Há uma questão saliente no trabalho do escritor e artista visual Nuno Ramos: uma espécie de apropriação desapropriante (num movimento entre posse e despossessão) que ele desenvolve, como modo de uso e operação crítica, logo política, de fragmentos e destroços de algumas imagens da literatura e da arte modernas para tentar reposicioná-las com o seu trabalho numa discussão por dentro do circuito da literatura e da arte agora, no presente. São inúmeros os exemplos dessas intervenções disjuntivas e, mais ainda, são cortes, montagens e acessos extremamente convulsos e intermitentes, o que parece tornar o que faz muito mais interessante e pertinente ao justapor e disseminar essas imagens manifestas entre o que escreve nos seus livros e o que constrói como intervenção visual nas suas exposições. Nuno Ramos procura fazer usos variados da potência da imagem moderna, quase sempre colada a um manifesto, numa virtualização que tende a propor e desfazer toda ideia de programa, ordem ou hierarquia, compondo assim novas imagens numa inoperação do comum.
Importante, portanto, lembrar que é Jean-Luc Nancy quem aponta para um désouvrement nessa conjunção, nessa constituição de uma comunidade inoperante, que seria também, ao mesmo tempo, a possibilidade de pensarmos a arte e a literatura – como elaboração ficcional da história ou da história como uma invenção constitutiva – como aquilo que ainda pode impor alguma forma de vida contra o poder, como aquilo que pode viver e, principalmente, sobreviver na intimidade de um ser estranho. Diz ele que é
porque há isto, este desobramento que reparte nosso ser em comum, há “a literatura”. Ou seja, o gesto indefinidamente retomado e indefinidamente suspenso de tocar o limite, de indicá-lo e de inscrevê-lo, mas sem franqueá-lo, sem aboli-lo na ficção de um corpo comum. Escrever para o outro significa na realidade escrever a causa do outro (Nancy, 2001, p. 124).[1]
É pensando nisso – há a literatura / há arte e, muito, no que é escrever para o outro, no que é escrever a causa do outro ao tocar o limite na ficção de um corpo comum – que podemos começar a ler os usos dessas imagens no trabalho de Nuno Ramos entre a literatura e as artes visuais como um désouvrement. Em 1995, por exemplo, ele se junta a Paulo Pasta e Fábio Miguez para realizar uma curadoria para o Conjunto Caixa Cultural, de São Paulo, de uma exposição do gravurista suíço-carioca Oswaldo Goeldi em comemoração ao seu centenário de nascimento. Realizaram também uma pequena publicação reunindo gravuras de Goeldi com alguns poemas de Manuel Bandeira, demarcando aquilo que, com Jacques Rancière em seu livro O destino das imagens, é possível chamar de uma composição seriada a partir dos usos da frase-imagem. A frase-imagem, diz Rancière, não é apenas a união de uma sequência verbal e de uma forma visual; mas sim uma potência de expressão que pode vir tanto nas frases de um romance quanto numa encenação teatral ou num filme ou ainda na relação do dito com o não-dito de uma fotografia. Para Rancière, uma frase não é apenas um dizível e uma imagem não é apenas um visível. E completa:
Pelo termo frase-imagem entendo a união de duas funções esteticamente por definir, isto é, pela maneira como desfazem a relação representativa da imagem pelo texto. No esquema representativo, a parte do texto era a do encadeamento ideal das ações, a parte da imagem era a do suplemento de presença que lhe dá carne e consistência. A frase-imagem derruba esta lógica. No seu seio, a função-frase é sempre a do encadeamento. Mas, doravante, a frase desencadeia-se, tanto que é ela que dá carne. E esta carne ou esta consistência é, paradoxalmente, a da grande passividade das coisas sem razão (Rancière, 2011, p. 65).
