Ano XI 0201
resenha
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AUTOCOMPOSIÇÃO EM DESCOBRI QUE ESTAVA MORTO, DE J. P. CUENCA

Em entrevista a Bella Jozef, na década de 1990, César Aira disse algo que se tornou, nas décadas seguintes, cada vez mais significativo: “Tenho de falar do que chamo ‘mito pessoal do escritor’. Para mim, significa baixar a um nível de comunicação os mal-entendidos que se vão acumulando dentro de uma comunidade em que a conversa familiar se baseia. O mal-entendido número um é classificar alguém de escritor”. E continua, tornando o mal-entendido um sistema de crenças próprio do universo da literatura: “Esse sistema de crença que se forma em uma comunidade, estabelecendo que alguém vai ser um escritor, é o que chamo o mito pessoal do escritor. Isso é a única coisa importante. A obra é insignificante, qualquer escritor renunciaria a sua obra se não tivesse necessidade de escrevê-la para criar um mito” (1999, p. 41-42). Muito própria de César Aira, essa última frase, ao afirmar a insignificância da obra a inscreve como única coisa importante, a única capaz de sustentar o mal-entendido que faz de um escritor um escritor. Poderíamos derivar aqui para a diferença entre obra e texto na famosa acepção de Barthes: “a obra segura-se nas mãos; o texto, na linguagem” (2004, p. 277), mas o que me levou a citar essa entrevista de Aira foi a recente conversa que tive com João Paulo Cuenca a propósito da exibição de seu filme A morte de J. P. Cuenca e do lançamento de seu livro Descobri que estava morto (Tusquets, 2016).

Ambos, filme e livro, partem de um acontecimento na vida do escritor (um mal-entendido): em 2011, ele descobre que há um atestado de óbito em seu nome, inclusive com o reconhecimento do corpo, encontrado na Lapa, e assinado por uma certa Cristiane Paixão Ribeiro em 2008. Se o filme parte de uma investigação dessa morte e desse reconhecimento de corpo, à maneira de um documentário, derivando para o ficcional retomado de seu primeiro romance, Corpo presente (Planeta, 2003), o livro expõe o acontecimento como uma notícia que vai transformando o corpo entre a festa, a investigação e a queda (capítulos do romance), flertando com o gênero policial, porém investindo numa profunda transformação existencial da personagem. Essa personagem, então, é João Paulo Cuenca. Reforçado pela sua imagem no filme, o nome do autor se cola de maneira irrevogável à personagem real desse acontecimento inicial, ainda mais atestado pelas falas de amigos, críticos e outros personagens que compartilham filme e vida do escritor.

João Paulo Cuenca, de toda forma, ainda bem antes dessa narrativa-performance, foi um autor mais importante do que seus livros. Sua primeira participação na Festa Literária de Paraty (Flip) foi a de um autor ainda sem livro, em 2003. Primeiro veio a imagem, a fala, e depois o livro Corpo presente. Da mesma maneira, o autor é conhecido como curador (outra palavra para crítico) em festivais no país e por ter sido comentarista de literatura na Globo News durante seis anos (2008-2014). Ainda, ganhou visibilidade como cronista dos jornais Tribuna da Imprensa, Jornal do Brasil, O Globo e depois da Folha de S. Paulo. Presente na seleção da revista Granta e com livros traduzidos em 8 países, é um dos escritores brasileiros com maior visibilidade no cenário nacional e internacional. Um dos escritores mais cosmopolitas, esteve presente em vários festivais pelo mundo e fez conferências nas universidades europeias de maior importância. Tudo isso se sabe acompanhando as notícias que a imprensa dá de seus feitos. Nem precisaria ler os livros. Este último, porém, nos faz um resumo bastante real do que tem sido desde seu início uma das marcas da carreira literária de João Paulo Cuenca:

Ser um escritor me ocupava tanto tempo que eu já não podia escrever mais nada – o texto tinha sido substituído pelo personagem no palco de alguns festivais. O projeto anunciado no texto da Granta me parecia irrecuperável. Toda vez que eu me sentava para tocar adiante, traçava umas frases soltas, fazia planos e esquemas como um atleta aposentado. Mas aquilo não dava em nada, era tudo difuso e frio (2016, p. 140).

A morte de J. P. Cuenca, assim, veio a calhar. Se o episódio (ainda que fosse invenção, o resultado é o mesmo) do atestado de óbito foi uma espécie de propulsor do romance e do filme, a necessidade de matar uma imagem foi o que deu corpo ao projeto desde uma vivência (ainda que também performada) da depressão até a ritualística de uma morte encenada (ainda que também vivida até onde se pode viver uma morte). O autor já morto e ainda vivo é a jogada final, parece, de um ciclo da trajetória literária de Cuenca, um final bem costurado com o livro inicial, não deixando espaço para continuação do mote, como a desenhar um oroboro e produzindo outros significados de Corpo presente, agora com Descobri que estava morto. O corpo presente como na acepção da missa de corpo presente. O último ritual antes do enterro.

São várias as passagens que permitem notar essa costura do último com o primeiro livro, mais visível, porém, no filme. O primeiro livro fecha o filme, prometendo um novo nascimento do autor/personagem, promessa não tão explícita no livro, que dá voz a outro nascimento, o da crítica Maria da Glória Prado, como a última palavra a dar sentido ao livro do autor morto. Talvez um devir-mulher ou um devir-feminino na nova escrita de J. P. Cuenca. Talvez uma Carmen rediviva “a andar nua por essa necrópole sem fim, pisando seus pés pequenos sobre os mortos, esmigalhando pedaços de carne e tropeçando em ossos” (2003, p. 22). Essa Carmen que no primeiro livro, assim como no filme “Cuida de mim como se trata um filho retardado: corta minhas unhas, assoa meu nariz e perdoa minhas imundícies – tudo o que esqueço ou tenho preguiça de fazer. Lembra compromissos, horários, me acorda, me dá o norte, a única coisa parecida como uma rotina na minha vida” (p. 117). Se essa Carmen cuida do corpo presente do autor, Maria da Glória, em Descobri que estava morto, cuida do corpo presente da escrita, como uma curadora, como uma crítica, como aquela que une o fio da escrita e o fio da vida:

O limite entre a resistência e a desistência é muito estreito. Às vezes, é quase invisível. Também a fronteira entre o pessimismo e a coragem costuma nos confundir. São territórios limítrofes, em geral desérticos e habitados por nômades ou suicidas. Produto de um fenômeno cultural do nosso tempo – o conceito de autoria como performance –, J. P. Cuenca (1978-2016) parece ter vagado sobre esse solo infértil. Neste derradeiro livro, ele é personagem literário, narrador da própria história; é um tipo real que rouba sua identidade e morre num prédio ocupado na Lapa – e que por isso se torna ficcional –; e, por último, é o escritor que deixa inacabado o rascunho de um romance. Os três são personagens de ficção e personagens reais ao mesmo tempo. E os três estão mortos (2016, p. 233-234).

O conceito de autoria como performance, sob o olhar dessa crítica-personagem-do-autor, teria tornado o autor um produto derivado. Nesta personagem fica patente a crítica como instituição, sempre atacada pelo autor que, ao mesmo tempo quer seduzi-la, e um certo preconceito visto por dois ângulos: a evidência de uma literatura que se alimenta desse conceito e que, portanto, produz sua própria legibilidade na performance escrita dos autores, desautorizando a crítica que concebe esse terreno como infértil; e o da própria crítica que insiste, mesmo com o livro nas mãos, em desfazer essa literatura que se retroalimenta da imagem do autor. Mostra ainda, a declaração da morte do autor “J. P. Cuenca (1978-2016)” como uma questão que ficcionaliza a própria teoria da literatura em seus idos da década de 1960 contra a evidência do corpo do autor retornando sempre com mais força na literatura atual. Esse corpo presente e incômodo que se declara morto, se documenta, e que retorna desestabilizando o próprio conceito de literatura, que cada vez mais se expande a ponto de um autor como Bolaño considerar que os melhores autores da literatura latino-americana são os poetas suicidas da década de 1970, que nunca produziram um livro: “O melhor da América Latina são nossos suicidas, voluntários ou não” e “Isso o sabia Rodrigo Lira, que como tantos poetas latino-americanos morreu sem publicar nunca” (2004, p. 98). Ou como disse Aira, “o que menos importa é a obra”. Ela, em Cuenca, é o receptáculo desse corpo performado, agora, talvez, esgotado. E não é sem propósito que seu último livro termina com a crítica assinando mais uma vez o atestado de óbito do autor como personagem de sua literatura, tendo começado, porém, numa imagem perfeita do trabalho de se autocompor, a de um trabalho artístico de Óscar Muñoz:

Era um vídeo que mostrava a mão de um homem desenhando um rosto no chão de concreto. O desenho era feito com um pincel molhado apenas com água. Seus traços desapareciam à medida que evaporavam – parecia ser um dia quente como aquele que eu enfrentava, talvez com o mesmo entorpecente sol do meio-dia. A mão do homem voltava aos traços recém-apagados, ele tinha que se desdobrar para retocar todas as partes do rosto que iam desaparecendo. O vídeo acompanhava esse trabalho de recomposição durante uma hora (2016, p. 21).

