Ano XVI 0201
dossiê
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VINGAR OS VALES DERROTADOS: CORPO E TERRITÓRIO NA POESIA CONTEMPORÂNEA

“Vale Derrotado” é um verso do poema “O protesto de Gômer”, de Adriane Garcia. A gestação é um tema abordado de várias formas na poesia brasileira contemporânea. Porém, podemos perceber que parte da poesia recente escrita por mulheres vem abordando esse tema por outro viés: não pela maternidade, mas pelo que não vinga, pelo que não chega a ser. Encontramos indícios dessa abordagem em poemas de Mar Becker, Adriane Garcia, Tatiana Pequeno, Raquel Gaio, Bruna Mitrano, dentre outras. Gostaria, então, de pensar a gestação pelo seu negativo: os frutos não vingados. Também pelo negativo, isso nos remete à linhagem, à herança, ao legado, e nos lança às perguntas: O que se carrega? O que se gesta? O que se transmite? Qual é a herança? Qual é o legado? Quais são as sementes? Como fazê-las vingar? O objetivo deste texto é apresentar essa perspectiva a partir, sobretudo, da relação entre corpo e território, tecendo a hipótese de que os corpos das mulheres, resistindo à procriação como norma, resistindo, portanto, ao enquadramento (Butler, 2015) ou ao cercamento dos corpos (Federici, 2017), afirmam-se não pelo princípio da territorialização, mas por um território sempre em ruína.

Como enunciam os versos de Tatiana Nascimento (2019, p. 11-12) no poema “cuíer A.P. (ou “oriki de shiva”, v.28 out. 2018)”, publicado no livro 07 notas sobre o apocalipse ou poemas para o fim do mundo: “mas a gente, que nem semente daninha,/ vinga, se espalha, sobre/ vive!”. Esse é o sentido de vingança, vingar como semente, termo que vem sendo utilizado na luta política para se referir ao legado de Marielle Franco, como vemos, por exemplo, no filme Sementes: mulheres pretas no poder (Embaúba Filmes, 2020) – palavra que também deu título ao livro de Margaret Atwood, Semente de bruxa, que reescreve A tempestade, peça de Shakespeare que inspirou o título de Calibã e a bruxa, de Silvia Federici, e, sem dúvida, palavra que nos alude ao solo, à terra, trazendo a importante luta tecida por parte do movimento feminista em muitos lugares onde o feminismo está diretamente relacionado com a questão do controle e da exploração do meio ambiente, e atentando para a relação entre ecocídio e feminicídio.

Em um trecho do poema “Cris Lopes, dedico meu livro para você”, de Tatiana Pequeno, poema inédito em livro e revistas, postado no Facebook em 12 de julho de 2019, em ocasião do lançamento do livro Onde estão as bombas, da referida poeta, lemos: “quebremos tudo, meu amor,/ enquanto estivermos por aqui/ restituamos a luta/ as armas/ os fios/ e mostremos os dentes/ em nome dos filhos que não tivemos/ em nome da gravidade deste tempo”.[1] Esse poema, que é uma postagem, uma dedicatória, uma carta de amor, especula, para além desse trecho, sobre a possibilidade de não coincidir com o destino, de errar o destino, de tecer outro destino, de desfiar e fiar outras tramas. Nele, fala-se em nome dos não herdeiros, dos não nascidos, indo do avesso da gravidez à gravidade do tempo, enunciando-se “em nome dos filhos que não tivemos”.

