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Cabo de guerra – A disputa por sentido na comunicação | de Pablo Nabarrete Bastos

Resumo

A comunicação e a cultura, tendo a linguagem, a palavra, como elemento de interseção e face sensível, exercem papéis estratégicos nas disputas por sentido entre interlocutores – a ênfase recai nos movimentos sociais, os meios de comunicação de massa e o poder público –  e seus discursos, os quais compõem a complexa trama da dialética cultural contemporânea. O processo intelectual de construção de mediações e diálogos entre/nos movimentos, nos processos de lutas simbólicas por atribuição de sentido às palavras e aos fenômenos sociais e culturais, bem como as condições estruturais para tessitura desses discursos e dessas identidades, são questões centrais na composição de forças dos  movimentos e agentes sociais, nas suas relações com os meios de comunicação de massa e o poder público, nos jogos de poder e linguagem que medeiam a construção dos aparatos hegemônicos e contra-hegemônicos.

Palavras-chave: comunicação; cultura; linguagem; hegemonia; movimentos sociais.

 

O jogo

Esse cabo de guerra é diferente. De imediato, não é possível reconhecer os oponentes, tampouco as regras do jogo, visto que tanto as composições de forças entre os jogadores quanto os fatores determinantes para vitória ou derrota são circunstanciais, já que dialética e historicamente constituídos. O material externo da corda, sua parte visível, é composto por linguagem, que se modifica conforme o contexto do jogo e o cenário correspondente. A camada interna, o cerne da corda, sua força motriz, é composta pelas ideologias, que tanto equilibram o jogo em benefício dos dominantes, como podem mudar o rumo da partida em favor das classes populares. Os elementos centrais que permitem aos jogadores se locomoverem, se reconhecerem e mudarem os rumos da partida são a história e a estrutura social, correspondentes à força da gravidade e ao atrito do chão, o que em última instância determina o continuum histórico. O olhar para a história e a consciência do seu papel e espaço ocupados no chão são estratégicos para operar mudanças na partida.

Indiscutivelmente, a comunicação e a cultura, e também as denominadas tecnologias da informação e da comunicação – TICs – possuem papel estratégico na contemporaneidade, sendo utilizadas para finalidades distintas, costumeiramente antagônicas, mediando construções e disputas materiais e simbólicas. Pretendo aqui mostrar o papel e o espaço da linguagem, da comunicação, no processo de construção de um aparato hegemônico e possivelmente contra-hegemônico, compreendendo que a palavra, mesmo com o crescente avanço técnico e tecnológico digitais, ocupa papel central na formulação e na compreensão dos discursos que constituem parte importante das disputas por poder; reconhecer a produção, a reprodução e os usos da comunicação como fatores estratégicos na construção das identidades culturais contemporâneas, sem, contudo, perder de vista o determinismo, em última instância, da estrutura social, da base econômica que fornece os elementos concretos para mobilidade dos atores sociais e consolidação do bloco de poder – classes dominantes, instituições e mecanismos de reprodução social. Estrutura social utilizada pragmaticamente para composição de artifícios dos jogos de linguagem com o intuito de aproximar/afastar, mostrar/esconder, apropriar/expropriar, reproduzir/transformar, conforme a intenção e a finalidade sociais, quer perpetuem, quer combatam o bloco de poder estabelecido.

 

A base e a superestrutura

As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, a sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios da produção material dispõe também dos meios da produção espiritual, de modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios da produção espiritual. As ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação.[2]

O que se pretende aqui não é uma análise exaustiva acerca do debate existente na teoria cultural marxista e nos estudos de comunicação acerca da relação entre estrutura e superestrutura. Historicamente, no marxismo dito ortodoxo, a ênfase recai nos aspectos econômicos. No campo da comunicação, os objetos, métodos e teorias são epistemologicamente desenvolvidos visando principalmente o entendimento dos processos simbólicos, comunicacionais, culturais, ideológicos, havendo, em diferentes períodos históricos e teóricos, maior ou menor ênfase à economia política da comunicação e às estruturas interpretativas. Busco expor os contornos gerais de um debate histórico, para mostrar dialeticamente as múltiplas determinações, materiais e simbólicas, que estruturam a construção hegemônica da realidade.

A autorrevolução e a reprodução social incessantes e permanentes do sistema capitalista são expressas no modo como o capital avança sobre todas as áreas da vida e todos os setores de produção; e na efemeridade de suas fórmulas, seus produtos e processos que substanciam desejos e necessidades, características acentuadas na contemporaneidade, denotando a lógica cultural do capitalismo avançado, chamada por alguns autores de pós-modernidade. Conquanto reconheça a relevância de formulações marxistas ortodoxas, a questão do determinismo econômico não pode ser confundida com reducionismo econômico, pois há múltiplas determinações – culturais, comunicacionais, ideológicas e políticas – que confluem e operam na construção e na interpretação da realidade.

Na história da teoria da comunicação, percebemos a mudança, que aqui exponho de forma bastante sucinta, de enfoque teórico: do marxismo ortodoxo para uma perspectiva gramsciana. Sobretudo durante a década de 1970, o embasamento das pesquisas recaía na chamada “teoria da dependência”, na qual a situação de subordinação na economia política global teria como “reflexo” a dependência no desenvolvimento cultural, o que é sintomático de uma abordagem marxista ortodoxa. Enquanto na virada para os anos 1980, devido a fatores endógenos como o processo de redemocratização do país, o surgimento de novos atores sociais e a reorganização e a maior valorização do papel da sociedade civil, como efeito retardado da descrença no “Estado como lugar e instrumento privilegiados das mudanças sociais”,[3] e mudanças globais, como a intensificação do processo de globalização, com os vertiginosos avanços dos meios de comunicação de massa e das novas TICs, há uma valorização, por vezes exagerada, do papel ativo do receptor na decodificação das mensagens, na constituição de sentidos.

A questão do determinismo econômico é cara ao marxismo e aos seminais estudos de comunicação. Quando Marx afirma que “não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência”,[4] marca uma posição filosófica e política diametralmente oposta à filosofia idealista, mostrando que é nas práticas sociais, no trabalho, na posição ocupada na estrutura social e nas relações sociais advindas dessa posição na estrutura, que a consciência é forjada.

O chamado marxismo vulgar, com seu famigerado apelo economicista, é obra de leitores de Marx que se vinculam à tendência comumente chamada ortodoxa. Gramsci, que desenvolveu suas formulações a partir de sua vinculação marxista-leninista, sem, contudo, compactuar dessa ortodoxia, afirma que:

A pretensão (apresentada como postulado essencial do materialismo histórico) de apresentar e expor qualquer flutuação da política e da ideologia como uma expressão imediata da infraestrutura deve ser combatida, teoricamente, como um infantilismo primitivo, devendo ser combatida praticamente com o testemunho autêntico de Marx, escritor de obras políticas e históricas concretas.[5]

Gramsci possui um papel destacado na história do marxismo e do pensamento ocidental, entre outros aspectos por ter conferido centralidade à comunicação e à cultura no processo de luta política, buscando conciliar, tal qual Lênin, teoria e prática revolucionária. O que se torna evidente na seguinte passagem:

A identificação de teoria e prática é um ato crítico, pelo qual se demonstra que a prática é racional e necessária ou que a teoria é realista e racional. Daí porque o problema da identidade de teoria e prática se coloque especialmente em determinados momentos históricos, os quais se chamam “de transição”, isto é, de mais rápido movimento de transformação, quando realmente as forças práticas desencadeadas demandam a sua justificação a fim de serem mais eficientes e expansivas, ou então se multiplicam os programas teóricos que demandam, também eles, a sua justificação realista, o que ocorre na medida em que demonstram a sua possibilidade de assimilação por movimentos práticos, que só assim se tornam práticos e reais.[6]

É pertinente abordar, ao menos em linhas gerais, alguns delineamentos históricos da construção do pensamento de Antonio Gramsci, visto que nos estudos de comunicação o autor costuma aparecer ora como força oculta, ora como um culturalista, o que é ainda mais preocupante, acadêmica e intelectualmente, pois em seu trabalho não há uma sobrevalorização do aspecto cultural nem tampouco do papel ativo do sujeito ou da sociedade civil nas possíveis transformações históricas, e sim um grande esforço intelectual e político para pensar as relações entre cultura, comunicação, política, Estado, estrutura social e papel da sociedade civil para sedimentar a revolução. Os conceitos de hegemonia, de bloco histórico, de cultura popular, de ideologia, as questões das relações entre estrutura e superestrutura foram desenvolvidos para conciliar teoria e prática com vistas à revolução comunista na Itália do início do século XX.

