1. Introdução
O elemento cultural sempre esteve presente na história da humanidade. Com a evolução da sociedade internacional, especialmente com a construção de valores comuns, ligados ao Estado, a cultura passou a ser entendida e concebida como um elemento de agregação dos povos, das nações e do próprio Estado. Foi na Revolução Francesa, 1789, que os elementos culturais – entendidos como o conjunto de expressões, adotadas pelos indivíduos em uma determinada sociedade, como é o caso do idioma – passaram a ser considerados como elementos importantes para a consolidação do Estado-Nação, de forma a justificar a vinculação dos súditos a um determinado Estado, através do conceito de nacionalidade.
A nacionalidade é aqui entendida, como o vínculo jurídico e político que une o cidadão a um determinado Estado. Durante muito tempo a livre expressão cultural esteve subjugada aos interesses políticos e sociais dos soberanos que, através do estabelecimento de um ordenamento jurídico único, de natureza constitucional, impunham os valores culturais que deveriam ser seguidos pelos súditos do Estado. Era o período em que o conceito de soberania era entendido com base no poder supremo.
Com o decorrer da história, a eclosão das duas grandes guerras mundiais, o período do socialismo e da própria Guerra Fria, o seu término na década de 90, o advento do desenvolvimento tecnológico, o florescimento do comércio internacional e a própria formação dos blocos econômicos, o conceito de soberania é relativizado. Com a relativização do conceito de soberania surge a possibilidade de os indivíduos manifestarem os seus valores culturais, notadamente porque, nos dias de hoje, vivemos em uma sociedade pluralista. A referida sociedade pluralista é representada, neste artigo, na União Europeia, que contempla vinte e sete Estados em um espaço supranacional, com idiomas e cultura diversa.
O presente artigo, resultante de pequena parte da pesquisa de Pós-Doutoramento realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, junto ao Programa Avançado de Cultura Contemporânea, e que abordou o tema da Democracia e dos Direitos Fundamentais na União Europeia: a questão do multiculturalismo, busca examinar as relações culturais dentro daquele bloco econômico.
2. O Espaço Supranacional
Definir o espaço supranacional, no qual convivem inúmeras culturas, povos e nações, com seus costumes, tradições, valores e línguas diferentes, não é tarefa fácil, principalmente quando se trata de abordar a União Europeia, bloco econômico de natureza supranacional, regido por um ordenamento jurídico próprio, que é o Direito Comunitário, e que busca harmonizar e compatibilizar os interesses existentes entre os vinte e sete Estados-membros. Vale lembrar que, tecnicamente, a União Europeia representa mais do que um bloco econômico, mas uma verdadeira comunidade política, instituída através do Tratado de Maastrich, 1992, e como tal, as respectivas instituições comunitárias atuam em áreas que, anteriormente, eram de competência exclusiva dos Estados. Disso surge o Direito Comunitário, como direito peculiar e singular, tendo a sua origem a partir do Direito Internacional Público, sendo ao mesmo tempo, autônomo e independente frente ao Direito Interno e ao Direito Internacional. A peculiaridade do Direito Comunitário deve-se aos seus princípios, advindos do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias. São eles:
a) Aplicabilidade direta: assevera que a normativa comunitária, uma vez publicada no Diário Oficial das Comunidades Europeias, já produz efeitos por si só e não necessita ser internalizada ou transposta para o ordenamento jurídico nacional, segundo os requisitos estabelecidos nas Constituições de cada Estado-membro;