Convoco, então, um modo de ler esses poemas não como o que digere o indigesto, mas como o que gesta o indigesto (atentando aqui para a intimidade etimológica entre essas duas palavras). Vingar os vales derrotados, na esteira de Adriane Garcia, e afirmar as terras arrasadas, a casa em ruínas, na esteira da “cidade submersa” de Mar Becker, nos insere no gesto de recusa à maternidade e de afirmação da infertilidade como gesto de vingar as mulheres que foram e são historicamente esquecidas, violentadas e assassinadas por “crimes reprodutivos”. Retiro essa expressão do livro Calibã e a bruxa, de Federici, em que a filósofa mostra como o surgimento do capitalismo se deu às custas da destruição do poder das mulheres sobre seus próprios corpos e dos laços comunais que as unia. No século XVI, a política de cercamento de campos, ou a expropriação das terras comunais do campesinato, não significou senão uma política de cercamento dos corpos das mulheres: o estupro foi legalizado, o útero foi controlado e transformado em uma máquina para a reprodução da força de trabalho. Centenas de milhares de mulheres, acusadas de “crimes reprodutivos”, foram queimadas como “bruxas”, em sua maioria, por irem contra, de alguma forma, a procriação como norma.

Calibã e a bruxa nos mostra, assim, que as bruxas eram as mulheres que evitavam ou interrompiam a maternidade, eram as parteiras que podiam confabular com a gestante e intervir no parto, eram as mulheres pobres camponesas subversivas que organizavam movimentos de resistência contra o cercamento de terras, eram as mulheres camponesas que tinham o conhecimento das ervas (consideradas pejorativamente como abortivas), eram as mendicantes que suplicavam por comida, eram as mulheres idosas e pobres que não podiam mais reproduzir, gerar filhos, retratando “uma disciplina sexual que nega o direito a uma vida sexual à mulher que já não era fértil” (Federici, 2017, p. 346). Temos, aí, uma relação entre corpo e terra quando o corpo da mulher mais velha é visto como uma terra arrasada: um corpo que não reproduz mais, como uma terra que que foi muito explorada e não tem mais recursos a oferecer. Era proibida, capturada e atacada toda sexualidade que não fosse reprodutiva.

Bruna Mitrano, Não, 2016, p. 21.
Bruna Mitrano, Não, 2016, p. 21.

 

Diante da misoginia e da destruição da sociabilidade feminina em que se estrutura o capitalismo, de que modo podemos pensar o estatuto político dessa poesia como uma comunidade que vinga as vidas das mulheres que morrem todos os dias por causa de uma gestação interrompida (lembrando que, no Brasil, são as mulheres negras e pobres as que mais morrem por este motivo)? Pensar em como essas questões estão presentes em determinadas poetas contemporâneas significa, também, refletir sobre como aparece e comparece em suas respectivas escritas uma relação entre corpo e território – relação em que o corpo da mulher, como resistência à procriação como norma, resiste ao “cercamento” (dos corpos), se quisermos dialogar com Federici (2017), ou ao “enquadramento” (dos corpos), se quisermos falar com Butler (2015), afirmando-se, porém, não pelo princípio da territorialização, mas por um território sempre em ruína. Sugiro aqui uma aproximação entre as noções de “cercamento” e “enquadramento” não como sinonímias, mas pela maneira como ambas, em suas devidas diferenças de teorização, indicam os corpos que, cercados ou enquadrados (não esquecendo da polissemia dessa palavra – a expressão, em inglês, a que se refere Butler em Quadros de Guerra, “to be framed”, também traz, em português, a polissemia de “ser emoldurado”, em um quadro, e ser “enquadrado pela polícia”), são os corpos passíveis de serem mortos ou as vidas não reconhecidas como vidas.

Pensado primeiramente a partir do contexto das guerras dos Estados Unidos contra o Iraque e o Afeganistão, em que os enquadramentos midiáticos determinavam quais vidas seriam dignas de luto e quais não seriam, é certo que, em Butler, importa, sobretudo, o que resiste ao enquadramento, a borda sempre deslizante que não permite a determinação entre o dentro e o fora da moldura, compreendendo como o enquadramento pode ser subvertido (e não ajustado) à moldura que lhe é estabelecida, os modos como os enquadramentos podem ser desenquadrados, como eles se refazem e se desfazem, mostrando que “enquadrar e romper com o enquadramento são dois movimentos que caminham juntos”, como observou Carla Rodrigues (2020, p. 67) no artigo “Por uma filosofia política do luto”. Em Federici, por sua vez, a noção de “cercamento” se insere no contexto histórico da expropriação de terra dos camponeses na Europa como um marco do início do capitalismo com a privatização das terras comunais campesinas e a extensão desse termo como forma de inteligibilidade ou de nomeação ao controle pelo qual foram submetidos os corpos das mulheres na história moderna: “Do mesmo modo que os cercamentos expropriaram as terras comunais do campesinato, a caça às bruxas expropriou os corpos das mulheres” (Federici, 2017, p. 330). Quando as terras foram cercadas, os corpos das mulheres foram cercados. Quando as terras foram expropriadas, os corpos das mulheres foram expropriados.

