dossiê
Tempo de leitura estimado: 28 minutos

PROJECT UNBREAKABLE: A CURA POR MEIO DA VISIBILIDADE

Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar testemunhos autobiográficos de vítimas de estupro, que vão a público narrar suas experiências traumáticas. Tendo como objeto empírico de estudo o projeto fotográfico Unbreakable, que reúne imagens de vítimas de violência sexual, discutimos como a exposição do trauma nas redes sociais é apresentada como algo que possui dimensão terapêutica e curativa, inaugurando uma nova forma de dar sentido ao sofrimento.

Palavras-chave: Project Unbreakable; narrativa; testemunho; estupro; feminismo.

Abstract: This article aims to analyze autobiographical testimonies of rape victims, who go public to narrate their traumatic experiences. Having as an empirical object of study the Project Unbreakable, a photographic project that gathers images of victims of sexual violence, we discuss how the exposure of trauma in social networks is presented as something that has a therapeutic and curative dimension, inaugurating a new way of giving meaning to suffering.

Keywords: Project Unbreakable; narrative; testimony; rape; feminism.

 

Introdução

“Me dê um beijo de boa noite”; “Isso fica entre nós”; “Pare de fingir que você é um ser humano”; “Você é bonita demais pra ser lésbica”; ”Ninguém vai acreditar em você. Sou seu marido – é a sua palavra contra a minha”[1]. As frases que iniciam este artigo fazem parte do Project Unbreakable, desenvolvido pela fotógrafa norte-americana Grace Brown, no ano de 2011, e que reúne fotografias de pessoas vítimas de violência sexual, segurando cartazes com as falas de seus estupradores. Inicialmente, o projeto reunía imagens de mulheres e homens que haviam sido vítimas de estupro. Em seguida, o projeto passou a agregar também imagens de pessoas que sofreram abuso sexual na infância ou que passaram por situações de violência doméstica[2]. O foco deste trabalho é a discussão da auto-proclamada dimensão curativa dos testemunhos, que fica clara já em seu título: “Project Unbreakable – The art of healing”. Investigamos mais pontualmente os depoimentos que estão reunidos no site do projeto (http://project-unbreakable.org/), já que eles nos parecem bastante elucidativos a respeito da proposta de cura emocional divulgada.

Se, em situações de violência sexual, a cultura de culpabilização do sujeito agredido ainda é muito presente, a exposição do fato e a revelação do indivíduo enquanto vítima parecem ser compreendidas como elementos que colaboram com a cura. O que está em jogo aqui não é apenas a dimensão catártica que existe em narrar um evento traumático, mas o movimento catártico e curativo que se dá na performatividade de retratos difundidos nas redes sociais. Dito de outro modo, investigamos como a ida ao espaço público é apresentada como um elemento que pode operar transformações no sujeito no sentido da superação de um trauma.

Nossa hipótese é de que existem condições sociais que possibilitam que tais relatos públicos de vivências traumáticas façam sentido, o que pode ser exemplificado pela grande quantidade de movimentos com propostas estéticas similares às do projeto Unbreakable, como veremos ao longo deste trabalho. Discutimos também a compreensão dos depoimentos como breves autobiografias calcadas no testemunho, tipo de narrativa que vem ocupando com mais frequência o espaço público, por meio da literatura e dos meios de comunicação (Radstone, 2006). Contemporaneamente, esses testemunhos de vítimas passam por um movimento de ascensão e se apoiam, de maneira geral, na legitimidade da experiência, estando inseridos em um contexto cultural de valorização da figura da vítima (Davis, 2005), como veremos.

É também no espaço das redes sociais que se dá a elaboração identitária, a constituição de um self empoderado, o que parece mudar a compreensão das vítimas a respeito de si próprias, fazendo com que elas passem a se definir como vitoriosas ou “inquebráveis”. Incluímos nesta análise o conceito de vergonha reflexiva, que nos parece útil para compreender a forma como os testemunhos de sofrimento ocupam o espaço público. Segundo Vaz, “(…) a vergonha reflexiva significa coragem de vir a público revelar seu segredo, elevando sua autoestima pela valentia demonstrada e por ajudar a todos aqueles que ainda sofrem em silêncio por dependerem afetivamente de preconceituosos” (2014, p. 42).

