Ao começar a leitura do livro lilás, que se apresenta como Risque esta palavra (Companhia das Letras, 2021), de Ana Martins Marques (Belo Horizonte, 1977), somos surpreendidos pela paisagem poética de um fragmento da casa: “a porta de saída”. Trata-se do subtítulo da primeira seção, aceso como uma fotografia, como uma saída de emergência pela poesia.
Aqui, abro parênteses para lembrar a fala da crítica argentina Florencia Garramuño no encontro Leituras do contemporâneo: Literatura e crítica no Brasil e na Argentina, sobre uma literatura contemporânea em modo lanterna, fazendo referência ao livro de Sérgio Chejfec, Modo linterna: “uma literatura que ilumina como se fosse a lanterna do celular, ilumina o pequenino, um fragmento de mundo” (2021, 1h1min14s-30s).
E volto à porta de saída, à luz do modo lanterna da poesia de Ana Martins Marques, que nos dá a ver detalhes de nossos gestos cotidianos, “cria uma espécie de inventário de experiências afetivas”, como lemos na orelha do livro. Poesia que apresenta uma arquitetura precisa e, ao mesmo tempo, um olhar sensível do sujeito poético para o mundo, em “íntima alteridade”, deslocado para fora de si. E nos oferece uma sensação de reconhecimento, indo ao encontro da partilha comum. Portas de saída pela potência do afeto. Poesia que atravessa várias paisagens, do luto, da memória, da viagem, do amor. E paisagens de palavras que pensam sobre si mesmas, giram em torno da escrita. Como já nos sugerem os subtítulos das quatro partes que compõem o livro: “A porta de saída”, “Postais de parte alguma”, “Noções de linguística” e “Parar de fumar”, paisagens em trânsito que nos movem em espaços de fronteira entre o dentro e o fora, como a casa (interior e exterior), o mar (profundidade e superfície), o efêmero (vida e morte), a memória (lembrança e esquecimento), a arte (teor lírico e crítico).
Como diz Ana Martins Marques (2015) em entrevista ao Suplemento Pernambuco: “a poesia é sim linguagem que se volta para si mesma, mas acho que nesse movimento ela pode captar, ainda que furtivamente, alguma coisa de fora. Por isso gosto de pensar que os meus poemas nunca são exclusivamente metalinguísticos”. E mais adiante: “há poemas de amor ‘disfarçados’ de poemas metalinguísticos, ou poemas metalinguísticos que subitamente se transmudam num poema de amor, ou ainda poemas que parecem tratar de outros temas e de repente se dobram sobre si mesmos”.
Riscos dos poemas
“E, então, percebemos, surpresos”, diz a poeta Marília Garcia (2021) no blog da Companhia das Letras, “que uma palavra tão forte como riscar (do título) – que sugere a ideia de rasura, apagamento – pode indicar outros sentidos: riscar um fósforo é acender, iluminar”. E mais adiante: “assim, ‘riscar uma palavra’, nesses poemas, pode ser também mostrar. A linguagem, o mundo, o tempo”. Desse modo, riscar é também um convite à leitura, que, quando é atenta, acende a palavra e reescreve o texto pela interpretação, nos mostra outros modos de olhar. Um pedido feito a “você”, como vemos no uso imperativo da terceira pessoa do singular em: “Risque (você) esta palavra”. Impossível não lembrar, nesse imperativo, o movimento contrário, presente na ordem de Ana Cristina Cesar, depois sublinhado por Flora Süssekind: Até segunda ordem não me risque nada.[1]
Semelhante ao modo que Süssekind (2016, p. 31) observa em Ana C., Ana Martins Marques compõe uma “poesia próxima a uma ‘arte da conversação’, num ‘texto escrito que fala’”.[2] A poeta conta, na entrevista referida, que os poemas “estão à procura de um ‘tu’ ou de um ‘você’ a que se endereçar, um ‘tu’ ou um ‘você’ que nem mesmo é necessariamente humano. Um dos poemas de amigo mais conhecidos é um poema de amor que se dirige não ao amante, mas às ondas do mar de Vigo” (2021). Marília Garcia (2021) relata sua experiência de leitura desse livro: “tive a impressão de que o livro leva o leitor pela mão e reitera a interlocução”.
