Ano XII 0201
2º semestre de 2017
dossiê
Tempo de leitura estimado: 37 minutos

SONDANDO A CIDADE. MEMÓRIA, CARTOGRAFIAS E CAMINHADAS SONORAS

“Durante vinte e cinco séculos, o conhecimento ocidental tenta ver o mundo. Ainda não compreendeu que o mundo não se vê, se ouve. Não se lê, se escuta”.

(Jacques Attali, Ruídos, 1995)

 

Resumo: Este artigo fala sobre sons do espaço urbano, tendo como local da pesquisa empírica a região portuária do Rio de Janeiro, localidade que sofreu desde 2011 uma imensa e veloz transformação estrutural e arquitetônica por conta da implementação do Projeto Porto Maravilha. A partir do referencial teórico sobre Paisagem Sonora (Schafer, 1977; 2011) e Acustemologia (Feld, 1996; 2003) foi realizada pesquisa de campo apoiada em heurísticas tais como caminhadas sonoras e produção de mapa sonoro além de recursos tecnológicos digitalizados para apreensão e análise da escuta como forma de conhecimento.

Palavras-chave: Acustemologia, paisagem sonora, escuta, caminhada sonora.

Abstract: This article talks about sounds of urban space, having as a place of empirical research the port region of Rio de Janeiro, a place that has suffered in the last four years an immense and rapid structural and architectural transformation due to the implementation of the “Porto Maravilha” Project. Based on the theoretical framework on Soundscape (Schafer, 1977; 2011) and Acoustemology (Feld, 1996; 2003), the field research was carried out based on heuristics as soundwalks and production of a sound map and digitized technological resources for the apprehension and analysis of listening as a form of knowledge.

Keywords: Acoustemology, soundscape, listening, soundwalks.

 

Primórdios. Schafer e os elementos da paisagem sonora

A ideia do ambiente acústico como campo de pesquisa na modernidade contemporânea fica enfatizada a partir do projeto Paisagem Sonora Mundial (The World Soundscape Project – WSP), liderado por Murray Schafer, no final dos anos 1960, quando era professor do departamento de Estudos da Comunicação da Universidade Simon Fraser, Vancouver, Canadá. A palavra Soundscape foi um neologismo introduzido por Schafer, que vem sendo traduzido como “paisagem sonora” nos países latinos. A paisagem sonora seria então qualquer campo de estudo acústico: “podemos nos referir a uma composição musical, a um programa de rádio ou mesmo a um ambiente acústico como paisagens sonoras” (Schafer, 2011, p. 23 e p. 366).

O World Soundscape Project (WSP)[1] nasce com a preocupação de registrar sons nas regiões estudadas criando um catálogo das sonoridades características de cada região. Foram produzidas mais de 300 fitas analógicas com o apoio do gravador estéreo Nagra – o primeiro portátil de fato, que pesava em torno de sete quilos. Na origem do projeto estava a insatisfação de Schafer com a abordagem negativa do ambiente sonoro marcada pelo empenho em identificar ruídos a serem combatidos. Para Schafer (1997; 2011), a paisagem sonora seria composta essencialmente de três elementos: sons fundamentais, sinais e marcas sonoras.

Os sons fundamentais de uma paisagem são aqueles criados por sua geografia, clima, recursos materiais e naturais disponíveis e fontes de energia, podendo ser provocados pela água, pelo vento, ou pelos animais. Imprimem-se profundamente na vida vivida das pessoas, tanto que seu silenciamento pode ser por elas sentido como um empobrecimento. É assim, por exemplo, o som do mar para quem mora perto da praia, ou do vento para quem vive em áreas de montanha. Para Schafer, “são o fundo contra o qual as figuras dos sinais se tornam evidentes” (Schafer, 2011, p. 94) e são marcadamente notados quando desaparecem.

Os sinais são sons destacados, ouvidos conscientemente. São sons que muitas vezes precisam ser ouvidos porque são recursos de avisos acústicos, como sinos, apitos, buzinas e sirenes. Assim, por exemplo, numa comunidade cristã tradicional, um sinal sonoro bastante significativo é o sino da igreja. Corbin (1998) diz que o impacto emocional dos sinos ajudou a criar uma identidade territorial nestas pequenas cidades.

O termo marca sonora tem uma especificidade singularizada e “se refere a um som da comunidade que seja único ou que possua determinadas qualidades que o tornem especialmente significativo ou notado pelo povo daquele lugar” (Schafer, 2011, p. 27). O sino de uma igreja que tenha atributos acústicos muito peculiares não é apenas sinal, é marca de um lugar. Marcas sonoras são crivos identitários. Perdê-las é perder parte dessa identidade mesma. A proteção de marcas sonoras pode ser um imperativo político, quando a afirmação de uma identidade é vista como um valor mais alto.