O conceito de bloco histórico de Gramsci enseja uma reflexão sobre a complexidade das relações entre estrutura e superestrutura, das relações entre os elementos superestruturais, a cultura, a ideologia, a comunicação, e da ardilosa constituição de um aparato hegemônico, estruturado por operações simbólicas que objetivam o equilíbrio/consenso entre dominantes e dominados. Ao refletir sobre a afirmação de Marx acerca da solidez das crenças populares e da força de uma persuasão popular ter a mesma energia de uma força material, Gramsci atesta que:

A análise dessas afirmações, creio, conduz ao fortalecimento da concepção de “bloco histórico”, no qual, justamente, as forças materiais são o conteúdo e as ideologias são a forma – sendo que essa distinção de forma e conteúdo é puramente didática, já que as forças materiais não seriam historicamente concebíveis sem forma e as ideologias seriam fantasias individuais sem as forças materiais.[7]

 

Como o bloco histórico se mantém por meio de uma relação hegemônica, que é estruturada pela cultura, comunicação e ideologia, por sua vez mantidas e perpetuadas por instituições e práticas sociais e culturais, a relação entre classe dominante e classes populares é problematizada. Já que não há uma correspondência direta entre posição na estrutura e as ideias, a forma de lidar com os meios de comunicação, as instituições culturais, sobretudo com o Estado, é determinante na constituição da força política dos agentes sociais no processo histórico. E a forma de compreender essas relações, o sentido do posicionamento político do sujeito coletivo, é estratégica na elaboração de uma identidade cultural e de um aparato ideológico, pois é por esse prisma que se identificam os aliados, os inimigos e as formas de luta.

De acordo com Raymond Williams, um dos principais nomes dos estudos culturais, cujos textos constituíram a base desse projeto intelectual, acadêmico e político, inicialmente em solo britânico, fundamental para o pensamento que credita papel central à cultura nas práticas e processos sociais:

Nós temos que reavaliar “determinação” como o estabelecimento de limites e o exercício de pressões, e não como a fixação de um conteúdo previsto, prefigurado e controlado. Nós temos que reavaliar “superestrutura” em relação a um determinado escopo de práticas culturais relacionadas, e não como um conteúdo refletido, reproduzido ou especialmente dependente. E, principalmente, nós temos que reavaliar “base” não como uma abstração econômica ou tecnológica fixa, mas como as atividades específicas de homens em relações sociais e econômicas reais, que contêm tradições e variações fundamentais, e por isso estão sempre em estado de processo dinâmico.[8]

Hegemonia e linguagem

O termo hegemonia foi criado por Lênin para “se referir à liderança que o proletariado russo deveria estabelecer sobre os camponeses nas lutas pela fundação de um Estado socialista”.[9] O conceito de hegemonia é posteriormente desenvolvido por Gramsci para pensar, dentro do contexto italiano, como as culturas populares, a filosofia do povo ou do “senso comum”[10] das classes populares eram heterogeneamente estruturadas a partir de elementos progressistas e da filosofia das classes dominantes, historicamente sedimentada.

[…] nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista; preconceitos de todas as fases históricas passadas, grosseiramente localistas, e intuições de uma futura filosofia que será própria do gênero humano mundialmente unificado.[11]

 

Gramsci buscava entender de que forma essa visão de mundo estava atrelada ao bloco de poder, e como o povo poderia, cultural e ideologicamente, se tornar a classe dirigente. “Na medida em que são historicamente necessárias, as ideologias têm uma validade que é ‘psicológica’: elas ‘organizam’ as massas humanas, formam o terreno sobre o qual os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam, etc.”[12] Stuart Hall afirma que “ele tinha plena consciência do quanto as linhas divisórias ditadas pelos relacionamentos de classe eram perpassadas pelas diferenças regionais, culturais e nacionais; também pelas diferenças nos compassos do desenvolvimento histórico regional ou nacional”.[13]

E, como na guerra de posições[14] as superestruturas são as “trincheiras”,[15] a função dos intelectuais e a formação de novos intelectuais orgânicos são fundamentais na luta pela hegemonia política, pela conquista do dirigismo político-ideológico, para a formação de novos blocos de poder, para a transformação histórica.

