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O Texto fora do Papel – A Literatura na Mostra SESC de Artes 08 | de Antonio C. Martinelli Jr.


18h30: Instalação do escritor Samir Mesquita na unidade SESC Ipiranga

“Escritas presentes em toda parte, pintadas, gravadas, incisas (…)
ora publicitárias, ora políticas, ora funerárias, ora comemorativas,
ora públicas, ora mais que privadas, de anotações
ou de insultos ou de jocosa lembrança. (…)
Por alguns lugares específicos, praças, foros, edifícios públicos, (…)
num pedaço de parede livre, a altura do homem”
(Armando Petrucci)

O que norteia a produção literária contemporânea? Ainda é interessante preservarmos a literatura ao confinamento de uma única linguagem artística? Quando os gêneros artísticos se tornam híbridos? O objeto livro está ameaçado? O que podemos chamar por literatura contemporânea brasileira hoje? Como se comporta essa literatura? De que forma essa produção toma partido de outras mídias, suportes e tecnologias para se concretizar ao leitor?
Em seu mais recente livro Contemporâneos: Expressões da Literatura no Século XXI, a crítica literária Beatriz Resende aponta que uma das características mais observadas atualmente no fazer literário é a de que este tem se dado “fora do papel”. Para além do modelo clássico livro, os textos ficcionais se apóiam cada vez mais na virtualidade poética, em folhetins eletrônicos (blogs, sites, redes sociais), em intervenções visuais nos espaços públicos, por meio de instalações, cartazes, entre outros.

Segundo Resende:
Dentre as peculiaridades da literatura contemporânea brasileira, venho apontando o fenômeno que podemos chamar, partindo de outras percepções estéticas e produções artísticas, de ruptura com o suporte. Nas artes plásticas, a ruptura já se deu há muito com o suporte tela, papel e outros materiais, para dar lugar as experiências que lidam com o efêmero. Nas artes cênicas também não é novidade, primeiro a ruptura com o palco, em seguida com o próprio edifício teatro, depois com a noção de texto dramatúrgico e, finalmente, com a idéia fundamental de conflito como base da ação. Na literatura, a ruptura teria que ser com aquele que parecia ser sua condição de existir, de tomar forma: o suporte papel”.

Entre 8 e 19 de outubro de 2008, o SESC São Paulo realizou a Mostra SESC de Artes 08, que contemplou todas as linguagens artísticas, entre elas, a literatura. Com uma programação voltada tanto à prosa quanto à poesia (13 projetos ao todo) -, a curadoria da programação literária se lançou a ações que pretendiam atingir diretamente o público em locais e situações não usuais e “assaltar” o cotidiano das pessoas com textos inéditos de importantes escritores e poetas brasileiros. Dessa maneira, a pesquisa da literatura baseou-se no abandono do suporte convencional livro e investiu na busca de outros meios de comunicação que gerassem essas outras formas de leitura (breves ou não).

Foram 80 os convidados à produção de um breve conto, poesia, bilhete, texto curto, mensagem, ou qualquer outra forma literária que tomasse lugar fora do suporte livro, ocupando lugares e meios não usuais, como elevadores, escadas de prédios, celulares, guardanapos, chão, táxi, parede, concreto.

Tudo começa com um torpedo

“ Palavra ou mágica?
Só uma opção. Escolheu. Errado: não era “palavra”.
Mas escritor sempre opta pela palavra”.
(Moacyr Scliar,
SMS enviado dia 15/10, às 20h30)

SESC Pompeia, 8 de outubro – vários celulares apitam nos bolsos e nas bolsas do público convidado e participante da programação da noite de abertura da Mostra SESC de Artes 08. Era o primeiro dos SMS, enviado às 20h30, para os celulares cadastrados das pessoas que ali estavam. A mensagem – um texto duro, grotesco e truncado – do escritor e dramaturgo Alberto Guzik, com título o “Torpor” dava início a um dos projetos literários do evento: o Literatura Celular.