b) Primado do Direito Comunitário: a normativa comunitária, que deve ser aplicada em todos os ordenamentos jurídicos dos Estados Membros, possui a primazia em relação ao Direito Interno o que, na prática, significa dizer que o Direito Comunitário, em caso de conflito com o Direito Interno, sempre deverá prevalecer;
c) Uniformidade na interpretação e na aplicação do Direito Comunitário: como o referido Direito possui aplicabilidade direta, e é dotado, ainda, de primazia frente ao Direito Interno, certo é que o mesmo possui aplicação nas vinte e sete jurisdições dos Estados Membros. Para que haja uma certa harmonia, em relação a sua aplicabilidade, de forma a garantir uma segurança jurídica em relação a sua observância, o Direito Comunitário deverá ser interpretado e aplicado de maneira uniforme pelos juízes nacionais.1
Junto ao Direito Comunitário se deve agregar o conceito de supranacionalidade que, em termos técnicos, significa um poder acima dos interesses dos Estados e que legitima às instituições comunitárias a adoção de decisões que levem em conta os interesses da União Europeia, apesar de, muitas vezes, contrariarem os interesses dos Estados. A justificativa para a aplicação das referidas políticas comunitárias decorre do próprio sentimento de unidade, dentro do processo de integração, pois, em determinadas políticas, busca-se preservar o todo, respeitando-se, é claro, as diferenças, principalmente culturais, religiosas e linguísticas de cada nação, o que é a essência do multiculturalismo, conforme será visto adiante. As instituições comunitárias somente atuarão dentro de suas competências, estabelecidas pelos Estados através dos respectivos tratados institucionais: Tratado de Roma, 1957 2, e subsequentes alterações, estando em vigor, atualmente, o Tratado de Nice, 2001.3
Assim, ao instituto da supranacionalidade há de se agregar o conceito de delegação de competências legislativas, significando dizer que são os Estados, por um ato de soberania, delegadores de determinadas competências legislativas, em prol das instituições comunitárias, a fim de que as mesmas legislem em certas matérias, as quais antes eram de competência exclusiva dos Estados-membros da União Europeia. Ao se comentar sobre o instituto da delegação de competências soberanas, vale destacar a existência de uma divisão no âmbito de atuação legislativo: determinadas matérias, como é o caso da política monetária e do euro, são delegadas de forma a que as instituições comunitárias legislem exclusivamente sobre o tema. A referida alteração, na política dos Estados, ocorrida a partir do ano de 1998, quando se iniciou o projeto de adoção do euro4, representa uma grande mudança cultural nos valores dos cidadãos comunitários, porque perdem, de uma hora para a outra, um dos referenciais da nação, ou seja, a prerrogativa de adotar, livremente, as políticas macro-econômicas, além de ficarem adstritos às políticas comuns da União Européia.
Ao comentar o modelo de divisão de competências, as de natureza concorrente possibilitam que, tanto as instituições comunitárias, como os Estados, legislem sobre o tema, hipótese na qual prevalecerá a legislação comunitária, em caso de esta confrontar com a adotada pelo Estado. Exemplo a ser mencionado é o tema das políticas culturais, porque como se trata de um interesse de todo o bloco econômico, é um dos objetivos comunitários a preservação dos valores de cada nação, povo e minoria, assim, as políticas e normativas adotadas, tanto pelos Estados como pela União Europeia deve preservar os referidos interesses, que não são somente nacionais, mas acima de tudo, comunitários. No tocante à execução das políticas comunitárias, naquelas matérias de competência concorrente, a preferência para a adoção das mesmas será sempre do Estado-membro o qual, enquanto ente mais próximo de seus jurisdicionados, sabe com maior clareza sobre as políticas a serem adotadas para garantir a aplicação dos referidos direitos.