Antes de lançar seu principal livro The tuning of the world em 1977, Schafer (1969) havia criado o termo “esquizofonia”[2] para expressar a separação do som original e sua transmissão ou reprodução eletroacústica, que está na base do desenvolvimento das tecnologias de reprodução sonora. Esquizofonia indica assim que um som escutado por alguém por meio de algum aparato técnico de gravação e reprodução sonora está deslocado de seu contexto original.

Quase num lamento incontido, Schafer diz que antes da invenção do rádio e do telefone, “todos os sons eram originais” (Schafer, 1969, p. 43), pois estavam originariamente ligados aos mecanismos e organismos que os produziam. Assumidamente, Schafer quis evocar o mesmo senso dramático da palavra “esquizofrenia”. Para ele, “a vida moderna foi ventriloquizada” (Schafer, 1969, p. 44).

O neologismo schaferiano aponta para uma certa negatividade dos aparatos de gravação e reprodução e uma certa romantização da interação sonora direta face a face. Ironicamente foram esses aparatos que tornaram possível a realização do World Soundscape Project. Para Shafer hi-fi/low-fi, são designações de ambientes onde os sons podem ser ouvidos com clareza ou não. O ambiente urbano típico é low-fi, devido a característica de apresentar grande quantidade de sons de fundo. O viés romântico de Schafer em sua crítica da estressante e fragmentária vida urbana moderna, e sua nostálgica valoração da integralidade da vida rural despertou críticas diversas (Obici, 2006; Sterne, 2003, 2013; Ingold, 2007; Stanyek & Piekut, 2012; Samuels et al, 2010).

Ruptura. Steven Feld no rumo de uma Acustemologia

Quando ainda era aluno de Alan Merrian nos anos 1970, Steven Feld propôs a ideia de uma antropologia do som fazendo um contraponto com o livro The anthropology of music, que seu professor havia publicado em 1964. Feld considerava que uma antropologia da música era etnocêntrica e insuficiente para analisar a diversidade sonora, por não estar aberta a perguntas sobre como escutar e ouvir, e por não analisar outras formas de expressão que estão entre linguagem e música. Feld criticava as limitações sonoras e culturais impostas pela noção ocidental de música (Feld, 1984; Feld & Brenneis, 2004).

A antropologia do som estudaria as relações entre música, linguagem e os sons do meio ambiente, abordando o papel do som na vida de um grupo de pessoas (Feld, 2012; Silva, 2015). Sua contribuição instiga a investigação de cotidianos aparentemente sem sentido, por meio de uma escuta atenta capaz de mergulhar em outras camadas de sentido.

“Não era à música, canto ou ao som instrumental que estava me referindo, mas ao jeito como as pessoas escutam”, diz Feld em entrevista para Rita de Cácia da Silva (2015). Ainda na mesma entrevista, prossegue Feld:

“Todos nós, seres humanos, sabemos muito do mundo que habitamos só o escutando. Isso não tem a ver com a música, tem a ver com a capacidade de escutar. O som é importante desse jeito, mas também porque tanto a linguagem como a música envolvem som” (Silva, 2015).

Feld estava interessado em realizar um estudo do som como um sistema cultural (Feld, 2012). Seu livro clássico é Sound and Sentiment, publicado em 1982, fruto de sua pesquisa de doutorado junto ao povo Kaluli, em Bosavi, Papua Nova Guiné. No livro, Feld aborda a relação do povo Kaluli com os sons, a floresta e as emoções. Posteriormente, Feld cunha o termo acoustemology (acustemologia). A palavra vem da junção de acoustics (acústica) e epistemology (epistemologia). A acustemologia investiga os saberes adquiridos ou como os saberes se tornam conhecidos, através do som e da escuta. Feld propõe com a acustemologia que os sentidos, a emoção, as práticas corporais e os agenciamentos sociais estão conectados de algum modo com o som (Feld, 1996, 2003, 2015; 2015b).

A acustemologia investiga o som e a escuta como um saber em ação: um saber com e através do audível (Feld, 2015). Adotando uma ontologia relacional, a acustemologia é situacional, e explora o espaço mútuo do saber sonoro como dialógico e transitório. A antropologia do som, segundo o próprio Feld, “parecia ser mais sobre propagação do que a percepção; mais sobre a estrutura do que o processo” (Feld, 2015, p. 14).