Nos dez dias seguintes, dois mil celulares tocaram em três diferentes horários – 11h30, 16h e 20h30 – com trinta diferentes microcontos de Alessandro Buzo, Ana Rüsche, André de Leones, Evandro Affonso Ferreira, Fernanda Siqueira, Ferréz, Flávio Viegas Amoreira, Ivana Arruda Leite, João Silvério Trevisan, Lirinha, Luciana Penna, Livia Garcia-Roza, Lourenço Mutarelli, Marcelo Ariel, Marcelo Rubens Paiva, Maria José Silveira, Mário Bortolotto, Maurício de Almeida, Menalton Braff, Moacyr Scliar, Modesto Carone, Paulo Lins, Pedro Biondi, Raimundo Carrero, Reinaldo Martins, Ronaldo Cagiano, Sacolinha, Sérgio Roveri e Verônica Stigger.

Idealizado pela equipe da Mostra, e com curadoria de Marcelino Freire -, os torpedos tinham apenas 120 caracteres: um desafio para os autores. O cadastramento dos celulares foi realizado no site do evento, limitado a dois mil números inscritos e válidos apenas a uma determinada operadora no Estado de São Paulo. Porém essa ação programática, como previsto, tornou-se viral, uma vez que os participantes, muitas vezes, repassaram as mensagens para outros amigos ou conhecidos, e esses para outros e outros.

Hoje já difundida e praticada no Brasil, essa forma de escrita teve início em 2000, em Tóquio, Japão 1 , e foi realizada pela primeira vez no país nesta programação do SESC São Paulo. Ela sintetiza muito do norte curatorial da Mostra, uma vez que esta pretendia fazer um mapeamento da produção literária hoje, fosse por meio de ações e práticas já adotadas pelos escritores contemporâneos, fosse pela proposta e convite para que outros viessem experimentar novas formas e suportes para seus textos.

(Logotipo da Literatura Celular, criado para a Mostra SESC de Artes 08, primeira ação programática dessa natureza no Brasil)

Qu’est-ce que c’est?

“Escrever sobre o escrever
é o futuro do escrever”
(Haroldo de Campos, in Galáxias)

Ao escolher apresentar a literatura no meio virtual, com o uso de aparelhos de comunicação de ponta, a Mostra SESC de Artes 08 preocupou-se em abordar a já clássica e polêmica especulação que alguns teóricos da cultura fizeram, ou fazem, sobre o fim do livro. É evidente que, ao criar uma programação que foge, escapa, liberta a literatura da estante, da biblioteca, da poeira e das traças, essa polêmica sobre o fim do livro reacende.

Em sua obra A questão dos livros – Passado, presente e futuro, o historiador norte-americano e criador do projeto Gutenberg-e Robert Darnton, relembra que“o futuro de Marshall McLuhan não aconteceu. A web, sim; a imersão global na televisão, certamente; mídias e mensagens onipresentes, sem dúvida. Mas a era eletrônica não levou à extinção da palavra escrita, como foi profetizado por McLuhan em 1962”.

Recentemente, os críticos Umberto Eco e Jean-Claude Carrière deixaram por encerrada essa tolice na definitiva obra Não Contem com o Fim do Livro 2 . Tivemos e temos o partido de que, o meio virtual, as novas tecnologias e a utilização de diferentes suportes não vieram, ou virão, condenar ou deixar obsoleta a era gutenbergiana. Porém, essa questão nunca foi pauta para essa curadoria.

Ao selecionar ações que expunham o texto literário para fora do objeto cânone da arte literária expunha-se o questionamento recorrente: – Isso é Literatura, com L maiúsculo? Porém, essa Mostra também não preocupou-se em saber se esses fenômenos literários podem ou não ser classificados como Literatura. Assim, escolhemos nomeá-las de “Práticas Narrativas”, valendo-se desse termo sugerido e empregado pela crítica Heloísa Buarque de Hollanda.

