O objetivo geral deste texto é investigar dois eixos de questões – o primeiro, ligado à área de estudos urbanos, sobre a conexão entre as noções de espaço público e esfera pública, no contexto sócio-histórico do Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XXI. O segundo eixo, vinculado às análises sobre o digital, se detém sobre as relações entre o ciberativismo e a atuação política no espaço público urbano. Em última instância, trata-se de refletir sobre o impacto do virtual sobre as práticas políticas contemporâneas.
Começando com o primeiro eixo de questões, é preciso esclarecer que tomo aqui a definição de espaço público tal como é colocada por Goffman (2010), como “territórios não privativos”, ou seja, como determinados locais de uma comunidade em que, segundo ele, o acesso é franqueado a todos. Desta forma, neste conceito não está envolvida a centralidade da ação política; dito de outra forma, estes locais podem ou não estar permeados por discussões, manifestações ou negociações de direitos, deveres e consensos.
Já a noção de esfera pública, lembrando Habermas (2014), deve ser situada dentro do campo do debate sobre representações e práticas políticas coletivas, da construção de consensos a respeito de ações que afetem a vida dos grupos em sociedade. Nesta direção, a esfera pública se coloca como dimensão de mediação entre a vontade de um Estado-nação e daquilo que constituiria a “sociedade civil”, uma ponte entre Estado e comunidade que se caracterizaria pela apresentação e discussão dos desejos e ações dos diversos grupos sociais vis-à-vis seus representantes no aparelho de Estado.
Na área dos estudos urbanísticos, estas duas noções parecem quase se confundir, a ponto de Abrahão (2008), por exemplo, sugerir que as intervenções urbanísticas ao longo do século XX tinham como uma questão central responder a demandas de cidadania, democracia e participação social. Assim, deste ponto de vista, intervir na arquitetura da cidade era não apenas garantir a possibilidade de uma “ordem democrática”, mas construí-la.
Assim, deste ponto de vista, as ações sobre as cidades se alicerçam em um modelo de espaço público que se conjuga ao de esfera pública; desta forma, quando se ordena o espaço, pensa-se em ordenar opiniões, atitudes e movimentos coletivos.
Nos primeiros anos do século XXI, o panorama das discussões acadêmicas sobre a cidade – meu primeiro eixo – dava conta do declínio do espaço público. Desta forma, a ocupação de praças e ruas e na mesma direção a expressão da vontade coletiva através desta ocupação, era considerada “coisa do passado”. Impulsionada basicamente por crises econômicas, altos índices de criminalidade e violência urbana, pela desconfiança na ação política tradicional e principalmente pelo lazer proporcionado pela nova onda tecnológica, a assim chamada “nova cultura indoors” se definia pela comunicação online, pela permanência dos “cidadãos” em casa e pela rejeição da circulação e uso político das ruas. De nosso canto do mundo, me parecia que havia algum sentido nisso. O aumento vertiginoso do uso das redes sociais, dos games, da insegurança e da violência urbana também era sentido no Brasil; o refluxo da movimentação política – comícios, showmícios, passeatas – nas ruas e praças igualmente fazia parte do cenário brasileiro.
Entretanto, em 2011, com a chamada Primavera Árabe, os movimentos dos indignados espanhóis, as manifestações na Grécia contra a política econômica de seu governo, e os diversos Occupy espraiados pelo mundo, também em 2011, foi possível indicar que a decretação de morte do espaço público e de sua conjugação à ideia de esfera pública era prematura.
Nacionalmente, vimos crescer a volta às ruas a partir das manifestações que se iniciaram com protestos contra o aumento da tarifa no transporte público e se tornaram massivas expressões populares, as conhecidas “jornadas de junho” de 2013. Para além destes movimentos mais gerais, verificamos também a construção de ações periféricas, como o Ocupe Estelita, Ocupa Alemão e o Ocupa Maré, entre outras, que tentam canalizar as reivindicações de seus moradores para sua expressão em cenário público, em seus próprios locais de moradia. Enfim, temos, do ponto de vista dos estudos urbanos, um recrudescimento da conexão entre espaço público e esfera pública, através do aumento da participação política nestes espaços.