A poesia em vozes de Ana Martins Marques, em um gesto em direção ao outro, estabelece um plano de interlocução com “você”, tomado como “meu amigo”, a quem se endereça a carta-poema que abre o livro:
Meu amigo,
quase já não escrevo
passo o dia sentada em algum lugar
olhando florescer qualquer coisa que esteja
posta diante dos olhoscom isso já vi morrer uma pedra
e um cachorro enforcar-se
numa nesga de solmas nada disso era uma palavra
dessas que coloco agora uma após a outra
para que depois você as receba como um aviso
de que ainda não morri de todonão se parecia tampouco com uma palavra
embora lembrasse vagamente naufrágio
a mulher que atravessou a rua velozmente
carregando como uma criança
um girassol sem cabeçae o que encontrei
um dia após o outro
não foi uma palavra
mas uma canoa em chamas
não foi uma palavra
mas um acidente doméstico
envolvendo um barco de brinquedo
e uma máquina de costura
não foi uma palavra(embora em torno das coisas
sempre se ajuntem palavras
como cracas no casco
de uma embarcação antiga)às vezes sim me ocorre encontrar uma palavra
apenas quando a encontro
ela se parece com um buraco
cheio de silêncioàs vezes sim me ocorre encontrar uma palavra
enganchada numa lembrança
como uma lâmpada num bocalum poema não é mais
do que uma pedra que gritarisque por favor
esta palavra
(Marques, 2021, p. 11-12)
Em busca da palavra, o sujeito lírico surge para fora de si, observador das minúcias do cotidiano, como vemos nos versos seguintes: “passo o dia sentada em algum lugar/ olhando florescer qualquer coisa que esteja/ posta diante dos olhos”. Aqui, a concordância do verbo “sentada” marca o gênero feminino do sujeito poético e podemos inferir, pelo contexto do poema, que é uma poeta. Ela ensaia seu método de escrita ao olhar para o lado de fora, exterior que, ao mesmo tempo, narra o interior. E nos revela um impasse: a cisão entre o mundo das coisas e o mundo traduzido pelas palavras. Diante disso, é pela estratégia da negação que a poeta escreve esse metapoema, como lemos no verso: “já quase não escrevo”. E nos dá a ver imagens de morte em torno de processos do fim: da infância, de um hábito, de um amor, da vida, do verso. Como na quinta estrofe:
não se parecia tampouco com uma palavra
embora lembrasse vagamente naufrágio
a mulher que atravessou a rua velozmente
carregando como uma criança
um girassol sem cabeça
As imagens de morte em “naufrágio” e “girassol sem cabeça”, pelo enjambement, sugerem um modo subjetivo de morte da mulher. Podemos inferir que se trata talvez de um processo de luto. Ao mesmo tempo, a partir da operação do corte (cesura), também lemos a morte da flor, cena construída pelo jogo do enquadramento fotográfico no plano fechado (close up), com foco para um detalhe: “um girassol sem cabeça”. Pelo contexto do poema, essa imagem pode ser lida também como uma morte impensada, em que a metáfora da “cabeça” personifica a flor. Um olhar que encontra o incomum na metáfora comum do nosso cotidiano (no caso, “cabeça de girassol”). Trata-se de um recurso presente em sua poética, como vemos, em especial, na seção “Visitas ao lugar-comum”, de O livro das semelhanças (2015), com poemas temáticos que repensam certas expressões idiomáticas, muitas vezes tomando-as de forma literal, como em:
Quebrar o silêncio
e depois recolher
os pedaços
testar-lhes o corte
o brilho
cego
(Marques, 2015, p. 51)
Outras imagens impensadas de mortes são construídas, no poema, em torno de elementos do cotidiano que são deslocados pelo sentido poético. Por exemplo, a morte dos objetos, na sexta estrofe, em “canoa em chamas”, e o acidente doméstico “envolvendo um barco de brinquedo/ e uma máquina de costura”. Um acidente de escrita?
A máquina de costura, pelo gesto de (des)tecer, nos remete à escrita que, aqui, se depara atenta às minúcias do cotidiano, como um barco de brinquedo. Outra imagem metalinguística, como uma metáfora para o poema, como lemos em “barcos de papel”, no livro A vida submarina: [Os poemas] “Dobrados sobre si mesmos,/ lançam-se no mundo/ com a coragem suicida/ dos barcos de papel” (Marques, 2009, p. 21). Apesar dos imprevisíveis acidentes da escrita, a poeta nos lembra: “Escreve poemas/ devolve/ o papel à árvore” (Marques, 2021, p. 85).