Em 1983, Feld produziu junto com Mickey Hart, baterista do Grateful Dead, o CD Voices of the Rainforest[3], com registros sonoros de Bosavi, Papua Nova Guiné. Provavelmente, é um dos títulos da maior vendagem na história da soundscape composition. Feld possui uma bem cuidada página na internet (http://www.stevenfeld.net/) que reúne sua produção em texto, imagens e sons. Desde 2002, Feld possui um selo, Voxlox, onde a produção audiovisual é central. Seu objetivo é misturar arte e antropologia como um meio de promover e ampliar diálogos (Silva 2015; Feld & Brenneis, 2004). Com sua produtora audiovisual, Feld quer fazer uma antropologia do som pelo som, e não apenas pela escrita, linguagem tão cara à academia. Para ele, a fonografia e as técnicas de edição sonora deviam ser aprendidas por antropólogos e etnomusicólogos.

Levamos a escrita profundamente a sério (…) acho que vai levar um tempo considerável até que o uso mais sofisticado das tecnologias sonoras tome lugar na prática etnográfica. Até lá, a antropologia do som continuará a ser basicamente sobre palavras (Feld & Brenneis, 2004, p. 471).

Como escutar o urbano? A pesquisa no “Porto Maravilha”

Ainda que o trabalho de Schafer tenha aberto possibilidades de estudo sobre um registro sensório até então negligenciado, a ideia de paisagem sonora se mostra insuficiente para investigação situada e relacional de ambientes acústicos no espaço urbano. O estudo do som em relação a um lugar não pode prescindir de considerar contextos. “Escutar as histórias de escuta”, como diz Feld (2015), é meio de acesso a um lugar e de entrar em contato com o conhecimento que alguém possui sobre esse lugar. O som tem implicações políticas. A partir desse referencial teórico sobre a escuta do lugar, sinalizamos a importância das sonoridades para conhecimento e produção do espaço, propondo uma acustemologia urbana como forma de investigação de aspectos políticos e culturais de espaços das cidades.

Recorremos à ideia de território sonoro (La Barre, 2014) em contraposição a de paisagem sonora de Schafer (1977, 2011) para reflexão das cidades na pós-modernidade, onde o espaço público é entendido como um organismo flexível, moldado deliberadamente também pelas sonoridades. Os lugares vão se tornando significantes ambivalentes de uma estrutura caracterizada precisamente pela ausência de função pre-determinada. Um dos efeitos da “revitalização” seria o de “idealizar” o lugar, que passa a operar enquanto lugar multifuncional, feito de potencialidades diversas que irão permitindo uma multiplicidade de territorialidades, provisórias e flexíveis (La Barre, 2014, p. 4). A região portuária seria um exemplo de espaço público de múltiplas territorialidades. Se os espaços da cidade contemporânea são marcados pela fluidez e territorialidades provisórias, em que medida o som participa dessa produção? Qual seria o papel do som na produção do espaço urbano ou na produção de um sentido de lugar?

A acustemologia investiga o som e a escuta como um saber em ação: um saber com e através do audível. Para acessar o lugar, escuta-se não só o lugar, mas também as histórias de escuta e os sujeitos desse lugar. Acustemologia é uma maneira sonora de conhecer o lugar, uma maneira de atentar ao ouvir (Feld, 2003, 2015).

Portanto, por seu caráter relacional e processual, argumentamos que uma acustemologia urbana é um modo de entrar em contato com o vozerio da cidade. As sonoridades produzidas e encenadas são também formas de disputa do imaginário urbano. Não há como realizar tal tarefa por uma escuta que visa o controle de um ambiente ou que guarde fobia às mudanças, mas por uma escuta que procura por sentidos e reconheça a cidade como um território cindido, um plano de desejos múltiplo, heterogêneo e, tantas vezes, em dissenso.

O trabalho de campo na região portuária foi iniciado em 2014 por meio de caminhadas sonoras (Westerkamp, 1974, 2006). Westerkamp define caminhada sonora como “qualquer excursão com o propósito principal de escutar o ambiente, expondo nossos ouvidos a qualquer som ao nosso redor” (Westerkamp, 1974, não paginado). Até a própria atitude de perguntar aos habitantes do lugar como se chega a determinado local pode dar uma pequena ideia do caráter da cidade ao escutar como as pessoas respondem, como soam suas vozes, seus acentos. O espaço se torna espaço acústico, e não apenas visual. Escutar e caminhar, nesse sentido, são gestos criativos de investigação que levam a um contato sensível com o ambiente.

Por conta da implementação do Projeto Porto Maravilha, a região era um ambiente em destruição e reconstrução. A Praça Mauá era alvo de uma reconfiguração completa. O viaduto da Perimetral estava sendo demolido, revelando novamente aquela paisagem encoberta da cidade. Essa cartografia de sonoridades foi realizada por meios técnicos e heurísticas inventivas, como a prática de caminhadas sonoras e a elaboração do mapa sonoro Sons do Porto (www.sonsdoporto.com). Voltaremos a falar do mapa sonoro mais à frente.