Arte urbana no Beco do Batman, SP
(Fonte: Instagram – Fotografia de Ivan Mussa)
Curiosamente, na virada do século e nos primeiros anos do século XXI, no campo dos estudos socioantropológicos sobre o novo ambiente digital, igualmente duas posições magnetizavam e polarizavam aqueles que refletiam as novas tecnologias da comunicação. Sem dúvida, o grande avanço tecnológico dos últimos anos, associado ao surgimento das novas mídias eletrônicas, tem produzido mudanças substanciais na sociedade, influenciando padrões de consumo, processos de produção material, de conhecimento e comunicação. Há muito estamos envolvidos na rotina dos caixas eletrônicos, cartões magnéticos, telefonia celular e outras utilidades que trazem uma nova lógica e uma nova maneira de organização social.
A chamada revolução informacional se intensificou nos anos 1990 com a propagação da internet, permitindo o rompimento de barreiras geográficas e facilitando a livre circulação de informação e conhecimento. Nos dias atuais,
[…] Os locais são completamente penetrados e moldados em termos de influências sociais bem distantes deles. O que estrutura o local não é simplesmente o que está presente na cena; a “forma visível” do local oculta as relações distantes que determinam sua natureza. (Giddens, 1991, p. 27)
Muitos são os debates e poucos os consensos sobre as consequências e implicações do acesso e uso das novas tecnologias, em especial a internet, na sociedade. Duas vertentes teóricas polarizaram desde o início o debate. Os apologistas, como o filósofo francês Pierre Lévy e o sociólogo espanhol Manuel Castells, percebem a internet como um veículo libertário. Enquanto isso, os críticos, representados principalmente pelo sociólogo francês Jean Baudrillard e pelo arquiteto, urbanista e filósofo francês Paul Virilio, a veem “como um veículo de destruição do espaço público e de controle dos cidadãos pelo estado e pelas empresas” (Sorj, 2003. p. 57). É curioso notar que, nos anos 1960/1970, outro meio de comunicação, quando de seu surgimento, também foi alvo de intenso debate; dois polos estabeleceram seus argumentos e contra-argumentos contra a televisão, num cenário muito bem descrito por Eco (1987) como um embate entre “apocalípticos” e “integrados”.
Por nossa vez, em relação às Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), e na tentativa de aprofundar a discussão, propomos um pequeno mapeamento teórico a respeito deste debate. Pierre Lévy e Manuel Castells, apologistas, e Paul Virilio e Jean Baudrillard, críticos, foram escolhidos entre tantos outros pelo fato de que suas análises e teorias sobre os efeitos das tecnologias digitais no mundo contemporâneo apresentam as principais abordagens que se tornaram rapidamente clássicas, e vêm sendo citadas por diversos outros pesquisadores mais recentes do tema.
Manuel Castells (1999) analisa minuciosamente as transformações sociais e econômicas que ocorrem na era da informação examinando o ritmo acelerado das descobertas e aplicações da tecnologia e suas implicações. A sociedade em rede, segundo ele, seria, assim, a nova forma de relacionamento entre as elites e as empresas, determinando uma revolução nos negócios e na forma de se viver. Para Castells, os processos dominantes na era da informação estão cada vez mais organizados em torno de redes, e
[…] a presença na rede ou a ausência dela e a dinâmica de cada rede em relação às outras são fontes cruciais de dominação e transformação de nossa sociedade: uma sociedade que, portanto, podemos apropriadamente chamar de sociedade em rede, caracterizada pela primazia da morfologia social sobre a ação social (Castells, 1999, p. 497).
No entanto, faz a ressalva de que a influência tecnológica será tanto maior quanto melhor forem as condições sociais e econômicas. Assim, chega a mostrar-se pessimista quanto ao processo de difusão tecnológica entre os mais pobres, quando afirma que a comunicação mediada por computadores “excluirá a maior parte da humanidade por um longo tempo” e, como tal, “ficará sob o domínio de um segmento populacional instruído nos países mais desenvolvidos” (Castells, 1999, p. 382).
Considerado um dos maiores especialistas em cibercultura e autor de diversos livros sobre o assunto, Pierre Lévy compreende o espaço virtual como sendo o terreno onde a humanidade vive e interage nos dias atuais. Considera que esse novo espaço de interação é extremamente importante nos planos econômico e científico, e que essa importância atinge vários outros campos da vida humana.
