Tradução de Maria Vigorito
Na última véspera de Natal, Alan, um menino trans de 17 anos, morreu em Barcelona.[1] Ele havia sido um dos primeiros menores trans a obter uma mudança de nome em sua carteira de identidade nacional na Espanha. Mas o certificado não conseguiu superar o preconceito. A legalidade do nome não poderia superar a força daqueles que se recusaram a usá-lo. A lei não poderia superar a norma. Os constantes episódios de assédio e intimidação que ele sofreu durante três anos nas duas escolas onde estava matriculado o fizeram perder a confiança em sua capacidade de viver e o levaram ao suicídio.
A morte de Alan pode ser considerada um acidente dramático e excepcional. No entanto, não houve acidente: mais da metade dos adolescentes trans e homossexuais dizem ser objeto de agressão física e psicológica na escola. Não houve exceção: os maiores números de suicídio são registrados entre adolescentes trans e homossexuais.
Mas como é possível que a escola não tenha conseguido proteger Alan da violência? Digamos rapidamente: a escola é a primeira escola de gênero e violência sexual. A escola não só falhou em proteger Alan, mas também facilitou as condições de seu assassinato social.
A escola é um campo de batalha para onde as crianças são enviadas com seus corpos moles e futuros em branco, suas únicas armas: um teatro de operações em que uma guerra é travada entre o passado e a esperança. A escola é uma fábrica de machos e bichas, de bonitos e gordos, de espertos e idiotas. A escola é a primeira frente da guerra civil: o lugar onde se aprende a dizer que não somos como eles. O local onde os vencedores e os vencidos são marcados com um sinal que acaba por assemelhar-se a um rosto. A escola é um anel no qual o sangue se mistura com a tinta e no qual são recompensados aqueles que sabem fazê-los correr. Que importa quais línguas são ensinadas lá, se a única língua falada é a violência secreta e surda da norma. Alguns como Alan, certamente os melhores, não sobrevivem. Eles não podem se juntar a essa guerra.
A escola não é simplesmente um lugar de aprendizagem de conteúdo. A escola é uma fábrica de subjetivação: uma instituição disciplinar cujo objetivo é a normalização do gênero e da sexualidade. A aprendizagem mais crucial que se exige da criança na escola, na qual ela se baseia e da qual depende qualquer outra formação, é a de gênero. Essa é a primeira (e talvez a única coisa?) que vamos aprender lá. Fora da esfera doméstica, a escola é a primeira instituição política em que a criança é submetida à taxonomia binária de gênero pela constante demanda por designação e identificação normativa. Cada criança deve expressar um gênero único e definitivo: aquele que lhe foi atribuído em sua certidão de nascimento. Aquele que corresponde à sua anatomia. A escola potencializa e valoriza a teatralização convencional dos códigos de soberania masculina nos meninos e submissão feminina nas meninas, ao mesmo tempo em que monitora o corpo e o gesto, pune e patologiza todas as formas de dissidência. Justamente por ser uma fábrica de produção de identidade de gênero e sexual, a escola entra em crise ao se deparar com os processos de transexualidade. Os colegas de classe de Alan exigiram que ele levantasse a camisa para provar que não tinha peito. Eles o insultaram, chamando-o de maria sapatão (marimacho) ou recusando-se a chamá-lo de Alan. Não houve acidente, mas planejamento e concerto social ao administrar a punição ao dissidente. Não houve exceção, mas regularidade na tarefa realizada pelas instituições e por seus usuários de marcar aqueles que questionam sua epistemologia.
A escola moderna, como estrutura de autoridade e reprodução hierárquica do conhecimento, continua a depender de uma definição patriarcal da soberania masculina. Afinal, mulheres, minorias sexuais e de gênero, sujeitos não brancos e com diversidade funcional integraram a instituição escolar há pouco tempo: 100 anos se pensarmos nas mulheres, 50 ou até 20 se falarmos da segregação racial, dificilmente uma dezena se tratando de diversidade funcional. À primeira tarefa de fabricar a virilidade nacional, somam-se, depois, as tarefas de modelar a sexualidade feminina, de integrar e normalizar a diferença racial, de classe, religiosa, funcional ou social.
Juntamente com a epistemologia da diferença de gênero (que tem em nossos ambientes institucionais o mesmo valor que o dogma da divindade de Cristo tinha na Idade Média), a escola trabalha com uma antropologia essencialista. O tolo é um tolo, o queer, o queer. A escola é um espaço de controle e domínio, de escrutínio, diagnóstico e sanção, que pressupõe um sujeito unitário e monolítico, que deve aprender, mas que não pode e não deve mudar.