Como Federici (2017, p. 133) localiza, no século XVI, “‘cercamento’ passou a ser um termo técnico que indicava o conjunto de estratégias usadas pelos lordes ingleses e pelos fazendeiros ricos para eliminar o uso comum da terra e expandir suas propriedades”. É preciso lembrar que o continente americano foi o lugar em que houve “o maior processo de privatização e cercamento de terras, onde, no início do século XVII, os espanhóis tinham se apropriado de um terço das terras comunais indígenas sob o sistema da encomienda” (Federici, 2017, p. 130). Também na África, a escravização executada pela empresa europeia colonial trouxe como consequência a expulsão de populações africanas de suas terras. Em Federici, podemos constatar a coincidência entre a política de cercamento de campos e a política de cercamento dos corpos cuja relação entre corpo e território não é uma relação essencialista, mas, antes, uma relação de poder, como se explicita também em Mulheres e caça às bruxas, quando observamos a ligação intrínseca entre a prática de exploração de terra e a prática de violência dos corpos de mulheres, sobretudo nas regiões do mundo que sofreram processos de colonização. Sobre essa relação, que continuou existindo com o advento da globalização e que sobrevive ao surgimento do neoliberalismo, Federici (2019, p. 94) analisa: “Não surpreende que a violência contra as mulheres tenha sido mais intensa naquelas partes do mundo (África subsaariana, América Latina e Sudeste Asiático) mais ricas em recursos naturais e agora mais valorizadas para especulações comerciais, onde a luta anticolonial tem sido mais forte. Maltratar mulheres é útil para os ‘novos cercamentos’”.

Dialogando com essa relação entre corpo e território, em que o corpo da mulher como resistência à procriação como norma, como dissemos, resiste ao enquadramento (Butler, 2015) ou ao cercamento dos corpos (Federici, 2017), afirmando-se não pelo princípio da territorialização, mas por um território sempre em ruína, assim versa um trecho de um poema de Raquel Gaio, publicado na Revista Garupa: “sou continente que não chegou a nascer/ feto estancado tristeza dos pais/ pântano onde todas as águas se misturam”.[2] Nos versos, lemos uma contraposição entre continente e pântano, em que o segundo se refere à mistura, enquanto o primeiro, intuímos, se contrapõe pela separação. Pântano é uma zona úmida, uma área alagada cujo solo, mal drenado, em que a água escoa muito lentamente, é permanentemente inundada. Pântanos são áreas baixas que acontecem principalmente em lugares onde o rio deságua, mas também podem se formar em terras planas à beira-mar. Ou seja, pode ser de água doce ou salgada. Como o propõe o poema: “onde todas as águas se misturam”.

“Nina”, de Tatiana Pequeno, publicado no livro Réplica das Urtigas, também nos mostra, pelo aborto, a associação entre corpo e território:

Nina

Neve com o êmbolo
feto
no corpo um outro passo
pleno
a vagarosidade fértil assombra
neve com a ânfora
lixo
no corpo um centro resto
órgão de península
amorfo incêndio de ilha.

(Pequeno, 2009, p. 70)

O fio que o poema traça desloca-se do surgimento de um feto ao aborto. Nos versos que se reduzem a uma palavra, “feto”, “pleno”, “lixo”, acompanhamos esse movimento. A assonância em /e/ e /o/ que se quebra com a palavra “lixo” acentua a quebra do ritmo que já foi quebrado, antes disso, no verso “a vagarosidade fértil assombra”, que quebra a métrica do primeiro e terceiro versos.

No poema supracitado, temos o corpo como “órgão de península”. O centro, porém, é descentralizado: o centro é resto, “um centro resto”. Sabemos que península é essa parte da terra que se liga ao continente por um fio, é um “quase”, “quase ilha”, pertencente e não pertencente ao continente, destacando-se dele, mas se mantendo ligada a ele por um fio de terra. Península é uma área toda cercada de água que, no poema, foi incendiada: “no corpo um centro resto/ órgão de península/ amorfo incêndio de ilha”. Como as chamas de um incêndio, de forma indeterminada, informe, o incêndio aqui é amorfo, como algo que não chegou a ter uma forma, estrutura e contorno precisos. Entre temperaturas-limite, “neve” e “incêndio”, entre extremos, o poema inscreve uma situação extrema na vida de uma mulher.

“sou uma cidade submersa” é o primeiro verso de um dos poemas que compõem o livro A mulher submersa, de Mar Becker:

sou uma cidade submersa

quando à noite me deito contigo e te amo com todos os meus
abismos
pela manhã sou uma cidade submersa

.

porque é assim que amo, lendária e triste. porque não posso
senão amar com o que em meu corpo é a história do fim de uma
linhagem, estéril como sou

e quando pela manhã tu vais e eu permaneço na cama, nua
quando pela manhã a luz do sol começa a entrar pela janela e
preenche o quarto

nessa hora o suor se reacende
o sal cintila em minhas coxas

e eu, estéril
eu então sou uma mulher estéril repleta de estrelas
de constelações

(Becker, 2020, p. 15)

No primeiro verso já temos uma associação entre corpo e território: “sou uma cidade submersa”. Mas o poema nos mostra que esse é um território sempre em ruína. O corpo coincide com o fim, o corpo é “a história do fim de uma/ linhagem”, e amar, aqui, só é possível se se leva em conta esse fim como a condição do amor: “porque não posso/ senão amar com o que em meu corpo é a história do fim de uma/ linhagem, estéril como sou”. Ao final do poema, temos o corpo associado a um corpo cósmico, um corpo prenhe de estrelas, um corpo-constelação, isso que já é o indício de uma ruína, a marca do que não está mais lá, como as estrelas que são uma incidência do que já morreu, marcas que portam uma ausência.

Mar Becker abre A mulher submersa com a imagem de uma “mulher estéril”. Em uma postagem no Facebook, a poeta teceu o seguinte comentário:

Abro “A mulher submersa” como a imagem da “mulher estéril”. Acho que é possível entendê-la (também, mas não somente) como um dos frutos magros do nosso tempo. Ela é um prisma – como uma estrela falida – que refrata e multiplica em si, no seu corpo, no seu nome, o sentido mesmo do termo “fim”. Pode ser o fim de uma linhagem, o fim de um dia ou da hora. Pode ser ainda o fim de uma promessa qualquer de futuro ou o fim de uma língua, esse marco de onde nós, escritores e poetas, partimos então buscando com nossas palavras sempre outras, ainda outras – aquelas próprias de línguas impossíveis ou mortas. Não saímos em busca sem assumir riscos e custos; como diz Orides [Fontela], “tudo será difícil de dizer / a palavra real nunca é suave”.[3]

Fazer do fim o ponto de partida significa um modo de fazer do ventre de uma mulher estéril o lugar de começo da história-estória, o lugar por onde se começa a narrar. Outro modo de reafirmar não mais a história dos grandes feitos, não mais a história pela via do enaltecimento da genealogia patrilinear, mas sim o fim como condição da história, o fim de uma linhagem, o fim de uma língua, como quem faz da ruína a condição de possibilidade. Cultivar a terra arrasada, fazer do fim o lugar de começo ou começar como quem não tem mais nada a perder se dá, irremediavelmente, é preciso dizer, pelo corpo da mulher. Os seus poemas traçam uma cartografia da ruína via o corpo da mulher. A mulher plasma a ruína: o território é ruína, a casa é ruína, a memória é ruína. Por isso mesmo, com isso, a partir disso, a necessidade de tecer, de tentar fazer o traçado dessa ausência, de tentar dar corpo à ausência, de imaginar um corpo para o corpo perdido, para a terra perdida, como quem se depara, a cada vez, com o corpo como uma língua esquecida, com o corpo como exilado de si.