E, na terceira estrofe, a personificação da pedra e do cachorro nos dá a ver outras imagens insólitas:
com isso já vi morrer uma pedra
e um cachorro enforcar-se
numa nesga de sol
A “nesga de sol” remete a um valor de vida. Contudo, essa luminosidade torna ainda mais visível a cena de morte. Assim, temos uma tensão entre o valor de vida (“nesga de sol”) e de morte (“morrer uma pedra” e “um cachorro enforcar-se”), que revela um motivo recorrente na sua poesia: a efemeridade da existência. Como nos lembram os versos: “em cada brecha entrou o tempo/ sem convite” (Marques, 2021, p. 24)
Sabemos que é lenta a passagem do tempo que desgasta as pedras em comparação à brevidade da vida humana. Em sua temporalidade ancestral, a pedra sobrevive à memória de nossa passagem no mundo. Porém, a temporalidade antiga da pedra, aqui, é deslocada pelo olhar do sujeito poético que testemunha a cena de morte. Com isso, a possibilidade de morte de algo imperecível como a pedra sugere que nada pode nos sobreviver. Mas isso é relativizado pelo recurso do sujeito desinencial, escolha sintática que “risca” a primeira pessoa do verso em “com isso (eu) já vi morrer uma pedra”. Não por acaso é escolhido um ponto de vista parcial, enganoso. Trata-se de uma estratégia que questiona a certeza desse testemunho da morte da pedra. E problematiza a subjetividade da persistência da memória, sendo a palavra acesa quando articulada à lembrança, como vemos nas seguintes estrofes:
às vezes sim me ocorre encontrar uma palavra
apenas quando a encontro
ela se parece com um buraco
cheio de silêncioàs vezes sim me ocorre encontrar uma palavra
enganchada numa lembrança
como uma lâmpada num bocal
Em seu livro Mito e pensamento entre os gregos, Jean-Pierre Vernant nos conta a antiga relação entre memória e palavra: em Hesíodo (citado em Vernant, 1990, p. 109), Mnemosyne canta “tudo que foi, tudo que é, tudo o que será”, sendo o poeta seu intérprete, possuído pelas musas. E Platão (citado em Vernant, 1990, p. 110), em Íon, acrescenta que “a memória transporta o poeta ao coração dos acontecimentos antigos, em seu tempo”. Assim, o tecer da memória se faz “enganchado” na palavra, no poema, na trama do texto, que, como sabemos, vem do latim textus e significa tecido, enlace, entre outros sentidos que orientam o movimento do narrar.
Vernant (1990, p. 114) comenta ainda que “Mnmosyne, aquela que faz recordar, é também em Hesíodo aquela que faz esquecer”. Esquecer sugere algo que escapa da memória aparentemente seria o contrário de lembrar. Contudo, são movimentos desdobrados, não opostos. Segundo Deleuze (2013, p. 115), “só o esquecimento (o desdobramento, dépli) encontra aquilo que está dobrado na memória (na própria dobra), sendo a memória coextensiva ao esquecimento” (grifo nosso).
A lembrança e o esquecimento, portanto, formam um “par de forças” complementares. Comparável aos valores de vida e morte, luz e sombra, narrativa e silêncio, entre outros. Nas estrofes referidas, o encontro do sujeito poético com a palavra, ainda que casual (como vemos em “às vezes sim”), ocorre em torno do esquecimento e da lembrança, associados a silêncio e palavra, buraco (sugere morte/sombra) e lâmpada (sugere vida/luz).
Na penúltima estrofe, em sua busca pela palavra, agora acesa pela memória, a poeta escreve:
um poema não é mais
do que uma pedra que grita
O silêncio também é outro motivo importante na poética de Ana Martins Marques. Consoante Steiner (1988, p. 73), “o silêncio funda um outro discurso que não o comum; entretanto, é linguagem de grande teor significativo”. Assim, o silêncio também é espaço de interlocução, concebido como uma língua, como lemos no poema “Silêncio”: “Língua das coisas/ Mas também: língua de se falar com as coisas/ e com as próprias palavras” (Marques, 2021, p. 70). A pedra fala a língua das coisas, que, aqui, é o silêncio. E revela um paradoxo que aproxima o silêncio da palavra: a pedra grita pelo silêncio, assim como o poema. Além disso, ambos não são considerados úteis dentro da lógica funcional do sistema, mas respondem a uma ordem afetiva por suas temporalidades prologadas, sendo testemunhas da passagem do tempo.