Se por um lado os conservadores criticam a literatura de celular e questionam a qualidade das obras, de outro, o escritor e agitador cultural Marcelino Freire rebate, sem hesitar: “Eu sempre falo que um idiota será sempre um idiota na frente do computador ou não. E é a mesma coisa com a literatura. Eu não vou ser da geração naftalina de jeito nenhum! Todo mundo está usando a internet, o celular e, como um profissional da palavra, por que não devo ficar curioso com essas novas mídias?”. É desse lado que estávamos!

Literatura ao alcance de todos


“São Paulo ocupada. São Paulo dominada.
Por um tempo, a cidade viu-se centro de articulações radicais entre
a experiência da palavra, a vida cotidiana e
a densidade da textura urbana contemporânea.
Arte, cidade e vida. Arte ao alcance da mão, da paixão de ler.
O ofício do escritor afinal apostando no que provavelmente
será a maior conquista deste século:
o acesso ao livro, à cultura e à criação compartilhada”.
(Heloísa Buarque de Hollanda. In: Cidade é Texto.
Catálogo da Mostra SESC de Artes 2008 )

De um lado, o desejo do escritor em praticar novos formatos para seu texto, novos suportes para a palavra, novos lugares para outras sentenças; do outro, nossa aposta de que a literatura (as práticas literárias) deve e necessita se reafirmar, se mostrar, se evidenciar. Partindo de constatações e de problemáticas (algumas já “lugares comuns”) do comportamento dessa arte e de seu público, a Mostra SESC de Artes 08 buscou se apoderar dos espaços e aproximar-se mais da vida cotidiana das pessoas. Assim como Marcelino Freire, o criador da Balada Literária, acreditamos que “a literatura é a prima pobre das artes, tão pouco divulgada. Então, quanto mais estiver espalhada no juízo e na memória das pessoas, melhor. Melhor para ela, para os leitores e para os autores”.

As questões que realmente nos tomaram foram essas: Que sutilezas podemos criar para que as palavras possam efetivamente tocar as pessoas de diferentes maneiras? Como pensar essa literatura (essas práticas literárias) em outros meios que não o livro? Qual é a natureza da escrita em nosso tempo? Como pode a literatura desafiar o leitor? Encontrar poesia e prosa em lugares inusitados talvez faça com que prováveis leitores se surpreendam? A palavra ainda causa emoção?

Acreditamos no fato de que apresentando a literatura para diferentes lugares, promovendo encontros, o público/leitor seria convidado a refletir, dialogar e ter momentos de pausas literalmente poéticas no seu dia-a-dia. Acreditamos que essa programação se propunha a criar um fato para o ato da leitura. E essa aposta deu certo, pois perturbamos as categorias mais ordinárias e obsoletas da arte narrativa e poética e proporcionamos o deslocamento e a transfiguração do texto. Isso causou estranhamento e/ou identificação; isso fez com que o texto se mostrasse próximo, presente, vivo.
Não se trata de novidade, e sim de mapeamento

“Apreender e entender o tempo presente são aspirações máximas partilhadas pela literatura séria, entre outras artes, e pelo leitor crítico”.
(Ana Paula Pacheco, in Grafias Urbanas)

Alguém de vocês já pegou uma nota R$ 50, R$ 20, R$ 10, R$ 5, ou R$ 2, com o seguinte poema carimbado: “agora que esta nota contém/ uma poesia,/ fica valendo dois terços/ do que valiam ontem”. Alguém de vocês, ao cruzar o semáforo, foi surpreendido com uma etiqueta colada no poste: “Olhe/ para os dois lados/ antes de atravessar/ um diálogo”. Alguém de vocês, provavelmente, já esbarrou com poemas e aforismos de Rix Silveira, espalhados e fixados em lixeiras, ônibus. Alguém de vocês já foi surpreendido por um livrinho em formato de caixinha de fósforo, plagiando o rótulo de uma marca conhecida, intitulado Dois Palitos, com micro textos do jovem prosador Samir Mesquita 3 . Algum de vocês já participou, ou ouviu falar, de uma balada literária, organizada pelo poeta marginal Chacal, no Rio de Janeiro, e conhecida por CEP 20.000. Algum de vocês possivelmente já esteve em um dos eventos performáticos do escritor Paulo Scott. Algum de vocês talvez tenha recebido um poema gif por e-mail, possivelmente assinado por Marcelo Shae 4 . Essas são práticas literárias recorrentes no cenário nacional.