Nesse sentido, percebemos que a identidade se constrói a partir do acionamento e da reapropriação de uma memória traumática. Um dos trechos dos depoimentos é exemplar: “Antes da minha participação, eu me sentia como um monstro escondido debaixo da cama. Hoje, com o segredo da minha história de abuso lá fora para que o mundo todo veja, me sinto forte e empoderada. Isso significa muito pra mim” (Jemesii).

A valorização do lugar social da vítima

A estética do projeto norte-americano Unbreakable – a fotografia de uma pessoa que segura um cartaz – foi reapropriada por diversos grupos, entre eles o movimento “Não mereço ser estuprada”, criado pela jornalista brasileira Nana Queiroz, em abril de 2014. A iniciativa surgiu após a divulgação de uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), que afirmava que 65% dos brasileiros (de ambos os sexos) concordavam, total ou parcialmente, que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. Dias depois, o IPEA divulgou nota em que alterava o resultado da pesquisa. O número correto (porém não menos alarmante) era de 26% da população e não 65%. Nesse intervalo de tempo, contudo, a iniciativa obteve grande repercussão nas mídias sociais e recebeu milhares de imagens de mulheres com placas e os dizeres “Não mereço ser estuprada”[3].

Algo similar em termos conceituais e estéticos também foi feito pela campanha “I, too, am Harvard”, projeto de alunos negros da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Nas fotografias que compõem a campanha, os estudantes seguravam placas com falas racistas já escutadas por eles no campus da universidade, tais como “Você tem sorte de ser negra… tão fácil entrar na faculdade”[4]. Outra série fotográfica com o mesmo mote foi realizada em 2015, na Universidade de Brasília (UnB), reunindo imagens com a hashtag #AhBrancoDaUmTempo[5].

Essa semelhança entre as ações nos leva a refletir acerca do lugar social contemporâneo da vítima, que parece estar em permanente disputa entre diferentes grupos. A valorização desse lugar social opera, obviamente, efeitos positivos, entre eles a redução do estigma, o reconhecimento do sofrimento e a diminuição da culpabilização da própria vítima.

Não podemos deixar de lado a discussão a respeito do que o sociólogo Joseph Davis (2005) chamou de “cultura da vítima” para se referir a um contexto cultural que oferece vantagens simbólicas a vítimas de diversas experiências, mas concomitantemente cria novas técnicas de lidar com o sofrimento e com a cura, entre elas, práticas terapêuticas (grupos de apoio e literatura de autoajuda, por exemplo) e a própria medicalização dos tratamentos por meio de psicotrópicos.

O posicionamento de Davis é compartilhado pelo historiador Peter Novick (2000), que investigou a maneira como a comunidade judaica foi alçada à condição de vítima primordial do Holocausto e obteve maior visibilidade do que grupos também vitimados pela política de extermínio nazista, como ciganos, homossexuais e oponentes políticos do regime. Por meio de uma análise histórica, Novick identifica uma grande transformação na compreensão a respeito da vítima no contexto norte-americano e no tratamento que é conferido a suas narrativas. “Houve uma mudança na atitude em relação à condição de vítima, de um status de ser universalmente evitado e desprezado, para um de ser frequentemente acolhido. […] Alega-se que dar voz à dor e à raiva é ‘fortalecedor’, assim como terapêutico” (Novick, 2000, p. 8).

Obviamente, discutir a questão do abuso sexual à luz da “cultura da vítima” é um tema controverso e Joseph Davis alerta para os mal-entendidos que podem surgir daí. A respeito da construção social de categorias como “abuso sexual infantil” ou a noção de “adulto sobrevivente”, ele diz:

É difícil imaginá-las como conceitos novos, e tomá-las como algo construído parece errado. Discutir mudanças em conceitos e categorias pode ser facilmente lido de maneira equivocada, como se duvidássemos ou diminuíssemos a realidade de adultos tendo relações sexuais com crianças, questionando o sofrimento pessoal das vítimas, ou introduzindo um relativismo moral diante da prática (Davis, 2005, p. 7).