Para Lévy, a metáfora do impacto é inadequada quando se quer referir-se aos reflexos das novas tecnologias da informação sobre a sociedade ou a cultura, pois neste contexto, a tecnologia seria algo comparável a um projétil e a cultura ou a sociedade a um alvo vivo:
As técnicas viriam de outro planeta, do mundo das máquinas, frio, sem emoção, estranho a toda significação e qualquer valor humano, como uma certa tradição de pensamento tende a sugerir? Parece-me pelo contrário, que não somente as técnicas são imaginadas, fabricadas e reinterpretadas durante seu uso pelos homens, como também é o próprio uso intensivo de ferramentas que constitui a humanidade enquanto tal (junto com a linguagem e as instituições sociais complexas) (Lévy, 1999, p. 21).
Assim, ao invés de avaliar seus “impactos”, deve-se formular projetos capazes de explorar a virtualidade que ela transporta e decidir o que fazer dela. A rede, para Lévy, é universal sem totalidade, ou seja, a rede de computadores permite às pessoas conectadas construir e partilhar a inteligência coletiva sem se submeter a qualquer tipo de restrição político-ideológica. Partindo deste princípio, Lévy encara a internet como um agente humanizador (porque democratiza a informação) e humanitário (porque permite a valorização das competências individuais e a defesa dos interesses das minorias).
O autor cunhou a expressão “inteligência coletiva” para indicar que a internet possibilita a troca de ideias, torna possível compartilhar informações e interesses comuns, e estimula a criação de comunidades e conexões[1]. Para ele, a revolução informacional constitui, portanto, a surpreendente realização do objetivo marxista de apropriação dos meios de produção pelos próprios produtores. Ainda assim, pondera que nem a informática nem o ciberespaço resolvem, com sua existência, os principais problemas da vida em sociedade. De certa forma, ao romperem com os antigos, participam da criação de novos, menos visíveis e mais instáveis poderes.
Jean Baudrillard, pensador francês que decidiu não utilizar novas tecnologias como celular e computador, afirma que, na era da “chantagem da comunicação”, a internet, mais que qualquer outro meio de comunicação, nos torna escravos da comunicação forçada, a que chama de “êxtase da comunicação” (Baudrillard, 1998, p.12).
Toda essa interrogação sobre o virtual torna-se hoje ainda mais delicada e mais complexa por causa do extraordinário blefe que a cerca. O excesso de informação, o forcing publicitário e tecnológico; a mídia, o deslumbramento ou o pânico – tudo concorre para uma espécie de alucinação coletiva do virtual e de seus efeitos (Baudrillard, 1998, p. 12).
Para Baudrillard, a comunicação não passa de um grande fenômeno consumista, e que a massa avassaladora de informações torna tudo disperso, volatilizado. Numa perspectiva niilista, acredita que as gerações nascidas na era da internet não terão ideia do que possa existir fora do mundo virtual.
Arquiteto, urbanista e filósofo, Paul Virilio é pessimista e vê na nossa sociedade um alto risco, que ele costuma chamar de “ditadura da velocidade”. Sua inquietação diz respeito ao fato de acreditar que, nos dias atuais, o “tempo real” depende cada vez menos do espaço.
Com esse FALSO DIA produzido pela iluminação das telecomunicações, levanta-se um sol artificial, uma iluminação de emergência que inaugura um novo tempo: TEMPO MUNDIAL em que a simultaneidade das ações logo supera seu caráter sucessório (Virilio, 1999, p. 20).
A reflexão inconformista de Virilio e o tom dramático de suas palavras refletem sua preocupação com a instantaneidade e a imediatez do mundo atual. O filósofo francês acredita que, com o desenvolvimento dos transportes e da tecnologia de comunicação instantânea, o mundo de hoje convive com uma poluição dromosférica, de dromos, corrida.
Em seu livro O espaço crítico, escrito em 1993, Virilio faz um tratado radical contra as novas tecnologias que, segundo ele, tornam os homens – antes “nômades” e eternos buscadores de novos terrenos – “sedentários”, cujo espaço é a cadeira em frente ao computador. Essa é uma de suas principais críticas ao mundo informatizado: a de que o espaço humano se reduziu, restringindo a mobilidade das pessoas.