O poema clip, a performatividade da leitura de um conto, de um sarau, o poema holográfico, a vídeo-poesia tridimensional, o conto curto animado e jogado na rede, nada disso é novo, sabemos disso. Mas, mesmo não sendo novo, ainda é uma prática literária inventiva, diferente da literatura residente nos livros.

Sabemos que uma das características da literatura contemporânea é a de se experimentar em diferentes possibilidades combinatórias com outras linguagens. Escrita e som. Escrita e performance. Escrita e imagem. Escrita e movimento. Escrita e arquitetura. Em Esses poetas, Heloísa ressalta que “a poesia articula-se, em várias realizações e performances, com as artes plásticas, com a fotografia, com a música, com o trabalho corporal”.

Por meio de seus 13 projetos, a Literatura na Mostra SESC de Artes lançou-se na investigação estética sobre a diluição das linguagens artísticas. O limiar entre palavra e imagem, entre o texto e a plástica, entre literatura e artes visuais pautou os seguintes projetos da Mostra: Poesia Visual, uma individual de Marcelo Sahea, e Poesia Concreto, com poemas de Arnaldo Antunes, Antonio Cícero, entre outros. Ainda dialogando com elementos visuais, foram apresentadas as inéditas instalações 18h30, de Samir Mesquita e a Poça de Poemas, com haikais de Alice Ruiz. No que concerne às ações mais performáticas, projetos como o Literatura em Trânsito (Ou Histórias para Ouvir na Hora do Rush) e Concerto Literário para Voz e Base Eletrônica foram exemplos de ações em que a frágil linha entre o que é literatura, o que é cênico ou musical caem por terra.

Comece pelo primeiro degrau…

Os projetos Histórias de Elevador e Prosa na Escada convidaram diversos escritores para um site specific literário, uma vez que convidava escritores e ilustradores para a criação de textos e imagens que figurassem nas paredes dos elevadores de algumas unidades do SESC SP. Breves contos de Beatriz Bracher, Bernardo Carvalho, Chico Mattoso, Cíntia Moscovich, Clara Averbuck, Índigo, João Paulo Cuenca, Michel Laub, Santiago Nazarian dialogaram em uma dobradinha com as imagens criadas pelos ilustradores André Neves, Eva Uviedo, Eduardo Kerges, Laura Teixeira, Milena Galli, Sylvia Jorge e Alexandre Matos. O escritor Bernardo Carvalho apresentou sua criativa e contundente narrativa “Leia de baixo para cima”, num movimento solo, abrindo mão de um ilustrador. Enquanto o escritor e desenhista Lourenço Mutarelli assumiu a mão dupla, do texto e das ilustrações que compuseram o seu elevador infernal.

Com tema livre, essas diferentes intervenções/ocupações provocaram uma experiência diferente ao público visitante ou habitué do SESC SP. Ao subir de um andar para o outro, de escada ou elevador, os frequentadores e passantes se depararam com textos que despertaram curiosidade, espanto ou surpresa. Se mudassem de elevador, eles seriam novamente surpreendidos por outras prosas. Se optassem pela escada, seriam ainda convidados a participarem de narrativas com estrutura labiríntica e circular, assinadas pelos escritores Joca Reiners Terron e Santiago Nazarian, com arte de Valéria Marchezoni e Andres Sandoval.