Somente na hipótese de o Estado não conseguir alcançar os objetivos pretendidos, que em verdade não são interesses de um Estado, mas de toda a União Europeia (e são um tema de interesse comum), é que as instituições da União Europeia atuarão, de maneira subsidiária e proporcional, com a finalidade de executar as referidas políticas e alcançar o fim comunitário. Trata-se da aplicação dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade, previstos no artigo 5º do Tratado de Nice, 20015. Aliás, o princípio da subsidiaridade, verdadeira pedra de toque do ordenamento jurídico supranacional, tem como função primordial aproximar o cidadão das políticas comunitárias, de modo a inseri-lo no seio da integração, criando-se, no espaço comunitário, uma verdadeira “Europa dos cidadãos”.6
Assim, por exemplo, um dos objetivos da União Europeia é o respeito às diferenças e aos valores culturais. Trata-se de matéria de competência concorrente entre as instituições da União Europeia, e os Estados. Caberá, primordialmente, ao Estado, enquanto ente menor, executar as referidas políticas para a proteção de uma minoria linguística. Somente se o Estado não lograr êxito de atingir o fim perseguido é que as instituições comunitárias poderão adotar políticas, de maneira subsidiária e proporcional, para suprir a omissão do Estado e garantir o interesse supranacional.7
De acordo com o estágio atual da União Europeia, de Mercado Comum e da União Monetária, pode-se afirmar a existência do rompimento do dogma referente ao conceito clássico de soberania, devido às próprias políticas que o processo de integração engloba, ou seja, a livre circulação dos quatro fatores de produção, bens, pessoas serviços e capitais, agregando-se a existência de uma moeda única: o euro. Torna-se necessário que as instituições comunitárias, portanto, adotem as políticas com vistas a atingir o interesse supranacional, avançando em matérias, políticas e competências legislativas que antes eram de atribuição exclusiva dos Estados.
3. Cultura e Evolução do Estado Nacional na Europa
Com o aprofundamento cada vez maior do processo de integração europeu, parte-se para a construção de uma verdadeira arena supranacional, na qual convivem vinte e sete Estados-membros, com culturas, costumes, línguas e tradições diferentes. Uma das grandes dificuldades e dilemas da União Europeia por consequência, é o de buscar certa compatibilização e harmonia entre as culturas da arena supranacional, de forma a, na medida do possível, ser possível preservá-las.
Quanto mais aprofundado for o processo de integração, maiores serão os conflitos de ordem cultural a ser enfrentados pelos povos, colocando-se em cheque o próprio conceito de Estado-Nação, ante à relativização do conceito de soberania, ficando os Estados fragilizados frente à adoção das políticas comunitárias. Como forma de buscar a proteção dos próprios valores locais, dentre eles os culturais, os Estados passam a voltar suas políticas para seus interesses soberanos, deixando de lado os interesses supranacionais e fazendo com que, equivocadamente, prevaleçam os seus próprios interesses.8
Verifica-se a clara dicotomia entre os interesses supranacionais e os soberanos, e a própria dificuldade em compatibilizá-los, pois quanto maior for o processo de globalização, na sociedade internacional, maior será o receio de os Estados perderem a sua soberania, o que justifica, ao menos, a volta aos conceitos clássicos de soberania. Como forma de melhor entender a dicotomia, importante examinar, embora com brevidade, a formação do Estado, a fim de se entender como o ordenamento jurídico do Estado-Nação, antes impositor da existência de valores culturais quase que únicos, transmutou-se para um embrião, quem sabe, de um futuro Estado supranacional, resultado do processo globalizante e do ressurgimento, com maior força, dos valores culturais que, agora, passam a conviver juntos na arena supranacional.
Para se compreender a construção da arena supranacional é preciso entender o momento histórico da construção do Estado moderno, cujo processo surgiu bem antes da Paz de Westfália, 1648, conforme assevera Luís Alexandre Carta Winter:9
A noção de um governo centralizado que satisfizesse, além das questões temporais, também as espirituais, e que representasse, simultaneamente, a idéia de uma unidade, com a queda do império romano, passou a ser a busca de uma constante. O próprio Corpus Iuris Civilis não deixa de ser fruto de uma idealização da unidade que havia na Roma Imperial. De fato, se for desdobrado o poder da pessoa do imperador, na época do Dominato, nota-se que ele era oprimo inter pares (primeiro entre iguais), princips senatus (líder do senado), pontifex maximux (supremo sacerdote) título, que depois, passa ao Papa, quando o cristianismo se torna a religão oficial do império, tribunicia potestas (poder de tribunoi da plebe), imperatur(governante, comandante, no serviço militar). (…) Com a invasão dos povos bárbaros, quebra-se a unidade do império, mas não a idealização dessa unidade, nem tão pouco desapareceu o poder espiritual e este se assentava na idéia de universalidade da religião católica, já que há só um Deus e, por isso, deve haver unidade em todas as coisas.
