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Algumas observações edificantes e curiosas para aqueles que querem pensar o mundo tal qual ele é | de Michel Maffesoli – Tradução de Rosza W. Vel Zoladz

Vem-me ao espírito esta constante que se pode observar em numerosos domínios e ela nasce após uma longa maturação, uma lenta sedimentação. É preciso, então, que ela tenha sido contida em si para que se possa trazer a luz. Quero dizer com isso que uma obra digna desse nome é um advento de qualquer coisa que a transcende. E transcende, a fortiori, por meio do qual ela se exprime. Digo bem “através de” no que é o que se diz e se vive à boca pequena, na banalidade de um quotidiano do qual não se acabou de explorar os mistérios. Em outras palavras, trata-se de deixar imergir o que é. Que venha ai o que é. Eis qual é a ambição, a pretensão de um enfoque compreensivo: não reduzir a coisa a um sistema pré-estabelecido (lembremo-nos do famoso leito de Procusto), mas a deixar ser. Contentar-se, o mais belamente possível, com lhe apresentar os contornos e os entornos. Assim, para além ou por causa da representação, a “presentação”.

Heidegger, contemplando uma rosa, sugere que existe um pensamento que de nenhum modo objetiva nem traz a representação. Eco, bem entendido o do “peregrino querubínico”, Angelus Silesius: “A rosa não tem porque”. Extrapolando a proposta, se pode dizer que um tal “ohne warum” esse sem porque do essencial, é da vida em sua totalidade. O que não impede que o “como” das coisas, a “presentação” não necessita a elaboração não menos rigorosa que o “porquê”. Eterno problema, bem formulado por Archimede. Encontrar a alavanca epistemológica e metodológica, possibilitando levantar as sempre eternas questões com que todos são confrontados. Daí a exigência de um pensamento meditativo, pensamento ruminante, somente capaz de localizar as veias profundas que percorrem toda socialidade. E, de encontro do que nos queriam fazer acreditar as doutrinas de todos matizes, é preciso saber fazer uma real resistência do pensamento para “presentar” adequadamente os problemas sociais. Em uma fórmula incisiva e que não pode ser mais pertinente, Adorno faz uso de uma tal “exigência de rigor destituída de sistema”. Exatidão nesses passos não tolerando nenhum afrouxamento, lassidão intelectual sem, por isso, ceder aos charmes enganosos dos dogmas salvadores.

Ora, essa tal hidra com cem cabeças ressurge constantemente ao longo da história das ideias. Dogmatismo que sem golpes mortais, engendram as diversas inquisições, cuja história é costumeira desses procedimentos. Tanto isso é verdadeiro que a petrificação do que foi, num tempo, inovador, engendra mecanismo de defesa, agressividades que não conduzem mais, em nossos dias, aos que trabalham arduamente, mas são empregados para desconsiderar, para deslegitimar aqueles que não querem caminhar na cadência do passo ou se recusando ao que Durkheim nomeava, justamente, o “conformismo lógico”.

E é preciso bem assinalar que se sente o gosto amargo quando se recusa a fazer livros laudatórios, quando se subtrai ao engajamento, quando se evita a “lógica do dever ser” (Max Weber). Mas se pode igualmente dizer que, quando há um acordo geral sobre uma obra, um homem, uma ideia, isso é coisa suspeita. Isso porque, em geral, os homens não entram em acordo a não ser sobre coisas um pouco bobas. Em poucas palavras, para lhes dizer de uma maneira um pouco familiar, sobre “o que não come do pão”.

Assim, em oposição às ideias deterioradas, que continuam a atiçar os espíritos, ideias presentes no bom-pensamento moderno, pois eu dei duas chaves para bem entender o que conduziu o meu encaminhamento intelectual.

Dois pressupostos que pouco a pouco se impuseram ao meu espírito. Assim que eu os indiquei, por ruminação, por sedimentação. Pressupostos “ditados” de alguma forma pela “força das coisas” por aquilo que se dá a ver. Em princípio, a coisa é, em particular, evidente na análise do tribalismo pós-moderno eu continuo a insistir sobre um conceito místico do social. Eis o que parece curioso! E, portanto, a partir das raízes cartesianas, com a filosofia das luzes, no XVIIIº Século, vê-se efetuar o escorregamento da mística em direção à política. “Racionalização generalizada de existência, desencantamento do mundo” dirá Max Weber, características essenciais da modernidade. Ora, são numerosos os índices (índex) pontuando a mutação profunda que está em curso. Ponto de inversão, deslocamento de eixos, saturação (Sorokin)? Pouco importam os termos utilizados. É suficiente que se reconheça que o sentimento de pertencimento tende a prevalecer, que a autonomia individualista, eixo essencial do contrato social, deixa lugar à pessoa plural florescendo no pacto social. É esta primeira obsessão teórica, que tal como um fio vermelho, percorre tudo o que escrevi após os anos setenta. É a isso que denomino de “mística”: um laço social concebido a partir dos mitos que partilham entre si, alguns iniciados. Retomando a expressão “ordo amoris” do sociólogo Max Scheler, eu espero, no futuro, levar mais adiante a análise de uma tal erótica societal.