Para Virilio, com a invenção da internet, as pessoas se comunicam à distância e em breve não haverá mais relevo, não haverá mais toque. Todos nós estamos fadados, segundo ele, à inércia da comunicação televisionada. Dessa forma, o que temos é que o debate em torno das potencialidades da internet é caracterizado pela polarização entre os que a veem como um “instrumento de libertação e aqueles que a percebem como um mecanismo de destruição do espaço público e de controle dos cidadãos pelo Estado e pelas empresas” (Sorj, 2003, p. 57).
São olhares diferentes e, na maior parte das vezes, antagônicos. As posições que se confrontam, na verdade, percorrem as limitações e possibilidades, ameaças e promessas das novas tecnologias. No esforço de compreender as complexas imbricações entre os limites e as potencialidades da internet, pode-se argumentar que as diferentes posições em torno de seus efeitos estão presentes na sociedade e que, dependendo do resultado dos confrontos sociais, podem tornar-se dominantes. Para Sorj (2003, p. 57), é possível encontrar, na atualidade, tanto o efeito de potencialização da vida democrática quanto a fragilização da privacidade e da liberdade pelo controle da informação.
Em suma, de modo geral, a perspectiva otimista reúne argumentos que afirmam que a partir da internet:
i) a informação não se encontra mais restrita aos grupos econômicos que tradicionalmente centralizavam os veículos de comunicação;
ii) é possível aumentar e modificar a participação dos cidadãos na gestão e nas decisões governamentais através de consulta permanente sobre os mais variados temas;
iii) O indivíduo passa a ter direito a voz, à informação e à discussão de sua realidade de maneira irrestrita e sem intermediários;
iv) o intercâmbio cultural pode acontecer com mais facilidade, propiciando o enriquecimento da experiência coletiva;
v) o trabalho de monitoramento e controle de epidemias tem se tornado mais fácil;
vi) tornou-se fácil o acesso a banco de dados, bibliotecas e todo tipo de informação.
Numa perspectiva pessimista, alinham-se os que consideram que:
i) apesar do potencial para explicitar a diversidade cultural, a massa de informações que circula na internet representa um reflexo da dominação cultural exercida pelos que detêm o poder econômico;
ii) a rede se expande velozmente nos países centrais, mas nos países periféricos, a participação ainda é pequena;
iii) Não há como esperar pluralidade se apenas uma parte da população participa desse processo – notadamente a parcela da população que está à frente dos processos de produção e difusão da informação;
iv) a internet destrói as relações face a face, único meio capaz de gerar grupos com memória histórica e base de sustentação de uma vida pública e de ação política constante;
v) o mundo virtual facilita o controle do Estado e das empresas sobre o cidadão e leva à destruição da liberdade e da privacidade.
Avançando um pouco mais na análise, observa-se em comum, nas duas vertentes, o reconhecimento de que os avanços tecnológicos estão empreendendo inéditas e profundas transformações em todas as dimensões da vida social. Entretanto, observa-se diferenças cruciais na forma de encarar tais transformações, particularmente no que diz respeito às suas implicações políticas e, portanto, às reverberações que provocam nas relações sociais de poder e dominação.
Política.com
Centrando sua análise justamente nos desdobramentos políticos do uso das novas tecnologias, Moraes (2001), de forma otimista, irá apontar a formação de um novo tipo de ativismo, o ativismo digital, que contemporaneamente galvaniza o esforço de criação de uma “contra-hegemonia”. Assim, utilizando o ferramental teórico de Gramsci, advoga que a internet e as redes sociais têm servido cada vez mais para a formatação, divulgação e expansão de demandas dos mais variados grupos sociais, à revelia do pensamento conservador, produzindo alternativas de futuro em relação aos segmentos sociais no poder em diversos países no mundo.
Nesse sentido, segundo esse autor, as TICs teriam uma potencialidade revolucionária, do ponto de vista político, o que poderia ser visualizado em sites mantidos por algumas organizações e movimentos – entre eles, os feministas. Assim, cita o coletivo feminista Penélopes, cuja líder Joëlle Palmieri, é incisiva em afirmar que é preciso deixar o campo do simples esforço de combater a desinformação ou a informação tendenciosa, para investir em novas formas de trocar e produzir novas ações comunicacionais e políticas.
O uso político das redes por parte de organizações dos mais diferentes tipos vem sendo apontado e reconhecido por vários estudos mais recentes. Assim, a internet vem servindo de base de comunicação mais rápida, de mobilização e de ampliação de visibilidade de movimentos sociais, tanto progressistas quanto conservadores. Nesse sentido, é um uso já comum das novas tecnologias tornar visível e atuante na rede uma presença pré-existente no “mundo real”, ou, através do meio digital, expandir o alcance de organizações sociais como partidos, sindicatos, movimentos sociais organizados com as mais diversas demandas.
