Tempo de leitura estimado: 27 minutos

Karl Marx e Walter Benjamin | de Marco Antonio Bonetti

Introdução

A valorização do otimismo presente nas dimensões teológica e tecnológica da obra de Walter Benjamin tem desembocado, por vezes, em menosprezo da sua faceta marxista, o que resulta, na perspectiva do presente artigo, num claro desvio de rota em relação às intenções do autor. Apesar de vasta fortuna crítica filiar o autor da Escola de Frankfurt ao marxismo, ou de ele mesmo citar Karl Marx com frequência em seus escritos, tratar uma obra filosófica complexa como a dele tal qual um bloco concreto que pudesse ser dissecado em partes menores independentes e, o que é pior, possibilitar que tudo o que se refere ao marxismo possa ser posto de lado, sem que se coloque em xeque o alto grau de deturpação do pensamento de Benjamin que tal atitude significa, devem ser consideradas atitudes, no mínimo, resultantes de deficiência metodológica grave.

A presença de um estilo de escrita em fragmentos em alguns de seus compêndios, como Rua de mão única e Passagens, pode ter dado margem a esse tipo de deslize metodológico, mas não seria por isso que ele deixaria de ser um equívoco, mesmo se explicado por essa razão, um violento desvio teórico. O que pretendemos destacar no presente artigo é, em primeiro lugar, a filiação clara do pensamento de Benjamin em relação a Marx, utilizando como objeto dessa análise o texto sobre Charles Baudelaire. Depois, apresentamos como Benjamin analisa o estilo de produção teórica por meio de fragmentos, recurso que terá por objetivo explicitar como e por que o próprio autor aderiu a esse gênero de produção. Sua reflexão sobre esse tema encontra-se na tese de doutoramento em que analisa o fragmento e o conceito de crítica de arte do romantismo alemão.

 

A metodologia de análise aplicada a Baudelaire

O ensaio de Walter Benjamin “Paris do Segundo Império” principia com uma citação de Karl Marx: a sua ideia de que a boêmia do século XIX era uma espécie de esfera pública onde se encontravam os conspiradores profissionais. Eles são divididos por Marx em conspiradores casuais – operários com outras ocupações além da política e que só compareciam quando convocados pelos chefes – e em profissionais – os líderes que viviam da militância. A estação fixa desses últimos eram as tavernas dos distribuidores de vinho.

Benjamin destaca que a ascensão de Napoleão III deu-se num meio boêmio desse gênero e que seu governo incorporou toda ordem de práticas comuns ao submundo: as conspirações, o tráfico de segredos e as ironias impenetráveis – marcas também presentes na obra de Baudelaire. A ação e o discurso, nos campos respectivos da revolução política e da literatura, interpenetram-se um pouco pelo sentimento do nacionalismo e muito pelo efeito final das

maravilhas revolucionárias: bombas incendiárias, máquinas destrutivas de efeito mágico, motins que deverão resultar tanto mais miraculosos quanto menos bases racionais tiverem. Ocupados com esse frenesi de projetos, não têm outra meta senão a mais próxima – ou seja, a derrubada do governo existente – e desdenham profundamente o esclarecimento mais teórico dos trabalhadores sobre seus interesses de classe. Daí sua raiva, não proletária, mas plebeia, contra os habits noirs (capas-pretas), as pessoas mais ou menos cultas que representam esse lado do movimento.[1]

Para explicitar melhor o tipo de gente que se reúne ali, Benjamin cita uma frase com a qual o escritor Flaubert resumiria esse espírito de época: “De toda a política só entendo uma coisa: a revolta.”[2]

Para Benjamin, Baudelaire representa uma metafísica do provocador no grau mais elevado e mais irresponsável: “Digo ‘viva a Revolução’ como diria ‘viva a destruição! Viva a expiação! Viva o castigo! Viva a morte!’ Seria feliz não só como vítima; tampouco me desagradaria representar o carrasco, a fim de sentir a revolução pelos dois lados!”[3]