Ana Martins Marques, em sua tese, destaca a fala de Sebald (citado em Marques, 2013, p. 86-87) sobre o poder dos objetos: “como as coisas (a princípio) nos sobrevivem, elas sabem mais sobre nós do que nós sobre elas; elas trazem em si as experiências que fizeram conosco e são – efetivamente – o livro de nossa história aberto diante de nossos olhos”. Nesse sentido, segundo Benjamin (citado em Marques, 2013, p. 83), “parece haver convicção de que nos objetos cotidianos, nas ruas e nas fachadas, nos rastros e ruínas da cidade podem revelar-se os vestígios, os traços da memória e da história”.
Por atravessarem o tempo, a pedra e o poema, assim como outras formas de arte, podem ser tomados como lugares de memória que fazem perdurar nossas histórias sob a ameaça do esquecimento, do apagamento do sujeito frente a um espelho vazio.
Mas é preciso estar à escuta:
risque por favor
esta palavra
Em busca de uma aproximação com o leitor, a interlocução também é feita, aqui, pela escolha de um processo de composição híbrido de poema e carta, em referência a gêneros de intimidade (cartas, diários, postais, por exemplo). Observamos, assim, que a interlocução é uma questão central em sua poesia e pode ser tomada como uma chave de leitura. Em entrevista a Marília Garcia, Ana Martins Marques (2021) nos conta:
é possível que essa atenção para o endereçamento tenha sido aguçada pelas experiências de escrita a dois, pelo processo de interlocução e correspondência com o Siscar e o Eduardo Jorge, embora desde o meu primeiro livro existam alguns poemas que trazem essa instância da interlocução ou mesmo se apropriam de tipos textuais como a carta ou o bilhete.[3]
O “riscar” da carta e outros “gêneros da intimidade”, outro ponto de encontro com a poética de Ana Cristina Cesar, subverte o lugar previsto para a escrita de autoria feminina, que, como sabemos, por séculos, foi considerada como uma “literatura menor”.
Em Risque esta palavra, o que chama a atenção é a atualização das tramas protagonizadas por Ofélia e Medusa, ainda na primeira seção do livro. Mulheres com voz que, aqui, recontam suas histórias, semelhantes a Penélope, figura feminina recorrente na poética de Ana Martins Marques, como vemos, por exemplo, na sequência de poemas que (des)tecem as tramas de Penélope no livro A vida submarina (2009). A penelopeia subverte, a partir do protagonismo ardiloso e ativo de Penélope, o lugar histórico repisado para a mulher, como em: “E então se sentam/ lado a lado/ para que ela lhe narre/ a odisseia da espera” (Marques, 2009, p. 142). Deslocamentos críticos que também observamos em outras figuras femininas de sua poesia.
A escolha de “riscar” a trama de Ofélia é significativa, pois mobiliza as águas trágicas da personagem do Hamlet de Shakespeare, de um destino de morte à vida. No livro A água e os sonhos, Gaston Bachelard (2002, p. 85) diz que “Ofélia poderá ser para nós o símbolo do suicídio feminino. Ela é realmente uma criatura nascida para morrer na água, encontra aí, como diz Shakespeare, ‘seu próprio elemento’. A água é o elemento da morte jovem e bela, da morte florida”. E mais adiante: “A água é o símbolo profundo, orgânico, da mulher que só sabe chorar suas dores e cujos olhos são facilmente ‘afogados de lágrimas’”.