Note-se que o que está em debate neste trabalho não é a veracidade dos testemunhos, tampouco questionamos a validade das exposições enquanto instrumentos de luta política. O que investigamos é a associação entre exposição do sofrimento e cura, e o modo como estar no espaço público opera mudanças na constituição de subjetividades contemporâneas que “tendem a se projetar na visibilidade e na performance” (Sibilia, 2011, p. 649).

Conceber e reconhecer determinada prática como um problema social deriva em grande parte da atuação de grupos organizados e interessados. A noção de violência sexual enquanto algo socialmente construído e a grande relevância dada ao tema podem ser relacionadas à atuação do movimento feminista, sobretudo a partir das décadas de 1960 e 1970. O New York Radical Feminists’ (NYRF), primeiro encontro feminista que tratou especificamente da questão do estupro, aconteceu em 1971. Na conferência, discutiu-se a importância dos relatos públicos a respeito dos abusos sexuais e foram problematizados trabalhos já realizados sobre o tema, mas que ainda continham elementos morais que culpavam a vítima no lugar de seu agressor. É dentro desse contexto social, de intensas disputas no campo das políticas de identidade, que é criado um terreno fértil para o aumento no número de testemunhos e relatos públicos, como afirma Davis:

Antes da década de 1970, a compreensão sobre crimes sexuais e suas vítimas não incitava ou justificava relatos públicos (isto é, contados a desconhecidos). Também não se fornecia uma estrutura narrativa por meio da qual as vítimas podiam formular relatos públicos sobre molestação sexual ou incesto que elas e sua audiência acreditassem ser intelegíveis, críveis e relevantes. Não havia histórias públicas de vítimas, em suma, pois não havia uma história coletiva de vitimização (2005, p. 28).

Além da mudança na compreensão a respeito da relevância social da vítima, o entendimento coletivo sobre a prática do estupro passou por intensa transformação nas últimas décadas. É isso que discutimos adiante, através de uma perspectiva cultural e histórica.

Estupro: silenciamento e culpa

No livro História do estupro: violência sexual nos séculos XVI a XX, o historiador francês Georges Vigarello analisa as transformações nas concepções a respeito da violência sexual, discutindo os múltiplos significados sociais de práticas como o estupro. Na obra, Vigarello (1998) afirma que a violência sexual é a violência de nosso tempo. Esse ponto de vista é compartilhado por Davis, que afirma: “Na esfera pessoal parece justo dizer que o abuso sexual se tornou nosso caso paradigmático de vitimização (a nível coletivo, o genocídio é provavelmente o paradigma)” (2005, p. 3).

Mas o que isso significa? Obviamente, não quer dizer que essa prática não existia ou que ela seria uma mazela tipicamente contemporânea. O que os pesquisadores sugerem é que a violência sexual é hoje um problema social que possui grande repercussão e mobiliza a opinião pública. Porém, diferentemente do que acontece hoje, os desvios no âmbito da sexualidade eram, sobretudo, morais. No caso do estupro, havia sim a dimensão do atentado à moralidade, mas não a concepção de que aquela violência se dava contra o sujeito em sua individualidade. Isso só vai mudar na segunda metade do século XX, como veremos adiante.

A violência contra mulheres era socialmente tolerada, sobretudo quando não havia sinais físicos de agressão, o que favorecia o entendimento de que a vítima não tinha tentado resistir. Veremos ao longo deste trabalho que ainda hoje tal suspeita se manifesta de formas diversas. Na verdade, há uma desconfiança em relação ao sofrimento de uma maneira geral. Para que ele gere efeitos como o sentimento de compaixão, devem existir alguns elementos e requisitos, sobretudo morais, entre eles a própria “credibilidade” daquele que sofre (Boltanski apud Illouz, 2003, p. 123).