Benjamin percebe, nesse frenesi de pulsão de morte, a energia do fascismo, que se deixa entrever como uma espécie de transe de guerra. Cita mais uma vez Baudelaire: “Podia-se organizar uma bela conspiração com o intuito de exterminar a raça judaica.”[4] O que Baudelaire representa é o delírio da guerra, uma espécie de meia-luz do transe, da droga e do sangue. Conforme Paul Virilio, é nessa loucura que “se produz uma unidade que identifica em seu corpo a corpo aliados e inimigos, vítimas e algozes”.[5] Virilio percebe que

o homem só é capaz de suportar uma determinada quantidade de terror… [a partir daí,] a primeira vítima da guerra é o conceito de realidade […] ainda que, em 1942, mais de dois milhões de judeus já tivessem sido assassinados, a imprensa judaica na Palestina ainda encontrava motivos para estar tranquila em relação aos centros de educação agrícola na Polônia e em outros países, interpretando signos que já não tinham mais sentido; rejeitando as informações exatas por serem por demais aterrorizantes.[6]

Baudelaire representa esse extremo, já colocado além do bom senso, no lugar da pura revolta. Mas Benjamin percebe como a produção de Baudelaire pode ser útil, já que representa justamente o estado de embriaguez cega. Marx denuncia essa cegueira irracionalista que se pauta na própria energia destrutiva do sujeito numa verdadeira guerra pura contra tudo e contra todos. Uma cólera de dimensão quase demoníaca. Baudelaire diz: “Se alguma vez recuperar o vigor e a energia que já possuí, então desabafarei minha cólera através de livros horripilantes […] Quero incitar toda a raça humana contra mim.”[7] Essa fúria alimentou os conspiradores profissionais em Paris, que erguiam barricadas. “Eles – escreve Marx a respeito desses conspiradores  – são os alquimistas da revolução e partilham inteiramente a desordem mental e a estreiteza das ideias fixas dos antigos alquimistas”.[8]

Esquematicamente, percebemos que Marx critica os vapores das tavernas porque eles desviam as energias primitivas do sujeito de uma perspectiva revolucionária para a alienação etílica. Baudelaire é o alienado típico. Embriaga-se e louva o vinho dos trapeiros – lançando-se vorazmente na direção desses catadores de retalhos do século XIX, uma das classes mais miseráveis do período. Enquanto isso, Benjamin percebe o quão bem Baudelaire impregna, na forma artística de sua literatura, aquela mesma energia analisada por Marx, que poderia desembocar numa ação racional revolucionária, mas, na forma do torpor poético, gera somente uma pura e cega vontade de destruição. Com base nessa forma, o salto dado por Benjamin  é descobrir, no mecanismo do vinho, um prelúdio da alienação dos meios de comunicação. O vinho já é uma primeira manifestação muito primitiva de tecnologias de alienação, poupava ao governo muitos conflitos. “O vinho transmite aos deserdados sonhos de desforra e de glórias futuras”.[9] Esse torpor vai se materializar na sociedade de mercado na figura da indústria cultural. É possível antever ali o prenúncio do papel dos meios de comunicação de massa, que assumirão essa função narcótica a partir do século XX. E a própria intelectualidade se familiarizará com o mercado ao assumir esse novo papel de produtor de vinho, ou melhor, de mídia.