As instruções para uma caminhada sonora são simples: percorrer ou habitar um espaço priorizando a escuta dos seus sons (Westerkamp, 1974, 2001, 2006). Dependendo do objetivo da caminhada, a análise desses sons pode ser feita com base nas sensações que se fixaram na memória, em anotações escritas ou registros de audiovisuais. Para a caminhada na qual se pretende registrar os sons, é recomendável o uso de fones de ouvido, por amplificar a audição ao mesmo tempo em que proporciona maior imersão no ambiente acústico. É um exercício que sensibiliza os participantes para o ambiente sonoro e consequentemente para o modelo de espaço que habitamos. Na prática, a caminhada sonora é uma escuta do campo.

A caminhada sonora (soundwalking) foi uma prática importante dentro do World Soundscape Project. Embora não tenham sido os primeiros pesquisadores que buscaram se orientar pelos sons do ambiente, foi a partir desse projeto que o termo “caminhada sonora” (soundwalking) começou a ser adotado (McCartney, 2014). Mostrando-se como prática versátil, tem sido usada por inúmeros artistas que trabalham com material sonoro. Hildegard Westerkamp foi uma das integrantes da equipe de Schafer no World Soundscape Project. Além disso, Westerkamp desenvolveu sua própria abordagem para ouvir o ambiente sonoro, incluindo a prática de caminhadas sonoras, individuais ou em grupo.

Foto 1: Paulo Sill (canto esquerdo) fazendo registros de áudio da Praça Mauá, durante uma caminhada sonora que realizamos no dia da abertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Fonte: Claudia Holanda
Foto 1: Paulo Sill (canto esquerdo) fazendo registros de áudio da Praça Mauá, durante uma caminhada sonora que realizamos no dia da abertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Fonte: Claudia Holanda

É um tipo de passeio que permite aos participantes escutarem o ambiente e tornarem-se conscientes de sua própria relação com a paisagem sonora (Westerkamp, 2006). Para a pesquisa na região portuária, foram realizadas caminhadas sonoras tanto individualmente quanto em grupo. Após o passeio, conversávamos sobre a experiência. Como comentou Paulo Sill (Foto 1), integrante do coletivo Viajantes do Território, durante uma caminhada sonora que realizamos numa Praça Mauá lotada dia 5 de agosto de 2016, primeiro dia dos Jogos Olímpicos na cidade do Rio de Janeiro: “Quanto mais a gente se fixa em ouvir, melhor a gente vê”. Na mesma direção, a filósofa Salomé Voeglin (2010) afirma que uma sensibilidade sônica pode iluminar os aspectos invisíveis da visualidade.

As caminhadas sonoras também fazem parte da metodologia do coletivo Ultra-Red[4], junto a outras estratégias. Todos os procedimentos são desencadeados por protocolos previamente elaborados pelo Ultra-red para orientação do trabalho de campo. “Os protocolos para essa escuta produzem não apenas consenso, mas também dissonâncias, uma multivalência de subjetividades. Aprender a escutar é uma tarefa intencional de solidariedade” (Ultra-red, 2012, p. 2).

Fundado em 1994, em Los Angeles, por dois ativistas engajados em políticas sociais para portadores de HIV, o Ultra-red, ao longo dos anos vem se expandindo incluindo artistas, pesquisadores e organizadores de diferentes movimentos sociais. Simultaneamente às caminhadas sonoras, os participantes vão ainda aprendendo a usar os equipamentos e a editar sons, além de criarem intimidade com o próprio campo. “Todos dividem experiências sobre o que foi ouvido. Em outras palavras, começa-se a estar com o campo” (Ultra-red, 2012, p. 15). Muitas vezes, como resultado dessas pesquisas e dinâmicas, o grupo produz programas de rádio, performances, gravações, instalações, textos e ações no espaço público (Ultra-red, 2008; 2013). Ao longo de mais de duas décadas de existência e dezenas de ações, palestras, publicações e incontáveis produções em áudio[5], as práticas do Ultra-red têm mudado e se diversificado a cada trabalho com grupos em busca de justiça social como também pela chegada de novos membros. A sua atuação valida o som e a escuta como elementos potentes de produção de conhecimento e sentido.

Além das caminhadas, outra heurística utilizada foi a produção do mapa sonoro Sons do Porto (www.sonsdoporto.com). Por desenvolver uma pesquisa que trata do urbano pelo viés sonoro, a produção dessa ferramenta foi útil para abrigar parte do material audiovisual gerado durante a investigação, que, por sua natureza (sonora), não poderia ser replicado na forma textual. O mapa seria um transbordamento material da pesquisa, com a realização de um trabalho prático onde a escuta é convocada.