Trecho da narrativa de Joca Reiners Terron, criado para o projeto Prosa de Escada. Arte: Valéria Marchesoni

Poesia ao alcance das mãos
“(…) Guarda na poesia mora na filosofia, por que rimar futuro e muro
e, isso é duro, por cortesia – falar, só de boca vazia”.
(Poema de Paula Glenadel, para o projeto Boca Suja)

 

 

Os projetos Boca Suja e Poema para Viagem nasceram do desejo de desmistificar a palavra, provocando o público a refletir sobre a potência de um texto mesmo que num pequeno pedaço de papel. No primeiro, um simples guardanapo proporcionava uma série de oito breves poemas inéditos, delicadamente escritos à mão e impressos em diferentes cores. De forma direta, um pedacinho da nossa poesia contemporânea foi apresentada ao público de restaurantes, lanchonetes e comedorias do SESC São Paulo. Na série, poemas do “marginal” Chacal, dos gaúchos Fabrício Carpinejar, Angélica Freitas e Verônica Stigger, além dos jovens poetas Fabiano Calixto, Fabrício Corsaletti, Paula Glenadel e Tarso de Melo. Durante a Mostra, virou mania colecioná-los!

Já em Poema para viagem, o poeta e artista plástico Ricardo Silveira reeditou seu projeto homônimo. Trata-se de uma referência direta aos cartazes de divulgação usualmente fixados em painéis de avisos nos campi universitários, nas ruas, nos postes, e que divulgam, por exemplo, anúncios de compra e venda, de prestação de serviços – o famoso “Aluga-se”- e que o passante destaca um pedacinho com o contato e leva-o para casa.

Nesse caso, as folhas de sulfite A3 traziam, no maior campo da folha, o seguinte poema/ anúncio (de autoria do próprio Rix): “Poemas destacáveis. Poemas de gente nova e muito talentosa. Um tipo de antologia das ruas, feita arbitrariamente, sem o consentimento dos autores. Poemas de Ademir Assunção, Alice Sant´Anna, Ana Guadalupe, Carlito Azevedo, Fabrício Corsaletti e Ricardo Silveira. E o maior (em dimensão, óbvio), meu”.

Outros projetos evidenciaram a produção da poesia contemporânea, como foi o caso do Poça de Poemas, uma instalação de arte-eletrônica, que apresentava haikais de Alice Ruiz numa falsa poça d’ água que, ao ser pisada ou tocada pelo público, mudava, apresentando um novo texto poético. Com o Poema Passageiro, a Mostra SESC de Artes 08 apresentou uma programação de poemas em vídeo, exibidos nas TVs dos ônibus da cidade de São Paulo 5.

Pessoas que circularam pela cidade no período da Mostra, em especial no itinerário que passava pelas conhecidas Rua Augusta e Avenida Europa, puderam contemplar e ler poemas de Chacal, Rodrigo Garcia Lopes, Ricardo Domeneck, Marcelo Montenegro, Ricardo Silveira, Angelica Freitas, Bruna Beber, Marcelo Sahea, Ana Rusche e Leo Gonçalvez.

Detalhe de um dos guardanapos da Mostra, assinado pelo poeta carioca Chacal, no projeto Boca Suja

Outras Histórias para Ouvir ou Ler na Hora do Rush

Um táxi estacionado e seu motorista convida os passageiros para uma corrida literária. Só podem entrar quatro pessoas por vez. Dispostos – um na frente, três passageiros no banco de trás – todos estiveram a bordo de uma leitura dramática de textos da literatura nacional a preço de Bandeira 0 (Zero!). De tanto a tanto, quem foi ao SESC Consolação enfrentou fila para ver o projeto Literatura em Trânsito (ou Histórias para Ouvir na Hora do Rush).