 

Alienação e tecnologia vistas da perspectiva econômica

A ponte entre esses três posicionamentos é, portanto, uma relação dialética. Do ponto de vista metodológico, percebe-se ali uma construção polifônica promovida por Benjamin, nos moldes dos trabalhos em fragmentos, que só se constituem numa unidade atualizada na síntese benjaminiana. Essa mesma estrutura pode ser identificada em relação ao conceito marxista de alienação. Marx tece sua análise sobre a alienação a partir de uma perspectiva econômica. Há uma presença desse caráter inebriante no capitalismo, desde seu elemento mais básico:

a mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho; por ocultar, portanto, a relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total […] os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sociais, com propriedades perceptíveis e imperceptíveis aos sentidos […] chamo a isso fetichismo, que está sempre grudado aos produtos do trabalho, quando são gerados como mercadorias.[10]

O fetichismo – termo que guarda relação com os mistérios e o animismo dos povos primitivos, e não com seu sentido no campo da sexualidade – é esse passe de mágica com o qual o capitalismo faz desaparecer dos produtos as marcas de quem os produziu, os trabalhadores.

O capitalismo esconde que

ouro e prata já saem das entranhas da terra como encarnação direta de todo trabalho humano […] Daí a magia do dinheiro. Os homens procedem de maneira atomística no processo de produção social e suas relações de produção assumem uma configuração material que não depende de seu controle nem de sua ação consciente individual.[11]

Essa ausência de consciência do processo de geração de riqueza resulta na alienação que colabora com a manutenção da exploração capitalista.

O processo dinheiro-mercadoria-dinheiro [o investidor compra matéria-prima e mão de obra por 10 e vende a mercadoria a 15] não deve seu conteúdo a nenhuma diferença qualitativa entre seus extremos [Dinheiro – 10 – e Dinheiro – 15], pois ambos são dinheiro, mas há diferença quantitativa entre esses extremos […] Esse acréscimo sobre o valor primitivo chamo de mais-valia.[12]

Marx percebe que o nascedouro desse “lucro” é a exploração da mão de obra. O capitalista coloca 10 em circulação e retira 15 do mercado, ou seja, alguém perdeu 5 e vai ter de pagar por isso. Como? Vendendo sua força de trabalho. O proletariado não tem consciência desse processo. Ele é totalmente alienado. Para Benjamin, Baudelaire representa a energia do trabalho em sua feição destrutiva, individualista e irresponsável, que pode ser caracterizada como a completa alienação, tanto no sentido da perda da razão quanto no do desconhecimento de seu próprio lugar e força históricos.

O passo decisivo de Baudelaire nesse sentido seria sua submissão como força de trabalho à própria indústria do folhetim, por mais raivoso que fosse seu próprio discurso. Benjamin descreve o surgimento e o papel da mídia a partir dos anos 1830, mostrando que ela passa a basear-se em notícias curtas, reclames que geravam os fluxos financeiros e de interesses, e em folhetins, que atraíam públicos imensos. “Dificilmente a história da informação pode ser escrita separando-a da história da corrupção da imprensa”.[13] Anúncios eram colocados ao lado de notícias que falavam bem do produto. Autores recebiam até 600 mil francos por uma única obra de sucesso. Outros, como Alexandre Dumas, só assinavam obras prontas, escritas por tacanhos funcionários públicos malvestidos. Baudelaire também teve de se submeter a esse emprego, embora preservasse um senso crítico dos mais mordazes, que o fazia se comparar diversas vezes a uma prostituta. Não faturou mais do que 15 mil francos ao longo de toda a sua vida com esse trabalho. E percebeu que seu objetivo, ao se aproximar desse mercado dos folhetins, não era olhar, mas se vender. “Dificilmente alguém possuía olhar mais penetrante que Baudelaire para os aspectos problemáticos desse fenômeno brilhante.”[14]

Outro aspecto sobre o qual Benjamin dialogou com Marx dizia respeito à sua visão da técnica. Marx não tinha uma visão negativa da tecnologia, não importando a forma sob a qual ela se apresentasse, desde um pequeno utensílio até uma linha de montagem fabril. “Surge em lugar da máquina isolada um monstro mecânico que enche edifícios inteiros e cuja força demoníaca se disfarça nos movimentos ritmados quase solenes de seus membros gigantescos e irrompe no turbilhão febril de seus inumeráveis órgãos de trabalho.”[15]