Mas, como Ofélia, aprendemos a nadar:
Ofélia aprende a nadar
(…)
quando seu vestido
se torna pesado
ela começa lentamente
a mover os braços
e as pernas
primeiro sem deixar de cantardepois substituindo o canto
por uma respiração ritmada
mergulhando e levantando a cabeça
e aproveitando-se da correnteza
até chegar à margem
lamacentapor onde sobe
com alguma dificuldade
carregando o vestido
pesadohá muita coisa em comum entre
cair num rio
e cair em si
e cair fora(Marques, 2021, p. 39-40)
E, com Medusa, aprendemos a rir:
Um café com a Medusa
(…)
cúmplices
ela e eu
(embora eu evite
confesso
olhá-la nos olhos)
tomamos nosso café quase
em silêncioela diz que agora sonha apenas com o mar
que seus cabelos são algas e não serpentes
e que dançam lentamente no fundo de um oceano
cheio de monstros, como são os oceanos,
lagoas enormes e águas-vivas
e outras incongruências marinhas
corais e conchas que são
como estojos
e baleias que vivem até duzentos anos
o que para ela é nada, alguns segundos
como de fato ée rimos as duas
que duas velhas sonhem ainda
e sempre o sexo(…)
(Marques, 2021, p. 42-43)
A figura mitológica da Medusa é aproximada de nós, do nosso cotidiano, como uma amiga com quem conversamos tomando café, como “cúmplices/ ela e eu”. Vemos aqui, novamente, a conversação, pelo poema em vozes, sendo essa uma estratégia de riscar as tramas das mulheres na memória literária, dando voz a elas, como vemos na fala da Medusa: “ela diz que agora sonha apenas com o mar/ que seus cabelos são algas e não serpentes”. Vemos também um “passo de prosa na poesia”, como escreve Florencia Garramuño (2014, p. 55) no livro Frutos estranhos,
é esse o passo de prosa – essa espécie de manifestação da tensão entre prosa e poesia, o que coloca em questão a possibilidade ou pertinência de uma definição específica e, portanto, pura e exclusivamente formal desse discurso, o que alguns poemas muito recentes, atravessados por uma forte pulsão narrativa e uma decidida vontade de transgredir os limites do lírico, parecem estar pondo em evidência.
O que também nos chama a atenção é o gênero feminino que marca a voz lírica e narrativa desse poema, como vemos em: “e rimos as duas/ que duas velhas sonhem ainda”. Cena que coloca em diálogo o ensaio de Hélène Cixous, chamado O riso da Medusa. Como escreve Eurídice Figueiredo (2020, p. 72) no livro Por uma crítica feminista, “a autora resgata a Medusa que, segundo o mito, é decapitada pelos homens que se sentem ameaçados por ela. A Medusa é, para ela, ‘uma queer, a queen das queers’, e seu riso é libertador”. E continua: “os homens dizem que as mulheres são monstruosas (como a Medusa), e elas, por conseguinte, sempre tiveram vergonha de seu poder”. Assim, o riso da Medusa liberta as mulheres do medo de se tornarem “monstruosas”, deslocando, como uma forma de poder, os discursos patriarcais.
Na poesia de Ana Martins Marques, as figuras femininas Penélope, Ofélia e Medusa e outras riscam a repetição do estilo mobilizado pelo discurso enunciado sobre o “signo” mulher. Com isso, desestabilizam a categoria como algo fixo, definido e simplificador da performance do feminino. Após séculos de luta, escrita e espera, as mulheres detêm a voz e narram seus diversos pontos de vista. Pelo menos, nos riscos do poema. “É preciso que a mulher se escreva: que a mulher escreva sobre mulher e traga as mulheres à escrita”, afirma Hélène Cixous (2017, p. 129) em O riso da Medusa. E mais adiante: “ato também que marcará a tomada da palavra pela mulher, portanto, sua estrondosa entrada na história que sempre se constituiu em sua supressão” (idem, p. 136).
Fazer as malas é tarefa impossível
aquele que ainda não partiu
tem que colocar na mala
aquilo de que precisará
aquele que vai chegar(…)
Quem está de partida
arruma a mala
de um desconhecido
(Marques, 2021, p. 49)
A seção “Postais de parte alguma” pode ser lida como uma sequência narrativa, e nos conta sobre as viagens em torno do luto do amor. No primeiro poema, “Turismo”, vemos o encontro com o corpo do outro, tomado como um lugar, uma cidade: “Eu rodava em torno do seu corpo/ como se roda num museu em torno da estatuária” (Marques, 2021, p. 47). No poema seguinte, vemos uma paisagem do luto, do corte, em que o tempo (“estação”) é tomado como um lugar (“serralheria”): “Nunca é fácil/ abandonar o que se ama/ vê: toda estação/ é uma espécie de serralheria/ aqui se cortam/ pessoas ao meio” (idem, p. 48). E mais adiante, no poema “Jet lag”: “a memória é agora o lugar/ diário dos nossos/ únicos encontros” (idem, p. 54). Nessa poesia, a memória é percebida, poeticamente, como um lugar onde habitamos.