O conceito de soberania, por conseguinte, entendido como o poder supremo que, futuramente, garantiria a unidade do Estado, surgiu no Império Romano, e a Igreja católica, com a idéia da existência de um único Deus, contribuiu para a manutenção de determinados valores universais que, posteriormente, foram adotados quando da criação do Estado moderno. O catolicismo, neste aspecto, contribuiu para a manutenção da unidade dos povos e, conseqüentemente, de valores culturais, religiosos e linguísticos em determinado território, como foram os casos, por exemplo, da Espanha e de Portugal. A verdadeira “construção de uma identidade”10do conceito de Estado surgiu com a Paz de Westfália e, na concepção do Estado, encontram-se os seus elementos constitutivos: povo, território e capacidade de autogoverno.
Dentro de uma concepção multicultural importa examinar o conceito de povo, uma vez que, durante muito tempo, precisamente até o início do século XXI, o tema não foi muito debatido no âmbito da sociedade internacional. Somente com o ressurgimento de outros Estados, como Sérvia, Montenegro, Kosovo, dentre outros, e que resultaram da extinção de Estados antigos, mantidos pela força, como foi o caso da ex-Iuguslávia, é que se começou a debater os valores culturais de cada povo, convivendo em um mesmo espaço territorial, isto é, sob o manto de uma mesma jurisdição estatal. Assim esclarecem Luis Alexandre Winter e Marcos Wachowicz (2007):
Na idéia de povo há uma idéia seletiva, vez que exclui dentro de uma população, parcelas desta. Daí a identificação com nação, mas não a nação longínqua dos indo-europeus, ou mais tardiamente dos povos germânicos, eslavos etc. A nação que se identifica com o Estado, origina-se como fenômeno secundário das invasões bárbaras. Estas invasões violentas, em um segundo momento, buscaram também o saque às cidades romanas, provocando uma retirada de boa parte da nobreza para suas propriedades rurais, onde, a princípio, estariam salvos. Neste deslocar, os patrícios romanos levavam consigo, além de seus pertences, toda uma infra-estrutura, para, se possível, ausentar-se o menos possível da região em que passaram a viver.
O período anterior à formação do conceito do Estado moderno foi o feudalismo, iniciado após a queda do Império Romano, mais precisamente com o advento da Revolução Francesa, 1789, quando surge a concepção do conceito de Estado-Nação, trazendo em seu bojo a idéia de uma unidade política, na qual os cidadãos deveriam estar vinculados ao território e sob um mesmo ordenamento jurídico: a Constituição. Com a finalidade de manter a referida unidade houve a fusão das populações, e elementos e valores, como a religião e a língua, passaram a ser essenciais para manter a unidade do Estado.
A idéia de soberania ressurge, portanto, com mais força, quando da criação do Estado-Nação, e traz dentro de si a concepção de manutenção da unidade, do todo e do único. Aliás, a própria exaltação dos atributos da soberania do Estado foram essenciais para a construção do Estado-Nação e a manutenção dos seus súditos dentro de uma mesma jurisdição, pois se fosse reconhecido o múltiplo, em detrimento do único, a própria estrutura estatal seria ameaçada. Voltando à análise para a construção da Europa, como menciona Pierre Gourou:11
O espaço, o ser da Europa escapam, ao longo dos séculos, a quem os queira captar ou definir, quer ao geógrafo quer aos especialistas das ciências humanas, uma vez que a Europa nunca foi a mesma no decurso de sua história. No começo da era cristã (…) ela estava de algum modo incluída, mergulhada no Império Romano e apresentava uma superfície que rondava os 3 milhões de km². Passam séculos e séculos, para trás fica um certo número de metamorfoses: a Europa do século XVIII, estende-se para leste até os Urales e cobre 10 milhões de km². Entretanto, a partir de 1492 e durante os séculos XVI, XVII e XVIII, depois durante os primeiros anos do século XX, terá conquistado para a sua civilização e para a sua autoridade a totalidade do continente americano, da Austrália, da Nova Zelândia e uma parte da África Austral – em 1914, todos estes territórios representavam uma superfície de 50 milhões de km².