É incontestável que a maquinaria em si mesma não é responsável de serem os trabalhadores despojados dos meios de subsistência. A maquinaria, como instrumental que é, encurta o tempo de trabalho, facilita o trabalho, é uma vitória do homem sobre as forças naturais, aumenta a riqueza dos que realmente produzem, mas, com sua aplicação capitalista, gera resultados opostos: prolonga o tempo de trabalho, aumenta sua intensidade, escraviza o homem por meio das forças naturais, pauperiza os verdadeiros produtores”.[16]

 

Da economia para a comunicação

A transposição do pensamento de Marx para Benjamim e Theodor Adorno tem como principal marca o abandono do subterrâneo no qual Marx centrou sua análise, ou seja, o “local reservado da produção, em cuja entrada está escrito ‘No admittance except on business’”,[17] para chegar a esse outro lugar misterioso que é o campo da cultura, entendida num sentido mais amplo, envolvendo a esfera da comunicação social. Os dois autores frankfurtianos partem também da base econômica.

O aumento da produtividade econômica, que, por um lado, produz as condições para um mundo mais justo, confere, por outro lado, ao aparelho técnico e aos grupos sociais que o controlam uma superioridade imensa sobre o resto da população. O indivíduo se vê completamente anulado em face dos poderes econômicos.[18]

A guerra e somente a guerra permite dar um objetivo aos grandes movimentos de massa preservando as relações de produção existentes […] Em seus traços mais cruéis, a guerra imperialista é determinada pela discrepância entre os poderosos meios de produção e sua utilização insuficiente no processo produtivo, ou seja, pelo desemprego e pela falta de mercados.[19]

Adorno e Benjamin, todavia, fazem avançar a posição marxista, lançando, a partir dela, uma ponte em direção à análise do papel dos meios de comunicação de massa. No que diz respeito especificamente ao papel de instrumento de alienação, que os meios de massa representam, os dois autores também se posicionam em sintonia com o marxismo. Retomando o que já foi exposto, a mídia cumpre o papel do vinho do trapeiro. Adorno diz que

a enxurrada de informações precisas e diversões assépticas desperta e idiotiza as pessoas, ao mesmo tempo […], [os programas de comunicação de massa] se tornam, no interior do todo social, a metafísica, a cortina ideológica atrás da qual se concentra a desgraça real […].[20]

Na mesma linha, para Benjamin:[21] “Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações.”[22]

O termo indústria cultural, cunhado por Adorno em 1946, dá conta dessa dimensão da alienação em massa propagada pelos meios de comunicação, daquilo que tem por função manter aceso o caráter de fetiche da mercadoria, esconder o lugar do trabalho no processo de produção da riqueza econômica, despotencializando a força transformadora da cultura, ao mesmo tempo que baixa seu nível a tal ponto que seu produto serve somente para o dispêndio de um tempo morto tão infecundo quanto o bêbado do vinho de barreira, que era vendido mais barato por não ter impostos, artimanha para a qual o governo fechava os olhos. Benjamin cita Marx: “No imposto do vinho, o camponês prova o bouquet do governo.”[23] No deslocamento a pé que famílias inteiras faziam até a fronteira, onde se encharcavam de bebida e, depois, voltavam cambaleando a pé para suas casas desfilando orgulhosos, eram queimadas as energias que, em outras condições, seriam direcionadas para erguer barricadas e questionar o poder dominante.