Temos aí uma espécie de quebra da lógica representativa, ou seja, uma queda da legenda. Isto pode ser também um procedimento evidente que passa a constituir a “carne passiva das coisas sem razão” nesse projeto da publicação que segue o modelo de um caderno de notas aleatórias, magro e com espaços brancos que desfaz, assim, qualquer possibilidade de leitura das imagens como legendas dos poemas e vice-versa, ou seja, dos poemas como legendas das imagens. O que se tem é uma conversa resoluta e política entre as gravuras e os poemas página a página, independentes, e desde o título do caderno, quase à modo de Dostoievski, uma das leituras obsessivas de Goeldi, para compor aí uma frase-imagem na conjunção de dois termos díspares: Noite morta.[2] E, nessa ambivalência de figurações da noite que morre, da noite que morreu, Goeldi e Manuel Bandeira traçam, trocam e montam uma espécie de impasse entre o que Nuno Ramos, no texto-posfácio do caderno, chama de “intervalo-eixo” entre o agouro e a libertação, o abandono e o esquecimento. Diz ele que os objetos preferidos de Goeldi – as latas derrubadas, os cães vadios, os móveis ao relento, por exemplo – são preservados apenas em sua mesquinhez, mantidos em seu mistério e, por isso, plenos de potência.
Há nas gravuras de Goeldi, diz Nuno Ramos, uma tristeza que resulta não como atributo, mas sim como condição. São coisas que foram deixadas de lado, como um urubu pousado (“que pertence ao chão”) ou uma ossada. Assim, ele entende que essa tristeza que vem dos trabalhos de Goeldi é “banhada, não encontro termo melhor, [diz ele] numa estranha calma” (Ramos, 1995, p. 37). Por isso, essa “espacialidade acentuada, algo metafísica, que isola os seres e torna os lugares profundos, maiores do que cada um” (Ramos, 1995, p. 37). E, ao mesmo tempo, são esses elementos dispostos ao abandono que acrescentam à “espacialidade desencarnada pequenos comentários lúgubres”, indicando que, “num primeiro momento, tudo no mundo de Goeldi parece triste, isolado e caminha para a morte” (Ramos, 1995, p. 38). Desse modo, é importante verificar nessa série de frases-imagens que se armam aí como, por exemplo, entre o poema de Bandeira intitulado Momento num café e a gravura de Goeldi intitulada Destino, o que se pode chamar também de intermitência, de imagens intermitentes, que oscilam entre a palavra e a imagem, entre a imagem e a palavra, criando uma aparente disposição diferida entre os dois trabalhos (procedimento muito próprio de Nuno Ramos e exercido nessa curadoria como um désouvrement do seu gesto como artista e escritor ao tomar posse da imagem moderna para tocar as questões da vida e da arte contemporâneas):
Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.
(Bandeira, 1993, p. 155)
O poema de Bandeira é de seu livro Estrela da manhã, de 1936, e na montagem do livro vem logo depois do poema Oração a Nossa Senhora da Boa Morte, quando alguém, sem escolha, pede ajuda às santas Teresinha e Rita dos Impossíveis. E indica que não quer glória, nem amores, nem dinheiro; quer pouco, quer apenas alegria. Adiante, desiste até da alegria, e pede ao menos uma boa morte. Este culto está vinculado ao final da oração da Ave-Maria quando o pedido que se faz à santa é que ela rogue “por nós na hora de nossa morte, amém”. No caso de Momento num café ficamos diante de um poema de observação das circunstâncias cotidianas – muito próprio do procedimento de Manuel Bandeira – entre uns homens distraídos, agarrados à vida num espaço de encontro, e um ritual de morte que se dá num cortejo que passa diante do café.