Nesse caso, a aceleração do tempo de recepção da mensagem é o grande ganho. Desta perspectiva, a utilização da internet segue a tradição instrumental da busca de rapidez na propagação de conteúdos através de inovações tecnológicas, algo que na modernidade se constata desde Gutenberg e a possibilidade de impressão de textos, por exemplo. Agora, a rede é mais um meio a ser usado.
Porém, os desdobramentos do uso do digital vêm apontando para outras direções e outras formas de relação política com estes meios. Volta-se aqui aos acontecimentos de 2011 nas ruas de várias partes do mundo. Sim, desde então, é possível falar não numa morte do espaço público em favor da vida doméstica, ou de uma rede particular e individual, mas numa revitalização da conexão entre esfera pública e espaço público. Sem dúvida, isso reflete, em alguma medida, o uso da rede tal como acima descrito: manifestações convocadas por movimentos sociais organizados que enchem praças, ruas, avenidas.
Todavia é possível perceber também que as redes sociais cumprem o papel de convocar e compartilhar não apenas a partir de grupos, mas também – e em boa medida – a partir de indivíduos. A ideia de “comunidades com o mesmo interesse” nos faz lembrar das regiões morais da cidade de que nos falou Park (1967); nelas, se uniam indivíduos para exercitarem seus interesses em comum. Para além de organizações e coletivos, serão então neste caso as relações interpessoais que farão o papel de criar demandas, bandeiras, movimentos e manifestações. Nesta direção, passa-se a valorizar justamente a ausência de lideranças, de partidos ou grupos de suporte e apoio, e o uso dos meios digitais passa a espelhar o que muitos autores já analisaram como sendo a “crise da política institucional”: a desconfiança em relação a modelos tradicionais de se fazer política, como partidos, o sistema representativo, sindicatos e movimentos organizados. Neste caso, o meio não propaga o que já existe; cria uma outra forma, por vezes contrária, em outras complementar, em relação ao pré-existente. De toda forma, nestes dois casos, esta “ágora”, ou “esfera pública”, conformada digitalmente, se conecta ao espaço público, é a ele endereçada e nele se atualiza.
Outra forma de considerar a relação entre a política e o meio digital, porém, não tem a ver com esta conexão, mas sim com a configuração individual da política em nossos tempos. O tuitaço – uso do Twitter por militantes, no mesmo horário e durante determinado tempo, em favor de uma causa – tem como meta colocar determinado assunto entre os mais comentados do Twitter. Para isso, gira em torno de uma palavra ou expressão – as hashtags. Essas palavras de ordem, criadas individual ou coletivamente, vão “tomando a rede” a partir da ação de cada internauta que a ela adere, comenta e compartilha.
A “invasão” de sites, páginas, perfis, blogs de organismos sociais, instituições governamentais e grandes corporações privadas também comunicam uma intenção muitas vezes não de coletivos, mas de indivíduos insatisfeitos. Isto pode se dar através de uma ação “hacker”[2], como a invasão pura e simples de páginas e compartilhamento/modificação de informações ali postadas, ou “derrubando” a página em questão a partir de uma sobrecarga forçada; ou também através do que se chama de “trollar”, ou seja, fazer piada ou ridicularizar alguém através de comentários na sua própria página ou em algum fórum. Dessas formas, desestabiliza-se direta e imediatamente a entidade que se quer atacar politicamente.
Investigando ainda o comportamento político na internet, pode-se citar o agenciamento “contratado” de indivíduos ou equipes por partidos, grupos, empresas e movimentos que se expressa através da constituição de perfis falsos nas redes sociais, que divulgam as ideias, campanhas, candidatos e produtos promovidos por seus financiadores.
Nesses sentidos, a “política na rede” não se destina a ocupar fisicamente o espaço público; descolam-se, nesse nível, a esfera pública e o espaço público, um amálgama, como vimos antes neste texto, bastante consolidado ao longo da história das sociedades complexas. Nesse amálgama, o papel dos meios de comunicação seria justamente este: ser o meio, não o motor ou o cenário da política.