Na primeira noite, 14 de Outubro, o ator Eric Nowinski fez a performance/leitura de trechos do livro Eles Eram Muitos Cavalos, de 2001, do escritor e jornalista Luiz Ruffato. No dia seguinte, o público pôde acompanhar José Eduardo Rennó, a bordo de um táxi, interpretando o conto Só uma Corrida, ficção inédita de João Anzanello Carrascoza, criado especialmente para a Mostra. Por fim, na noite seguinte, sempre começando às 18h, Luís Mármora narrou e vivenciou a personagem do conto Rush, do escritor e músico mineiro André Sant’Anna. O mais interessante era que, embora o táxi não saísse do lugar, a impressão de circulação pela cidade se dava de forma vertiginosa, ou fuik. O que garantia isso era um aparato de projetores instalados no vidro dianteiro do carro e em tripés que exibiam vídeos com diferentes trajetos. Assim, tínhamos a impressão de deslocamento pela pólis, com direito a curvas e brecadas (ressaltadas pela movimentação corporal dos atores/motoristas).

Mas esse não foi o único projeto que se propunha a uma reflexão sobre o frenesi do nosso dia a dia na metrópole. A Mostra apresentou ainda o 18h30, uma instalação de Samir Mesquita, com cinquenta microcontos colados em carrinhos e alinhados como num congestionamento que convidava o leitor a conhecer um pouco do universo particular de cada pessoa presa no trânsito, nestes muitos mundinhos confusos e caóticos da metrópole.

Mais Poesia Visual

e se um poema opaco feito um muro
te fizer sonhar noites em claro?
e se justo o poema mais obscuro
te resplandecer mais que o mais claro?”
(poema de Antonio Cícero,
projeto Poesia Concreto)

A investigação da poesia verbivocovisual contemporânea não parou por aí. Na Mostra SESC de Artes 08, a obra de Marcelo Sahea ocupou algumas paredes, corredores e vidros das unidades do SESC SP, apresentando poemas visuais que investigavam os limites da diluição entre texto e imagem.

Segundo a jornalista da revista Bravo!, Laila Abou Mahmoud: “Outros objetos do cotidiano também viraram suporte para a Literatura e a Poesia na Mostra. Os bebedouros do SESC Pompeia, por exemplo, foram marcados com poemas do paulista Ricardo Silveira. Já as paredes das unidades Interlagos, Itaquera e Vila Mariana receberam poesias contemporâneas de autores como Arnaldo Antunes, Age de Carvalho, Ana Rüsche, Antonio Cícero e Ricardo Aleixo. Os versos brincam com o trocadilho entre o conceito de poesia concreta e o concreto das paredes nas quais estão expostos. Já nas unidades Ipiranga e São Caetano, o brasiliense Marcelo Sahea expõe seus versos sobre o cotidiano”.

Instalação do poeta visual e artista plástico Marcelo Sahea, nas unidades do SESC Ipiranga e São Caetano

Literatura Performática

 

“Na ressonância ouvimos o poema,
na repercussão, nós o falamos, pois é nosso”
(Gaston Bachelard)

Para quem quis ver os próprios autores declamando, uma oportunidade foi a apresentação do Concerto Literário para Voz & Base Eletrônica. Neste sarau, happening, show, ou que mais se tenda a chamar, o escritor Paulo Scott foi um MC, o ator Rodrigo Penna um DJ-intérprete, a atriz Fernanda D’Umbra uma atriz mesmo e Simone Carvalho cantou. Com eles, escritores leram trechos curtos de sua produção literária, enquanto cenas de vídeos caseiros tomaram os telões do espaço. Esses materiais mostraram fotos, cenas de cotidiano, poesias, blas-blás-blás de muitos escritores e poetas. Em paralelo, ao vivo, os escritores convidados – como Índigo, Michael Laub, Tony Monti, Verônica Stigger e João Gilberto Noll – participaram com leituras e improvisações.