Em trechos do poema a seguir, vemos novamente o vínculo da mulher com o território: há uma contraposição do campo com a cidade que não é tecida senão pela sola dos pés:

a mulher nascida na região da serra sem fim levanta-se

não há cor em suas unhas, e os fios do seu cabelo secam ao
natural. a planta dos seus pés é mais áspera que a das mulheres
nascidas nas cidades grandes, porque ela vive caminhando
descalça no chão de pedra do quintal de casa. estende roupa. nos
fins de semana come uva colhida de uma videira tímida

o fruto é miúdo, quase não vinga; ainda assim
há famílias que insistem no cultivo

essas famílias são tristes. há todo um reino de azuis em jogo

[…]

por vezes uma pássara prenha entra em algum dos vãos do
beiral do telhado. com o ninho já construído, ela se instala e
põe seus ovos. em fevereiro e março, no período de chuvas mais
intensas, é comum que um dos filhotes caia – recém-nascido
horrível. roxo. sem penas, só cabeça e bico

no dia seguinte, é varrido para um canto e fica amontoado
junto com as cascas de uvas comidas

(tudo é cadáver, vindima e fome)

[…]

a cerração imanta os quartos, imanta os móveis e as cortinas;
e os mortos participam desse processo todo, no espaço; em
silêncio

de fora, a certa distância, a casa nessas manhãs mal pode ser
vista. o contorno dos telhados e das chaminés se perde

.

na casa fabula-se outra casa. em ruínas

(Becker, 2020, p. 31-34)

Nos versos, lê-se o lugar de onde vem uma mulher pela cartografia traçada no corpo, a planta do pé. Lê-se a sola dos pés como quem lê a planta de uma casa, um mapa, a topografia dos solos. Pelo uso da catacrese, esse modo de nomear a falta, como “pé da mesa”, “dente de alho”, “costas da cadeira”, as partes do corpo vão dando nome ao que seria difícil de nomear. Aqui, na “planta dos pés”, esse lugar que, de fato, é mais ou menos repleto de traçados, como a palma da mão, de que também muitas mulheres se ocupam da leitura, o ponto de contato dos pés com o chão será chamado de “planta” e não de “sola”, condizendo com o traçado em que esse livro vai se tecendo, no entrecruzamento do tempo histórico e do tempo orgânico, trazendo, na “planta dos pés” de uma mulher, a topografia social, a história de uma linhagem que nasce no fim e aponta para o fim, a história do que não vinga. No poema, lemos uma colheita às avessas no paralelo entre a mulher e a pássara, entre a “mulher nascida na região da serra sem fim” e a “pássara prenha”, entre a casa da mulher e o ninho da pássara: os frutos que não vingam mas que, porém, insiste-se no cultivo, como a família triste, a videira tímida e o filhote recém-nascido “horrível. roxo”: “tudo é cadáver, vindima e fome”. Na “mulher nascida na região da serra sem fim”, tudo aponta para o fim. Tudo, em seus versos, parece apontar para o fim, para o contorno impreciso (“o contorno dos telhados e das chaminés se perde”), para a “cerração” (“a cerração imanta os quartos, imanta os móveis e as cortinas”), para isso que mal é, que mal pode ser, como sugere o enjambement: “a casa nessas manhãs mal pode ser/ vista”. Entre a casa que “mal pode ser” e “mal pode ser vista”, entre o que não chega à existência e o que não chega aos olhos, tudo no poema fica nesse estágio do que “mal pode ser”. O corpo, a casa, o íntimo, o doméstico, espaço historicamente destinado a quem nunca pôde ser, às mulheres, são receptáculos e vias de territórios e de histórias que também estão por um fio, não dando forma, porém, ao que não chegou a ser, mas constatando e afirmando o esboço, fazendo do esboço – desse campo exponencial do que não chega a ser – o estágio potencial de tessitura.