Outros elementos da moralidade então vigentes nos séculos XVI e XVII operavam para a definição do nível de condenação do ato: se a vítima era virgem ou não, a que classe social ela pertencia, em que situação a agressão havia se dado etc. Porém, dentro desse contexto, era a mulher que sofria a violência que ficava estigmatizada de forma permanente, como diz Vigarello: “É primeiramente um gesto de lascívia. Isso focaliza o olhar sobre a luxúria e o pecado, agravando sub-repticiamente o comprometimento da vítima, um estado de indignidade que a sentença penal não consegue apagar” (1998, p. 36).

A noção de violência sexual surge somente após o Iluminismo. Desponta então uma nova sensibilidade social relativa ao estupro. A partir desse momento de mudanças sociais e políticas, e devido a uma multiplicidade de fatores (entre eles o aperfeiçoamento dos exames médicos), as denúncias aumentam significativamente, transitando de uma “passagem histórica de um silêncio relativo para uma visibilidade ruidosa” (Vigarello, 1998, p. 7).

Apesar disso, aspectos da moralidade dominante ainda impediam o reconhecimento da violência. No Brasil do século XIX, a violência doméstica, por exemplo, era facilmente justificada e legitimada, como aponta a historiadora Michelle Perrot: “Bater na mulher e nos filhos era considerado um meio normal, para o chefe de família, de ser o dono da sua casa – desde que fizesse com moderação. Tal comportamento era tolerado pela vizinhança, principalmente nos casos em que as esposas tinham reputação de serem donas-de-casa ‘relaxadas’” (2008, p. 77).

A discussão sobre a violência sexual no âmbito político internacional começa a partir da forte atuação dos movimentos feminista e homossexual, nas décadas de 1960 e 1970. Nesse mesmo período surge a ideia de consentimento que, apesar de poder ser problematizada (quem pode consentir? Em que momento e condições?), se torna central para a legitimação de determinadas práticas sexuais. Dentro das transformações no campo da sexualidade, algumas práticas antes consideradas doentias, como a homossexualidade, o sadismo e o masoquismo, obtiveram legitimidade. Isso, porém, não se estendeu a todas as práticas sexuais, como explica Vaz: “(…) se um ato sexual for consentido e os parceiros forem socialmente considerados capazes de consentir, não importará mais a forma que toma. Inversamente, dois atos passam a ser vistos de modo muito negativo: a pedofilia e o estupro” (2014).

No contexto brasileiro é no mesmo período que o corpo feminino se torna “o centro das lutas públicas” das mulheres, manifestando-se pelo aumento de denúncias de casos de violência (física e sexual) e pela demanda de descriminalização da prática do aborto (Perrot, 2008). É também nesse momento que surge a noção do trauma causado pela experiência de violência e a própria gravidade do ato será medida em relação ao dano psicológico que foi causado.

A referência ao trauma interior, alusão psicológica mencionada por alguns eruditos no começo do século, por muito tempo ausente das declarações feitas pelas vítimas e pelos defensores ou peritos, se torna umas das referências maiores para qualificar a gravidade do crime. Não mais o peso moral ou social do drama, não mais a injúria ou o aviltamento, mas a desestabilização de uma consciência, um sofrimento psicológico cuja intensidade é medida por sua duração, ou até por sua irreversibilidade (Vigarello, 1998, p. 213).

A cura por meio da visibilidade do testemunho

O Project Unbreakable possui perfil em diversas redes sociais, entre elas Facebook, Twitter e Tumblr. Desde seu lançamento, o projeto contou com ampla adesão e foi noticiado por vários veículos jornalísticos. Atualmente, ele reúne cerca de 4 mil fotografias, entre imagens realizadas pela fotógrafa norte-americana Grace Brown e registros enviados pelas próprias vítimas, vindos do mundo todo.