Outro pressuposto “ditado” pelos fatos, eu o concebo um pouco irritado, é o acento colocado sobre o “dado”. Isso está aí, irrefutável, irrecusável, que não se pode reprimir ante toda a ação humana. E isso não faz mudar o caminho do cacarejo de nossa pretensão de dominar, em uma palavra, a construir. O dado contra o construído!

Lembro-me do meu amigo inesquecível Pierre Sansot que no começo da carreira universitária, em Grenoble, achava minhas análises sociológicas bem “quietistas”. Isso era bem visto. Já nos meus anos de aprendizagem, eu preferia Fénélon a Bossuet, o cisne de Cambrai à águia de Meaux. A doçura da noção à brutalidade do conceito. E se pode dizer que um tal “quietismo” que vem à ordem do dia nas práticas quotidianas atuais. Menos agir sobre o mundo social ou natural que se ajustar a ele. Uma forma de não aniquilamento da natureza dionisíaca do mundo, a fusão da “orgia”, isto é, o partilhar as paixões (“orgé”), uma espécie de sujeição ao mimetismo tribal. Todas as coisas particularmente evidentes por aqueles que aceitam tudo simplesmente, ver e compreender as diversas manifestações de multidões contemporâneas, esportivas, musicais, religiosas, consumistas.

Quietismo “redução a nada”, kénose: o nada dá vida, o recolhimento de onde ela surge. Ali, ainda, a inversão de polaridade, podendo nos desgastar, mas estando ali indubitavelmente; a importância da sombra sucede prevalência das luzes. Convém orientar-se às descobertas que se pode fazer a partir dessa sombra. Dionysios estendendo sua sombra sobre as megalópoles pós-modernas, “parte do diabo” da qual se pode estender as manifestações múltiplas e contrastivas, retorno do sentimental trágico da existência, eis quais são os principais componentes do “dado societal”. Em poucas palavras, para além ou para aquém das simpáticas e integradoras teorias da emancipação advindas das Luzes, o reconhecimento de um mundo como lugar de exílio, e de plenitude, lugar de horrores e de maravilhas. O claro escuro da existência. Posso lembrar aquilo que é uma figura, traduzindo bem a retórica social pós-moderna, este é o Oscymore como expressão da harmonia conflitual de todas as coisas.

Eis o “quomodo”, esse como em ação nos diversos livros pontuando minha trajetória. Estas são as pedras angulares de uma obra em curso, tendo por ambição de dar conta, ao menos da arquitetônica social. Pedras de ângulos podendo se tornar pedras de obstáculos imprevistos para alguns, que, eu já indiquei, criam o escândalo desde que, stricto sensu, se põem em questão o que deve ser. Esqueci que eles são o que é a questão, justamente, porque é a essencial garantia de procedimento científico.

Certo, aí pode, deve acontecer a polêmica teórica. Num tempo onde a universitas se constituía enquanto tal, se denominava a “disputatio”. E o suculento da atividade intelectual era tudo de uma vez, uma boa maneira de rivalizar os talentos e um bom meio de fazer avançar o conhecimento comum. No melhor dos casos, a verdadeira “disputatio” pode evitar a guerra ideológica onde os clérigos raivosos gastam toda a sua energia numa detestação sem horizonte. Eu me contento, aqui, em retomar o velho adágio dos humanistas, “sine ira et ódio”, sem cólera nem ódio, de dizer o mais serenamente possível quais são os elementos essenciais da vida quotidiana pós-modernas. Não a partir de um a priori teórico, leia-se dogmático, satisfaça ou não, está ali. O dado sendo desde já, o fundamento do construído. É bem assim que da minha parte eu compreendo, em boa parte, o “positivismo” de Augusto Comte: “induzir para deduzir a fim de construir”.

