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Cruzamentos, tensões, possibilidades: textos e imagens sobre o nosso tempo | de Alice Fátima Martins

Insistem, alguns, em denominar os tempos que vivemos de pós-modernos. Resistem, outros, reafirmando-os parte contínua da modernidade, potencializadas suas contradições e seus projetos orientadores. Há, ainda, aqueles que questionam a própria ideia de modernidade – por consequência, a de pós-modernidade – denunciando sua natureza autorreferencial. Para esses, a noção de modernidadetraz, implícita, a certeza de que teríamos atingido o ápice da civilização humana: antes de nós só haveria atraso, depois de nós, nenhum avanço mais seria possível. Entre tantos, num texto escrito em 1988, Boaventura de Souza Santos já chamava a atenção para o fato de que

vivemos num tempo atônito que ao debruçar-se sobre si próprio descobre que os seus pés são um cruzamento de sombras, sombras que vêm do passado que ora pensamos já não sermos, ora pensamos não termos ainda deixado de ser, sombras que vêm do futuro que ora pensamos já sermos, ora pensamos nunca virmos a ser (1988).

Desde então, temos testemunhado o aprofundamento de encruzilhadas e labirintos em que se embaralham o novo e o velho, passado e futuro, risco e tradição, sombras e luzes…

Esse foi o sentido que orientou os convites feitos aos autores cujos textos integram o corpo deste número da Revista Z Cultural, na tentativa de montar um modesto painel em que alguns temas se entrecruzam, tomando como pontos de partida questões, perguntas, ocupações, dúvidas, inquietações correntes, contemporâneas. Memórias do já vivido, indagações sobre o porvir, reflexões sobre movimentos, potencialidades, virtualidades.

Os artigos estão organizados em dois grandes conjuntos que, embora portadores de tonalidades distintas, estabelecem necessários diálogos entre si. O abre-alasdo primeiro conjunto, assinado por J. Bamberg e escrito em prosa-poemática, articula memórias do sertão brasileiro, tomando a metáfora do muro como (des)limite, referência, marcação, projeção. Com linguagem não tão poética, mais técnica, Brasilmar Ferreira Nunes aborda alguns aspectos do desenvolvimento urbano do eixo formado pelas cidades Brasília, Anápolis e Goiânia, na região central brasileira, apontando dados que podem orientar políticas públicas no tocante à cultura regional, nas artes em geral, nas questões patrimoniais, midiáticas, e outras atividades que integrem as assim nomeadas indústrias criativas. No artigo que se segue, Edna Goya esboça caminhos históricos da gravura em território goiano: modalidade de impressão incorporada às técnicas e fazeres artísticos, no contexto das artes visuais, que acumula saberes seculares, vindo atravessar o batente do século XXI como campo de expressão pleno de vigor e capacidade de incorporar novas informações, perguntas, possibilidades. Abrigando, inclusive, quantas inquietações caras às manifestações contemporâneas da arte. Algumas das quais a também gravadora e artista plástica Manoela Afonso compartilha no artigo que assina, ao indagar sobre possibilidades de deslocamentos da experiência artística e estética desde o objeto para o ato relacional entre as pessoas que compartilham a própria experiência.

O segundo conjunto inicia-se com a provocação de Noeli Batista dos Santos, ao propor a metaforametria como procedimento avaliativo para o estudo do campo de produção de metáforas visuais por meio da sensibilização do olhar, num contexto em que as pessoas submetem-se, como funcionários, às programações dos aparelhos produtores de imagens. Avança sobre a temática das tecnologias da imagem, e suas relações com a arte, o artigo assinado por Cleomar Rocha, que traz à discussão a noção de ciberespaço, à luz de questões relativas à cultura contemporânea. Não menos contemporânea é a condição de supervisibilidade a que todos se encontram submetidos, seres de toda natureza, inclusive osvampiros. Esses são as personagens-tema do conjunto de reflexões trazido por Laura Coutinho e Adriana Moellmann, que têm no cinema o foco de suas indagações. A natureza humana em metamorfose é assunto a ocupar também a atenção de Alexandre Quaresma, cujo artigo trata dos deslumbramentos e incertezas decorrentes das possibilidades bionanotecnocientíficas, e algumas repercussões de âmbito sociocultural. Fecha a revista a análise proposta por Eduardo de Araújo Teixeira sobre a obra literária Nós que adoramos um documentário, de Ana Rüsche, em que questões como memória, autobiografia e ficção, presente e futuro se entrecruzam, na reinvenção de paisagens subjetivas e do vivido.

Agradeço a cada um dos autores por disponibilizar seus trabalhos, integrando este conjunto de diálogos que, esperamos, contribua, se não para compreendermos um pouco mais das sombras de nossos tempos, ao menos para nos impulsionar a avançarmos em nossas buscas, sobretudo na vontade de prosseguir perguntando, mais que respondendo, a respeito de tudo quanto não saibamos, de tudo quanto ignoremos. E é tanto! E é sempre muito mais do que imaginamos!

Agradeço, também, à Heloísa Buarque de Hollanda, pelo convite para organizar este número, o que oportunizou, afinal, encontrar pessoas queridas, tecer possibilidades a partir de suas produções, disponibilidades e motivações. Encontros no labirinto. Textos e imagens sobre o nosso tempo.

Boas leituras!

 

 

Referência

SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna. Estudos Avançados, São Paulo, v. 2, n.2, Aug. 1988. Disp. em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141988000200007&lng=en&nrm=iso>.
Acesso em 13 nov. 2010. DOI: 10.1590/S0103-40141988000200007.

 

* Professora adjunta VI na Faculdade de Artes Visuais da UFG, professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual. Doutora em Sociologia. Desenvolveu projeto de pesquisa de pós-doutoramento no Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ no período de 2009 a 2010, com bolsa da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro.