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Quatro tecnologias da identidade juvenil feminina

Angela McRobbie*
Tradução: Liv Sovik*
Revisão: Patrícia Farias e Eneida Leal Cunha

O patriarcado ressurgente e o cerceamento de gênero

Um novo contrato sexual mais cultural do que jurídico está disponível para mulheres jovens, sobretudo no Ocidente, que as incentiva a assumirem um lugar e a aproveitarem oportunidades de trabalho, de qualificação, de controle da fertilidade e de renda para participarem da cultura de consumo que, por sua vez, torna-se uma definidora dos modos contemporâneos de cidadania feminina. Uma série de tecnologias é ativada para que esses incentivos surtam efeito. Essas tecnologias incluem diversas práticas sociais e culturais que se caracterizam pela experiência de movimento combinada com a exposição da jovem subjetividade feminina aos holofotes, tornando-a visível de uma forma específica. Por isso, utilizo o termo “luminosidade”, de Deleuze. A ideia de um holofote móvel é adequada porque reflete algo do panóptico de Foucault, mas em lugar da vigilância produz-se um efeito teatral ou cinematográfico. Utilizo o termo “espaços de atenção” para examinar como essas luminosidades operam na vida cotidiana.

A partir daí, pergunto: como dar conta da gama de transformações sociais, culturais e econômicas que trouxeram à tona novas categorias de feminilidade jovem? Considerando que tais mudanças se consolidaram no Reino Unido (e em outros lugares) nos últimos dez ou quinze anos, como devemos interpretar as implicações desse decisivo reposicionamento das jovens mulheres? Tais transformações tendem a ser vistas como positivas. Da esquerda à direita, os aparentes ganhos das jovens mulheres são interpretados como indicações saudáveis de democracia. Mas a perspectiva feminista que apresento aqui está consciente dos perigos que surgem quando um conjunto de valores e ideais feministas parece estar inscrito em uma tentativa mais profunda e deliberada de remodelar noções de feminilidade, empreendida por uma série de forças políticas e culturais,  para que estas se adequem a arranjos sociais e econômicos novos ou emergentes (neo-liberalizantes).

A menina ou jovem mulher emerge em uma gama de espaços sociais e culturais como um sujeito em que vale a pena investir. Dentro da linguagem do governo britânico do New Labour (Novo Trabalhismo), essa menina, que se beneficiou da igualdade de oportunidades hoje disponível, pode ser mobilizada como a própria personificação [embodiment] dos valores da nova meritocracia. Este termo se tornou uma expressão abreviada dos valores individualistas e competitivos promovidos pelo New Labour, sobretudo no âmbito da educação. Hoje, o sucesso da jovem mulher parece lhe prometer uma prosperidade proporcional a seu entusiasmo pelo trabalho e a carreira. A liberdade e o sucesso atribuídos às jovens assumem formas diversas, que atravessam as fronteiras de classe social, etnia e sexualidade, produzindo uma gama de configurações de feminilidade jovem marcadas pelo enredamento de raça e classe. Depois de se postular que seu destino deveria ser o casamento, a maternidade e a participação econômica limitada, a esta menina hoje é atribuída potencialidade econômica. Mulheres jovens de origens étnicas e sociais diferentes, cada vez mais instruídas, atualmente enfrentam a exigência e a responsabilidade de um desempenho econômico ativo. São convidadas a se reconhecerem como sujeitos privilegiados de transformação social; talvez se espere delas até que sintam gratidão pelo que receberam. A mulher jovem negra, branca ou asiática, agradável, viva e capaz, é hoje um sinal atraente da transformação social.

Examino o novo estatuto da nova mulher considerando quatro “espaços de atenção”, cada um deles funcionando para sustentar e revitalizar o que Butler chamou a “matriz heterossexual”, que simultaneamente estabelece e confirma, sutilmente, tanto normas de hierarquia racial, quanto divisões de classe reconfiguradas, as quais assumem formas mais autônomas das dimensão de gênero. Definindo tais “espaços de atenção” como luminosidades, proponho que consistam, primeiro, do complexo de moda e beleza, do qual emerge a mascarada[1] pós-feminista como modalidade distinta de agência feminina. Em segundo lugar, há o espaço luminoso da educação e do emprego, dentro do qual se encontra a figura da working girl. Terceiro, o espaço hipervisível da sexualidade, fertilidade e reprodução, do qual emerge a garota fálica. O quarto é o espaço da globalização e especialmente a produção de feminilidades comerciais no mundo em desenvolvimento. O contrato sexual no palco global é claramente delineado nas edições mundiais de revistas de moda para jovens como Elle, Marie Claire, Grazia e Vogue, de cujas páginas emerge a menina global amigável, nada ameaçadora, linda e maleável, ansiosa por agradar e nem um pouco rancorosa.

Brilhando na luz: a mascarada pós-feminista

Jovens mulheres têm sido alocadas no contexto de uma gama ampla de mudanças sociais, políticas e econômicas, nas quais elas parecem ser protagonistas. (Isso também marca uma mudança: as mulheres figuram agora no discurso governamental tanto pelas suas capacidades produtivas quanto reprodutivas.) Elas são, assim, um sujeito intensamente monitorado pelas práticas biopolíticas pós-feministas da nova governamentabilidade, atentas às questões de gênero. Como entender essa atenção? Deleuze, quando escreveu sobre o que Foucault quis dizer com “visibilidades”, sugeriu que estas não são “formas ou objetos, nem mesmo formas que aparecem sob a luz, mas formas de luminosidade criadas pela própria luz e que permitem que a coisa ou objeto exista somente como um lampejo, cintilação ou reflexo” (Deleuze, 1986, p. 52). Essa luminosidade captura como as jovens mulheres estão se tornando visíveis hoje. O poder que elas parecem possuir coletivamente “é criado pela própria luz”. Essas luminosidades insinuam uma igualdade pós-feminista ao mesmo tempo em que definem e circunscrevem as condições desse status. São nuvens de luz que dão às jovens mulheres uma presença resplandescente, delimitam o terreno do que é perfeitamente feminino e, por isso mesmo, tranquilizador. Essa luminosidade funciona baseada na ilusão de movimento e de protagonismo; assim parece que as jovens mulheres estão se destacando por escolha e porque todos os impedimentos foram retirados. A luz identifica e traça esses movimentos enquanto os dota de um efeito cinematográfico espetacular.

Judith Butler já sugeriu que o poder patriarcal (ou o Simbólico) foi confrontado em anos recentes pelo feminismo enquanto antagonismo político (Butler, 2000).  A análise de Butler pode ser usada para afirmar que o confronto feminista forçou alguns ajustes no Simbólico. A questão é que o trabalho e a capacidade de ganho chegam a dominar, ao invés de estarem subordinados à identidade das mulheres, e isso reverberou dentro do campo do poder. O Simbólico enfrenta o problema de manter a dominância do falocentrismo quando a lógica do capitalismo global é a de desamarrar as mulheres de seus papéis antes prescritos e lhes dar diferentes graus de independência econômica.

O Simbólico, portanto, enfrenta uma dupla ameaça: primeiro, a de um feminismo ultrapassado e por isso meramente espectral; e, segundo, a do reposicionamente agressivo de mulheres através de processos econômicos de individualização feminina. As luminosidades da feminilidade proporcionam espaços para o renovado exercício de autoridade. O Simbólico repassa suas demandas para o domínio comercial (beleza, moda, revistas, cultura do corpo etc.), que se torna a fonte de autoridade e julgamento para as jovens mulheres. Já que o domínio comercial é hoje tão dominante e como as instituições sociais têm uma esfera de influência reduzida, podemos detectar uma intensificação das suas demandas disciplinadoras e também perceber novas dinâmicas de agressão, violência e autopunição. Proponho que uma estratégia-chave de contenção, de parte do Simbólico, é a de delegar boa parte de seu poder ao complexo de moda e beleza onde, como “grande luminosidade”, uma mascarada pós-feminista emerge como novo dominante cultural. A mascarada, conforme foi definida primeiro por Riviere em 1929, à qual Butler recorre em Gender Trouble (1999), reaparece como meio altamente autoconsciente de incentivar as jovens mulheres a colaborarem com a re-estabilização de normas de gênero, de tal forma a desfazer os ganhos do feminismo e a se desassociarem dessa identidade política agora desautorizada. O famoso ensaio de 1929 de Riviere é um texto ao qual feministas voltam com frequência. Como psicanalista, Riviere se interessa em como “mulheres que desejam a masculinidade podem vestir uma máscara de feminilidade para evitar a ansiedade e a retribuição temida dos homens” (Riviere apud Butler, 1999, p. 65). Riviere entende que a feminilidade e a máscara são indistinguíveis, e que não há uma mulher naturalmente feminina à espreita, atrás da máscara.