Isso não significa, porém, separação total. Nem, ao contrário dos maus augúrios profetizados pelos apocalípticos digitais, o “fim do espaço público” e/ou da “esfera pública”. Mas é preciso pensar em novas configurações.
Nessa pista, é necessário também examinar algumas novidades nas próprias manifestações de rua. Em primeiro lugar, o caráter espetacular se expande, superenfatizado. São “selfies de manifestação” que inundam as redes sociais a cada novo ato público; são as fantasias, os cartazes feitos individualmente, os vídeos. Os indivíduos que aceitam ir às ruas não (apenas) seguem carros de som, palavras de ordem alheias ou faixas coletivas. Clamam por atenção “personalizada”. Também neste quadro de produção da manifestação “customizada”, fotos de amigos que se encontram nos atos também vão para a rede, e fortalecem as conexões entre as relações interpessoais e as manifestações políticas.
Selfie de manifestação
(Fonte: http://farofafa.cartacapital.com.br/2015/03/16/15-de-marco-de-2015-dia-da-mentira)
A chamada “sociedade da informação” tem sido objeto de importantes investigações no mundo acadêmico e é caracterizada, por diversos autores, como a nova “ágora”, a ágora digital, onde a informação flui e está universalmente disponível. Mais recentemente, tentando pensar a conexão entre esfera e espaço públicos em tempos digitais, Castells (2013) indica a criação de um novo espaço público, um “espaço em rede, situado entre o digital e o urbano”, ou de um “espaço híbrido”, que se caracterizaria por uma comunicação autônoma entre os agentes sociais (p. 21). E sinaliza ainda a importância de situar o debate/disputa/conflito entre redes de poder e de contrapoder, sendo estes últimos responsáveis por agenciamentos e manifestações neste espaço híbrido. Sem dúvida, estas importantes observações precisam ser levadas em conta – tanto quanto seu contexto de produção, ou seja, o auge do movimento anticapitalista Indignados, na Espanha nativa do autor, e o viés entusiasta, estratégico e político que se reflete no próprio título de seu estudo – Redes de indignação e esperança.
Na Av. Rio Branco, Rio de Janeiro, faixa de manifestantes evidenciando a imbricação entre os espaços físico e digital.
(Fonte: www.istoe.com.br)
Num pequeno texto de 2012, refletindo sobre a presença de mulheres nas manifestações de rua por todo o mundo a partir de 2011, Judith Butler acrescenta novos ingredientes ao debate, indicando a necessidade de se pensar os significados do “espaço público” e do político, não como algo já dado, mas antes como algo em construção e mais que isso, em disputa:
En los últimos meses, se han producido, una y otra vez, manifestaciones de masas en la calle, en la plaza, y aunque estas están, muy a menudo, motivadas por diferentes razones políticas, sucede algo que las hace parecerse; los cuerpos se juntan, se mueven y comunican, y reclaman un determinado espacio como espacio público. Ahora, sería más sencillo decir que estas manifestaciones o, de hecho, estos movimientos, se caracterizan por los cuerpos que se reúnen para hacer un reclamo en un espacio público, pero esa formulación supone que el espacio público está dado, que ya es y se reconoce como tal. Pasamos por alto un punto importante de las manifestaciones si no somos capaces de ver que el mismo carácter público del espacio está en disputa, e incluso que ese espacio es peleado cuando estas multitudes se reúnen (Butler, 2012, s/p.).
Um olhar mais distanciado no tempo, e pensando no contexto recente brasileiro das manifestações de 13 e de 15 de março – a favor e contra o governo atual do país – permite supor que tanto as redes de poder quanto as de contrapoder são menos uniformes e unívocas do que se poderia imaginar. Sim, o desenvolvimento dos meios de comunicação instituiu novas formas de ação, onde a interação se dissocia do ambiente físico, permitindo que os indivíduos dirijam suas ações para outros, dispersos no espaço e no tempo. O conjunto de atividades que acontece por intermédio da rede mundial de computadores, a internet aponta para novas formas de atividades econômicas, novos espaços sociais, novas solidariedades, mas também novas desigualdades e novos excluídos.