O que faz Cuenca em todos os seus livros é retocar essa imagem exposta no jornal, na televisão, na Flip, recompondo-a a seu gosto e sempre com um autodesprezo digno de nota. Autodesprezo que se converteria em traço afirmativo para uma certa crítica avessa ao esplendor televisivo e jornalístico. Autoimagem que flerta com o maldito, com o fracassado, com o esbravejador sempre a acusar autores, críticos, jornalistas e especialmente políticos, bem como toda a ideia que remeta a homem bem-sucedido ou mesmo discurso bem-sucedido (do Rio, do Brasil, das Olimpíadas, do Jornal, das gentes que aparecem nas colunas sociais). Há várias passagens dignas de nota em Descobri que estava morto, mas quero sublinhar uma que me permite retomar a conversa autor-crítica. Depois de uma fala num seminário sobre literatura brasileira em Brown, no qual troca o discurso sempre repetido do valor de humanidade da literatura, de seu valor afirmativo, citando Antonio Candido e Mário Vargas Llosa, por aquele do antipoder, diga-se, mais alinhado com Blanchot, e mesmo com os estudos culturais que retiraram do discurso da literatura a sua centralidade, o autor-personagem se encontra com Maria da Glória, a crítica-personagem já citada aqui e que faz o posfácio do livro. Entre tantas coisas (quase sempre positivas) que a crítica-instituição já disse de J. P. Cuenca, ele escolhe dar voz àquela demolidora (talvez de Alcir Pécora). Diz Maria da Glória:

O que você escreve é confuso, os capítulos dos seus romances são sempre curtos e truncados, irresolutos, às vezes incompreensíveis. Tem certo wit e espírito da época, mas não acho que sejam fruto do trabalho mental exaustivo que marca os livros e autores que ganham prêmios por aí. Ou seja: você é um diletante que não faz muito bem o dever de casa. Com todo respeito, claro.” E depois, definitiva: “Parece que você procura a tragédia, mas acaba dando de frente com a farsa. Com o kitsch, até. E aí me parece que a tragédia maior é a falta de tragédia. O mistério maior é a falta de mistério. É um vazio sobre outro (2016, p. 159).

É interessante que assim, parodiada, a crítica que diz que essa literatura é menor do que a imagem do autor faz crer se torna mais um discurso desautorizado pelo livro que se tem em mãos – em uma medida ou em outra sempre uma produção bem-sucedida – já que tira sua matéria justamente das acusações dessa crítica. Mas, no posfácio, lugar de legitimação desobstruído pela morte do autor, a crítica nasce enquanto assinatura e ocupa o lugar do autor morto. Um lugar que acusa e legitima ao mesmo tempo.

A morte de J. P. Cuenca encenada, performada e vivida em alguma medida neste seu mais recente trabalho, parece encenar, assim, a saída da temática do cinema (resolvida com o longa-metragem), uma constante em todos os seus livros, para uma entrada no discurso crítico-teórico da literatura. Como a pedir passagem para uma imagem já desgastada na tela em sua entrada na crítica universitária. Ou pelo menos faz um convite para a conversa entre a literatura e a crítica e nisso ensaia o desenho de uma nova imagem. No livro, há uma sofisticada denúncia: a cidade demolida, roubada; o jornal frívolo, cínico; a falta de motivação para permanecer vivo e atuante fora da existência íntima, uma recusa de engajamento; e a constatação da denúncia vã. Tudo isso apoiado pela epígrafe do defunto-autor Brás Cubas: “A franqueza é a primeira virtude de um defunto”. O morto, e também a literatura, pode dizer tudo. Mas, parece, não têm poder algum além de dizer. A crítica expõe uma falha – a do excesso de visibilidade? A da vaidade? A da existência vã? – e exige um novo desenho para a literatura e para a imagem do autor, ao mesmo tempo se fazendo visível ela própria pelo que lhe permite a literatura.


* Ieda Magri é professora adjunta de Teoria Literária na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autora dos livros Ninguém (7 Letras, 2016), Olhos de Bicho (Rocco, 2013) e Tinha uma coisa aqui (7 Letras, 2007).

 

Referências

BARTHES, Roland. Inéditos vol. 1 teoria. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

BOLAÑO, Roberto. Entre paréntesis. Barcelona: Anagrama, 2004.

CUENCA, J.P. Corpo presente. São Paulo: Planeta, 2003.

CUENCA, J.P. Descobri que estava morto. São Paulo: Tusquets, 2016.

CUENCA, J.P. A morte de J. P. Cuenca. Brasil, 2015. 90 minutos.

JOZEF, Bella. Diálogos oblíquos. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1999.