Quero apresentar a mascarada pós-feminista como reordenamento da matriz heterossexual para assegurar, mais uma vez, a existência da lei patriarcal e a hegemonia masculina. Existe um deslizamento útil no relato de Riviere entre a atualidade da mascarada como fenômeno reconhecível, que ela percebe em suas pacientes mulheres e seus encontros, e as imagens da feminilidade encontradas no âmbito da cultura. Essa interseção entre os estilos de feminilidade observados por Riviere na vida cotidiana e aqueles retratados na cultura de massa feminina me permite aqui propor que a mascarada pós-feminista é um modo de inscrição feminina. Como refrão de feminilidade, atravessa a superfície do corpo feminino enquanto dispositivo interpelativo, trabalha e é visibilíssima no âmbito comercial como feminilidade familiar (até saudosista ou “retrô”) e alegre. Recentemente este “refrão” foi reinstituído ironicamente no repertório da feminilidade. Ele sinaliza que a hiperfeminilidade da mascarada, que parece devolver as mulheres aos termos das hierarquias tradicionais de gênero, ao fazer com que ela vista sapatos salto agulha e saias tubo, por exemplo, não significa de fato que ela está presa (como as feministas teriam entendido, no passado), já que hoje isto é questão de escolha, e não uma imposição.

Esta nova mascarada se refere sempre a seus artifícios, ela é adotada pelas próprias mulheres como uma atitude consciente, um statement: as mulheres fantasiadas estão afirmando que escolheram livremente um look. A mascarada pós-feminista não teme a desforra masculina. Ao invés disso, é a estrutura de reprimenda do sistema de moda e beleza que funciona como regime de autoridade. (Daí o aparente desprezo da aprovação masculina, sobretudo se o traje e look forem amplamente admirados no meio da moda. Este é um tema recorrente na série de televisão Sex and the City, por exemplo.) Essa mascarada resgata as mulheres da ameaça dessas configurações ao reinstituir triunfalmente o espetáculo da feminilidade excessiva (baseada na condição de assalariada independente), enquanto reforça a masculinidade hegemônica, ao endossar a feminilidade pública que parece minar, ou pelo menos estorvar, o novo poder que as mulheres acumulam com base em sua capacidade econômica.

Existem muitas variantes da mascarada pós-feminista, mas essencialmente ela consiste no reordenamento da feminilidade, para que os estilos antigos (regras sobre chapéus, bolsas, sapatos etc.), que sinalizavam a submissão a uma autoridade invisível ou a um conjunto opaco de instruções, sejam reinstituídos. (Por exemplo, a minissaia de Bridget Jones, seu hábito de flertar no local de trabalho e suas autorreprimendas.)

A mascarada pós-feminista resgata a mocinha como um retorno ao passado e ela adota esse estilo (assumindo, por exemplo, uma cara de “tola e sem noção” – Riviere, ibid. p. 29) para ajudá-la a navegar no terreno da masculinidade hegemônica sem colocar em perigo sua identidade sexual que, já que está inserida legitimamente no mundo institucional do trabalho do qual foi excluída ou teve acesso restrito, pode se tornar um locus de vulnerabilidade. Ou simplesmente ela teme ser considerada agressivamente antifeminina ao se destacar como mulher poderosa, e passa a adotar o ar de distração, meio afobada, de uma menina supercarregada de bolsas, sapatos, pulseiras e outros itens decorativos que precisam de atenção constante. O chapéu bobinho, a saia curta demais, os saltos altíssimos são todas formas de enfatizar, como o faziam as comédias hollywoodianas, a vulnerabilidade, a fragilidade, a incerteza e a ansiedade da mulher acerca da possibilidade de sua condição lhe custar o desejo masculino.

Ambas, Riviere e Butler, se referem à agressão sublimada dirigida à masculinidade e à dominação masculina na forma da mascarada. Riviere utiliza palavras como triunfo, supremacia e hostilidade para descrever a cólera feminina que escora a fachada de excesso de adornos femininos; aponta a fúria das mulheres profissionais que percebem sua própria subjugação ao comportamento de seus pares homens. Tudo isso é transformado de forma grotesca em uma máscara de maquiagem e um look estilizadíssimo.

Essa estratégia reaparece hoje em circunstâncias muito variadas. As mulheres habitam rotineiramente as esferas masculinas e competem com homens cotidianamente. Assumem seus lugares ao lado de homens graças a políticas antidiscriminatórias e mais recentemente devido a sistemas de recompensa meritocráticos propostos pelo governo New Labour. A mulher fantasiada deseja ter uma posição como “sujeito na linguagem”, isto é, participar na vida pública, em lugar de existir simplesmente como “mulher como signo” (Butler, 1999).

É precisamente porque as mulheres hoje são capazes de funcionar como sujeitos na linguagem (isto é, elas participam da vida do trabalho) que a nova mascarada existe, para gerenciar o campo de antagonismos sexuais e reconstituir a mulher como signo. A mascarada funciona para tranquilizar as estruturas masculinas do poder, ao neutralizar a presença e as ações agressivas e competitivas de mulheres quando ocupam posições de autoridade. Ela re-estabiliza as relações de gênero e a matriz heterossexual, conforme definida por Butler, ao interpelar as mulheres reiterada e ritualisticamente, e trazê-las para dentro dos termos de uma feminilidade sagaz, autorreflexiva e altamente estilizada. A mascarada pós-feminista age em nome do Simbólico, prevenindo eventuais distúrbios apresentados pelo novo regime de gênero. Ela opera em um movimento duplo – sua estrutura voluntarista oculta o fato de que o patriarcado ainda é vigente, enquanto as demandas do sistema de beleza e moda garantem que as mulheres ainda sejam sujeitos medrosos, impulsionados pela necessidade de “perfeição completa” (Riviere, 1986 p. 42).

A educação e o emprego como locais de capacidade: a visibilidade da working girl instruída

As luminosidades da mascarada pós-feminista e as nuvens de luz que recaem na figura da mulher jovem pelo sistema de moda e beleza se equiparam, quando não são superadas (e frequentemente atravessadas), às visibilidades que produzem a jovem mulher instruída ou trabalhadora. Grandes investimentos governamentais são feitos para preparar a jovem mulher para o trabalho e esses estímulos instam a jovem mulher ao protagonismo através de uma ampla gama de talentos e habilidades (Rose, 1999).

A mulher jovem passa a ser entendida como portadora em potencial de qualificações; ela é um sujeito ativo das aspirações do sistema educacional e incorpora o sucesso dos novos valores que o governo New Labour tem procurado instituir nas escolas. Esse reposicionamento é um fator decisivo no novo contrato sexual. A aquisição (ou não) de qualificações começa a funcionar como marca da nova divisão de gênero. As mulheres jovens são ranqueadas de acordo com sua capacidade de ganhar as qualificações, que é o que lhes dará uma identidade como sujeitos femininos capazes. (Neste sentido, podem, por exemplo, ser obcecadas por obterem as melhores notas.)

A jovem mulher se apresenta como alguém capaz de transcender barreiras de sexo, raça e classe. Destaca-se como jovem negra ou asiática exemplar, com base em seu entusiasmo pelo aprendizado, gosto pelo trabalho duro e desejo de perseguir recompensa econômica. As mulheres jovens que não realizam seu potencial ou não têm a motivação e ambição de se aprimorarem em grau suficiente são condenadas mais enfaticamente do que teriam sido no passado, por sua falta de status e outras falhas.

No entanto, existe um deslocamento na transição para o trabalho, no sentido de que o movimento de avanço dessas jovens se defronta com a ideia da harmonização ou compromisso social. E aí o trabalho dos “espaços de atenção” é o de administrar processos de negociação e compromisso. Utilizo o termo “compromisso social” para dar conta da forma com que o novo contrato social funciona no local de trabalho, estabelecendo limites nos padrões de participação e igualdade de gênero (as formas de cerceamento) (Crompton, 1982).

Rosemary Crompton focaliza em sua análise as mulheres que também são mães e sua volta ao mercado de trabalho, depois do nascimento de seus filhos. A pertinência de seu trabalho para a discussão que desenvolvo se refere ao abandono implícito da crítica à hegemonia masculina, em favor do compromisso. Jovens mães trabalhadoras, ao que parece, recuam de qualquer ideia de um debate sobre a desigualdade em casa e procuram formas, com a ajuda do governo, de administrar sua dupla responsabilidade.

Isso se conecta à questão anterior, a da mascarada pós-feminista, como sendo uma estratégia de retrocesso, de reconfiguração da feminilidade normativa, neste caso incorporando a maternidade de tal maneira a não perturbar o masculino. Nesse compromisso social, existe mais uma vez um processo de re-estabilização de gênero. […] Tal compromisso requer que as mulheres desempenhem um duplo papel, que atuem no local de trabalho e também como responsáveis principais pelos filhos e a vida doméstica (Crompton, 2002). Em lugar de questionar a expectativa tradicional de que as mulheres assumam a responsabilidade principal pela casa, há um movimento de abandono da crítica ao patriarcado e a tentativa heróica de “fazer tudo”, enquanto se espera apoio do governo nessa tarefa hercúlea. A transição para esse modo feminino de atividade se realiza através de uma série de luminosidades (a mãe glamourosa que trabalha, a mãe sexy, yummy mummy”, a mulher que transita nos altos escalões e ainda é mãe etc.), imagens e textos que são acompanhados por formas de ficção populares, inclusive best-sellers como Não sei como ela consegue, de Allison Pearson (2004).

O governo do Reino Unido assume o lugar da feminista, desloca seu vocabulário e intervém para ajudar as mães trabalhadoras que avançam e evitar a possibilidade de uma crítica, por parte das mulheres, de sua dupla responsabilidade e, portanto, de uma possível crise na matriz heterossexual. O governo, ao apoiar as mulheres em seu duplo papel, atua para proteger a hegemonia masculina, enquanto a cultura popular massiva tenta reglamourizar as esposas e mães trabalhadoras através de estilos pós-feministas de autoajuda, hipersexualidade e capacidade. Esse aspecto do novo contrato sexual requer compromisso no trabalho e em casa. Apesar da retórica do heroísmo que combina a responsabilidade primária pelos filhos com a carreira profissional, na prática, a ênfase, por parte de vários órgãos governamentais cujo público alvo são as jovens mulheres trabalhadoras, está na diminuição da escala da ambição em favor de um discurso sobre a administração das dificuldades com o advento da maternidade. À luz dessas novas responsabilidades, a mulher jovem é aconselhada a solicitar flexibilidade de seu empregador. O governo britânico não está estimulando as mulheres a voltarem para casa depois de ter filhos. O novo contrato sexual oferece apoio e conselhos para que a volta ao emprego (muitas vezes em tempo parcial) seja facilitada na forma de um equilíbrio trabalho/vida. […] Esse equilíbrio, para as mulheres, tem sustentação hoje na forma de melhores salvaguardas legais para trabalhadores de tempo parcial e direitos à aposentadoria. Ao mesmo tempo, o Estado possibilita, através dessas disposições, que o marido continue na sua carreira sem reclamações femininas […].

Garotas fálicas: sexo recreativo, sexo reprodutivo

A mascarada pós-feminista e a figura da jovem mulher trabalhadora são dois dos meios pelos quais o novo contrato sexual é disponibilizado às jovens mulheres. Aqui introduzo uma terceira figura, a garota fálica, e na seção final, a garotal global. Butler imagina a “lésbica fálica” como figura política que extrai algo do todo-poderoso Simbólico. Em uma entrevista, perguntam a Butler se as mulheres heterossexuais também poderiam assumir o falo dessa maneira, e ela responde que talvez seja importante fazê-lo (Butler et al, 1996).  Mas agora, mais recentemente, e no terreno da cultura ocidental pós-feminista, o Simbólico reage rapidamente ao antagonismo que não só o feminismo, mas também o falo lésbico de Butler e a teoria queer em si apresentam, ao fornecer previamente às mulheres jovens a capacidade de se tornarem portadoras de falos, em uma espécie de mimese autorizada de sua contraparte masculina. Isso impede qualquer rearranjo radical das hierarquias de gênero apesar ou até por causa dessa “pretensa” igualdade, que permite espetáculos de agressão e comportamentos antifemininos por parte das mulheres jovens, aparentemente sem levar às punições de praxe.

A garota fálica dá a impressão de haver conquistado a igualdade com os homens, ao se assemelhar a seus parceiros. Mas na adoção do falo não há crítica à hegemonia masculina. Essa menina é uma jovem mulher para quem as liberdades associadas aos prazeres sexuais masculinos não estão só disponíveis, são estimulados e festejados. A ela se solicita estar de acordo com a definição do sexo como um prazer alegre, uma atividade recreativa, como hedonismo, esporte, recompensa e status. A luminosidade recai sobre a menina que adota os hábitos associados à masculinidade, inclusive beber muito, falar palavrão, fumar, se envolver em brigas, participar de sexo casual, ser detida pela polícia, consumir pornografia e ir a boates com shows eróticos etc., mas sem abrir mão de ser desejável para os homens; de fato, essa aparente masculinidade potencializa o desejo por ela na economia visual da heterossexualidade […].

O falicismo feminino é uma alternativa mais assertiva do que a da mascarada, mas faz o mesmo serviço de re-estabilizar as relações de gênero. Temerosa da ameaça à heterossexualidade dominante, constituída pelo enfraquecimento dos vínculos de dependência através do acesso ao trabalho e ao emprego, a garota fálica que parece quebrar tabus emerge também como um desafio não só à feminista mas também à lésbica repudiadas. Capaz de assumir alguns dos instrumentos da masculinidade, a menina embriagada, que fala palavrão, olha lubricamente e não tem aversão a fazer sexo com outras meninas, demonstra que dentro do domínio da autoridade Simbólica, tudo parece possível. A cultura de consumo, a imprensa marrom, o setor de revistas de meninas e mulheres, as revistas masculinas e também a televisão popularesca, todos estimulam as jovens mulheres, pretensamente em nome da igualdade sexual, a reverterem os antigos costumes e imitarem os estilos de sexualidade assertivos e hedonistas dos homens jovens. A presunção do falicismo também dá vazão a novas dimensões do pânico moral e excitação voyeurista na forma do espetáculo noticioso e do entretenimento.

Sob essa pretensa igualdade promovida pela cultura de consumo, esse falicismo feminino é de fato uma provocação ao feminismo, um gesto triunfante de parte do patriarcado ressurgente. A violência que sustenta o reconhecimento da liberdade da garota fálica demanda uma análise mais detalhada. Ao emergir e se mostrar “sempre disposta”, a garota fálica como luminosidade permite certos modos de retrocesso do que se tornou senso comum feminista, e que se torna então objeto de revisão. Assim, seu comportamento antifeminino permite a volta aos debates sobre a violência sexual e o estupro, quando se tratar, por exemplo, de uma garota que estava tão bêbada que não tem ideia do que realmente aconteceu, ou de outra que concordou em ter sexo com vários homens, mas não esperava ser tratada com violência ou brutalidade. Ao endossar normas de conduta masculinas no campo da sexualidade, ela remove qualquer obrigação, por parte dos homens, de refletir sobre seu próprio comportamento e sobre o tratamento dado às mulheres. A garota fálica por exemplo, a modelo glamourosa que está envelhecendo –, deve aguentar a hostilidade masculina, agora que já não é tão desejável. A hostilidade do homem jovem para com as mulheres reaparece sem reprovação, sobretudo na comédia e na cultura de massa.

A menina global

As figurações da mascarada pós-feminista e da garota fálica também desenham, por meios sutis, processos de exclusão e recolonização. Existem padrões de cerceamento racializados, embutidos nesses espaços reconfigurados de feminilidade. A primeira faz isso ao enaltecer as virtudes da fraqueza feminina disfarçada e a fragilidade. Ao se voltar para a tradição dessa maneira, adotando um estilo de feminilidade que convida mais uma vez a demonstrações de cavalheirismo, galanteios, poder e controle masculinos, revivifica normas de heterossexualidade branca das quais mulheres e homens negros foram histórica e violentamente excluídos.

A mascarada pós-feminista como estratégia cultural para re-estabilizar as relações de gênero dentro da hegemonia heterossexual produz uma nova interface entre a vida de trabalho e a sexualidade que é implicitamente branca, e que presume normas de parentesco associadas com a família nuclear ocidental. Em acordo com o novo ethos de assimilação e integração, ao invés do multiculturalismo aparentemente fracassado dos anos 1980 e 1990, as jovens mulheres negras são convidadas, como leitoras de revistas como Grazia, ou espectadoras de programas de televisão como Friends, ou filmes como Diário de Bridget Jones, a emular esse modelo, a se inscrever nesses roteiros, sem modificação e sem a opção de questionar ou contestá-los.

A menina global emerge, sobretudo, nas imagens de empresas de moda como a Benetton, e também nas diversas edições de revistas como Elle, Marie Claire, Vogue e Grazia, adaptadas para cada país, como emblemáticas do poder e sucesso do multiculturalismo empresarial. Este encara as jovens mulheres, sobretudo as de países do Terceiro Mundo, como entusiastas da participação e do pertencimento a uma espécie de feminilidade global. A modernidade da menina global manifesta-se em suas novas liberdades, capacidade de ganho, a forma com que desfruta e está imersa na cultura da beleza e de massa. Ela é graciosa e bonita e não porta ironicamente sua feminilidade através de seus acessórios, como a jovem que se integra à mascarada pós-feminista ocidental, nem apresenta a mesma agressão e bravata sexual que as garotas fálicas. As meninas globais são a construção fantasiosa de uma masculinidade ocidental ameaçada. Combinam o natural e o autêntico com um gosto – expressamente feminino – por se enfeitar, a sedução lúdica com a inocência, de forma a sugerir uma sexualidade que é juvenil, latente e à espera de ser liberada.

Não há nada de novo nessa fantasia racial, mas essas jovens hoje são vistas como mais ativas do que passivas, e isso marca um reposicionamento sutil, uma reelaboração da hierarquia racial dentro do campo da feminilidade normativa. A ideia de um contrato sexual como convergência de atenções, atravessando uma gama de atividades corporais e permitindo modos de avanço sob a condição de que o resíduo da política sexual se esvaneça, é também uma formulação ocidental dirigida àquelas que se presumem terem direito à plena cidadania e o direito de permanecerem no país de residência. Nesse contrato, a atividade econômica está em foco e a política é empurrada para as margens, para favorecer uma cidadania do consumo.

As mulheres excluídas do modelo de liberdade baseado na educação estatal, seguido da participação em cursos de formação e no mercado de trabalho, são sujeitas a modalidades diferentes de preocupação, que levam ao desenvolvimento de tecnologias mais convencionais de vigilância. O espaço de atenção que dá vazão à nova figura da menina global espera que ela “compre” estilos ocidentais de feminilidade espetacular como forma de potencializar sua posição na divisão internacional de trabalho e mostrar sua vontade de ter sucesso, que é acrítica e “sem rancor”. Poderíamos dizer que a jovem solteira originária de uma parte empobrecida do mundo tem se tornado, nos últimos vinte anos, um sujeito redesenhado através do que Spivak chama de “planejamento de gênero”, como tendo capacidade de trabalho maior ainda do que no passado. Por isso, presta-se uma atenção crescente a sua educação e treinamento que, Spivak nota também, hoje envolve diversas versões da pedagogia neoliberal de influência americana baseada na ideia do empreendedorismo […].

