Algumas das questões que atravessam a minha atual pesquisa, “Texto e presença: o personagem, o ator e a materialidade visual e sonora do texto teatral”, nortearão este artigo. A pesquisa se volta, simultaneamente, para questões cênicas suscitadas, por um lado, por textos que tendem a forçar os limites dos gêneros e modos discursivos, por dramaturgias que tendem a pôr certa concepção de drama em questão e, por outro lado, por encenações que desafiam os paradigmas que costumam orientar o trabalho do ator em cena e, em particular, sua relação com o texto dramático. Para discutir alguns destes pontos, vou desenvolver uma breve reflexão sob a forma de um triplo estudo de caso, tomando por base os exemplos de três espetáculos, encenados recentemente no Brasil, a saber: Strip-tease (2000), Ensaio.Hamlet (2004) e Formas breves (2009).
Uma das primeiras cenas do espetáculo Formas Breves de Bia Lessa e Maria Borba, em cartaz no Rio de Janeiro e em São Paulo em 2009, mostrava uma atriz sobre uma bicicleta cujas rodas eram presas ao chão por dois atores, que pareciam servir-lhe de pedestal. De frente para o público, a atriz guiava a bicicleta, por vezes pedalando em alta velocidade, e dizendo, também rapidamente, um texto. As rodas da bicicleta serviam de pernas para a atriz que pedalava sem, no entanto, sair do lugar. Ela se equilibrava sobre duas rodas, confiando o equilibro, todavia, à presteza dos dois atores que, por sua vez, aparentavam dar pouca ou nenhuma atenção à sua função de manter a atriz em equilíbrio fora do chão, segurando cada uma das rodas enquanto liam um livro ou fumavam um cigarro de maneira casual. Enquanto permanece pedalando, a atriz vai contando uma história. O relato (em primeira pessoa), recortado do livro Origem, de Thomas Bernhard, é, todo ele construído no pretérito, mas o tempo verbal se vê contrastado por sua presentificação em cena pela atriz-ciclista.[1]
O equilíbrio vacilante da atriz, cujos pés se mantêm fora do chão, faz lembrar a performance Duets on Ice (1974-75)[1] da artista norte-americana Laurie Anderson, na qual ela se equilibra sobre patins de gelo, cujas lâminas estão presas em cubos de gelo. A performer vai tocando violino enquanto conta histórias e o gelo, que recobre as laminas dos patins, vai aos poucos derretendo. A performance termina quando o gelo derrete e a performer perde, então, o equilíbrio. Equilíbrio tenso que se assemelha ao da atriz sobre a bicicleta com as pernas suspensas. Nos dois casos, onde deveria haver movimento, não há. Nem a bicicleta se move no espaço, nem os patins de Anderson deslizam por uma pista de patinação. O movimento, que deveria estar nos pés suspensos pelas rodas ou pelas lâminas enfiadas no gelo, se desloca do corpo das duas performers para a voz, para a narração de histórias e para o contraste temporal entre o passado da narrativa e o presente da ação dramática. Movimento enfatizado pelo desequilíbrio provocado justamente pela imobilização (das lâminas e das rodas), agenciada pelo gelo ou pelas mãos dos atores displicentes, presentes na abertura do espetáculo de Bia Lessa e Maria Borba.
Nos dois exemplos, o de Laurie Anderson e o da atriz-ciclista, com a suspensão do corpo do performer, cujos pés se mantêm fora do chão, como se suspensos por espécies de máquinas, se atribui à imagem do corpo do ator certo descolamento da terra, certo caráter meio incorpóreo, desmaterializado, que chega a lembrar o das figuras de El Greco. Sempre a certa distância do solo. E marcados por certa insubstancialidade. Contrastada, porém, a forte presença. Distância e presença, de um lado, contraste entre pretérito narrativo e presente cênico, entre esforço e imobilidade, ficção e realidade, de outro – o que sugere a discussão sobre o estatuto do personagem, e sua figuração em cena, entre o imaterial e o fortemente corpóreo, como um lugar tenso, contrastivo, de entrada no espetáculo Formas breves.