A relação entre os intelectuais e o mundo da produção não é imediata, como é o caso nos grupos sociais fundamentais, mas é “mediatizada”, em diversos graus, por todo o contexto social, pelo conjunto das superestruturas, do qual os intelectuais são precisamente os “funcionários”.[16]

As negociações entre os conteúdos ideológicos se expressam em processos comunicativos, por intermédio dos agentes sociais e sua relação com os distintos processos culturais e sociais de mediação, sobretudo nas relações com os meios de comunicação de massa e o Estado, compondo a complexa trama da dialética cultural contemporânea. Nesse ínterim, o popular, numa acepção sociológica, que associa cultura popular com a cultura feita pelo povo, pelas classes populares, é um campo privilegiado para pensar as disputas simbólicas por poder que estruturam os processos de comunicação – produção, circulação, troca, apropriação, expropriação –, visto que são forças com potencial antagonismo ao poder estabelecido, sobretudo quando organizadas em movimentos.

As culturas de classe tendem a se entrecruzar e a se sobrepor num mesmo campo de luta. O termo “popular” indica esse relacionamento um tanto deslocado entre a cultura e as classes. Mais precisamente, refere-se à aliança de classes e forças que constituem as “classes populares”. A cultura dos oprimidos, das classes excluídas: esta é a área à qual o termo “popular” nos remete. E ao lado oposto a isso – o lado do poder cultural de decidir o que pertence e o que não pertence – não é, por definição, outra classe “inteira”, mas aquela outra aliança de classes, estratos e forças sociais que constituem o que não é o “povo” ou as “classes populares”: a cultura do bloco de poder. O povo versus o bloco de poder: isso, em vez de classe contra classe, é a linha central da contradição que polariza o terreno da cultura. A cultura popular, especialmente, é organizada em torno da contradição: as forças populares versus o bloco de poder. Isso confere ao terreno da luta cultural sua própria especificidade.[17]

 

Assim, não é possível uma associação imediata entre as construções simbólicas desenvolvidas ou apropriadas pelas classes populares com sua relação com os discursos oficiais e seu posicionamento diante deles, do bloco de poder, das forças sociais em jogo e disputa. A consciência de fazer parte de um grupo cultural e social popular, de constituir a força simbólica e política do povo não é imediata, implica o desenvolvimento de um conjunto de mediações frente aos processos perpetuados pelas instituições culturais, políticas e pelos aparatos comunicacionais do bloco de poder estabelecido.

Em suas inflexões de cunho epistemológico, Bakhtin (1895-1975) buscou preencher uma lacuna existente no campo do marxismo acerca das relações entre linguagem, ideologia e estruturas sociais, e sua validade histórica persiste, criticando com peculiar perspicácia tanto acepções de caráter subjetivista e idealista quanto as de cunho mecanicista, estas no âmbito do marxismo. Ao afirmar que “tudo que é ideológico é um signo”,[18] mostra-nos que a reprodução social e a reificação são substanciadas por operações linguísticas, compreendendo aqui ideologia no sentido primário marxista, como engodo, máscara que oculta os processos de expropriação e lutas de classe. A própria consciência é formada pela materialidade dos signos e se expressa também por mecanismos linguísticos, pela palavra, prenhe de sentido e cuja fecundidade está diretamente ligada ao grau de orientação social, ao horizonte social dos interlocutores, que podemos também compreender como consciência de classe. Nisso consiste a maleabilidade da palavra, que pode adquirir formas e sentidos diversos conforme seu conteúdo e sua intenção ideológicos, bem como sua função: estética, científica, política, social etc. De acordo com o autor,

classe social e comunidade semiótica não se confundem. Pelo segundo termo entendemos a comunidade que utiliza um único e mesmo código ideológico de comunicação. Assim, classes sociais diferentes servem-se de uma só e mesma língua. Consequentemente, em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor contraditórios. O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes.[19]

Não obstante, esse caráter multifacetado do signo ideológico, que permite adequações conforme os interesses de classe e a orientação social dos coenunciadores, é obstruído pelas classes dominantes, pelo bloco de poder e seus mecanismos de reprodução social, pois essa dialética interna do signo faculta às classes populares materiais simbólicos para construção de um discurso contra-hegemônico. Dessa forma, as palavras que expressam a ideologia dominante são mostradas com unicidade, legitimando a face que lhe corresponde e ocultando outras possibilidades.