Em A mulher submersa, o fio é a ausência, o fio que se puxa para tecer o esboço de uma história é a ausência de mulher. A ausência na historiografia, a ausência na geografia da segregação econômico-social, a ausência na política ocidental. Como diz um trecho de um dos poemas do livro, que eu leio como modo de elucidação do método de Mar Becker (2020, p. 78): “mulher vinda da ausência de outra, da ausência da história de/ outra. mulher vinda de uma/ não-mulher// de um não-corpo/ de uma não-voz”. A mulher submersa é um exercício de insistir no cultivo daquilo que “mal pode ser”, daquilo que mal assume o estatuto de ser. Um exercício de fazer vingar o que não vinga, de traçar, na perda, um território inédito, atravessado pela intercessão de espaços, tempos e corpos diferentes, de tentar traçar um contorno impreciso, um esboço, seguindo os rastros disso que está sempre na iminência do fim ou do que não chegou a nascer; ou, ainda, quando o que mal nasceu diz tanto do que “acabou de nascer” como do que “nasceu mal”, não vingado, ou seja, quando o “cedo demais” e o “tarde demais” se aproximam.

No livro Não, de Bruna Mitrano, isso que mal nasceu pode ser lido nas “frutas que nasceram podres/ as que nasceriam pra sempre” (Mitrano, 2016, p. 24), assim, “pra sempre”, como uma linhagem que se determina pelo ponto de decomposição em que coincidem nascimento e morte, tal como lemos no próximo trecho: “gestação infinita/ o filho podre a filha cerca viva/ meu útero arregaçado expelindo medo em sangue/ porque é meu horror que gero –/ sei me ferir” (Mitrano, 2016, p. 20).

 

Bruna Mitrano, https://www.facebook.com/ana.criolina.3.
Bruna Mitrano, https://www.facebook.com/ana.criolina.3.

 

Em Não, a voz da mulher que fala nos relata que ela, a mulher, também foi abortada: “meu sangue é vivo porque é sangue de quem se aborta, é sangue de quem implodiu e é arrancada a fórceps” (Mitrano, 2016, p. 47). Aqui, o aborto como aborto de si está ligado, porém, à vivacidade do sangue, ao que deixa um “sangue vivo”, a quem tem o “sangue de quem implodiu”, de quem pertence à linhagem dessas que diariamente são arrancadas a fórceps, dessas que fazem do aborto de si a contrapartida da violência, um movimento de acabar vingando – mas não como quem nasce, pelo contrário, como quem se aborta.

O Não também gesta aquilo que não vingou, aquilo que não chegou a ser. Chego então ao que vem se mostrando desde os poemas anteriores: a necessidade de pensarmos num estatuto político da poesia que considere essas poéticas como o lugar não daqueles que são, mas daqueles e daquelas que nunca puderam ser, que nunca tiveram o estatuto de ser.[4] Essa reflexão se torna pertinente se pensarmos que, desde Platão, em O Banquete, um dos modos como a poesia ainda é compreendida pela tradição ocidental refere-se a aquilo que permite a passagem do não-ser ao ser, ou seja, como aquilo que faz com que algo que não fosse passasse a ser. Esses poemas colocam a importância de ver a poesia – e o gesto ético e político dessa poesia – como isso que permite fazer a experiência daquilo que não chega a ser, daquilo que foi interrompido, ou, mais contundentemente, obstruído, impedido. Aqui, a problematização da teoria platônica da passagem do não-ser ao ser se dá também, especialmente, pela experiência da pobreza, que antes impede e obstrui do que dá passagem. Gestando o indigesto, o Não – como uma negação, porém, afirmativa – é um movimento em si mesmo interruptivo: ele impõe um limite no gesto de dizer “Não” e, ao mesmo tempo, gesta os mutilados da vida, o que não vingou, os corpos que diariamente sofrem muitos “Nãos”, corpos que diariamente são excluídos da política, corpos que diariamente não são, não têm o estatuto de ser.