Passando ao segundo exemplo, Strip-tease e teatro irregular, do poeta catalão Joan Brossa, chama a atenção o fato de, nas cenas de desnudamento do texto, o corpo ser quase que só matéria. A nudez, como questão central, já sublinha a matéria, a exposição de um corpo sem interior, despido de subjetividade psicológica. Gostaria de lembrar, a respeito, um dos primeiros números de strip-tease descritos pelo poeta, quando uma bailarina tira toda a roupa, os cílios postiços, a pinta do rosto, uma peruca, revelando outra peruca por debaixo daquela, até que tira finalmente a segunda peruca, revelando uma careca. Não se identifica nesse corpo nada de suspenso, de imaterial, de não substancial, nem algo capaz de se desfazer no ar, como os espíritos de A tempestade, ou como os personagens que “habitam” os corpos dos atores e que se desmancham ao término do espetáculo. Vislumbra-se, no texto de Brossa, ao contrário, um corpo que é bastante palpável, feito de carne e osso. E o que estaria dentro dele seria, ainda uma vez, matéria (numa das cenas, cai a face e revela-se uma caveira), sempre matéria e não alguma subjetividade ou revelação latente que se apresentaria ao término da cena.
Se há uma oposição nítida entre este exemplo do poeta e dramaturgo catalão e os exemplos citados anteriormente, há, porém, a possibilidade de uma aproximação entre os corpos suspensos criados por Bia Lessa e por Laurie Anderson e uma das cenas do espetáculo dirigido por Daniel Dantas com base nos textos de Joan Brossa.
No strip-tease Lua cheia, entra uma bailarina e se despe de quatro. Quando fica nua, entra um corcunda, bate palmas, desce uma corda, o corcunda amarra os pés da bailarina na corda, bate palmas novamente e a bailarina é suspensa até sumir no urdimento. Na encenação desse número, a luz esverdeada (na verdade uma projeção sobre o telão de fundo e o corpo da atriz) e a cenografia são trabalhados de modo a que o corpo suspenso no ar se confunda com o cenário. Se, por um lado, o corpo suspenso se assemelha a um corpo morto, reduzido à sua materialidade pura, como um pedaço de carne pendurado num açougue, por outro lado, o corpo, ao ser erguido do chão, ao perder o contato com o solo, parece de fato se fundir ao cenário, desaparecer contra o telão de fundo, como se não fosse matéria, como se pudesse, de fato, se desfazer no ar.
Uma tensão semelhante entre desmaterialização e presença física é possível observar numa outra cena do espetáculo Formas breves, em que um ator se despe inteiramente e permanece de pé sem dizer nenhuma palavra, sem executar nenhuma ação, apenas expondo o corpo nu enquanto matéria. Um longo texto é projetado no teto do teatro, nas paredes do teatro, nos corpos dos atores e no chão do palco. O corpo nu do ator se anula, então, servindo de “tela” para a projeção do texto que não é dito por ele, mas exposto em seu corpo. Como no strip-tease brossiano referido acima, parecendo operar-se uma bidimensionalização desse corpo nu, neste caso servindo de suporte para a escrita.
Este texto que, se dito pelo ator, emprestaria ao corpo alguma possibilidade de fala, de externar possível interioridade, ao contrário, não sai dele, é um elemento que está fora do corpo, que se inscreve nele, mas não se fixa nele, que passa pelo corpo sem deixar qualquer marca ou rastro, e se espalha para além desse corpo, ocupando todo o espaço do teatro. Há aí uma separação entre texto e corpo, entre texto e voz, entre ator e personagem. Ator e personagem parecendo estar em planos diferentes, dissociados um do outro. E o espaço que se abre entre esses dois elementos é ocupado pelo texto projetado, cuja presença acaba por “ganhar” o centro e o foco da cena, atravessando o cenário, dançando pelas paredes do teatro, se movimentando, acariciando os corpos dos atores em cena.