Daí a necessidade de se dedicar, portanto, a um trabalho artesanal do pensamento. Fazer algo como feito à mão. Trabalho solitário se ele o é, e ao mesmo tempo, nada menos que isolado. O solitário estando religado à alteridade. Não é desse ponto também que o monge na Idade Média concebia sua situação: monos, só, mas em ligação com seu deus e com a comunidade. O dogma da comunhão dos santos faz sentido. A multiplicidade e a diversidade das pesquisas encontrando sua fonte a partir das temáticas do imaginário e do quotidiano testemunham, igualmente um tal processo de religação.

Darei duas chaves abrindo as portas para o que está em jogo nos meus diversos trabalhos. E isto, tendo no espírito que a história é feita de desnudamentos, de palimpsestos. Por vezes é preciso saber arranhar o palimpsesto para reencontrar o texto original e isso permite reencontrar o que é original. Reencontrar, encontrar, enquanto termos que chamam a atenção ao fato que a verdade não seria abstrata, desligada do “dado”, simples adequação a uma representação do mundo, mas que ela é sempre e novamente desvelamento: isto torna presente o que está aí. Daí a importância da sombra da qual já falei; não simples acréscimo, mas a sombra como elemento central da verdade das coisas.

Portanto: arranhar o palimpsesto a fim de fazer aparecer esses dois sinais distintivos essenciais, que são o prazer ou o desejo de ser e a profundidade da superfície.

Assim, indiferente à raiva, mais das vezes na origem das pesquisas sobre o social, trata-se de elaborar uma sociologia, sabendo estar atento à cor do mundo, a seus aromas e a seus diversos humores. Dionysios é bem entendido, a figura emblemática de uma tal sensibilidade teórica. Divindade arbustiva, diz-se, símbolo de uma ligação com esse mundo e com seus prazeres. Anamnese do animal humano, ou do “zoon politicon”. Há aí a animalidade e é melhor integrá-la, se não se quer que ela se inverta em bestialidade. Enquanto figura emblemática, Dionysios é o índice da inteiridade do ser individual e coletivo.

Um tal dionisíaco está presente, empiricamente, na vida corrente. Os índices semânticos provam isso, tais como as pequenas pedras do Petit Poucet, vão pontuar conversações quotidianas e práticas de todos os dias. Assim as palavras festiva, lúdica, onírica, criativa enquanto termos pouco burilados, significam bem que o ar do tempo é um hedonismo partilhado. Isso é, se esquece muito seguidamente de burilá-los e isso é peculiar aos grandes momentos culturais, às épocas fundantes. Assim, um bom conhecedor que era do grande século francês, Nietzche dizia “que havia nele um ruço”.

E uma tal selvageria escapando, tanto o bem como o mal, às regras, leis e outras codificações, é próprio mesmo do vitalismo cultural. Mas, face a esse último, e como para se proteger, são também épocas nas quais há a proliferação das leis, por assim dizer, protetoras. São momentos enfim, durante os quais, como para legitimar esta comichão legislativa, as elites intelectuais se empenham à predica moral, fundando ali seu pontificado artístico ou teórico. Em uma palavra, sua razão de ser.

Daí se justifica a multiplicação de livros e programas, tipo de “talk show”, repousando essencialmente sobre a edificação. Lendas douradas da modernidade, se empregando a consolar, a tranquilizar o bom povo, cujo ideal seria segurança, o famoso risco zero. Daí eclodem esses dilúvios de baboseiras bem-pensantes, ameaçando fazer tudo submergir. Daí se coloca como questão midiática, certos créditos célebres, expectorando banalidades moralizantes e moralizadoras, do alto de suas diversas bancas. Leiam o irônico livro de Vilfredo Pareto: “Le Mythe Vertuiste”, para compreender qual ar empestado é esse, dessas oficinas onde se praticam tais “ideais”, de onde é fácil avistar a mentira que repugne! Para lhe dizer em termos mais sofisticados, tudo isso se aparenta a esses textos “protépticos”, textos conversores, empregados no inicio do cristianismo, para edificar e converter.

Não há nada de novo sob o sol. E não se repetirá demais que, quando uma concepção do mundo se acaba, na matéria a ideologia moderna comumente lhe acrescenta. A isso é o que se denomina um combate de guarda da retaguarda: por mais que seja ofensiva, se pressente, inconscientemente, que a guerra está perdida. Daí esse moralismo ambiental. Uma palavra para qualificar tal atitude: bovarysmo. Quer dizer, crer em outra coisa do que ela é. Bovarysmo sendo, de uma maneira recorrente, o fato de uma elite distanciada da realidade social. Outra coisa, se compreendeu, é o espírito que anima meus livros. Contra os dogmas um pouco pesando os notórios do saber, eles agregam a ironia de antiga memória. E isso que é o mais próximo de sua etimologia: “eironia”, interrogação.