Para Adorno, a cultura já havia denunciado, desde seus primórdios, a figura do dominador, ilusionista, como no exemplo da personagem de Ulisses, em Odisseia, de Homero. Numa das passagens do livro, para escapar das sereias, o herói tapa os ouvidos dos seus soldados com cera e os obriga a remar, sem ver ou ouvir nada, dias a fio com toda a força. Diz Adorno:

Disso, a civilização sempre cuidou. Alertas e concentrados, os trabalhadores têm de olhar para a frente, esquecer o que foi posto de lado. A outra possibilidade é a escolhida pelo próprio Ulisses, o senhor de terras que faz os outros trabalharem para ele.[24]

A indústria cultural é um dispositivo que impede o ser humano de ver e ouvir com seus próprios olhos e ouvidos. Aliena a sensibilidade. Ilude as grandes massas humanas com a mesma artimanha com que Ulisses ludibriou o ciclope Polifemo. Nessa passagem de Odisseia, Ulisses diz que se chama “Ninguém” a fim de que o gigante ferido no único olho avise a todo seu povo que “Ninguém feriu seu olho”, para poder escapar da vingança dos ciclopes. Da mesma maneira como há quem diga que “Ninguém explora o trabalhador”.

O que Benjamin adiciona de potencialmente positivo nesse contexto é a constatação de que a máquina que reproduz cultura pode ser aliada do trabalhador. É o que destaca Benjamin, de modo muito original, no ensaio  “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Se, no capitalismo, um truque fundamental da mercadoria é que ela esconde o produtor, no caso do cinema, ocorre uma subversão. Não vemos o rosto de um operário quando olhamos uma escova de dentes ou um automóvel. Mas vemos seu rosto estampado quando olhamos para a tela de cinema. Assim:

O intérprete do filme […] conserva sua dignidade humana diante do aparelho. O interesse desse desempenho é imenso, porque é diante de um aparelho que a maioria dos citadinos precisa alienar-se de sua humanidade, nos balcões e nas fábricas, durante o dia de trabalho. À noite, as mesmas massas enchem o cinema para assistirem à vingança que o intérprete executa em nome delas, na medida em que o ator não somente afirma diante do aparelho sua humanidade como coloca esse aparelho a serviço de seu próprio triunfo.[25]

A tela ideológica do cinema russo de Dziga Vertov, Sergei Eisenstein e Vsevolod Pudovkin pode ser mais bem entendida nesse sentido. Retoma-se assim a proposta marxista na qual a maquinaria serve ao agravamento da exploração capitalista por potencializar o trabalho de poucos. Porém a industrialização, tanto da economia quanto da cultura, não é ruim. Ela pode servir ao desenvolvimento do socialismo. Só é preciso reverter seu uso perverso por parte do capital.

 

Fragmento perdido

Acreditamos, a partir desses exemplos, ter reiterado a ideia de que o marxismo está presente na obra de Benjamin de inúmeras formas, seja por meio da apropriação de conceitos – meios de produção, alienação da força de trabalho, fetichização da mercadoria, potencialidades sociais da maquinaria –, seja pela farta citação de passagens e ideias de Marx, apresentadas como base de sua reflexão. Passamos a explorar agora o conceito de fragmento em Benjamim, o que parece ser um dos elementos da sua obra que facilitou uma leitura recortada do autor, excluindo toda a dimensão marxista de seu pensamento.

O lugar em que Benjamin refletiu mais sistematicamente a respeito do fragmento foi sua tese de doutoramento, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. Na apresentação da tradução para o português, o pesquisador Márcio Seligmann-Silva diz que

Benjamin foi o primeiro a valorizar a teoria romântica da “Reflexão”. Esse conceito está no centro dessa sua tese. Benjamin define a crítica como um “médium de reflexão”. Na medida em que ele pôs esse conceito no núcleo de sua tese, com todas as suas implicações de crítica ao modelo de teoria do conhecimento monológico, baseado na simples cadeia de causas e efeitos, e, portanto, de crítica também a uma concepção linear, tanto do desenvolvimento do conhecimento como também do desenrolar da própria história, ele trouxe à tona um debate – a crítica de um determinado modelo de razão e racionalidade – que está particularmente aceso na pós-modernidade .[26]