Fragmentações do horizonte social

O econômico fornece o repertório de categorias que serão utilizadas no pensamento. O que o econômico não pode fazer é (a) fornecer os conteúdos particulares dos pensamentos das classes ou grupos sociais em qualquer tempo específico; ou (b) fixar ou garantir para sempre quais ideias serão utilizadas por quais classes. A determinação do econômico sobre o ideológico pode, portanto, acontecer apenas em termos do estabelecimento anterior de limites que definam o terreno das operações, estabelecendo a “matéria-prima” do pensamento.[20]

Embora refutemos abordagens mecanicistas que expressem reducionismo econômico, é inegável, ao menos em última instância, as determinações de ordem econômica, mas essa característica estrutural, ao contrário de estancar possibilidades de compreensão e transformação da realidade, nos impele a desenvolver inflexões tensionadas a abarcar a totalidade dos processos. É certo que os desafios para compreender a complexidade da realidade e suas possibilidades de transformação são cada vez maiores, e as brechas para construção de outro horizonte social, cada vez menores.

Nesse período histórico, apresentam-se fenômenos socioculturais, como fragmentação das identidades, dos conceitos, maleabilidade dos processos, efervescência de imagens, que expressam a lógica cultural do capitalismo avançado. Essa efervescência e essa fragmentação são corolários de mudanças estruturais, do processo destrutivo do capital cada vez mais veloz e avassalador, e são a face aparente, a imagem que perpetua essa mesma estrutura social, o que só interessa ao bloco de poder estabelecido.

David Harvey contribui bastante para esse debate.[21] O autor analisa a pós-modernidade como situação histórico-geográfica. Mostra-nos que na pós-modernidade são intensificadas características fundamentais da modernidade e da própria lógica capitalista de produção, como a efemeridade de produtos, ideias e processos históricos.

A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais. […] Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de ideias secularmente veneradas; as relações que a substituem tornam-se antiquadas antes de terem um esqueleto que a sustente. Tudo o que era sólido e estável evapora-se, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são, finalmente, obrigados a encarar com serenidade suas condições de existência e suas relações recíprocas.[22]

Para David Harvey, o que gera a multiplicidade e a fragmentação de imagens, conceitos e identidades, sintomas característicos da pós-modernidade, é a alteração das forças produtivas e das relações de produção. O que ocorre, de acordo com as análises do autor, com a mudança do modelo de acumulação fordista para o de acumulação flexível. Com o processo de compressão do espaço-tempo, ou “destruição do espaço através do tempo”, provocado pela interconexão global em redes de comunicação, são exacerbadas a fugacidade das construções materiais e simbólicas, o fetichismo da mercadoria, a necessidade do mercado de se apropriar incessantemente de símbolos, imagens e discursos construídos por diferentes grupos étnicos, sociais e culturais para criação de desejos e necessidades de consumo.[23] Multiplicam-se as linguagens e os discursos, os referenciais de identidade e de luta política, as formas de opressão e propostas alternativas de construção de outra realidade. O autor sugere que “a ideia de que todos os grupos têm o direito de falar por si mesmos, com sua própria voz, e de ter essa voz aceita como autêntica e legítima, é essencial para o pluralismo pós-moderno”.[24]

Obviamente que a pós-modernidade trouxe à tona alteridades regionais, de gênero, de raça e de geração, identidades culturais historicamente oprimidas que tiveram possibilidade de inserir e modular suas vozes na agência histórica. Entretanto, há uma reação perversa no processo do capital a essa proliferação de novas identidades e sua sobrevalorização, que é a acentuada ocultação de processos estruturais, haja vista que a marcha do capitalismo global possui mecanismos de poder para obstruir outras – de gênero, de raça, comportamentais etc. – que muitas vezes não criam seus aparatos conceituais e linguísticos com possibilidade de conter ou reverter sua lógica estrutural. Essa fragmentação tem como corolário também um horizonte social deveras fragmentado, bem como orientações sociais distintas. E os meios de comunicação de massa e as novas TICs atuam como grande espelho, provocando, por seus reflexos, deslocamentos, descentramentos, desterritorializações, mediando a visão dos atores sociais acerca da realidade, possibilitando a construção de novas identidades culturais, movimentos sociais, concomitantemente ao distanciamento cada vez maior de uma unidade política, de uma consciência de classe que possibilite transformações históricas profundas.

As disputas hegemônicas e seus jogos de linguagem, tendo a palavra como construtora e mediadora simbólica, ocorrem em diferentes instâncias e dimensões. Dentro dos movimentos sociais, culturais, em virtude das matizações ideológicas distintas, e também nas relações com os meios de comunicação de massa, o Estado, o bloco de poder.