Ainda pensando na tensão entre presença e ausência como forma de discussão do ator em sua relação com o personagem, passo agora brevemente ao espetáculo Ensaio.Hamlet, da Cia dos Atores, dirigido por Enrique Diaz. Nesse caso, essa tensão não se dá a partir da transformação dos corpos dos atores em tela ou em qualquer outro tipo de suporte para a palavra escrita, nem há suspensão de corpos – via gelo, bicicleta ou corda. Nesse espetáculo, o que chama atenção é o movimento de deslocamento dos personagens que vão sendo assumidos por corpos diversos. Quase todos os atores em algum momento fazem Hamlet; Ofélia também é representada por alguns dos participantes da peça. Mas não é só de um ator para outro que os personagens se deslocam. Também podem surgir como objetos. É o caso de Rosencrantz e Guildenstern que são apresentados como dois bonecos de plástico e que depois ressurgem, em carne e osso, na pele de dois atores vestidos exatamente como os bonecos. É o caso também de Ofélia que, a princípio, é apenas um vestido, sem nenhum corpo que o vista. Uma cena inteira é feita assim: uma Ofélia-vestido é manipulada por um ator que contracena com ela. Só ao final da cena, o ator veste o vestido e assume a personagem. No momento em que o vestido é “ocupado” pelo corpo de um ator, no entanto, a personagem ganha corpo e voz, mas logo sai de cena. Em seguida, uma atriz aparece e também não faz, inicialmente, a personagem. Enquanto se prepara para fazer Ofélia, ela reclama da personagem, diz que não gosta de adolescentes e que tem um problema com Ofélia. Só depois desse preâmbulo, a atriz vai aos poucos assumindo a personagem. Há como que uma espécie de recusa em dar corpo a esse personagem. Se nos Strip-teases de Brossa os corpos se despem das roupas, se livram delas e exibem a própria materialidade nua, no Hamlet da Cia dos Atores, aconteceria justo o oposto: um vestido é despido de qualquer corpo que dê forma à personagem Ofélia. É o vestido que se livra do corpo e não o corpo que se livra da roupa. Mas há, na ausência de uma Ofélia de carne e osso, nessa primeira aparição da personagem, no entanto, uma presença muda que se sobrepõe à presença dos atores em cena. O vestido “vazio”, sem qualquer tipo de enchimento que lhe dê forma, bidimensional, especialmente quando colocado no chão, parece querer sublinhar que é aquela roupa que se mostra capaz de presentificar a personagem clássica de Shakespeare com mais eficiência do que se houvesse dentro dela algum ator.
A encenação segue trabalhando com essa tensão entre vazios e cheios, presenças e ausências. Se Ofélia é apresentada como um vestido vazio, como uma personagem de vento, o monólogo “ser ou não ser”, de Hamlet, é construído em cena por três atores que enchem o espaço com as palavras de Shakespeare. Ao invés de fazer do monólogo um solo, a cena oferece um coro de vozes, o que já conferiria ao texto uma presença sonora significativa. As palavras que compõem o primeiro verso do texto são ditas mais de uma vez pelos atores, que, ao repetirem desordenadamente os vocábulos não-ser-ser-não ser-ser-não ser, e assim por diante, retiram as palavras da frase, descontextualizam momentaneamente cada uma, quebrando o período, fazendo com que o verso soe de forma imprevista e trazendo assim o verso, já tantas vezes descontextualizado, de volta para o contexto da peça e do personagem.
Em contraste então, numa mesma encenação, o vazio (de corpo e de voz) que ocupa o vestido-Ofélia e o cheio (de corpos e de vozes) que ocupam a cena do ser ou não ser de Hamlet. Em ambos os momentos há presença e há ausência. Há a presença da personagem clássica na ausência de corpo e voz na Ofélia-vestido e há ausência de um ator soberano da cena, enunciador do famoso solilóquio shakesperiano, para que haja uma presentificação do texto multiplicado em três vozes.
Nas três encenações aqui brevemente comentadas, foi possível observar a presença tanto material (na projeção do texto em Formas breves) quanto sonora (no coro de três vozes para o solilóquio de Hamlet) do texto na cena. E modos diversos de essa presença problematizar a relação entre ator e personagem. E permitir que se observem algumas possibilidades de configuração do corpo na cena contemporânea: os corpos sem matéria, efêmeros, “feitos de sonho”, como a Ofélia-vestido de Ensaio.Hamlet, os corpos-matéria, despidos de roupas e de interioridades, como o corpo pendurado do Strip-tease de Brossa ou o corpo nu de Formas breves, e os corpos suspensos, presos num lugar intermediário entre a presentificação cênica e a narração, como o da menina que se equilibra sobre as rodas da bicicleta em Formas breves.
*Inês Cardoso Martins Moreira é doutora em Artes Cênicas e professora adjunta do Departamento de Teoria do Teatro da Escola de Teatro da Unirio.
[1] A performance Duets on Ice foi reencenada por Laurie Anderson no Brasil, no CCBB de São Paulo em outubro de 2010 e no CCBB do Rio de Janeiro em março de 2011, por ocasião da abertura de sua exposição Eu em Tu / I in U.