Percebemos que a escrita em fragmentos, na forma de aforismos, coloca-se em sintonia com o próprio conceito de “reflexão” no sentido explorado por Benjamin no texto sobre o romantismo alemão. O pensamento consegue pensar sobre si mesmo. O sujeito pensa a si mesmo como eu em algum momento. A análise dessa situação serve como garantia de ser possível ao pensamento gerar uma intuição intelectual no sentido proposto por Kant, ou seja, de que um conceito pensado crie um objeto no mundo. O modo dessa geração é que, quando o pensamento reflete, ele assume a forma de algo que lhe é preexistente, mas que não lhe é dado conhecer por meio de uma intuição sensível – simples presença no tempo e no espaço da intuição. Para desenvolver esse conceito, Benjamin se apoia na doutrina da ciência de Fichte, que foi quem percebeu essa abertura no pensamento kantiano, de desdobrar um reflexo da forma do conhecimento num pensamento que, ao ser pensado, adquire nova forma. A reflexão transforma.

Benjamin explica, com base em Fichte, que esse jogo da reflexão parte de uma base, que é a percepção de qualquer coisa dada no espaço e no tempo. “Vejo um livro”. Mas, então, a razão é capaz de elevar essa percepção primeira, fenomenológica, a um segundo grau, mais elevado, no qual compara o título do livro com outras obras que já estudei, e ainda a outro, em que percebe que há uma discordância entre o título e aquilo que o autor falou em textos anteriores etc. O jogo da reflexão vai elevando o pensamento numa escala que, na perspectiva romântica, o ligaria, elevada essa projeção até o infinito, ao absoluto.

É nessa escalada ideal do pensamento reflexivo rumo ao absoluto que surge outro conceito importante de Fichte, o conceito de “pôr”. Numa certa altura da reflexão é possível “pôr” algo e, a partir de então, esse algo que foi posto torna-se representação do pensamento. Ele representa aquela determinada altura do pensamento. Isso que é “posto” é a linguagem, é a representação. O signo põe um termo de estabilidade na escalada infinita da reflexão, dando representação ao estágio em que ela se encontra e que o signo é capaz de representar. A grande diferença, que vai separar o pensamento de Fichte do dos românticos, é que estes optam por um culto quase messiânico do infinito e do absoluto, dando margem à abertura de um misticismo que já vinha de longa data na literatura alemã. E é justamente nesse ponto que Benjamin vai se distanciar do pensamento romântico na sua própria práxis reflexiva. Seus fragmentos abrem mão do messianismo para dar voz ao tino do pensamento racional. Só que a maneira como a razão constrói conhecimento, em Benjamin, é a de uma razão que pensa de modo fragmentário, não linear, a partir de pequenas pílulas de saber que, como Benjamin destaca no texto “O narrador”, conservam, como germens de trigo armazenados por centenas de anos nas tumbas dos faraós, sua potencialidade germinativa. As ideias nunca morrem. A forma mais condensada, e portanto mais intensa, do pensamento é o fragmento.

Benjamin percebe a potencialidade do fragmento como forma de saber e o adota como uma metodologia sem ter de explicitá-la a todo momento. Com base nos românticos, Benjamin teve de deduzir essa metodologia a partir da análise dos textos, por isso será justamente em sua tese sobre o romantismo alemão que essa metodologia adotada pelo autor estará também explicitada. Ali, Benjamin diz que Schlegel não explicitou um sistema filosófico em sua produção teórica. Mas percebe que ele está subjacente ao pensamento do filósofo como um sistema coerente, claramente perceptível, que perpassa a produção fragmentária de Benjamin também. Trata-se do que Fichte chamou de filosofia cíclica. Ela se baseia em provas alternantes confrontadas com conceitos alternantes. Daí a filosofia ter de começar pelo meio. O caminho para conhecer a filosofia seria o círculo. Trata-se de um sistema dinâmico, cuja forma de entendimento é construída a partir da experiência do percurso, do caminho, o que Benjamin chamava de Erlebnis. Daí a impossibilidade de explicitação ou estabilização desse sistema num texto linear. Daí a necessidade da escrita em fragmentos.