O Texto na Cidade

“A cidade ideal é aquela sobre a qual paira um pulvísculo de escrita
que não se sedimenta nem calcifica”.
(Ítalo Calvino, in A Cidade Escrita: Epígrafes e Grafites)

 

Considerando que no establishment da literatura a maioria das atividades é restrita a encontros, lançamentos de livros, saraus e mesas de debates, e considerando ainda que grande parte da população brasileira não tem o hábito de ler, essas ações literárias geraram novas propostas aos escritores, evidenciaram práticas literárias já existentes e apresentaram ao público novas formas de leituras, em lugares públicos ou de passagem. Textos breves e convidativos, curtos e atraentes, estenderam-se para fora das salas fechadas e tomaram espaço na cidade.

Segundo a jornalista Laila Abou Mahmoud ressaltou na página da Bravo!, com essa iniciativa a Mostra SESC de Artes 08 possibilitou ao público a percepção de que “a literatura não tem ou teve um espaço exclusivo, mas diversos e, muitas vezes, inusitados”. Para Heloísa Buarque de Hollanda, numa perspectiva curatorial “a Mostra SESC de Artes foi realmente ao ponto e conseguiu o que muitas pesquisas na área das Letras ainda não deram conta. Focada na busca de novas definições do lugar da arte contemporânea hoje, esta edição 2008 dramatizou a atual expansão da literatura no espaço da cidade e colocou em debate a urgência em democratizar a fruição literária em grande escala. São treze os projetos e treze os espaços onde a palavra literária se desdobra e se revela (…)e sugerem o designer de uma cidade ocupada pela palavra”6.

A questão era exatamente esta. Com todos os riscos implicados, tocamos nosso ponto de fuga a que se pretendia o conjunto do projeto: relembrar as pessoas, leitores ou não, que a literatura, como a arte, pode e deve ser percebida e evidenciada por e para todos. A literatura que se coloca ao público para que esse a decifre, que cria e estabelece diálogo, participação e contemplação livre. Era isso em que acreditávamos. Era neste ponto que queríamos chegar. Nos damos por felizes!

 

NOTAS

 

1 Essa ação batizada de Keitai Shosetsu (Romances de Celular) foi criada pelo jovem escritor japonês Yoshi, que lançou seu primeiro romance adolescente “Deep Love” (“Amor Profundo”). A novidade saiu do mundo virtual, ganhou as páginas impressas e virou febre no Japão e no mundo.

2 Para Umberto Eco, com a Internet e as novas tecnologias nos reintroduzimos na galáxia de Gutenberg, “e, doravante, todo mundo vê-se obrigado a ler. Para ler é preciso um suporte”. E essa ferramenta mais flexível é o livro, e ressalta: “O culto da página escrita, e mais tarde do livro, é tão antigo como a escrita”.

3 Lançado em 2007, este livro apresenta uma coletânea de 50 microcontos, de até 50 caracteres cada, que vem dentro de uma caixinha de fósforos. Esse livro foi distribuído ao público na abertura da Mostra SESC de Artes, bem como a formadores de opinião, como um exemplo claro do que pretendíamos chamar de práticas literárias.

4 O projeto PoeGifs foi criado, a princípio, com o propósito de partilhá-lo apenas com amigos e uns poucos eleitos durante o ano de 2007. Marcelo Sahea criou, produziu e enviou por oito meses via e-mail, todos os domingos, a uma lista de mais ou menos 150 pessoas, Gifs (Graphics Interchange Format) animados com poemas de seus livros e outros textos inéditos.

5 O projeto Poema Passageiro contou com o apoio da Bus Mídia Televisão; puderam ser vistos também na Linha Verde do Metrô e nas livrarias Cultura, Nobel e Siciliano.

6 HOLLANDA, Heloísa Buarque, in Cidade é Texto.

 

* Antonio C. Martinelli Jr. É Coordenador de Programação do SESC Belenzinho. Foi curador da área de Literatura na Mostra SESC de Artes 08.