A disputa do/no hip-hop

As relações no movimento hip-hop expressam bem esse jogo de poder.[25] No processo histórico e cotidiano de constituição do movimento, há distintas dimensões de lutas simbólicas para atribuir sentido ao hip-hop: disputas internas, entre as principais vertentes do movimento hip-hop, e externas, na relação com os meios de comunicação de massa, a indústria cultural e o poder público.

Há uma grande diversidade no posicionamento político, nas formas de se trabalharem as matrizes sociais, étnico-raciais, de gênero e geração, de acordo com as referências históricas e culturais de cada cidade e dos integrantes das organizações de hip-hop: as posses. Posse é o nome criado para as organizações em que trabalham os elementos artísticos – MC, DJ, breaking (a dança de rua mais praticada) e graffiti – em torno de uma visão de mundo e um projeto político, que eles entendem e denominam como o quinto elemento. Atualmente há grandes organizações de hip-hop atuando em projetos políticos mais amplos, em nível nacional e internacional, desenvolvendo alianças com outras entidades, principalmente movimentos negros e partidos políticos de esquerda. Há, inclusive, na tendência classista de hip-hop, que possui como um de seus principais representantes políticos a organização nacional Nação Hip-Hop Brasil, um diálogo com o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra.[26]

Em síntese, há uma disputa interna, na qual se apresentam três grandes tendências: uma que trabalha com centralidade na questão de raça, outra com ênfase na luta de classes, e uma terceira tendência que podemos chamar de culturalista, que entende que as transformações sociais são resultado do trabalho de formação cultural e cidadã. O trabalho de formação artística, cultural e política desempenhado por essas organizações, constituindo um processo de comunicação e educação, possibilitando a construção de uma consciência crítica, é desenvolvido numa tensão constante, tal qual um cabo de guerra, para atribuir sentido ao movimento hip-hop.  Há tensões internas e uma disputa incessante com os meios de comunicação de massa e o poder público. A visão do Estado é predominantemente a da educação bancária, sem margem para o diálogo, nos dizeres freirianos, com políticas em grande parte com intentos domesticadores.

Os meios de comunicação de massa desenvolvem recortes que privilegiam o bem de consumo simbólico, rentável para a indústria cultural, expropriando seu caráter ideológico, as palavras com potencial para combater, sinalizar e talvez operar mudanças na estrutura social. No caso do hip-hop, associando-o ao rap, reduzindo o conjunto de expressões de um movimento complexo a mais um produto cultural, criando um discurso metonímico, extremamente prejudicial para o caráter político do movimento.

No dia 27/6/2011, uma segunda-feira, quando circula na Folha de S.Paulo um suplemento com matérias selecionadas do New York Times , saiu, na seção Arte & Estilo, uma matéria intitulada “Conhecido por fundar o reggae dancehall” – o que mostra que a estratégia não é uma particularidade nacional. Escrita por Rob Kenner, é uma clara alusão ao hip-hop como gênero musical. A matéria apresenta a seguinte frase logo no lide: “Durante um concerto de reggae e hip-hop em Miami, o DJ Nuffy começou a apresentar o artista de reggae dancehall Vybz Kartel.”

Já no caderno Ilustrada, que apresenta notícias de arte, cultura e entretenimento, do dia 22/6/2011, há matéria sobre lançamento do álbum Doggumentary, do rapper multimilionário e presença constante na mídia, Snoop Dogg. No sétimo parágrafo está a seguinte frase: “Snoop descobriu seu talento para o rap aos 15 anos, quando participava de disputas de hip-hop no colégio.”

Mais uma vez, claramente, a palavra hip-hop é exposta como gênero musical. Nesses casos, sobrepõe-se o valor de troca sobre o valor de uso da palavra. Palavra que, velada, violada e expropriada, vende um bem de consumo aparentemente asséptico, porque travestido de roupagem mercadológica. Assim, isso significa “afirmar que o exercício da língua só parece importar enquanto valor de troca e não de uso mostra o sentimento redutor que acompanha as operações com muitas das palavras em circulação nos media”.[27]

O combate e o exemplo do MST

Na relação com o MST, essa postura dos media é ainda mais agressiva. Isso se explica pelo posicionamento radical do movimento, que faz estremecer o bloco de poder ao construir e mostrar outra lógica de organização e domínio do espaço e do tempo – que se contrapõe enfaticamente à lógica do capital, representado pelo agronegócio, por amplos setores do Estado e pelas multinacionais da comunicação – demonstrando possuir voz própria, que pode e quer ser protagonista da sua história, agente principal das grandes transformações históricas. Pelos impactos simbólicos de suas ações, tendências de movimentos populares urbanos veem no MST um importante espelho para construírem sua identidade de classe e seus projetos de luta pela soberania popular.