Steven Feld, por meio de sua produtora audiovisual Voxlox, busca criar uma antropologia do som pelo som, com o objetivo de ampliar diálogos e alcançar públicos para além da escrita acadêmica. Fazendo uma analogia a Feld, no mapa sonoro Sons do Porto estão disponibilizados registros sonoros e de imagens da região portuária, numa tentativa de se fazer uma cartografia do som pelo som, gerando um registro sensível diverso da narrativa escrita. Já que o som é o elemento guia dessa pesquisa, por que não criar uma plataforma onde possamos ouvir, em vez de apenas falar ou escrever sobre eles?

O mapa sonoro é uma ferramenta digital que coloca a escuta no centro da experiência de navegação (Holanda, Rebelo e Paz, 2016). Os eventos sonoros estão dispostos numa tela de visualização que també é a interface de navegação para acesso ao conteúdo. Produzir esse mapa sonoro foi útil como ferramenta de pesquisa e aprendizado de escuta, onde se destaca seu aspecto processual. Além disso, o mapa também abriu possibilidades de inserção em redes que se interessam por mapas afetivos e aproximação de pessoas e comunidades que lidam com o aspecto estético e epistemológico do som.

A escuta da região portuária se alimentava do que colhia durante as entrevistas como também das inúmeras caminhadas realizadas em horários diversos. Fiz o registro do som das localidades com um gravador digital portátil Tascam DR-40. Montei o mapa utilizando a ferramenta Story Map JS[6], uma interface online bastante amigável e esteticamente interessante, criada pelo Knight Lab da Northwestern University, sob licença do Massachusetts Institute of Technology (MIT). Sem os aparatos digitais, as etapas da pesquisa de campo não teriam sido possíveis de realização dentro do cronograma.

A escuta posterior dos registros sonoros servia para rememorar a experiência ou, por vezes, para apontar outras nuances que tinham passado despercebidas no momento da gravação. Nesse processo de fazer, foram também desenvolvidas habilidades para escutar, gravar e editar sons, manipular softwares de áudio, fazer anotações sobre o campo e estar em contato com o local de pesquisa, ou seja, aprender mais sobre os territórios.

O projeto Porto Maravilha é uma Parceria Público Privada (PPP) formada pelo Consórcio Porto Novo (um condomínio de empreiteiras formado pela Odebrecht, OAS e Carioca Engenharia) e pela Prefeitura do Rio de Janeiro através da CDURP (Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro), instituída pela Lei complementar nº 102. Um projeto cercado de polêmicas, falta de transparência e acusações de corrupção. Esse projeto ambicioso pode ser visto a partir da literatura sobre Grandes Projetos Urbanos (Coma, 2011; Swyngedouw et al., 2002), que se valem da realização de eventos internacionais para desenvolver operações de marketing urbano (Coma, 2011) e justificar amplos projetos de reforma em áreas urbanas negligenciadas pelo poder público. Esses projetos se apresentam como meios de promover a regeneração e requalificação de espaços urbanos deteriorados, mas com potencial de valorização, especialmente em áreas portuárias e de frentes marítimas (Coma, 2011).

Outras características desses projetos são a entrada do setor privado dentro dos processos de política pública e o desenvolvimento urbano pós-fordista (pós-industrialização) como estratégia para a concentração de atividades intensivas em entretenimento, cultura e turismo (Judd & Fainstein, 1999). Num ritmo acelerado, as intervenções mudaram a face de várias localidades, onde se observam processos de gentrificação junto às políticas de regeneração urbana. Transformações que muitas vezes são pautadas pelo mercado imobiliário e pela “turistificação” de centros históricos. Ocorre uma estetização urbana (Jeudy, 2005) de forma indissociável das novas estratégias de branding urbano, chamadas de revitalização (ou requalificação, a exemplo do discurso sobre a região portuária do Rio de Janeiro), as quais buscam construir uma nova imagem para as cidades dentro do mundo globalizado (Jacques, 2005; Jeudy, 2005; Jeudy & Jacques, 2006).

Num curto período, um lugar antes negligenciado pelo Poder Público tornou-se um território-cenário. Foi um imenso projeto de reforma urbana e de espetacularização do espaço público que também gerou efeitos de gentrificação. Como também observa Jean-Paul Thibaud (2011), pesquisador do Centre de Recherche sur l’Espace Sonore & l’Environnement Urbain (CRESSON)[7], os atuais projetos que pretendem modificar o ambiente urbano envolvem uma gama de componentes sensoriais, fazendo com que a esfera urbana testemunhe um movimento duplo de programação de festividades e de medidas ostensivas de segurança, saindo do discurso da “ecologia do medo” (Mike Davis, 2001) para a “ecologia do encantamento” (Christine Boyer, 1992). O discurso do “abandono” do espaço público e das “áreas degradadas” são parte da estratégia para implementação desses projetos, de forma a gerar uma agenda positiva e deslegitimar dissensos no espaço público. Da música nas ruas, da cooptação dos lugares simbólicos da cultura africana ao ambiente tranquilo do Morro da Conceição, tudo é capturado na região portuária para provocar sensações ao visitante-consumidor.