Esse livro tem uma ética de tudo que abarcaria um mundo ínfero. É curioso notar que essa palavra, “ínfero”, significando aquilo que é inferior, que está abaixo, faz parte da linguagem do estudo da vida vegetal, precisamente, da morfologia botânica, para indicar a posição do ovário em relação ao receptáculo. Na botânica, é dito que o ovário de uma flor é ínfero quando ele se localiza na parte inferior do receptáculo e, por isso, “ovários ínferos originam falsos frutos”, porque o receptáculo fará parte da formação do fruto, não deixando com que esse último se desenvolva plenamente.[5] Não por acaso, o cristianismo se utilizará da palavra latina inferus para significar “lugares baixos”, de onde sairá “inferno”. Leio o Não como esse ovário ínfero, cujos frutos coincidem com o receptáculo, sendo isso que não é exatamente um fruto, que não chega a ser um fruto.

Como nos poemas anteriores, aqui, também, “o enquadramento” é “impreciso”:

puta que pari um bicho morto
risco indócil na coxa
barulho oco dos coágulos esbofeteando a água da privada
estilhaços imagens
o enquadramento impreciso
aparar as arestas até triturar os ossos do rosto
as unhas perfuram lentas a boca grande calada
é preciso fugir pelas beiradas
sem alarde.

(Mitrano, 2016, p. 18)

Se o Não traz justamente os corpos enquadrados, em uma interdependência de gênero, raça e classe, abordando a mulher, a favela, a pobreza, a miséria, a loucura, no primeiro verso do poema supracitado vemos “o enquadramento impreciso” do sujeito do poema: não se lê “puta que pari um bicho morto” sem alguma trava. Começo a ler “puta que pariu”. Depois leio “puta que pare”. Só então percebo que o sujeito está oculto: não é a puta que pariu, sou eu que pari: eu, “puta que pari um bicho morto”. Trazendo a primeira pessoa oculta na possibilidade da terceira, tornando ambas a mesma pessoa, as arestas do poema vão fazendo dessa a história de fuga traçada pelos estilhaços que compõem a cena do irrepresentável que se repete há séculos.

A história se passa no século VIII a.C., o povo de Deus estava dividido em dois reinos, norte, Israel, e sul, Judá. Ao contrário de Judá, Israel estava entregue ao culto de falsos deuses dos inimigos. Oseias é um profeta enviado por Deus para alertar Israel da destruição iminente pelos assírios, pela influência dos fenícios do norte. Tudo de ruim simbolizava Israel, a idolatria a deuses, a prostituição, e Gômer simboliza Israel, simboliza a decadência e a degradação de Israel, porque ela é uma prostitua.

Deus ordenará Oseias a se casar com essa prostituta. Salvar a mulher da prostituição significava salvar o povo prostituído de Israel. O resgate de Gômer representa o resgate que Deus faria por seu povo. Então, Oseias e Gômer têm três filhos que vão ter três nomes degradantes, como forma de fazer o povo de Israel carregar essa vergonha por ter abandonado Deus. Pelos filhos de Oseias, Deus repreendia seriamente o povo. Mas Gômer abandonou Oseias e seus filhos e voltou para a prostituição. Deus mandou Oseias ir atrás de Gômer, assim como Deus vai atrás de seus filhos desviados e os perdoa, determinando que Oseias comprasse Gômer, que tinha se tornado uma escrava, talvez uma escrava sexual.

Então, por causa de Gômer, Israel estaria fadada à destruição. Gômer representa o não arrependimento do povo de Israel, representa a vergonha (por ela ter sido infiel, promíscua, adúltera, prostituta, por ter abandonado o marido e os filhos) e a culpa que Israel carregaria por ter abandonado o senhor. Toda a errância de um povo é representada pela culpa de uma mulher. Depois, Deus, esse pai que pune, mas nunca abandona, porque ele não aguenta ser um pai abandonado, perdoou, claro, os filhos vergonhosos, mas primeiro ele teve que fazer os filhos comerem o pão que o diabo amassou. Esse pai misericordioso, que pune em nome do amor, que comete as maiores atrocidades e repreensões em nome do amor, é o mesmo pai que deposita a culpa de todo um povo em uma mulher.