O descompasso armado pelo poema de Bandeira é, seguindo o que Nuno Ramos diz de Goeldi, praticamente o mesmo: ao mesmo tempo agouro e libertação (se pensarmos na ideia que é a morte que liberta o corpo definitivamente), e abandono e esquecimento (se pensarmos que, no olhar demorado de um único homem, isolado, há um saber do quanto a vida é uma agitação feroz e sem finalidade, uma traição). E, ao que parece, a gravura de Goeldi segue esse mesmo empenho, basta reparar um pouco na flanagem do espectro, o fantasma, com o crânio à mostra, um oco ósseo, uma sobra humana da morte, a mão direita delicadamente colocada no bolso do casaco e, do outro lado, a mão esquerda que parece empunhar uma foice, um instrumento da Morte como figuração do que ela é. Importante perceber o contorno de um corpo insuspeito que pertence ao chão ao lado do espectro e, ao redor, como nos apresenta Nuno Ramos, temos uma
espacialidade acentuada, com indicações de profundidade bem marcadas, que aumentam a fantasmagoria e o isolamento e, de outro lado, numa intensa comunhão formal entre os elementos, […] movimento e solidez, vento e pausa, dilaceramento expressionista e calma oriental. Através dessa dupla raiz o expressionismo de origem é superado. Solidão e tristeza deixam de ser propriamente expressivas para elevarem-se a uma condição exemplar, a de atributos adormecidos porém essenciais da nossa natureza. Tudo em seu trabalho participa dessa qualidade, desde os homens [quase sempre pobres-diabos] até os cachorros humildes, as latas vazias, os paralelepípedos. Não há foco ou hierarquia e a presença humana espalha-se num entorno também ele vivo e movente. Esquecidos ali, sem finalidade prática, os seres esparramados se encontram. São restos, pedaços e detritos que um vento metafísico juntou (Ramos, 1995, p. 38).
Outro bom exemplo desse empenho da curadoria como um gesto de seu procedimento é o uso do poema Boi morto de Bandeira, que abre o livro OPUS 10, publicado em 1952, que na publicação para a exposição do Conjunto Caixa Cultural aparece ao lado da gravura de Goeldi intitulada Náufragos. E, mais uma vez, fica-se diante de uma espectralidade moderna, a do acaso, do acidente (é possível lembrar também de Mallarmé e seu Un coup de dés), quando o que se vê é uma cabeça em movimento com uma transparência fantasmagórica, um anúncio de morte, num paradoxo interessantíssimo: mesmo náufragos “os seres de Goeldi são sobreviventes”, avisa Nuno Ramos; “os seres perdem o rigor mortis e abrem seus contornos a similitudes e passagens insuspeitadas” e é a queda que oferece redenção a quem caiu (Ramos, 1995, p. XX). O poema de Bandeira também aponta para esse cenário de queda e para esses seres, os fora de prumo, os mensageiros da passagem, os desequilibrados:
Como em turvas águas de enchente,
Me sinto a meio submergido
Entre destroços do presente
Dividido, subdividido,
Onde rola, enorme, o boi morto,Boi morto, boi morto, boi morto.
Árvore da paisagem calma,
Convosco – altas tão marginais!
Fica a alma, a atônita alma,
Atônita para jamais.
Que o corpo, esse vai com o boi morto,Boi morto, boi morto, boi morto.
Boi morto, boi desconhecido,
Boi espantosamente, boi
Morto, sem forma ou sentido
Ou significado. O que foi
Ninguém sabe. Agora é boi morto,Boi morto, boi morto, boi morto.
(Bandeira, 1993, p. 213)
A repetição diferida – boi morto, boi morto, boi morto – desse corpo que se exibe como um restolho à deriva é também muito própria dos interesses de Nuno Ramos em seu trabalho – trabalhar com os destroços do presente, arrancar a pele das coisas –, por exemplo, tem a ver com uma temporalidade de quando a linguagem fala de si mesma, quando ela nos fala sempre da cegueira que a constitui (cecité), como aponta Derrida no livro Memórias de cego (2010, p. 22-23). Pensar o poema, se político, como um corpo animal exposto – figurado nesse boi morto – é armar uma proposição que ao mesmo tempo em que desfaz o caráter humano – “dividido, subdividido” – termina também por refazê-lo e reconduzi-lo a uma vertente deliberada de instinto e desejo – morto, sem forma ou sentido / ou significado –, mais ou menos quando o desejo de saber ver (uma indecidibilidade: vontade de saber – savoir / vontade de ver – voir) fica mais perto de uma natureza da vontade, de um estado natural, como sugeriu Montaigne (1972, p. 481). Basta reparar como Bandeira termina o poema: “O que foi / ninguém sabe. Agora é boi morto, / Boi morto, boi morto, boi morto.”