Retomando a questão inicial, pode-se dizer que o espaço público segue forte cenário de expressão – inclusive política – das cidades. Na mesma direção, portanto, é também possível afirmar que a conexão entre esfera pública e espaço público segue também constante e bastante presente no mundo inteiro. Entretanto, a esfera pública parece ter alcançado maior autonomia em relação ao seu desdobramento num espaço físico, através do uso dos meios digitais para sua manifestação. Outras formas de ação, e a ênfase em agentes individuais parecem caminhar também para o reconhecimento de alterações nesta esfera.
Quanto ao espaço público, este não parece ter sido tão afetado assim por essas transformações; suas mudanças parecem dizer mais respeito às formas de vigilância e segurança que perpassam cada vez mais o cotidiano das ruas – satélites, tecnologias de geolocalização como o GPS, câmeras, monitoramento por vídeo e outros meios, em tempo real – que, conectados ao aparato de segurança estatal, sinalizam o uso do digital como controle dos governos sobre o espaço a partir do uso disseminado de dispositivos de visibilidade (Bruno; Kanashiro; Firmino, 2010).
Muito mais que conclusões peremptórias, isto nos serve de estímulo para pensar em novas investigações. Citaremos apenas cinco questões que nos parecem fulcrais como novas pistas de análise de nossas inquietações iniciais. Primeira: em que medida se pode falar de espaço público e de esfera pública com o mesmo significado de antes. Segunda: quais as formas de pensar e agir politicamente em tempos digitais? Terceira: como pensar sobre a constituição de agentes coletivos a partir deste cenário tão propenso ao agente individual? Quarta: qual o novo papel reservado ao Estado em relação ao uso do espaço público nesta nova configuração “vigilante”? E quinta: que impactos podemos assinalar a partir daí tanto para a ação política coletiva quanto para os espaços onde vivem e transitam os diversos segmentos sociais que compõem as sociedades complexas contemporâneas?
__________________________________________________________________________
* Patrícia Silveira de Farias é antropóloga e professora adjunta da Escola de Serviço Social/UFRJ.
** Margarida Mussa Tavares Gomes é arquiteta, professora do curso de Arquitetura e Urbanismo do IFF/Campos e doutoranda em Urbanismo no PROURB/UFRJ.
Referências
ABRAHÃO, Sérgio L. Espaço público: do urbano ao político. São Paulo: Fapesp/Annablume, 2008.
BAUDRILLARD, Jean. Internet ruma para seu fim. In: Folha de S. Paulo. São Paulo, 19 de fevereiro de 1998. Caderno Especial, p. Especial – 12 2/8398.
BRUNO, Fernanda; KANASHIRO, Marta; FIRMINO, Rodrigo (orgs.). Vigilância e visibilidade. Espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre (RS): Sulina, 2010.
BUTLER, Judith. La aliança de los cuerpos e la politica de la calle. Disponível em: http://www.debatefeminista.com/articulos.php?id_articulo=1408&id_volumen=111. Acesso em mar. 2015.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Vol. I. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e de esperança. Movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013.
ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1987.
GIDDENS, Anthony. As consequências da Modernidade. 2ª ed. São Paulo: Unesp, 1991.
GOFFMAN, Erving. Comportamento em lugares públicos. Petrópolis: Vozes, 2010.
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural na esfera pública. Investigações sobre uma categoria da sociedade burguesa. São Paulo: Unesp, 2014.
HIMANEN, Pekka. The hacker ethic and the spirit of the information age. New York: Random House, 2001.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.
MORAES, Dênis de. O ativismo digital. Disponível em: <http://www.bocc.ubi.pt/pag/moraes-denis-ativismo-digital.html>. 2001.
PARK, Robert. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano. In: Velho, Otávio (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1967, p. 29-72.
SORJ, B. Brasil@povo.com – A luta contra a desigualdade na Sociedade da Informação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
VIRILIO, Paul. A bomba informática. São Paulo: Estação Liberdade. 1999.
[1] Segundo Lévy, se nosso cérebro faz infinitas conexões que se intensificam à medida que envelhecemos, graças ao computador é possível integrar essa “constelação de neurônios” com a de milhões de outras pessoas, permitindo a criação de uma superinteligência coletiva.
[2] Compartilhamos da distinção entre hacker e cracker proposta pelo filósofo Pekka Himanen (2001). De modo sintético, pode-se dizer que o termo hacker diz respeito aos que possuem habilidades técnicas e disposição para a busca do livre conhecimento, enquanto o cracker faz uso de seus conhecimentos de informática para cometer delitos.