Reescrevendo a história como um modo de vingança e de vingar, finalizo este artigo com o poema de Adriane Garcia, um poema que é um protesto de quem nunca pôde protestar, “O protesto de Gômer”:

Não quero este filho
(vou tentar fazê-lo não nascer)
Mas se ele nascer vou chamá-lo
Vale Derrotado
Prefiro um ventre estéril
E seios secos
Se meu corpo
É a primeira metáfora
Para o seu desamor

Não quero esta filha
(vou tentar fazê-la não nascer)
Mas se ela nascer vou chamá-la
Desfavorecida
Prefiro um ventre estéril
E seios secos
Se o que tem
Para as minhas filhas
É pura desolação

Não quero este filho
(vou tentar fazê-lo não nascer)
Mas se ele nascer vou chamá-lo
Não-Meu-Povo
Prefiro um ventre estéril
E seios secos
Do que parir aqueles
A quem o senhor
Só aborta.[6]


* Danielle Magalhães é doutora em Teoria Literária (UFRJ). Atualmente, como bolsista de Pós-Doutorado (FAPERJ/UFRJ), desenvolve a pesquisa “Mulheres que reescrevem a história”. Publicou os livros de poemas: Vingar (2021) e Quando o céu cair (2018), pela Editora 7Letras, e sua tese de doutorado, Ir ao que queima: no verso, o amor, no verso, o horror, que contém parte deste estudo, está no prelo pela Editora Ape’ku.

 

Referências

BECKER, Mar. A mulher submersa. São Paulo: Editora Urutau, 2020.

BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto?. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.

FEDERICI, Silvia. Mulheres e caça às bruxas: da Idade Média aos dias atuais. São Paulo: Boitempo, 2019.

GAIO, Raquel. “3 poemas”. Revista Garupa. Disponível em http://revistagarupa.com/edicao/edicao-resta-um/secao/na-beira-da-estrada-5/artigo/3-poemas-2. Acesso em 30/07/2021

GARCIA, Adriane. “O protesto de Gômer”. In: A Bandeja de Salomé (no prelo).

MITRANO, Bruna. Não. São Paulo: Patuá, 2016.

NASCIMENTO, Tatiana. 07 notas sobre o apocalipse ou poemas para o fim do mundo. Rio de Janeiro: Garupa, 2019.

PEQUENO, Tatiana. Onde estão as bombas. Juiz de Fora: Macondo, 2019.

PEQUENO, Tatiana. Réplica das Urtigas. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2009.

RODRIGUES, Carla. “Por uma filosofia política do luto”. O que nos faz pensar, [S.l.], v. 29, n. 46, p. 58-73, jul. 2020. ISSN 0104-6675. Disponível em http://www.oquenosfazpensar.fil.puc-rio.br/index.php/oqnfp/article/view/737. Acesso em: 30/07/2021.

 

Notas

[1] Disponível em https://www.facebook.com/tatiana.pequeno, acesso em 30/07/2021.

[2] Disponível em http://revistagarupa.com/edicao/edicao-resta-um/secao/na-beira-da-estrada-5/artigo/3-poemas-2, acesso em 30/07/2021.

[3] Disponível em https://www.facebook.com/MarBecker1109, acesso em 30/07/2021.

[4] Essa abordagem foi anteriormente desenvolvida por mim no artigo “Matáveis: amáveis”, publicado na Revista Garrafa.

[5] https://www.dicio.com.br/infero/.

[6] Poema inédito em livro. Postagem no Facebook em 17 de agosto de 2020. Disponível em https://www.facebook.com/profile.php?id=100001172709892, acesso em 30/07/2021.