Concluindo, mapeei aqui o processo pelo qual o feminismo foi dissolvido através de altos níveis de intervenção e atenção dirigidas à mulher jovem, cujo significado em termos de capacidade de ganho não pode ser desprezado. Um novo contrato sexual é oferecido a essas jovens, que estimula sua atuação na educação e no emprego de forma a assegurar altas taxas de participação no mercado de trabalho, na cultura de consumo e na esfera da sexualidade. Nesse processo de emergência das jovens mulheres, no entanto, oculta-se a inquietação do governo com um eventual protagonismo das mulheres na esfera política. Isso se compensa com a ideia de cidadania do consumo.

Essas diversas luminosidades têm uma espécie de efeito teatral, comunicam a impressão de que as jovens mulheres hoje podem emergir desimpedidas e fazer escolhas sobre como querem viver suas vidas; fazem parecer que as jovens mulheres têm de fato poder. As culturas de consumo que sustentam o vocabulário da “escolha” permitem o eclipse e a fragmentação do campo social. Esse efeito teatral festeja o apetite da jovem pelo trabalho e estimula o consumo espetacular, justificado pela ideia de que ela trabalhou para merecer essas recompensas. Há uma re-estabilização de papéis de gênero nessa orquestração de luminosidades. As jovens mulheres podem se destacar, mas sob a condição de que a política feminista se esvaneça e de que a ilusão de movimento e sucesso mascare a reinstalação sutil – e nem tão sutil – de hierarquias sexuais.


* Texto original: “Four Technologies of Young Womanhood”. Palestra proferida em 31 de outubro de 2006, no Zentrum fur Interdisziplinare Frauen und Geschlecterforschung em Berlim.

* Angela McRobbie é professora de Comunicação em Goldsmiths College – University of London e autora de obras sobre feminismo, moda e arte. Entre seus livros se destacam Postmodernism and Popular Culture (1994), In the Culture Society: Art, Fashion and Popular Music (1999) e The Aftermath of Feminism: Gender, Culture and Social Change (2009).

* Liv Sovik é professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ) e autora de Aqui ninguém é branco (Aeroplano, 2009), sobre representações de relações raciais e de gênero no Brasil.

[1] O termo “mascarade” que traduzi por “mascarada” significa, no contexto da teoria feminista, uma forma de encenação.

Referências:

DELEUZE, Gilles.  Foucault.  Minneapolis: University of Minnesota Press, 1986.

BUTLER, Judith. Antigone’s Claim: Kinship between Life and Death. New York: Columbia University Press, 2000.

BUTLER, Judith; OSBORNE, Peter; SEGAL, Lynne. “Gender as Performance: An Interview with Judith Butler”. In: Peter OSBORNE (org.). A Critical Sense: Interviews with Intellectuals. New York: Routledge, 1996, p. 108-125.

BUTLER, Judith.  Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity (2a ed.). New York: Routledge, 1999.

CROMPTON, Rosemary. “Employment, Flexible Working, and the Family”. British Journal of Sociology. v. 53, n. 4, 2002, p. 537-558.

PEARSON, Allison. Não sei como ela consegue. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.

RIVIERE, Joan. “Womanliness as a Masquerade”. In: Victor BURGIN, James DONALD e Cora KAPLAN (orgs.). Formations of Fantasy. London: Methuen, 1986, p. 35-44.  Disponível em português em: http://redalyc.uaemex.mx/pdf/307/30716902.pdf. Acessado em 9/12/2012.

ROSE, Nikolas. “Inventiveness in Politics”. Economy and Society, v. 28, n. 3, p. 467-493, 1999.