Assim, é possível perceber algo dos modos de uso da imagem moderna por Nuno Ramos – esta, por exemplo, que vem e que surge entre Bandeira e Goeldi – quando a expande para as suas séries de intervenções plásticas ou por seus livros, invariavelmente trabalhos que buscam fincar-se no espaço como um crivo (este espaço informal, trançado, aberto e contingente), como escreve ele no seu primeiro livro, Cujo, publicado em 1993: “Comecei a arrancar a pele das coisas. Queria ver o que havia debaixo. Ergui a superfície do assoalho, que saiu inteira, sem quebrar. Tive de descascar a pele dos tijolos aos poucos, com paciência. […] Fui retirando camadas sucessivas, cada vez mais onduladas e acidentadas” (Ramos, 1993, p. 30-31). Ele opta por imagens de corpos expostos quando refaz essas imagens em textos e objetos, também por exemplo, a partir de bichos mortos, corpos abandonados ou objetos descolocados, como aviões enfiados em galhos de árvores ou uma cama afundada na areia da praia.[3]
O seu livro de poemas intitulado Junco, de 2010, um verbete anfíbio e díspar, que tanto pode ser o nome de uma embarcação chinesa quanto o de uma planta de folhas quase soltas, é composto de imagens de corpos de cães (expostos à beira da estrada) engendradas com imagens de troncos soltos e apodrecidos (abandonados na praia). São fotografias, espalhadas pelo livro, que perseguem os poemas e que, num movimento às avessas, são perseguidas pelos poemas.
Uma pequena nota ao final do livro, diz que as fotografias foram feitas enquanto escrevia os poemas e que sempre os imaginou juntos, como rasuras feitas de pedaços, detritos, restos e palavras sempre com o cuidado extremo de que no intervalo entre palavra e objeto / objeto e palavra não se tenha aí apenas uma legenda entre um e outro. Tanto que em uma narrativa que está em seu livro Ó, de 2009, “Recobrimento, lama-mãe, urgência e repetição, cachorros sonham?”, há uma pergunta definidora que rearma a dimensão da frase-imagem toda feita a partir de destroços: “Mas faz parte da indiferença meio humilde, meio vagabunda dos cachorros deixar-se atropelar sem sequer amassar a lataria, sem ameaçar nossa integridade física nem causar prejuízo a quem os assassina” e “Cachorros sonham?” (Ramos, 2008, p. 151-152) Imagem intermitente que, por exemplo, já está no seu trabalho de 2008, “Monólogo para um cachorro morto”, que, além de uma instalação com lâminas de mármore, um monitor de tela plana exibe um filme em que Nuno Ramos encosta o carro no acostamento da rodovia Raposo Tavares, em São Paulo, segue até o guard-rail onde há um cachorro morto e deixa um aparelho de som – com os alto-falantes voltados para o animal – que reproduz o texto “Monólogo para um cachorro morto”. Segue um trecho do texto:
Entre nós dois poesia (Pausa). Entre nós dois meu anjo, meu nojo, minhas mãos suadas e uma fenda. Vê, onde um corpo fendido recebe outro corpo e um terceiro corpo nasce deles, entre eles, feito de. (Pausa) Vento, mau cheiro, delícia; sabão, carranca, monotonia. Assim: teu pelo. Assim: a chuva. Ladrada. Ou carne lacerada, imagem dentro do meu olho. Vê. Você aí. Aí, morto. (Mais alto) Permito que você morra. Permito que fique assim, morto (Ramos, 2010a, p. 442).