No referente ao espaço europeu, Massimo Pallottino (1996) ressalta o aspecto multicultural do continente, ao esclarecer que:
Nenhum lugar do mundo proporciona o que a Europa deu: um lugar concentrado num espaço tão restrito, povos com tradições nacionais tão vincadas, tão ricas, que exercem tanto peso sobre a história do mundo. Mas o que são os povos da Europa? A pergunta pode ser ingênua ou fútil – mas não, dada a confusão freqüente, na linguagem comum, entre nações, Estados, comunidades, etnias, línguas, culturas.12 (…)
Esclarece o autor que a Europa se constitui em um
processo orgânico (…) oriundo de culturas oriundas dos latinos, germanos, eslavos, gregos, albaneses, bálticos e celtas os quais, não obstante a grande diversidade presente, falam línguas que derivam de um único tronco: o indo-europeu. Esclarece o autor que o referido tronco está ligado a outras línguas na Ásia, como o indiano, o iraniano, o armênio e o tócaro.13
Em termos linguísticos, consequentemente, e, segundo o nosso ponto de vista, torna-se possível aventar-se sobre a possibilidade de certa identidade europeia, a partir da origem lingüística. Certo é que, no continente europeu, existem outras raízes lingüísticas, como a germânica ou a saxônica, por exemplo. De acordo com Massimo PALLOTTINO (1996), ao se referir às antigas tribos que falavam antigos idiomas, de origem não indo-europeias, como a dos etruscos e a falada por alguns habitantes na Sardenha, na Córsega e na Sicília, até que viessem a ser suplantadas pelo latim, grego, celta e o germânico. Destaca o mesmo autor, a existência de idiomas antigos e ainda sobreviventes, como o euskera14 e que conserva “os caracteres do antigo substrato ibérico ou ´ibero-causcásico’, que se estenderia por uma área mais vasta no Ocidente. (…) Este fragmento pré indo-europeu isolado, silencioso, pouco conhecido, desperta nos nossos dias a atenção mundial, reivindicando a sua própria identidade”.15
Ao se comentar, aliás, sobre a formação da cultura europeia, como visto acima, o Império Romano, ao manter a unidade política, foi essencial para a formação, construção e manutenção dos valores europeus, sendo posteriormente, sucedido pelo período da alta Idade Média.16 Não obstante a tradição europeia, advinda do Império Romano, no sentido de manter certa unidade, em relação aos valores dos povos do continente, sempre houve a questão relativa às minorias culturais, como é o caso do euskera. Desde o Império Romano até meados do século XX, a Europa conviveu sob o estigma e os valores do Estado-Nação, sendo que a própria nacionalidade legitimava o agrupamento de pessoas sob a mesma jurisdição e, como forma de manutenção da própria unidade, a língua passou a ser utilizada como valor essencial.
Certo é que alguns Estados, principalmente no século XX, surgiram à força, como foi o caso da ex-Iuguslávia, composta por cinco nações: (Sérvia, Croácia, Eslovênia, Bósnia-Herzegovina, Macedônia e Montenegro) vindo, posteriormente, a desaparecer, readquirindo as antigas nações a sua independência.17 O ressurgimento de valores culturais, portanto, a partir da língua, como é o caso doeuskera e do catalão, são essenciais para a manutenção da própria cultura desses povos, neste caso, específicos o País Basco e a Catalunha, quando, após a queda do regime de Franco, foi concedida autonomia regional para essas regiões, a fim de que pudessem legislar a respeito do idioma, de forma a compatibilizar os interesses locais com os interesses da Espanha, evitando qualquer tentativa mais radical de se buscar a independência dessas regiões autônomas.18
Falar sobre o espaço europeu neste século XXI, é comentar sobre a existência de comunidades minoritárias, que convivem no espaço supranacional e devem ter os seus direitos culturais respeitados. Porém, antes de avançar no ponto central do estudo, uma vez definido o espaço supranacional e suas implicações, torna-se importante conceituar o multiculturalismo, principalmente no espaço da arena supranacional, argumentações que estarão reproduzidas no próximo capítulo desta pesquisa.