Pode-se dizer que a região portuária é um caso de “branding urbano” (Jeudy, 2005): a promoção de um espaço urbano como uma marca, onde se inclui estratégias e criação de cenários atrativos para as sedes de grandes empresas internacionais, turismo e entretenimento. Para uma análise sensível do urbano, cabe a pergunta: como o ambiente acústico afeta e é afetado na criação do território-marca? Um efeito inevitável é que atividades e ritmos do lugar mudam e são reorganizados.

Luis Claudio Ribeiro (2015), professor e um dos produtores do mapa sonoro de Lisboa (www.lisbonsoundmap.org), argumenta que o entendimento do mundo apenas pelo visual apresenta falhas. Para ele, o mapeamento das sonoridades é uma questão relevante não só porque os fluxos sonoros são excelentes sinais do estado da vida urbana e das formas de interação do humano com o meio e com os outros em comunidade, mas como parte integrante da revisitação de um patrimônio imaterial que a todo o momento se perde e ganha novos aspectos por efeito do comportamento humano.

Michael Bull & Les Back (2003) argumentam que o som pode nos fazer refletir sobre o sentido, a natureza e o significado da nossa experiência social, pois através dele podemos repensar a nossa relação com a comunidade: como nos relacionamos com os outros, conosco e com os espaços que habitamos. O som é também um meio para se observar relações de poder. Num exemplo básico, qual som que mais escutamos no ambiente urbano? Provavelmente, o som fatigante do tráfego. Isso pode nos dar pistas sobre onde estão as prioridades dos planejadores da cidade. Naturalizamos muitas coisas que nos cercam cotidiamente até chegar ao ponto que se tornam inquestionáveis. Num primeiro momento, a metrópole é uma cacofonia. Há ruídos, rumores, ritmos, eventos sonoros produzidos por fontes diversas que se cruzam, se reforçam e se mascaram. Uma escuta cartográfica (Holanda, 2016), aprimorada por caminhadas sonoras, gravações de campo e uma intenção cartográfica pode desvelar relações.

A cidade-cenário e os sons do silêncio. Da Praça Mauá ao Morro da Conceição

Hoje, totalmente reformulada, a Praça Mauá é o território símbolo do Projeto Porto Maravilha. Não seria exagerado dizer que na Praça Mauá imagens e sonoridades estão no campo da estratégia de espetacularização e turistificação da região. Como um espaço afinado com a economia da experiência (Pine e Gilmore, 1999), a Praça Mauá combina controle, vigilância e encenação. A Praça Mauá é um espaço produzido que busca oferecer sensações memoráveis para o visitante-consumidor. Agora sem o peso cinza e bruto do elevado da perimetral, o espaço se ampliou. Já não há mais o som fatigante do tráfego intenso, substituído pelo do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) e sua suave sinaleira. O VLT, aliás, é um dos protagonistas do cenário. É tamanha sua evidência que ele parece desfilar. Seu caminho é totalmente compartilhado com o espaço de pedestres.

A Praça Mauá é agora espaço de shows e eventos, dos food trucks, das barraquinhas estilizadas de artesanato, do Museu de Arte do Rio – primeira âncora-cultural do Projeto Porto Maravilha – e do icônico Museu do Amanhã. A nova Praça Mauá destapou a Baía de Guanabara, onde do Píer Mauá meninos dão mergulhos espetaculares. O som do mar voltou a ser ouvido nessa área do Porto. Com novo paisagismo, criação de cenários e sendo abrigo de festas e eventos, a Praça Mauá ganhou nova ambiência (Thibaud, 2011), e especialmente, ganhou gente. Turistas e cariocas agora ali transitam para aproveitar as inúmeras possibilidades de entretenimento e consumo. À sua maneira, de lugar de passagem virou local de encontro e de futuras memórias.

Como defende La Barre (2014), os projetos conhecidos como de revitalização, requalificação, reabilitação ou recuperação são também projetos ambíguos de ressignificação, na medida em que eles se recusam a fechar um significado específico para o lugar. “Pelo contrário, a ambição é deixar abertas todas as potencialidades – performáticas, empíricas, interativas, participativas, etc –, de significações territorializantes” (La Barre, 2014, p. 4).

Ou seja, os lugares são caracterizados precisamente pela ausência de uma função pré-determinada, mas por uma idealização, enquanto lugar multi-funcional, feito de potencialidades diversas que irão permitindo uma multiplicidade de territorialidades, todas pensadas como provisórias e flexíveis (La Barre, 2014). Para La Barre, sendo a cidade contemporânea marcada pelo paradigma flexibilista, o som seria então o elemento mais adequado para pensá-la, por sua constituição fluida e flexível. Há os sons que são consequência, um efeito secundário de uma intervenção (trânsito, obras). Há sons que são encenados intencionalmente (sino da igreja, apito da fábrica). Droumeva (2004, p. 23) afirma que “quem controla o som, controla a vida pública”, dando a entender que o uso do som no espaço público dificilmente pode ser considerado como neutro, mas reflexo de poder.