São exemplares as exposições Para Goeldi 1, de 1996, na Galeria AS Studio, em São Paulo, com 2 séries de desenhos e 4 esculturas; e Para Goeldi 2, de 2000, na Casa Vermelha, em Curitiba, no Paraná, com móveis usados e lâminas de granito. As exposições parecem retomar uma anotação do seu livro Cujo, de que “A semelhança é o melhor disfarce”.
Na primeira, o uso do urubu, animal de agouro e libertação, exposto e impresso em areia e silicato; a mala, a cadeira e o cesto fundidos em bronze com restos de vidro derretidos sobre eles, coisas de abandono e esquecimento, até as reproduções de algumas gravuras de Goeldi que sofrem interdição de fumaça e carvão para criar um ambiente que indica uma transparência; e, na segunda, os usos dos móveis em simbiose com as lâminas, como se fossem paredes, e vice-versa e a gravura Tarde, de Goeldi, ampliada numa cava do chão de cimento enchida com óleo queimado indicando agora um ambiente indefinido – “uma camada que mal se percebe (a não ser pelos reflexos), mas que cria uma espécie de ambiente” (Ramos, 1993, p. 65). Essas exposições de Nuno Ramos sugerem a mesma desierarquização proposta pelas imagens dos poemas de Bandeira entre vivos e mortos e pelas imagens das gravuras de Goeldi “entre seres e coisas, homens e animais, natureza e social” (Ramos, 1995, p. XX) com uma luz desmesurada e destrutiva em que a tristeza, a solidão e a noite se misturam formando um contorno de corpos e de vida sobreviventes (Ramos, 1995, p. XX).
Nuno Ramos radicaliza esse procedimento ao retomar a imagem que vem dos urubus de Goeldi ou do boi morto de Bandeira, por exemplo, no seu trabalho para a Bienal de São Paulo, em 2010: Bandeira branca. Trabalho composto de “três enormes esculturas de areia preta pilada, foscas e frágeis, a partir de cujo topo, feito de mármore, três caixas de som emitem, em intervalos discrepantes, as canções ‘Bandeira branca’ (de Max Nunes e Laércio Alves, interpretada por Arnaldo Antunes), ‘Boi da cara preta’ (do folclore, por Dona Inah) e ‘Carcará’ (de João do Vale e José Candido, por Mariana Aydar). Três urubus vivem na instalação durante toda a duração do trabalho” (Ramos, 2010b); ou seja, é a deliberação ponderada, sobrevivente e crítica do uso de algumas imagens intermitentes que retira da literatura e da arte modernas para provocar embaraçadas e embaraçosas discussões da crítica e do público de agora, o que só demonstra a força política de um trabalho ao apontar para o furo de várias imposições por dentro do circuito fechado da arte.
Por fim, uma última inferência que pode ser pensada como um gesto mais anacrônico ainda, no sentido de uma colisão dos tempos e de uma modulação entre posse e despossessão (uma apropriação desapropriante), é o seu último livro de pequenas narrativas publicado em 2010: O mau vidraceiro. O título é uma recuperação indicativa da imagem do poema homônimo de Charles Baudelaire publicado no pequeno conjunto chamado Spleen de Paris em 1869, dois anos depois de sua morte. Nesse livro Baudelaire desfaz a forma do poema e o contamina definitivamente com a prosa; e esse “poema em prosa” trata de uma natureza contemplativa em torno de um dos elementos mais fascinantes da nova arquitetura de seu tempo, o vidro. Ao mesmo tempo trata de uma natureza demoníaca própria do homem que explode diante das novas formas e circunstâncias da vida moderna. O narrador, pois, reclama com um vidraceiro que faz pregão em bairros pobres sem ter entre seus objetos de venda nenhum vidro colorido. Empurra-o para a escada e, numa explosão de fúria e ímpeto, grita que é preciso, de algum modo, “a vida com beleza! a vida com beleza!” (Baudelaire, 1991, p. 29) Nuno Ramos, por sua vez, desenha todo o seu livro a partir dessa ambivalência da natureza do homem moderno sugerida por Baudelaire em seu poema na imagem do mau vidraceiro. Na quinta narrativa de seu livro, por exemplo, Homem-bomba, fazendo uso de uma posse e de uma despossessão, amplia o impreciso dessa ambivalência da imagem moderna ao armar uma “desobra” e jogá-la ao mar mais impreciso ainda do mundo, da vida e da arte contemporâneas. Eis a pequena narrativa, na íntegra:
Sou o homem-bomba voluntário, sem paraíso prometido, para explodir de vez esta soma de vozes, hierarquizada em intervalos [oitavas, quartas, terças] com um único eco, bum, da minha solidão – vocês ouvem seu ruído espantoso? o deslocamento de ar? os carros incendiados, os pedaços de carne humana, o sangue no asfalto, nas paredes? Outra solidão se vingará (Ramos, 2010c, p. 17).