Benjamin credita a dificuldade de Schlegel em explicitar seu sistema ao fato de ele ser também um artista, o que dificultou ao filósofo produzir um discurso totalmente sistemático. O meio privilegiado para ocupar o lugar da estabilidade central da reflexão foi, prioritariamente, e não só nesse filósofo, o da arte. Mas esse papel é ocupado em certos momentos pela cultura, pelo gênio, pela ironia, pela religião e até pela história. O trunfo positivo da arte que a faz figurar como objeto privilegiado da reflexão é a fecundidade da análise da arte, da reflexão sobre arte, ou seja, da própria crítica, que é o conceito fundamental que Benjamin quer esclarecer.

A produção da obra fragmentária de Benjamin não deixa de ser um processo crítico também. E crítica aí tem o valor que tinha já desde a perspectiva de Kant, quando escreveu as críticas, ou seja, textos que refletem até a exaustão as limitações e perspectivas do objeto de reflexão, a começar pela reflexão a respeito da própria razão.

Crítica, segundo Benjamin, é um dos termos mais recorrentes nos românticos. Serve até mesmo como elogio quando se queria falar muito bem de determinado trabalho. Em Kant, é a busca da verdade, mas tem um caráter quase mágico. Não é uma análise normativa, mas sim produtiva. É a elevação da reflexão às maiores alturas possíveis, um exercício extremo de reflexão. É o que ele, Benjamin, tenta fazer.

 

Conclusão

Feita essa apresentação dos pontos principais da análise de Benjamin a respeito do conceito de reflexão e crítica do romantismo, percebemos que foi com base também nesse mesmo pano de fundo filosófico que Benjamin passou a expor seu pensamento quando adotou, em seu trabalho, um estilo de escrita em fragmentos. O problema metodológico que nos dispusemos a debater neste artigo pode ser colocado agora em novas bases. Se o marxismo é tão nitidamente uma fonte básica do processo reflexivo de Walter Benjamin para alcançar as alturas a que seu pensamento conseguiu se elevar na reflexão a respeito da comunicação, das artes, das tecnologias, da religião e da história, a produção de signos postos como candidatos à representação de seu pensamento, mas que reneguem de algum modo a dimensão marxista, assim como qualquer outra de suas dimensões constituintes (influência do judaísmo, das relações pessoais, da peculiar leitura dos meios técnicos), constitui violenta deturpação ideológica do seu próprio processo de pensar.

Usando da figura benjaminiana do poder germinativo das sementes, o objetivo deste trabalho foi apontar para o risco de o estilo de Benjamin, de uma escrita em fragmentos, dar margem a interpretações que levam a desvios em relação à rota original do autor. E a posição que buscamos justificar foi a de que leituras antimarxistas de Benjamin constituem um desvio metodológico absurdo, que entra em conflito direto com o pensamento do próprio autor.

Na figura do flâneur a intelectualidade familiariza-se com o mercado. Para lá encaminha-se o flâneur, pensando dar apenas uma volta; mas, na verdade, é para encontrar um comprador. Nessa etapa intermediária, quando a intelectualidade tem ainda mecenas, mas já começa a se curvar às exigências do mercado (na forma do folhetim), ele constitui a bohéme. À indeterminação de sua posição econômica corresponde a ambiguidade de sua função política. Esta se manifesta com muita evidência nas figuras dos conspiradores profissionais que se recrutam na bohéme.[27]

O que garante o distanciamento crítico de Benjamin em relação a esse lugar do intelectual familiarizado com o mercado capitalista, evidentemente, é a permanente presença do aparato crítico marxista como tábua teórica de problematização dessa  questão. Sua supressão tira o pensamento de Benjamin do próprio eixo em que gravita e suprime até mesmo sua mais poderosa força analítica.