Algumas imagens escondem o rosto da vítima ou trabalham com performatividade como a escrita das frases no próprio corpo, mas a grande maioria delas segue o mesmo padrão: uma pessoa de pé segura a placa com os dizeres na altura do tórax, deixando seu rosto exposto. Apesar de continuar sendo atualizado, a fotógrafa idealizadora do Project Unbreakable já anunciou que irá pausar as atividades do projeto, que já existe há quatro anos[6].

Mulheres vítimas de violência sexual fotografadas por Grace Brown
Mulheres vítimas de violência sexual fotografadas por Grace Brown

Optamos por focar esta investigação nos 25 relatos testemunhais disponíveis na página oficial do projeto na rede (http://project-unbreakable.org/) para que a discussão ficasse condizente com as limitações espaciais deste trabalho. Nos depoimentos reunidos na aba Testimonials, as vítimas narram suas impressões a respeito do projeto e as modificações operadas nelas após a participação no mesmo.

Percebemos que há certa similaridade nos testemunhos, em seus modos de narrar. Quais elementos surgem com mais frequência? As ideias de diminuição da culpa e do sentimento de solidão são recorrentes. Uma das mulheres diz: “Antes de descobrir o projeto Unbreakable eu vivia todos os dias em meio ao silêncio e à solidão” (Kacee). Outro elemento bastante presente nas narrativas é o aspecto terapêutico e transformador da participação no projeto, como surge em uma das falas: “Ser fotografada pela Grace foi um enorme passo para mim na minha recuperação. Isso me ajudou a continuar me curando e a reafirmar que o abuso NÃO me define” (Eileen).

A recorrência de alguns elementos na fala acontece porque as narrativas de experiências de vida, que reconfiguram o passado e dão sentido ao presente, estão ligadas aos próprios modos possíveis de existência que são oferecidos por nossa cultura, como diz Sibilia: “Assim como toda subjetividade é necessariamente embodied, encarnada em um corpo, ela também é sempre embedded, embebida em uma cultura intersubjetiva” (2008, p. 16).

Nos casos em que o estupro se dá no interior de uma relação afetiva, por exemplo, a leitura de vivências alheias faz com que o indivíduo se identifique enquanto uma vítima. A incerteza por parte da vítima a respeito do que aconteceu com ela faz com que tenha dificuldade em dar sentido ao ocorrido, já que muitas vezes não há violência física e sim psicológica. Um dos depoimentos é representativo:

Encontrei o site logo após ter sido estuprada por um namorado. Ver tantas pessoas segurando placas com as mesmas palavras que ele disse pra mim me fez perceber que aquilo foi um estupro real. Me ajudou a ter forças para prestar queixa e eu também escrevi as palavras que meu agressor me disse. Obrigada! (Cassie)

A leitura de outros depoimentos, assim, ajudaria a reelaborar e significar uma experiência anterior dentro dos parâmetros da narrativa lida. “O testemunho exposto no espaço público, por conter essa nova forma de compreender o estupro e um nexo preciso entre evento passado e sofrimento presente, pode ser usado por outras pessoas para pensar suas vidas (…)” (Vaz; Santos; Andrade, 2014, p. 16).

Essa espécie de pedagogia das emoções, porém, não é algo determinado, como diz Davis: “O modo como compreendemos a nós mesmos e narramos nossas experiências é um processo interacional e habilidoso, moldado não apenas pelas narrativas-modelo disponíveis, mas também por nossas experiências, contexto social e objetivos pessoais” (2005, p. 16).

A maioria dos testemunhos enfatiza a dimensão de empoderamento dada pela exposição da imagem e do “segredo”. O simples fato de tornar público algo tão doloroso e íntimo já faria com que as mulheres (e também alguns homens) mudassem sua compreensão a respeito de si mesmos e passassem a se ver enquanto indivíduos vitimados, mas também como sobreviventes corajosos. Dar sentido ao trauma, ao sofrimento psíquico implica também a construção identitária do sujeito. As mulheres e homens que participam do projeto se apresentam como vítimas que sofreram algo terrível mas, concomitantemente, como indivíduos vitoriosos por terem superado o trauma. Um trecho de um dos testemunhos é esclarecedor: “O projeto Unbreakable me ajudou a aceitar o que aconteceu e a aceitar que sou uma sobrevivente” (Ray Kayle).