Se interrogar, com efeito, sobre esse retorno do “puer aeternus” esta criança eterna no qual Dionysios é a figura emblemática e que toca o coração alegre nas diversas tribos dos quais ele participa. Criança eterna, presente nas peregrinações religiosas, nos múltiplos encontros musicais, nas corridas mundanas e outras baladas. Quanto a todas essas festas, pontuando a vida de nossas sociedades, como se pode as interpretar a partir da “retidão” peculiar aos doadores de lições? Não seria melhor se lembrar das advertências do sábio Platão: philopaismoves gar kai oi theoi, os deuses também gostam dos divertimentos das crianças (Cratyles, 40,6).

Ora, há aí do divino na atmosfera pós-moderna. Reencantamento, eu disse no que a eternidade não é mais esperada nos hipotéticos mundos, religiosos ou políticos, a vir, mas se vive no instante: o instante eterno, tudo do trágico petrificado, mas de eternidade igualmente, pois o que conta é viver, aqui e agora, uma alegoria que não se transfere para amanhã. Eis o que induz a temática dionisíaca de uma maneira teimosa, se capilarizando, no conjunto do corpo social. Uma curiosa observação que Heidegger consagra a meu pequeno deus querido resume bem uma tal sensibilidade teórica: “É este Dionysios o deus do vinho que, no meio da noite, deixa para os mortais saqueados pelos deuses, um tal vestígio. Porque o deus de cepa salvaguardora, em si e no que dele frutifica, o originário pertencimento recíproco do céu e da terra, enquanto lugar ferial, de união dos deuses e dos homens.”

O co-pertencimento do céu e da terra, da vegetação e do homem, não é o que celebram as festas pagãs cuja atualidade não é avarenta. É, no entanto, instrutivo repetir que mesmo as tribos de musica tecno ou gótica sem conhecimento especifico do gesto dionisíaco, vão, frequentemente, e com ostentação, se abrigar por detrás do nome epônimo de Dionysios. Epônimo? Eles não sabem nem mesmo o que isso significa. Pouco importa porque ao adotá-lo, eles pressentem bem que esse deus “carrega” o nome da coisa que eles vivem: a exuberância, a abundância da alegria do aqui e o agora. Sim, há nos cultos extáticos das multidões musicais, essa celebração sem freios de uma plenitude vital. Essa se reencontra, do meu ponto de vista, nas histerias religiosas e no transbordamento de alegria nas noites em que são anunciadas as vitórias eleitorais. Isso se dá, igualmente, por ocasião das celebrações funerárias de um tal star musical, religioso ou político. Resumindo, o emocional está no ar.

Lembro que, utilizando um tal neologismo, não é questão de fazer referência a uma característica psicológica, como numerosos observadores sociais mais elementares ou muito apressados creem seguidamente. Não, o emocional remete a uma ambiência coletiva, tribal, na qual o indivíduo se perde num conjunto mais amplo. Ora, há aí, de um ponto de vista metafórico, uma copulação coletiva. Onde o orgasmo se junta a uma forma que é, se cremos como sabedoria popular, uma espécie de “pequena morte”.

Morte de um pequeno si para nascer um Si mais vasto, esse da terra e do céu, da fauna e da flora, eis o que são as efervescências societais, de diversas ordens, pontuando a vida quotidiana das nossas sociedades. “Pequenas mortes” orgiásticas que procuram, antes de mais nada, celebrar um irrepreensível elan vital. Aqui, também, retornemos a Heidegger: “Pode-se dizer que morrer seja o ato supremo de viver”.

Para além da ideologia oficial do “risco zero”, sem estar comprometido por uma suposta morosidade ou digamos, medo do futuro, pode-se dizer que essas intensidades traduzem um inegável prazer ou desejo de ser. Em termos mais familiares, a vida não vale nada, mas nada vale a vida. E é num tal lugar, que se pode assinalar o laço social contemporâneo. Em maior ou menor tom, o que importa são as vibrações comuns. “Sintonias” das quais o fenomenólogo Alfred Schutz soube mostrar a importância para a compreensão da vida social.