Não nos cabe, aqui, analisar todos os poemas que compõem essa sequência narrativa, mas reconhecer que a poesia de Ana Martins Marques apresenta um hibridismo textual e discursivo em que há uma interseção entre enunciação lírica e narrativa. Trata-se de um recurso recorrente em sua poética, como vemos nos poemas que compõem a seção “Cartografias”, em O livro das semelhanças, por exemplo. Em entrevista ao blog da Companhia das Letras, Ana Martins Marques (2021) diz: “sempre tendi a pensar nos meus livros também um pouco assim, mais na chave da continuidade do que na ruptura”. Estratégia que possibilita articular fios de leitura entre diferentes poemas, seções temáticas e livros da autora.
Seu filho hoje aprendeu uma palavra
seus ossos dormem crescendo
em breve andará com firmeza
saberá a ciência do chão
em breve a língua tomará
conta dele
vai emudecer o mundo
moldar seus pequenos dentes
em breve a língua será a mãe
mais do que você é a mãe
(Marques, 2021, p. 61)
O insólito é construído, aqui, com a personificação da língua materna em uma mãe que “obriga ao abrigar” (Marques, 2021, p. 62), a partir do deslocamento do sentido conotativo da expressão idiomática “língua-mãe” para um sentido literal. Assim, vemos, literalmente, a língua viva. Os deslocamentos também percorrem questões da tradução, como diz Ana Martins Marques em entrevista ao Grupo Matinal Jornalismo (2021): “na tradução está em jogo uma espécie de travessia entre línguas, que é também um jeito de ‘atravessar’ até o outro”, como em:
por exemplo
alguém traduziu um poema
e introduziu nele um vulcão
que não havia no original
por causa da métrica ou da necessidade
de uma rima
alguém acrescentou num poema um vulcão
que antes não existia(…)
(Marques, 2021, p. 72)
(…)
No momento do atrito
a luz se fez o fósforo se foi(…)
Seu nome acende-se
e extingue-se no instante seguinte
como se alguém subitamente apagasse a luz da varanda
(Marques, 2021, p. 107)
A chama implícita do nome, subitamente, se consome, se apaga, como o fósforo, como a luz da varanda, imagens da transitoriedade da vida, da lembrança rumo à morte, ao esquecimento. Segundo Octavio Paz (1994, p.7), a chama é “‘a parte mais sutil do fogo, e se eleva em figura piramidal’. O fogo original e primordial, a sexualidade, levanta a chama vermelha do erotismo e esta, por sua vez, sustenta outra chama, azul e trêmula: a do amor”. E se refere à dupla chama da vida como erotismo e amor. Assim, em um outro sentido para o que é sólido e durável, essa efêmera corrosão também pode ser lida como uma imagem do processo de morte de um amor líquido (Bauman, 2004), como também da morte de um desejo aceso em “seu nome” e consumido, inutilmente, em si mesmo.
Em entrevista ao Jornal Rascunho, Ana Martins Marques (2021) nos conta: “acho que o cigarro é um objeto literário, entre outras coisas, porque nos coloca em contato com o fogo, mas também, provavelmente, por sua relação com a morte”. Assim, na sua poesia, o gesto do “riscar” nos coloca às voltas em torno de paisagens porosas que deslizam do apagamento (morte, silêncio, sombra) à chama (vida, palavra, lembrança), do fim ao reinício, como vemos no último poema do livro:
Encerramos afinal nossa aventura
eu e tue eu, que mais de uma vez temi
que com ela também a poesia se encerrasse(seria talvez necessário agora
riscar todos os meus versos
com a palavra cigarro)e no entanto
no transporte público no supermercado
num guichê no meio de uma tarde
qualquer
ela – a poesia – parece estar de voltaquando menos se espera
e sem que se tenha a certeza
de que é mesmo ela
(Marques, 2021, p. 114)
O que fica em sua poesia é o fluxo, o efêmero, o tempo. Como escreve Marcos Siscar (Siscar, 2016, p.15), “estamos incessantemente de volta ao fim, ou seja, às voltas com o fim, em conflito sobre que nome dar àquilo que teria acabado, sobre o que significa de fato chegar ao fim”. Assim, “estamos o tempo todo reinventando nosso lugar, um lugar no qual a visão da catástrofe não faz nenhum sentido, a não ser na medida em que nos permite imaginar outros tipos de começo”. Nesse entrelugar, vemos de volta “ela – a poesia” a riscar formas abertas às travessias.