Após ter analisado narrativas de sofrimento e superação em talk shows norte-americanos, Illouz (2003) concluiu que esse tipo de produto midiático é bem-sucedido por apresentar não apenas histórias de sofredores, mas, sobretudo, relatos de transformação pessoal. Outro testemunho exemplifica a dimensão identitária do projeto: “Eu sigo o projeto Unbreakable no Tumblr. Me inspira a força dessas mulheres, de várias partes do país, de se levantarem e serem fotografadas assim. É empoderador. O projeto Unbreakable está transformando vítimas em sobreviventes” (Megan).

Quando mulheres e homens que sofreram abuso ou violência sexual vão a público narrar suas experiências traumáticas, eles buscam deixar de lado a culpa, que parece ser agravada pelo silêncio. Vir a público estimula inclusive que a vítima conte o que aconteceu a seus amigos e familiares, como diz uma das mulheres: “E depois de mais de 10 anos de silêncio sobre o abuso, eu usei minhas fotos do Unbreakable para dizer à minha família sem vergonha ou medo, o que mais que tudo, verdadeiramente me deu liberdade para seguir em frente” (Emily).

O distanciamento desse sentimento de culpa por meio da exposição do sofrimento está em sintonia com o modo contemporâneo de produção subjetiva. Segundo Vaz (2014), os indivíduos contemporâneos temem ser associados à figura do preconceituoso e aqueles que passaram por situações traumáticas sabem hoje que não devem se envergonhar ou sentir culpa.

O que parece surgir aqui é o fenômeno da vergonha reflexiva: o indivíduo tem vergonha de um dia ter sentido vergonha. Os testemunhos discutidos sugerem que os sujeitos se envergonham por um dia terem se sentido responsáveis pelo episódio de violência sofrida e por terem mantido em segredo essa experiência de violência, como afirma Vaz:

A vergonha reflexiva implica, sim, um observador no presente questionando e se distanciando do observador que foi no passado, ou ainda, o indivíduo experimenta atualmente vergonha por ter um dia sentido vergonha de quem era e do que fazia. O questionamento do observador que se envergonhava promove e supõe um orgulho atual de ser o que se é e uma atitude de desafio e sedução em relação a todos aqueles que podem julgar seu desejo e comportamento (2014, p. 41).

Livrar-se da toxicidade do segredo, entretanto, não quer dizer que deixem de existir constrangimentos de ordem individual e coletiva. Quando falamos na dimensão terapêutica da visibilidade, certamente não queremos dizer com isso que a cura se dá única e exclusivamente no espaço público. O que parece acertado afirmar, porém, é que o “tornar visível” é um dos modos contemporâneos de dar sentido e reelaborar determinadas experiências, entre elas aquelas traumáticas e dolorosas. Isso é sugerido por um dos depoimentos: “Demorou um pouco para que eu tomasse coragem, mas eu finalmente participei de uma sessão de fotos para o site. Para mim, tirar a foto foi apenas metade da batalha. A outra metade foi compartilhá-la – arriscando, na realidade, mais vergonha com o objetivo de combater a vergonha” (Maria).

A vergonha reflexiva está diretamente ligada ao princípio da autenticidade (Vaz, 2014), tão em voga no contemporâneo. Desde meados da década de 1960, momento de grandes transformações políticas e comportamentais no mundo ocidental, somos convocados a sermos nós mesmos, a agirmos conforme nosso próprio desejo. Essa onda de reivindicações por reconhecimento identitário sugere que não há porque termos vergonha daquilo que somos. O que devemos é, ao contrário, afirmar nossa própria identidade (Vaz, 2014).

