos e tão rápidos que me parecem funcionar como uma lufada inesperada de ar que golpeia o rosto do leitor e o deixa sem saber o que, afinal, acabou de acontecer. Menos que contos em miniatura, têm-se aí contos em germe, ficções embrionárias ou potenciais que, por sua própria incompletude, ficam ressoando na memória do leitor. As frases que vinha recolhendo eram dessa família. Elas contêm elementos que fazem o leitor pensar, imaginar o que pode estar ali por trás. Elas fornecem personagens e ações ainda não de todo formados, que pedem desdobramentos por parte de quem as ouve ou lê. O nome do projeto, pois, não poderia ser outro: Pré-Histórias. A este nome, acrescentei um 2, indicando a continuação de uma série.

E a série já teve segmento. No primeiro semestre de 2013, ao ser convidada para a mostra Tuiteratura, realizada no Sesc Santo Amaro, em São Paulo, elaborei o terceiro conjunto de Pré-Histórias. Dado que a mostra fazia referência direta ao Twitter, pensei que seria interessante desenvolver algum projeto relacionado a essa rede social, que não se limitasse a apresentar textos com até 140 caracteres, passíveis de serem publicados em qualquer lugar, mas que explorasse, de alguma forma, a própria lógica do meio. Lembrei-me imediatamente do aplicativo That can be my next tweet, que gera, a partir do que você escreveu nos últimos tempos, seus prováveis próximos tweets, e de como meus next tweets gerados por ele me divertiram muito durante toda uma noite. Recordei que, na ocasião, havia arquivado alguns dos melhores exemplares para algum trabalho futuro. Era chegada a hora de usá-los.

Nas Pré-Histórias anteriores trabalhei, de uma maneira geral, a partir da apropriação de frases de outras pessoas, captadas por aí. Em Next tweet (Pré-Histórias, 3), o procedimento era quase o mesmo, mas as frases não eram mais alheias; eram, supostamente, minhas: readymades meus gerados por uma máquina. Pretendo, em breve, reunir em livro não apenas os meus next tweets, mas também os de amigos e conhecidos.

Em 2012, o projeto das Pré-Histórias, 2 virou livro. Delírio de Damasco (nome da torta que comia em meu trabalho de campo no shopping de Porto Alegre), editado pela Cultura e Barbárie, de Florianópolis, reúne as frases apresentadas na Mostra Sesc de Artes mais as censuradas e outras colhidas depois. Meus editores, Alexandre Nodari e Flávia Cera, me contaram que há leitores que aproveitam os espaços em branco do volume para desenvolver as histórias que as frases sugerem ou para anotar fragmentos que chegaram a eles. O projeto, virtualmente, não tem fim. Eu mesma recebo mensagens com frases que poderiam estar no Delírio. É como se o livro despertasse o arqueólogo poético do presente que se esconde em cada um de nós.

O Delírio de Damasco não pretendia ser um catálogo da intervenção do Sesc. Desde o princípio foi pensado como livro independente. Todas as frases estão organizadas em tercetos, uma forma com a qual eu vinha trabalhando em textos ainda inéditos, como o longo poema “O coração dos homens”, que integra o livro Sul, lançado agora em agosto em Buenos Aires, e num poema que faz parte de um dos capítulos do meu primeiro romance, Opisanie ?wiata. Um dos meus planos para o futuro é fazer uma espécie de catalogue raisonné das frases reunidas em Delírio de Damasco, contando as histórias por trás de cada um dos fragmentos, onde foram colhidos, quem os disse etc.

Em função desse trabalho que resultou no Delírio de Damasco fui convidada a realizar uma exposição na Embaixada do Brasil em Bruxelas. Parte das placas foi refeita, agora em três línguas: português, francês e flamengo. Além das placas, transpus alguns dos meus contos para o espaço expositivo e apresentei um trabalho inédito, pensado já para outro suporte que não o livro, Minha novela, que pode ser visto no Youtube, mas sem, é claro, a ambientação da mostra. Esse texto também deve sair em livro pela Cultura e Barbárie, mesma editora que publicou o Delírio.

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Estou trabalhando atualmente num projeto para as Pré-Histórias, 4, que reunirá frases ouvidas em galerias e museus de arte. O título completo do trabalho deverá ser Quadras de uma exposição (Pré-Histórias, 4). Minha ideia é que seja exibido numa galeria ou num museu: devolver ao espaço expositivo o que ouvi nele. Assim, a sala se povoará não propriamente de trabalhos artísticos, como esperado, mas de vozes, as mais diversas e dissonantes, que falam sobre aquilo que, naquele momento, se acha ausente: as obras. Desta vez, não trabalharei com tercetos, mas com quadras, num jogo com a denominação quadros.

Por fim, para encerrar este longo depoimento, tenho pensado em, no futuro, realizar um outro livro, nos moldes do Delírio de Damasco, só com as frases que ouvi por aí e incorporei a textos meus já publicados, como por exemplo, “É noite no corredor”, dita pela filha de uma colega de Mestrado e que virou a primeira frase do conto “No corredor”, de O trágico e outras comédias, e “As pessoas da nossa classe social não deveriam passar por isso”, dita pela minha irmã e incorporada a “Tristeza e Isidoro”, de Gran Cabaret Demenzial. Será mais um modo de insistir numa das dominantes do meu trabalho, que é o questionamento da realidade pela ficção ao mesmo tempo que se questiona a ficção pela irrupção do real nos limites do texto. Curtos-circuitos, em mais de um sentido.

* Verônica Stigger é escritora, crítica de arte e professora universitária. Tem doutorado em Teoria e Crítica de Arte pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutorados pela Università degli Studi di Roma “La Sapienza” e pelo Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP). É professora das Pós-Graduações em Fotografia e em História da Arte da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) e coordenadora do curso de Criação Literária da Academia Internacional de Cinema (AIC). Entre seus livros publicados, estão Gran Cabaret Demenzial (Cosac Naify, 2007), Os anões (Cosac Naify, 2010), Delírio de Damasco (Cultura e Barbárie, 2012) e Opisanie ?wiata (Cosac Naify, 2013).