Ao mesmo tempo, a escola é a escola mais brutal e fantoche da heterossexualidade. Embora aparentemente assexual, a escola potencializa e estimula o desejo heterossexual e a teatralização corporal e linguística dos códigos da heterossexualidade normativa. Estes poderiam ser os nomes de algumas das disciplinas centrais em todas as escolas: “Princípios do machismo”, “Introdução ao estupro”, “Oficina prática sobre homofobia e transfobia”. Um estudo recente realizado na França mostrou que o insulto mais comum e degradante usado entre os alunos nas escolas era “bicha” (pédé) para meninos e “puta” (salope) para meninas. Não houve acidente na morte de Alan, mas premeditação da violência, continuidade do silêncio. Não houve exceção, mas uma repetição impune do crime.
Sabemos, pela revolução dos escravos no Haiti e pelas subsequentes revoluções afro-americanas, feministas ou queer, que existem pelo menos quatro maneiras de lutar contra as instituições violentas. 1) Sua destruição. Isso requer uma mudança radical nos sistemas de interpretação e produção da realidade. E, portanto, leva tempo. 2) A modificação dos seus estatutos legais. 3) A transformação que se dá por meio de seus usos dissidentes —embora aparentemente modestos, esta é uma das formas mais poderosas de destruir a violência institucional—. 4) Fuga, que, como insistiam Deleuze e Guattari, não é fuga, mas criação de uma exterioridade crítica: uma linha de fuga pela qual a subjetividade e o desejo podem fluir novamente.
Para acabar com a escola assassina, é necessário estabelecer novos protocolos de prevenção da exclusão e violência de gênero e sexual em todas as escolas e institutos. Todos: públicos e privados. Todos: metropolitanos e rurais. Todos: católicos e leigos. Todos. Não estou falando aqui da fantasia humanista da escola inclusiva (e de seu slogan “toleremos o diferente, integremos os doentes para que se adaptem”). Ao contrário, trata-se de deshierarquizar e desnormalizar a escola, de introduzir heterogeneidade e criatividade em seus processos institucionais. O problema não é a transexualidade, mas a relação constitutiva entre pedagogia, violência e normalidade. Não era Alan que estava doente. É a instituição, a escola, que está doente, e que deve ser curada submetendo-a a um processo que, com Francesc Tosquelles e Félix Guattari poderíamos chamar de “terapia institucional”. Salvar Alan teria exigido uma pedagogia queer capaz de trabalhar com a incerteza, com a heterogeneidade, capaz de aceitar a subjetividade sexual e de gênero como processos abertos e não como identidades fechadas.
Diante da escola assassina, é preciso criar uma rede de escolas em fuga, uma rede de escolas Trans-Feministas-Queer que acolham menores que estão em situação de exclusão e assédio em suas respectivas escolas, mas também todos aqueles que preferem a experimentação à norma. Esses espaços, embora sempre insuficientes, seriam ilhas restauradoras que podem proteger crianças e adolescentes da violência institucional, evitando que a história de Alan se repita. Uma escola Trans-Feminista-Queer funcionaria como uma heterotopia compensatória capaz de fornecer os cuidados necessários para permitir a reconstrução subjetiva e social de dissidentes político-sexuais e de gênero. Por exemplo, na cidade de Nova York, o instituto Harvey Milk funciona desde 2002 (em memória do ativista gay assassinado em 1978 em São Francisco) que acolhe 110 estudantes queer e trans que sofreram assédio e exclusão em seus respectivos centros de formação.
Quero imaginar uma instituição de ensino mais atenta à singularidade do aluno do que à preservação da norma. Uma escola micro revolucionária onde é possível promover uma multiplicidade de processos de subjetivação singulares. Quero imaginar uma escola onde Alan pudesse ter continuado a viver.
* Paul B. Preciado é um dos mais importantes filósofos e ativistas queer da atualidade. De sua autoria, foram traduzidos e publicados no Brasil: Um apartamento em Urano: crônicas da travessia (2020), Pornotopia: PLAYBOY e a invenção da sexualidade multimídia (2020), Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica (2018) e Manifesto contrassexual (2015).
Nota
[1] Texto originalmente publicado em: https://elestadomental.com/especiales/cambiar-de-voz/un-colegio-para-alan, em 24 de janeiro de 2016.