Mas, se o princípio da autenticidade identitária rege a sociedade como um todo, percebemos aí um paradoxo. Como ser diferente e autêntico se todos são estimulados a serem eles também diferentes e autênticos? A mesma questão é levantada por Sibilia: “Não é fácil compreender para onde aponta essa estranha conjuntura, que, mediante uma incitação permanente à criatividade pessoal, à excentricidade e à procura constante da diferença, não cessa de produzir cópias e mais cópias descartáveis do mesmo” (2008, p. 9).

No caso dos testemunhos de sofrimento no ambiente virtual, a semelhança das formas narrativas é clara. As pequenas narrativas brevemente discutidas demonstram como o testemunho, que ocupa o espaço público necessariamente, passa a ser primordial para a produção das subjetividades contemporâneas, disseminando-se tanto na literatura quanto na mídia em geral, como afirmou Radstone (2006). Cabe notar que a forma de expressão testemunhal não é mero reflexo do self, mas antes a própria forma de construção dele. “Pelos elementos que as compõem e pelos modos específicos com que são ordenadas e enunciadas, cada uma dessas narrativas autobiográficas produz diferentes modos de ser” (Vaz; Santos; Andrade, 2014, p. 2). Apesar de guardar semelhanças em relação a narrativas confessionais, o testemunho possui distinções importantes.

A confissão é endereçada a um interlocutor, seja ele padre ou analista, que ocupa um lugar de autoridade e tem o poder de exigi-la e de determinar se ela foi suficientemente verdadeira. Adicionalmente, quando se trata da confissão com função de salvação ou cura (e não como elemento de um processo judiciário), ela é secreta. O testemunho, por sua vez, supõe um duplo endereçamento. De um lado, é endereçado ao indivíduo qualquer. Ao invés de pressupor a diferença na capacidade de se conduzir na vida, o testemunho pressupõe a igualdade entre os interlocutores e posiciona o indivíduo qualquer como tolerante e compassivo. De outro lado, o testemunho se apresenta como desafio endereçado àquele que fez o indivíduo sofrer (Vaz et al., p. 3).

Dentro de uma cultura de valorização dos testemunhos, a autoridade da experiência é fortemente valorizada. Apesar de o testemunho pressupor igualdade entre os interlocutores, há certa hierarquia no sentido do direito à fala, de sua legitimidade enquanto narrativa. Só têm voz aqueles que viveram a experiência. Isso fica claro no trecho de despedida da fundadora do projeto, ao tratar de uma das críticas que recebeu: “Um pessoa disse que por eu não ser uma sobrevivente, não tenho o direito de manter esse projeto (…)”[7]. Outra distinção entre a prática terapêutica confessional e os testemunhos é que, na primeira, existe alguém (padre ou pastor) que possui o poder de perdoar e extinguir a culpa. Já no caso dos testemunhos, a libertação da culpa acontece entre indivíduos semelhantes, ambos situados em um contexto de visibilidade. O objeto daquilo que é relatado também é essencialmente distinto no caso de confissões e testemunhos, como afirma Radstone: “Na confissão é o self que é examinado e envolvido — o self é o tema e o objeto de confissão. O objeto do depoimento testemunhal, por outro lado, é sempre um evento ou o Outro, exterior à testemunha” (2006, p. 169).

A questão é não apenas narrar seu sofrimento, mas vencê-lo, superá-lo por meio da performatividade no espaço público. Como foi dito, essa nova forma de lidar com o sofrimento causado por um evento traumático é distinta de práticas terapêuticas modernas. Se a ida ao espaço público possui dimensão terapêutica, podemos concluir que o segredo por si só pode ser algo tóxico. Livrar-se do segredo e falar sobre a experiência traumática traria dois benefícios: além de dar sentido ao trauma, como vimos, ele ofereceria a possibilidade de ajudar outras pessoas que tenham vivenciado a mesma experiência em um espaço de solidariedade (Illouz, 2003).