* Júlia Studart é poeta e doutora em Teoria Literária pela Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC. Desenvolve pesquisa de pós-doutorado na Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, sobre literatura e arte brasileiras (a partir do trabalho do Nuno Ramos). Publicou Arquivo debilitado, o gesto de Evandro Affonso Ferreira (Editora Dobra, SP, 2012), Livro Segredo e Infâmia (Editora da Casa, SC, 2007), Marcoaurélio!, uma plaqueta com a artista visual Milena Travassos (Dragão do Mar, CE, 2006), entre outros.
Referências
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1993.
BAUDELAIRE, Charles. “O mau vidraceiro” In: O spleen de Paris – pequenos poemas em prosa. Trad. Antonio Pinheiro Guimarães. Lisboa, Relógio D’àgua, 1991.
DERRIDA, Jacques. Memórias de cego – o auto-retrato e outras ruínas. Trad. Fernanda Bernardo. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.
NANCY. Jean-Luc. Trad. Pablo Perera. La comunidad desobrada. Madrid: Arena Libros, 2001.
RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Trad. Luís Lima. Lisboa, Orfeu Negro, 2011.
NUNO, Ramos. Nuno Ramos. Org. Ricardo Sardenberg; Texto crítico de arte Alberto Tassinari. Rio de Janeiro: Cobogó, 2010a.
RAMOS, Nuno. “Bandeira branca, amor – Em defesa da soberba e do arbítrio da arte”. Folha de São Paulo – Ilustríssima. São Paulo. 17 de out. 2010b.
RAMOS, Nuno. Cujo. São Paulo: Ed. 34, 1993.
RAMOS, Nuno. “Goeldi: agouro e libertação” In: Noite morta. BANDEIRA, Manuel
e GOELDI, Oswaldo. São Paulo, Conjunto Caixa Cultural, 1995.
RAMOS, Nuno. Junco. Sao Paulo, Iluminuras, 2012.
RAMOS, Nuno. Ó. Sao Paulo, Iluminuras, 2008.
RAMOS, Nuno. O mau vidraceiro. Sao Paulo, Iluminuras, 2010c.
Notas
[1] Tradução minha a partir da edição espanhola de Pablo Perera: “Porque hay esto, este desobramiento que reparte nuestro ser en común, hay ‘la literatura’. Es decir, el gesto indefinidamente retomado e indefinidamente suspendido de tocar el límite, de indicarlo y de inscribirlo, pero sin franquearlo, sin abolirlo en la ficción de un cuerpo común. Escribir para el otro significa en realidad escribir a causa del otro.”
[2] Importante lembrar que Goeldi também compôs para as narrativas de Dostoievski uma série de gravuras. Assim é que alguns livros das novas edições do escritor russo feitas pela Editora 34, de São Paulo, têm, nas capas, algumas dessas gravuras. Caso, por exemplo, de Memórias do Subsolo e de A Dócil / O sonho de um homem ridículo.
[3] Faço referência, respectivamente, aos trabalhos Fruto estranho, de 2010, exposto no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e Marémobilia, de 2010, realizado em Nova Almeida, no Espírito Santo.