* Juliana Gelmini é doutoranda em literatura brasileira (UERJ) e atua como pesquisadora-bolsista da Capes. Sua pesquisa investiga a poesia contemporânea de Ana Martins Marques, Angélica Freitas e Marília Garcia. É mestre em literatura brasileira (UERJ) e licenciada em letras (UFRJ). Atuou como professora temporária do Colégio Pedro II e do CAp/UFRJ. É autora do livro de poesia Insólito sólido (Patuá, 2017).
Referências
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Entrevistas
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MARQUES, Ana Martins. “Um escudo contra o caos e a morte”, Rascunho: o jornal de literatura do Brasil. Entrevista concedida a Bruna Meneguetti. Publicada em set. 2021. Disponível em: <https://rascunho.com.br/entrevista/um-escudo-contra-o-caos-e-a-morte/>. Acesso em: 30 de ago.2021.
MARQUES, Ana Martins. “’Risque esta palavra’: Ana Martins Marques espia a morte vivendo”, Grupo Matinal Jornalismo. Entrevista concedida a Ricardo Romanoff. Publicada em julho 2021. Disponível em: <https://www.matinaljornalismo.com.br/rogerlerina/literatura/risque-esta-palavra-ana-martins-marques/>. Acesso em: 30 de ago.2021.
MARQUES, Ana Martins. “Prêmio Oceanos: ‘O livro das semelhanças’, de Ana Martins Marques”, Prêmio Oceanos. 2016. (1min11s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=MReAm-i-hlA&t=9s>. Acesso em: 30 de ago.2021.
MARQUES, Ana Martins. “Para escalar e cair em versos montanhosos”, Suplemento Pernambuco. Entrevista concedida a Ronaldo Bressane. Publicada em agosto de 2015. Disponível em: <http://www.suplementopernambuco.com.br/entrevistas/1464-entrevista-ana-martins-marques.html>. Acesso em: 30 ago. 2021.
MARQUES, Ana Martins. “Ana Martins Marques fala sobre ‘O Livro das Semelhanças’”, Jornal do Commercio. Entrevista concedida a Diogo Guedes. Publicada em outubro de 2015. Disponível em: <https://jc.ne10.uol.com.br/canal/cultura/literatura/noticia/2015/10/10/ana-martins-marques-fala-sobre-o-livro-das-semelhancas-203062.php>. Acesso em: 30 de ago. 2021.
Notas
[1] Ensaio que faz referência a uma frase dos cadernos de Ana C.: “como mote de uma aproximação da poesia de Ana Cristina Cesar exatamente via rascunho, burburinho. E às vezes literalmente via rabiscos, desenhos, riscos”, escreve Flora Süssekind (2016, p. 55). O que chama atenção nesses projetos de rascunhos de Ana C. é que essa ordem antirrisco se contrapõe sobretudo a “sua desejada limpeza aos riscos e correções dos diários-de-escrita a que pertence” (Süssekind, 2016, p. 55). Além disso, contraria, de certa maneira, a “ironia prévia, lançada em Luvas de pelica: ‘Quando você morrer os caderninhos vão todos para a vitrine da exposição póstuma. Relíquias’” (idem, p. 55-56).
[2] Em minha dissertação de mestrado, As paisagens da memória: uma leitura da poesia de Ana Martins Marques, trato do diálogo entre as poéticas de Ana Martins Marques e Ana Cristina Cesar.
[3] A fala de Ana Martins Marques faz referência aos livros escritos em parceira: Duas janelas (Luna Parque, 2016), com Marcos Siscar, e Como se fosse a casa: (uma correspondência) (Relicário Edições, 2017), com Eduardo Jorge. Também faz referência ao seu primeiro livro, A vida submarina (Scriptum, 2009), relançado este ano junto com Risque esta palavra, ambos pela Companhia das Letras.