As sonoridades possuem efeitos performativos que geram processos de territorialização. La Barre (2014) sugere uma transição do termo paisagens sonoras, enquanto ambientes naturais, para a ideia de territórios sonoros, ou das territorializações sonoras enquanto processos performativos que ocorrem em contextos cada vez mais tecnológicos, interativos e móveis. A paisagem urbana pós-moderna não é consumida apenas em seu aspecto visual, mas há uma produção performativa de territorialidades através do consumo auditivo (La Barre, 2014).

Na cidade-conceito para consumo, ganham prevalência os sons encenados, aqueles “produzidos para conferir um sentido de lugar, para representar o lugar no sentido performativo” (La Barre, 2014, p. 10). A encenação do som como estratégia do poder instituído (Certeau, 2008) de ressignificação do espaço é uma constante no ambiente da Praça Mauá. Além de toda programação educativa, o Museu de Arte do Rio é contumaz realizador de eventos, sejam shows no final da tarde ou festas que atravessam a noite. São eventos em grande parte patrocinados pelo poder público estadual e municipal, muitas vezes gratuitos ou com ingressos a preços populares.

Um momento exemplar dos sons encenados[8] no espaço público flexível, como La Barre se refere, se deu na Praça Mauá e adjacências durante os Jogos Olímpicos de 2016. Festas temáticas aconteciam aos domingos no Boulevard. A Praça Mauá, com telões de alta definição, era o ponto de encontro daqueles que não tinham ingresso para acompanhar as competições. Não à toa o grande palco montado na Praça Mauá foi chamado de Encontros, onde junto às vizinhas Praça XV (Palco Tendências) e a Orla Conde (Palco Amanhã), receberam artistas renomados de diversas vertentes da música brasileira. Mais de 80 artistas e grupos se apresentaram durante o período dos Jogos contribuindo para o estado de lotação eterna daquela área. A política de encenação do som dos espaços públicos dinamiza os lugares pela via cultural através da realização de eventos que tem a música como atrativo para atrair e entreter frequentadores na região.

Foto 2 - Palco Encontros, montado na Praça Mauá durante as Olimpíadas. Fonte: Claudia Holanda
Foto 2 – Palco Encontros, montado na Praça Mauá durante as Olimpíadas. Fonte: Claudia Holanda

O Morro da Conceição é frequentemente narrado como uma espécie de oásis dentro do caos do centro da cidade. Esse lugar calmo, bucólico, com cara de cidade do interior, especialmente no decorrer do Projeto Porto Maravilha foi fartamente divulgado nos veículos de comunicação como um lugar a ser visitado, tanto por sua riqueza histórica como por se diferenciar do roteiro turístico comum da Zona Sul. Ao se estar no Morro, entra-se num ambiente acústico diferente daquele por qual passamos segundos antes, especialmente se o caminho de entrada foi pela Rua Camerino ou a Travessa do Liceu, na Praça Mauá. As sonoridades são tão mais gentis que nos sentimos em meio ao silêncio. Mas um silêncio relativo ao que se ouvia logo antes. Não que de fato seja o silêncio – inexistente, segundo Cage (“There is no such thing as silence”, Cage, 1961) –, mas uma outra temporalidade e um ritmo que difere da atmosfera de centro da cidade, onde ele está localizado. Não é o silêncio, mas justamente sua ambiência peculiar que o torna interessante.

Foto 3 - Visitantes passeando no Morro da Conceição. Fonte: Claudia Holanda
Foto 3 – Visitantes passeando no Morro da Conceição. Fonte: Claudia Holanda

Desde o lançamento do projeto Porto Maravilha em 2009, a localidade já rendeu seis curtas-metragens[9] produzidos pela LC Barreto (produtora do cineasta Luiz Carlos Barreto). Patrocinados pela concessionária Porto Novo e lançados na internet, os curtas possuem um inequívoco ar publicitário, e também exploram o casario, a história e ambiência acústica da localidade. Hoje em dia, é comum em qualquer dia da semana, a chegada de grupos turísticos em passeios a pé, ou simplesmente curiosos que querem conhecer a aura de paz tão disseminada do local em meio ao centro financeiro da cidade (Foto 3). Junto à sua arquitetura, a ambiência silenciosa do Morro foi vendida, virou mercadoria imaterial. É como se essa qualidade sonora peculiar também se tornasse uma das cartas na manga para a mercantilização do espaço. O morro abriga ateliês de diversos artistas plásticos, alguns que veem com bons olhos o aumento do fluxo de visitantes. De outro lado, alguns moradores se sentem incomodados com essa onda de pessoas circulando no espaço, e especialmente com a presença mais frequente de carros e motos.