Emocional, afetivo e outras expressões da mesma fonte, traduzindo o retorno vigoroso dos afetos na vida social. Não mais acantonados, seguindo a expressão consagrada, por detrás da vida privada, mas contaminando o essencial da vida pública. As paixões têm os seus papéis desempenhados na teatralidade contemporânea, e é em vão e naïf não levá-las em conta, não saber medir seus efeitos. Não se pode nada compreender de geopolítica, de política, da publicidade, da simples vida social, do espetáculo midiático (eu deixo amigo você completar esta lista) se não se considerar a importância dos afetos. Em seu sentido simples tudo que trata do ventre, do útero, da histeria, tudo como foi o caso na modernidade tem o seu retorno vigoroso na pós-modernidade. Ela é um elemento essencial do viver junto contemporâneo, e não dá mais para economizá-lo. É pois, cientificamente, pertinente integrá-lo nas análises pragmáticas que se pode fazer da vida social. Saber mostrar o que se dá a ver. É uma tal mostração que constitui o segundo questionamento à obra na minha trajetória.

Mostração. Se utilizo esta palavra do antigo francês é para evidenciar que pode existir do monstruoso, da monstruosidade na natureza das coisas. Trata-se aí de uma dessas banalidades de base que é, sempre, importante de lembrar ainda mais quando se tem a tendência, no moralismo ambiente, de esquecer sua presença. Banalidade conservadora da vitalidade popular. E isso, na imagem desses dias do “forno banal” na Idade Média, onde se celebrava a festa do fabrico do pão comum. O “forno banal” meio de escapar, ainda que provisoriamente, ao Poder do senhor, representa bem a metáfora do Poder do povo. Banalidade soberana que, contra as evidências sábias, essas essencialmente do “correctness”, reafirma força e vigor ao que é evidente.

Em primeiro lugar para o bem e o mal, o verdadeiro e o falso, não são assim radicalmente separados como se eles os estivessem. Donde a necessidade, na mostração, de integrar o que, enquanto sejam “monstruosos e humanos”. O que induz um pensamento da ressonância. Por vezes da redundância. Questionamento que vem em espiral sendo encontrado na técnica dos mantras extremos orientais, na repetição continuada da “lectio divins” monástico, na repetição dos temas musicais, do samba ou dos “samples” peculiares à musica “techno”.

A lógica pré-moderna, ou aquela da pós-modernidade, não são dedutivas, mas indutivas. Partindo do que é, elas fazem comparações, analogias. Mas numa tal perspectiva “tudo é bom”, não há aí nada a lançar da surrealidade societal. É a isso que intitulei “No fundo das Aparências”. O que aparece é o cadinho da maneira de ser e de viver junto. O barroquismo sendo a forma artística que mais bem dá conta de uma tal coincidência dos opostos. Barroquismo como dinamismo da vida das formas, como exacerbação do sentimento da vida.

Donde a acentuação sobre a experiência podendo se exprimir no vivido quotidiano, nos rituais anódinos do trabalho, dos lazeres, dos afetos amorosos ou amicais, ou exagerando, em maior grau, na moda, nos paroxismos musicais (gótico por exemplo), nos desejos intuitivos pelos mitos satanistas ou as formas provocantes encenadas, durante as diversas “paradas” ou “marchas” tecno, gay, “drag queen” aparecendo em evidência nas teatralidades urbanas.

Nesse jogo das aparências, se acelerando graças ao desenvolvimento tecnológico, é uma ordem que se coloca. Ordo amoris, tal como o denomina Max Scheler, onde Eros e Thanatos, a criação e a destruição, se ajustam num mixto completo, onde tudo tem seu lugar e pode desempenhar seu papel. Trata-se, no seu sentido primeiro, de uma simpatia universal, fundada sobre as afinidades eletivas ligando cada um e os seres. Jogo das aparências, jogo das imagens, quer sejam aquelas da publicidade, dos “vídeo-games” dos “logos” de diversas ordens e, em geral, das imagens midiáticas, onde se efetuam, para retornar uma bela metáfora Kabbalistica de Leon o Hebreu, uma “copulação visual”. Expressão um tanto mística, não podendo rebater os apriorismos teóricos, mas em que a experiência quotidiana colabora com vantagem. É suficiente desse ponto de vista, permanecer alguns instantes nos “cyber cafés” ou operando jogos online, e em seguida discutir com os protagonistas desses jogos, para se dar conta que uma tal “copulação” tem uma eficácia inegável.