Esse movimento incomoda não somente porque traz de volta ao cenário político a questão agrária, que é problema secular no Brasil. A impressão é de que o seu próprio jeito de ser é o que incomoda mais: suas ações, mas, principalmente os personagens que faz entrar em cena, e os valores que esses personagens encarnam e expressam em suas ações, sua postura e sua identidade, que podem, aos poucos, espalhar-se e constituir outros sujeitos, sustentar outras lutas.[28]

O que já era visível empiricamente e também por intermédio de algumas pesquisas sobre o tema, ao menos para os que militam, pesquisam ou se sensibilizam com as disputas por sentido nas formas de representações de movimentos sociais, que é a intensa criminalização por parte da grande mídia, ficou ainda mais evidente a partir de pesquisa desenvolvida pelo Intervozes, coletivo de comunicação social que luta pela democratização dos meios de comunicação. O Intervozes realizou uma pesquisa sobre a cobertura feita pela mídia impressa e televisiva sobre o MST no período da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, realizada em 2010, para investigar o movimento. O corpus da pesquisa é formado por três jornais de circulação nacional (Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo); três revistas também de circulação nacional (Veja, Época e Carta Capital); e os dois telejornais de maior audiência no Brasil: Jornal Nacional, da Rede Globo, e Jornal da Record. Das 301 matérias pesquisadas, são consideradas apenas matérias que citam explicitamente o MST. O período pesquisado foi de 10/2/2010, data da primeira reunião da CPMI, até 17/7/2010, dia da votação do relatório final da referida Comissão. Alguns dados importantes da pesquisa: em apenas 18,9% das matérias o MST é ouvido, ou seja, raramente o MST é fonte; há uma clara predominância de abordagem pejorativa, foram encontrados termos negativos em 59,1% das matérias; o tema da reforma agrária, principal bandeira de luta do movimento, aparece em apenas 14,6% delas; em apenas 13% das matérias são citados dados estatísticos e em 13,6% são citadas legislações, o que revela, ao menos, jornalismo leviano. No caso dos telejornais, não há qualquer menção à legislação. A pesquisa atesta o caráter panfletário, faccioso e editorializado por parte das matérias construídas pela grande mídia.[29] Obviamente, o MST também possui forte aparato de comunicação que combate ideologicamente o viés da mídia corporativa, entretanto este não tem alcance de massa, o que impossibilita grandes repercussões, inclusive nas novas TICs.

O jogo continua

Pensemos no diálogo freiriano, no humanismo científico e radical, como norte para a mobilização popular, como caminho para encontrar a unidade na diversidade. Conforme o autor, “o diálogo é o encontro amoroso dos homens que, mediatizados pelo mundo, o ‘pronunciam’, isto é, o transformam, e, transformando-o, o humanizam para a humanização de todos”.[30] Mais adiante, Paulo Freire explica o caráter desse humanismo, que define como científico. “Humanismo, que vendo os homens no mundo, no tempo, ‘mergulhados’ na realidade, só é verdadeiro enquanto se dá na ação transformadora das estruturas em que eles se encontram ‘coisificados’, ou quase ‘coisificados’.”[31] Assim como as práticas sociais e a estrutura social constituem o aporte primário para a consciência, a palavra é a base estruturante e o caminho pelo qual o pensamento e a consciência são erigidos, conceitual e simbolicamente. O sentido não está guardado, enclausurado no significado, mas é algo maleável, errático, que se encontra no processo de interação social, nos jogos de linguagem, na busca pela significação, que pressupõe coenunciadores e mediação da história e da palavra – significante e significado – moldados ideologicamente conforme o contexto, a orientação e o horizonte social dos interlocutores. Dispomos, a princípio, de um mesmo campo sígnico, maleável e neutro a princípio, para a construção das pontes da significação, erigidas no diálogo. O jogo de poder, da dialética cultural e da luta pela hegemonia na contemporaneidade tem na linguagem, na palavra e em sua ideologia correspondente, a sua face sensível, moldando e sendo modelada conforme as disputas colocadas pela agenda histórica. O jogo continua.