Um conjunto de presenças sonoras locais e ambiências contribuem para que o Morro seja um lugar agradável de viver e frequentar. Schafer, crítico dos efeitos da globalização que também homogenizam as sonoridades urbanas, provavelmente sentiria que o Morro da Conceição ainda é um território que guarda suas especificidades, inclusive acústicas. Como diria Westerkamp (1974), é um espaço dimensionado na escala humana. “Se você pode ouvir até o mais silencioso dos seus próprios sons, você está se movendo através de um ambiente que é dimensionado em proporções humanas” (Westerkamp, 1974, não paginado). Para Schafer (2011), o Morro da Conceição seria um ambiente hi-fi (alta fidelidade), onde todos os sons podem ser ouvidos com clareza, sendo possível distingui-los.

Ursula Franklin (2000) entende o silêncio como um bem comum com similaridades com a água, ar e solo, “que já foram uma vez tidos como dados, mas foram se tornando especiais e preciosos em ambientes mediados pela tecnologia” (Franklin, 2000, p. 14). Na era da Cybercultura, a palavra tecnologia muitas vezes é associada como sinônimo de tecnologia digital, esquecendo de uma longa história de invenção de instrumentos que se estendem durante toda a civilização humana. A cidade é rodeada de tecnologias: carros, aviões, televisão, caixas de som, um instrumento musical, o maquinário do ferreiro, o condicionador de ar, entre tantos, este último também como presença constante nas cidades quentes sendo capaz de produzir campos de sonoridades drone com seu ruído branco. É impossível fugir do ruído nas cidades, ao mesmo tempo o Morro da Conceição parece providenciar um breve refúgio num silêncio relativo.

Para Karlsson (2000), cada vez mais, o ambiente acústico se torna uma questão de poder e dinheiro. “O silêncio se tornou uma questão de consumo de luxo” (Karlsson, 2000, p. 11), tanto que nas áreas mais ruidosas da cidade o valor dos imóveis é mais baixo. A demanda por ganhos econômicos e entretenimento vem abalando áreas antes silenciosas da cidade. O silêncio adquiriu valor econômico e social no capitalismo que tudo captura. Não só a visualidade, mas também as sonoridades se tornaram ferramentas para a produção da cidade-mercadoria.


* Claudia Holanda é doutora do Programa de Engenharia de Produção (PEP) da COPPE, Mestra em Engenharia de Produção na UFRJ e graduada em Comunicação Social pela UFPE. Integra a rede de pesquisadores sobre narrativas digitais interativas BUG404 – www.bug404.net. Cantora e compositora.

** Roberto Bartholo é professor titular da UFRJ na área de Gestão e Inovação (GI) do Programa de Engenharia de Produção (PEP) da COPPE. Chefe do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social (LTDS).

 

Referências

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Notas

[1] Os arquivos de imagem e de áudio do World Soundscape Project foram digitalizados e estão disponíveis na página www.sfu.ca/sonic-studio. Para ter acesso, é necessário requerer registro ao administrador e ex-integrante do projeto, Barry Truax.

[2] Esquizofonia vem da junção do prefixo grego schizo (cortar, separar) e da palavra phone (som/voz).

[3] É possível escutar trechos das composições como também comprar o CD no portal https://folkways.si.edu/voices-of-the-rainforest/world/music/album/smithsonian

[4] Site oficial: http://www.ultrared.org

[5] Alguns trabalhos de áudio do Ultra-red podem ser acessados aqui: http://www.publicrec.org/archive/2-06/2-06-005/2-06-005.html

[6] Disponível em https://storymap.knightlab.com/

[7] Fundado em 1979na Escola Nacional de Arquitetura de Grenoble, na França, o Cresson é uma referência de estudos urbanos relacionados ao ambiente sonoro.
http://aau.archi.fr/cresson/

[8] Registros de áudio da Praça Mauá realizados à tarde no dia de abertura dos Jogos Olímpicos – 5 de agosto de 2016 – podem ser acessados diretamente na página Escutando a Cidade, do Soundcloud, que abriga arquivos da pesquisa: https://soundcloud.com/escutandoacidade/sets/praca-maua-na-abertura-das-olimpiadas como também no mapa sonoro Sons do Porto (www.sonsdoporto.com), que disponibiliza registros de áudio e imagem de localidades diversas da região portuária do Rio de Janeiro.

[9] Link dos curtas no youtube: https://www.youtube.com/channel/UCNWpInL240jIV1vKz7TcENg – acessado em 15 de setembro de 2017.