É certo que as elites extenuadas continuam a colocar, fortíssimo, seus diagnósticos apocalípticos, sem outros julgamentos que não os agressivos e que envolvem ameaças sobre a própria decadência a essa rebelião do imaginário. E elas verão unicamente patologias (praticas adictivas, dizem – elas) nas fantasias, fantasmagorias, visão de fantasmas se exprimindo nos fãs dos jogos online. Vejamos, aí mais para o melhor como para o pior uma espécie de serenidade característica da “eterna criança”, vivendo na harmonia conflitual dos afetos contraditórios que os constituem. Serenidade quase animal se adequando aos seres e ao meio, em breves palavras, ao biótopo no qual se vive. Lembremo-nos aqui das palavras proféticas de Gurnemanz à Parcifal, encontradas em Wagner: “Aqui, meu filho, o tempo torna-se espaço”. Espaço semântico, espaço pathico, onde o que importa, são as paixões, as emoções vividas, com os outros, num dado lugar. O laço faz o laço, é isso mesmo que caracteriza o “eterno instante”, do qual eu tentei, em diversos dos meus livros, mostrar a atualização. Em oposição a uma eternidade longínqua e futura caracterizando a modernidade (e a tradição ocidental), a eternidade, se cristaliza agora no momento, o “Kairos”. Ela se espacializa. Donde a importância do corpo, do localismo, do tribal. Espaço que pode ser simbólico, que pode ser movente elemento da “circumnavegação” pós-moderna. O tribalismo e o nomadismo como características essenciais da época.

Ali é, certamente, a mutação mais importante, a mudança de paradigma que apenas se começa a reconhecer, a compreender e analisar. Em breve, o que era transcendência, e de um Deus Uno, de merecer um Céu, de um Futuro que se deveria estender, torna-se imanência. Imanentismo de uma divindade difusa, de que sincretismo e a religiosidade são testemunhas. De uma Terra a proteger, o que faz tornar-se atento à sensibilidade ecológica, de um Presente, símbolo de uma presença a um outro e a esse mundo aqui. É isso a ecosofia.

É um tal de Imanentismo que caracteriza a criatividade posmoderna. A vida como “arte total” onde se podem estabelecer correspondências, de ressonâncias de tons diversos, de musicalidades múltiplas, gostos, odores, toques, todas as coisas constituindo a vida, individual ou tribal, como obra essencialmente experimental. Eis o que é, em oposição à representação moderna, a presentação pós-moderna. A presentação não passa de superfície. E como o diz, com uma dose de maledicência, Andy Warhol: “não há nada por detrás”. Eis o que é difícil de admitir quando se sabe que a intelligentsia moderna se deu como vocação de pesquisar, ainda e sempre, a profundidade. A vida por detrás da vida. A perfeição para além da imperfeição presente. Como diz, ironicamente, Paul Valéry, “o intelectual é estruturalmente um profundista”!

Mas eis que, a experiência de todos os dias nos remete à superfície das coisas. A pele, os pelos, os humores não se escondem mais. Bem ao contrário, eles se exibem. Isso não é a primeira vez que acontece nas histórias humanas. Numerosos são os bons espíritos, nos quais eu me inspiro (F. Nietzsche, G. Simmel, M Weber), que bem mostraram como em certos momentos, a profundidade se esconde na superfície das coisas. É preciso estar atento a esse fenômeno.

Desde já, é preciso dizer que para além dos dogmatismos mais ou menos ridículos, mais ou menos perigosos, para além dos oportunistas intelectuais, e olha que eles são uma legião, para além dos plagiadores de toda ordem, regateadores vendendo produtos de segunda mão, é conveniente elaborar uma série de aproximações teóricas. Quer dizer, encontrar palavras pertinentes que, pouco a pouco se tornam adequadas ao que é vivido, na experiência societal. Palavras de imemoriável sabedoria, que, sem rigidificar o que elas designam, sem conceituar a priori, conduzem a uma relação conveniente e justa com a alteridade. Alteridade do grupo, alteridade da natureza, alteridade dos misteriosos numinosos.

Eis aí o que me foi “ditado” por uma observação atenta da experiência quotidiana. Eis aí o que proponho à meditação de alguns “happy few”.

 

Michel Maffesoli

Membro do Institut Universitáire da France
http://www.michelmaffesoli.org/

 

Tradução de Rosza W. Vel Zoladz

Socióloga. Pós-Doutora em Estudos Culturais pelo PACC-FCC/UFRJ
Professora colaboradora da EBA/UFRJ
Pesquisadora convidada do PACC-FCC/UFRJ