4. Considerações Finais
Perto do limiar da primeira década deste século o conceito de soberania é relativizado, em face da inserção do indivíduo no centro das relações jurídicas, econômicas, sociais, políticas e, especialmente culturais, no seio da sociedade internacional. Com a relativização do conceito de soberania o Estado não pode mais atuar, de forma isolada, com a finalidade de adotar as suas políticas em seu espaço jurisdicional, porque passam a surgir as associações dos países, com a finalidade de, através da ação conjunta, buscar adotar políticas comuns que surtirão efeito para todos os países associados. A União Europeia é exemplo vivo da nova realidade mundial, em que vinte e sete Estados e vinte e três idiomas oficiais convivem em um espaço, denominado de arena supranacional. Dentro da arena supranacional surge um direito singular e peculiar, como visto anteriormente, com a finalidade de buscar um maior equilíbrio entre os Estados, que é o Direito Comunitário.
O Direito Comunitário, ordenamento peculiar da União Europeia, busca garantir maior eficácia para as políticas, adotadas pelas próprias instituições do bloco econômico. Na Europa o idioma, enquanto valor cultural, é extremamente importante, porque os nacionais europeus valorizam extremamente a língua, enquanto um importante elemento cultural. Tamanha é a importância do idioma, no seio da União Europeia, que inúmeros instrumentos internacionais, foram celebrados na Organização das Nações Unidas, como é o caso do Pacto dos Direitos Civis e Políticos, 1966, e a própria Carta Europeia de Línguas Regionais ou Minoritárias, 1992, celebrado dentro do Conselho da Europa.
O idioma, portanto, é um elemento importante nas relações humanas e que traz consigo os valores culturais do próprio indivíduo. Na União Europeia, a busca de uma compatibilização entre os direitos da maioria frente aos direitos da minoria, quando os segundos não podem expressar, de forma livre os seus valores culturais, de natureza linguística, somente é possível através de uma forte atuação dos Estados, e por parte das próprias instituições do bloco econômico, mediante a adoção de ações afirmativas, com a finalidade de proteger os direitos das minorias. A existência de um ordenamento jurídico supranacional, pautado em valores pluralistas, em uma ordem que respeite a Democracia e os Direitos Fundamentais é essencial para o respeito ao direito das minorias na Europa, de forma a construir uma cidadania multicultural, que refletirá a universalização do respeito aos direitos culturais da minoria.
* Eduardo Biacchi Gomes é pós-doutor em Estudos Culturais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com estudos realizados na Universidade de Barcelona, Espanha, doutor em Direito Internacional pela Universidade Federal do Paraná, professor de Direito Internacional da FACINTER, UNIBRASIL e PUCPR, além de pesquisador vinculado ao grupo de estudos PÁTRIAS, registrado no CNPQ. E-mail: eduardobiacchigomes@gmail.com
Referências Bibliográficas
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DURET, Paolo. Sussidiarietà e autoamministrazione dei privati. Verona: Casa Editrice Dott Antonio Milani, 2004.
PALLOTTINO, Massimo. A Europa. Lisboa: Terramar, 1996.
WINTER, Luís Alexandre Carta; WACHOWICZ, Marcos. Construção de uma identidade. XVI Congresso Nacional do CONPEDI. Belo Horizonte, 2007.
WINTER, Luís Alexandre Carta; WACHOWICZ, Marcos. A construção histórica do conceito de soberania. Anais do Congresso Brasileiro de Direito Internacional, v. 10, Curitiba: Juruá, 2007.
NOTAS
1 A observância do referido principio é garantida através do Reenvio Prejudicial, ação típica de Direito Comunitário, na qual o juiz nacional, ao ter dúvidas sobre a correta interpretação e aplicação da normativa comunitária, suspende o processo e remete a dúvida para o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias. A jurisdição supranacional, sem resolver o caso em concreto, irá pronunciar-se, através de um Acórdão, esclarecendo ao juiz nacional, sobre a melhor forma de interpretar e aplicar o Direito Comunitário. Vale destacar que o Acórdão possui natureza obrigatória. O reenvio é facultativo nas instâncias ordinárias e obrigatório nas extraordinárias, isto é, nas quais não cabem mais o recurso.
2 Que instituiu a Comunidade Econômica Européia.
3 No ano de 2007 foi concluído o Tratado de Lisboa, o qual, a partir do momento que for ratificado por todos os Estados-Membros da União Europeia, substituirá o Tratado de Nice.
4 Que passou a circular fisicamente no ano de 2002.
5 O Preâmbulo do Tratado que institui a União Europeia assim estabelece: “Resolvidos a continuar o processo de criação de uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa, em que as decisões sejam tomadas ao nível mais próximo possível dos cidadãos, de acordo com o princípio da subsidiarfiedade”….
6 DURET, Paolo. Sussidiarietà e autoamministrazione dei privati. Verona: Casa Editrice Dott Antonio Milani, 2004.
7 O tratado que institui a União Europeia, em seu preâmbulo, assim define as bases fundamentais para a construção do espaço comum europeu: “Recordando a importância histórica do fim da divisão do Continente Europeu e a necessidade da criação de bases sólidas para a construção da futura Europa, confirmando o seu apego aos princípios da liberdade, da democracia, do respeito pelos Direitos do Homem e liberdades fundamentais e do Estado de Direito, confirmando o seu apego aos direitos sociais fundamentais, tal como definidos na Carta Social Europeia, assinada em Turim, em 18 de outubro de 1961, e na Carta Comunitária dos Direitos Fundamentais dos Trabalhadores, de 1989, desejando aprofundar a solidariedade entre os seus povos, respeitando a sua História, cultura e tradições, desejando reforçar o caráter democrático e a eficácia do funcionamento de suas instituições, a fim de lhes permitir melhor desempenhar, num quadro institucional único, as tarefas que lhes são confiadas”….
8 Exemplo claro da referida política foi o caso da Constituição Europeia, tratado que foi elaborado com a finalidade de alterar o Tratado de Nice, 2001 e que iria promover grandes alterações na União Europeia. Referido tratado deveria entrar em vigor no ano de 2005, o que não foi possível, tendo em vista o resultado negativo do referendo na França e na Holanda.
9 WINTER, Luís Alexandre Carta: A construção histórica do conceito de soberania. Anais do Congresso Brasileiro de Direito Internacional, v. 10, Curitiba: Juruá, 2007, p. 431-444.
10 WINTER, Luís Alexandre Carta; WACHOWICZ, Marcos. Construção de uma identidade. XVI Congresso Nacional do CONPEDI. Belo Horizonte, 2007.
11 BRAUDEL, Fernando (Org). A Europa. Lisboa:Terramar, 1996. p. 5.
12 Ibid., p. 51.
13 Ibid., p. 53-56.
14 Língua falada no País Basco, Espanha.
15 PALLOTTINO, Massimo. A Europa. Lisboa: Terramar, 1996. p. 56.
16 Ibid., p. 58.
17 Importante destacar que, mesmo dentro das referidas repúblicas, não existe unidade nacional, posto que Kosovo é composta por 90% de origem albanesa. As culturas dos referidos Estados estão representados por uma minoria muçulmana, albanesa (à exceção de Kosovo), húngaros, turcos, romenos, italianos, checos, eslovacos e búlgaros.
18 O reconhecimento inevitável do multiculturalismo, na sociedade internacional atual, leva à necessidade de Estados adotarem políticas descentralizadoras, de forma a conceder maior autonomia para os entes menores, a fim de que possam preservar as suas culturas locais, como é o caso da língua, na Catalunha e no País Basco.