 

* Doutor em Semiótica e professor de Teoria da Imagem na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e de Teoria da Comunicação na Escola Superior de Propaganda e Marketing do Rio de Janeiro (ESPM).

 


[1] MARX apud BENJAMIN, 1994c, p. 11.

[2] FLAUBERT apud BENJAMIN, 1994c, p. 11.

[3] BAUDELAIRE apud BENJAMIN, 1994c, p. 11.

[4] Ibid., p. 12.

[5] VIRILIO, 1993, p. 12.

[6] Ibid., p. 61.

[7] BAUDELAIRE apud BENJAMIN, 1994c, p. 12.

[8] MARX apud BENJAMIN, 1994c, p. 15.

[9] BENJAMIN, 1994c, p. 16.

[10] MARX, 1968, p. 81.

[11] Ibid., p. 103.

[12] Ibid., p. 103.

[13] BENJAMIN, 1994c, p. 29.

[14] Ibid., p. 29.

[15] MARX, 1968, p. 435.

[16] Ibid., p. 506.

[17] Ibid., p. 196.

[18] ADORNO, 1985, p. 14.

[19] BENJAMIN, 1994c, p. 196.

[20] ADORNO, op. cit., p. 15.

[21] BENJAMIN, 1994a, p. 203.

[22] Passagem do texto “O narrador”. A abordagem de Benjamin é um pouco mais complexa por entrar até mesmo na especificidade do gênero textual. Benjamin contrapõe a narração, gênero textual que instiga o leitor a tecer sua análise a respeito da situação, à informação, gênero jornalístico por natureza que entorpece a mente do leitor ao se colocar como explicação extensiva do fato em todas as suas dimensões e em todos os seus porquês, sem que sobre para o leitor nenhum outro trabalho além de simplesmente ler e se ver informado. Nessa ramificação sutil surge um hiato no qual a própria informação pode ser alienante. Ou seja, na contraposição de um gênero que cobra a iniciativa do sujeito leitor, e outro, característico da indústria cultural que o entorpece tanto quanto uma bebida alcoólica, a própria informação se torna alienação, por mais paradoxal que essa afirmativa soe à primeira vista.

[23] BENJAMIN, 1994c, p. 15.

[24] ADORNO, 1985, p. 45.

[25] BENJAMIN, 1994a, p. 179.

[26] SELIGMANN-SILVA, In: BENJAMIN, 1973, p. 11.

[27] BENJAMIN: 1994c, p. 61.

 

Referências bibliográficas

ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

 

BENJAMIN, Walter. O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão. 2. ed. São Paulo: Iluminuras, 1999.

______. Magia e técnica, arte e política. 7. ed.  São Paulo: Brasiliense, 1994a. (Obras escolhidas, v. 1).

______. Rua de mão única. 4. ed.  São Paulo: Brasiliense, 1994b. (Obras escolhidas v. 2).

______. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994c. (Obras escolhidas, v. 3).

______. Einbahnstrasse. Frankfurt: Suhrkamp, 1992.

______. Moskauer Tagebuch. Frankfurt: Suhrkamp, 1980.

 

FICHTE, Johann Gottlieb. Sobre o conceito da doutrina da ciência. Fichte: São Paulo: Abril, 1982. (Coleção Os Pensadores).

 

GAGNEBIN, Jean-Marie. Benjamin. São Paulo: Brasiliense, 1982. (Coleção Encanto Radical).

______. História e narração em W. Benjamin. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1999.

 

MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

 

MATOS, Olgária. A escola de Frankfurt. São Paulo: Moderna, 1993.

 

MISSAC, Pierre. Passagem de Walter Benjamin. São Paulo: Iluminuras, 1998.

 

SELLIGMANN-SILVA, Márcio (org.). Leituras de Walter Benjamin. São Paulo: Fapesp; Annablume, 1999.

 

VIRILIO, Paul. Guerra e cinema. São Paulo: Página Aberta, 1993.