 

Pablo Nabarrete Bastos é professor, mestre em Comunicação Social na Uninove. Doutorando em Ciências da Comunicação do PPGCOM da ECA-USP, linha de pesquisa de Comunicação, Cultura e Cidadania, sob a orientação do Prof. Dr. Celso Frederico. Apresentou artigos em congressos e encontros de comunicação, cultura, cidadania, culturas populares e política. Autor do artigo “Jogo de espelhos”, publicado no livro Comunicação para a cidadania, caminhos e impasses, editado pela E-Papers, compilação de trabalhos publicados no VII Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom, em 2007 na cidade de Santos. E-mail: pablobastos@hotmail.com; pablonabarrete@usp.br.


Notas

 

 

[1] Trabalho apresentado inicialmente ao GP Comunicação para a Cidadania, do XI Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação da Intercom, evento componente do XXXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Publicado aqui com alterações.

[2] MARX, 2007, p. 47.

[3] SADER, 1995, p. 33.

[4] MARX, 2007.

[5] GRAMSCI, 1966, p. 117.

[6] Ibid., p. 51.

[7] Ibid., p. 63.

[8] WILLIAMS, 2005, p. 214.

[9] HALL, 2003, p. 294.

[10] Gramsci considera que todos somos filósofos e que no senso comum está implícita uma visão de mundo. “Deve-se, portanto, demonstrar, preliminarmente, que todos os homens são “filósofos”, definindo os limites e características dessa “filosofia espontânea”, peculiar a “todo mundo”, isto é, da filosofia que está contida: 1) na própria linguagem, que é um conjunto de noções e de conceitos determinados e não, simplesmente, de palavras gramaticalmente vazias de conteúdo; 2) no senso comum e no bom senso; 3) na religião popular e, consequentemente, em todo o sistema de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e de agir que se manifestam naquilo que se conhece geralmente por “folclore”. (GRAMSCI, 1966, p. 11).

[11] GRAMSCI, 1966, p. 12.

[12] Ibid., p. 62.

[13] HALL, 2003, p. 283.

[14] O conceito de “guerra de posição” faz parte da teoria da hegemonia e responde à exigência de definição das características históricas novas da luta política no mundo depois da Grande Guerra e da Revolução de Outubro. (…) A importância do conceito de “guerra de posição” se afirma, então, como o ponto de chegada e de máxima generalização do raciocínio. Esse modo de desmontar teoricamente o economicismo pode ser considerado o aspecto de maior originalidade da tradição comunista italiana e também a diferença mais evidente em relação às outras correntes do movimento comunista e socialista internacional. (VACCA, 2006).

[15] HALL, 2003.

[16] GRAMSCI, 1968, p. 10.

[17] HALL, op. cit., p. 245.

[18] BAKHTIN, 2010, p. 31.

[19] Ibid., p. 47.

[20] HALL, op. cit., p. 272

[21] HARVEY, 1993.

[22] MARX; ENGELS, 1987, p. 79.

[23] HARVEY, op. cit.

[24] Ibid., p. 52.

[25] Ver mais sobre as tendências e processos de construção de sentido sobre o movimento hip-hop em BASTOS (2008).

[26] No projeto de doutorado que desenvolvo junto à ECA, na linha de pesquisa de Comunicação, Cultura e Cidadania, sob orientação do Prof. Dr. Celso Frederico, pesquiso os impactos da comunicação, da cultura e da ideologia do MST nos movimentos populares urbanos.

[27] CITELLI, 2006, p. 60-61.

[28] CALDART, 2004, p. 27.

[29] O estudo se chama Vozes silenciadas e está disponível em http://www.intervozes.org.br/publicacoes/livros/copy_of_vozes-silenciadas/.

[30] FREIRE, 1977, p. 43.

[31] Ibid., p. 74.

 

Referências bibliográficas

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VACCA, Giuseppe. Guerra de posição e de movimento. Disponível em: <http://www.intervozes.org.br>. Acesso em: 26 dez. 2011. WILLIAMS, Raymond. Base e estrutura na teoria cultural marxista. São Paulo: Revista USP, n. 65, mar.-maio 2005.

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