Sobre a ajuda a outras pessoas que viveram experiências similares, ela é usada tanto como argumento para a exposição individual (vou a público para ajudar os outros) quanto como narrativa da pessoa que foi ajudada. Em um dos testemunhos, lemos: “A bravura dela me ajudou a ser corajosa também”. A veracidade dos relatos é tida como algo a priori. Afinal quem iria a público para contar algo tão doloroso se este nem sequer existiu? A medida da veracidade está justamente na dificuldade da revelação. Quanto mais difícil for falar, mais o testemunho ganha credibilidade e veracidade: “(…) um critério adicional de verdade é a dimensão de desafio implícito no próprio fato de ter tido a coragem de dar testemunho de sua vitimização” (Vaz; Santos; Andrade, 2014, p. 4). Também desponta aí uma das justificativas para as construções identitárias vencedoras e corajosas.

Considerações finais

O movimento de rápida e intensa adesão ao Project Unbreakable é sinal do potencial viral das redes sociais. Porém acreditamos que a notoriedade e a ampla participação de sujeitos no projeto também podem ser compreendidas como indícios de um novo modo de subjetividade contemporânea, que se constrói na visibilidade e na exposição da intimidade.

Buscamos neste artigo relacionar os dispositivos midiáticos com novas formas contemporâneas de subjetivação. Por isso, tratamos, além da questão da visibilidade, daquilo que Joseph Davis chamou de “cultura da vítima”, abordada no início deste artigo. Nossa intenção é que esse trabalho seja lido não como uma tentativa de diminuir ou relativizar o sofrimento de homens e mulheres que vivenciaram experiências dolorosas, mas sim como um esforço de compreensão dessas novas práticas testemunhais que surgem no espaço público e são entendidas como terapêuticas, práticas evidenciadas em nosso modo de ser e estar contemporâneos.


* Bruna Rodrigues é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/Pós). Mestre em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), com auxílio da Bolsa Faperj. Possui Especialização em Gênero e Sexualidade pelo Instituto de Medicina Social (IMS) da Uerj e graduações em Rádio e TV pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (2010) e em Jornalismo pela Uerj (2009).

Referências

DAVIS, Joseph. Accounts of innocence: sexual abuse, trauma, and the self. Chicago: University of Chicago Press, 2005.

ILLOUZ, Eva. Oprah Winfrey and the glamour of misery: an essay on popular culture. New York: Columbia University Press, 2003.

NOVICK, Peter. The Holocaust in american life. Boston: Mariner Books, 2000.

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2008.

SIBILIA, Paula. A técnica contra o acaso: os corpos inter-hiperativos da contemporaneidade. Famecos (Porto Alegre), v. 18, nº 3, p. 638-656, set./dez. 2011.

SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

RADSTONE, Susannah. Cultures of confession/cultures of testimony. In: GILL, Jo. Modern confessional writing: New critical essays. New York: Routledge, 2006. p. 166-179.

VAZ, Paulo. Na distância do preconceituoso: narrativas de bullying por celebridades e a subjetividade contemporânea. Galáxia (São Paulo), nº 28, p. 32-44, dez. 2014.

VAZ; Paulo; SANTOS, Amanda; ANDRADE, Pedro Henrique. Testemunho e subjetividade contemporânea: narrativas de vítimas de estupro e a construção social da inocência. Lumina (Juiz de Fora), v. 8, nº 2, dez. 2014.

VIGARELLO, Georges. História do estupro: violência sexual nos séculos XVI-XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

 

Notas

[1] Tradução nossa.

[2] Informações obtidas em: http://project-unbreakable.org/about/. Acesso em 18 out. 2016.

[3] Informações obtidas em: https://www.facebook.com/diganaoaomachismo?fref=ts. Acesso em 18 out. 2016.

[4] Informações obtidas em: http://itooamharvard.tumblr.com/.  Acesso em 18 out. 2016.

[5] Informações obtidas em: http://ahbrancodaumtempo.tumblr.com/. Acesso em 18 out. 2016.

[6] Disponível em http://projectunbreakable.tumblr.com/post/122289211207/an-announcement. Acesso em 18 out. 2016.

[7] Disponível em: http://projectunbreakable.tumblr.com/post/122289211207/an-announcement. Acesso em 18 out. 2016.