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Máquinas Poéticas | de Angela Mascelani*

Nos meus primeiros trabalhos procuro os princípios que geram informações, ou seja, o princípio da ordem e o da essência. As informações no universo estão geralmente ocultas, disfarçadas em meio à desordem. É necessário o mecanismo da percepção e da intuição para que estas se manifestem “de repente”. É a esta “surpresa” que tenho o maior interesse e fascínio.

Abraham Palatnik

Este artigo foi escrito a propósito da exposição Máquinas Poéticas[1], que tratou da arte que se realiza pelo e a partir do movimento e foi realizada no Museu de Arte Popular Brasileira Casa do Pontal, no Rio de Janeiro[2]. Esta mostra também concretizou a intenção curatorial da nova área expositiva do Museu – a GVB Galeria de Arte – criada justamente para ser um espaço de questionamento das classificações duras, que podem conduzir às guetizações, sobretudo quando se tratam das produções artísticas que têm origem nas camadas populares. A ideia norteadora deste novo espaço ancorou-se no desejo de abrir possibilidades para as trocas, confrontos e aproximações entre diferentes propostas de artes e autores. E que, por esta via, o público pudesse experimentar a quebra de fronteiras formais, muitas vezes artificiais, que servem apenas para criar distâncias, impedindo que se reconheçam as sutilezas que podem unir propostas e expressões artísticas muito diferentes, assinalando a riqueza da diversidade cultural na arte.

Com este intuito, e tendo por ponto de partida o uso do movimento mecânico, eólico ou elétrico nas obras, reuniram-se algumas delas dos artistas Adalton Lopes, Laurentino Rosa, Nhô Caboclo e Saúba, todas integrantes do acervo do Museu Casa do Pontal, às do pioneiro da arte cinética no Brasil, Abraham Palatnik. Algumas obras deste artista vieram de sua própria coleção e, outras, do acervo de Gilberto Chateaubriand, atualmente em comodato no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

Trata-se de artistas inventores, com diferentes trajetórias de vida, motivações e maneiras de realizar suas obras e nelas expressarem sua visão de mundo. A despeito das incontestes diferenças, vários pontos os aproximam: a atração pelo lúdico, o gosto pela invenção, um genuíno espanto pela automação e a entrega ao paciente trabalho investigativo. A tecnologia exerce papel singular nessa produção que, de alguma forma, conjuga arte e ciência. Esses artistas compartilham ainda de um mesmo período histórico em que ocorreram e ocorrem intensas mudanças tecnológicas no Brasil e no mundo.

Lembrando que não existe “o” artista popular como sujeito coletivo, sublinhamos que as noções de popular e erudito como definidoras de identidades orientadas interessam menos aos artistas do que aos críticos. Podemos perceber, nas histórias de vida desse conjunto de artistas, que cada qual se apropria de seu mundo cultural, de suas bagagens e acúmulos e, a partir daí, promove sínteses, sem medo de se lançar no desconhecido, seguindo as trilhas da intuição.

Abraham Palatnik teve formação em artes e em engenharia de motores. Embora nascido no Rio Grande do Norte, em 1928, viveu dos quatro aos 19 anos na Palestina, onde teve sua iniciação profissional, retornando ao Brasil em 1948.

 

Adalton, Nhô Caboclo, Laurentino e Saúba são artistas das regiões Sudeste e Nordeste, oriundos das camadas populares, o que significa, neste caso, que construíram seus conhecimentos por processos informais e não nos bancos escolares. Eles introduziram o movimento em suas produções a partir do desejo de dar vida a objetos e personagens, de criar “peça que bula com a imaginação”, “que não se sabe se é deste mundo, ou do outro, criador” como disse Nhô Caboclo, ou porque sofistica “o pulo do gato”, como afirmou Adalton Fernandes Lopes, referindo-se a seu próprio trabalho.

Cada um dos artistas que expomos chegou às suas criações cinéticas de modo bem particular. O pintor e desenhista Palatnik, por exemplo, abriu essa nova vertente em seu trabalho plástico a partir de uma vivência que interrompeu seu fluxo criativo. Amigo do artista Almir Mavignier, por intermédio de quem veio a conhecer o crítico Mário Pedrosa e o trabalho da doutora Nise da Silveira, no Hospital Psiquiátrico do Engenho de Dentro (RJ), ficou extremamente impactado ao visitar os ateliês de terapêutica ocupacional dessa instituição, onde viu os internos se expressando com contundência por meio da pintura. Esse impacto é assim descrito por Palatnik:

O que vi era extraordinário, de uma densidade fabulosa… e comecei a me sentir desorientado. Abandonei as pinturas, os pincéis, as tintas…[3]

Diante da força presente naqueles trabalhos, ele perdeu a vontade de prosseguir na arte. E foi, justamente, essa radical perda de esperança em sua capacidade expressiva que possibilitou o nascimento de uma nova realidade para a cor e as formas: os cinecromáticos. Deixando-se tocar pelo vazio, e ficar ativamente neste ponto zero, não só aprofundou sua reflexão sobre a questão da cor, como também abriu espaços internos para o surgimento de uma criação inteiramente original. Inspirado no princípio do caleidoscópio, um dos primeiros cinecromáticos foi exibido na I Bienal de São Paulo, em 1951. O artista deixa clara a importância conferida à intuição no texto abaixo:

Um problema complexo funde nossa cabeça, mas a solução salta inesperadamente, e de repente vemos ordem e lógica em diversos fatos irregulares e no meio da desordem. Fatos científicos importantes têm sido previstos por uma percepção intuitiva. Sem a intuição, enfim, não seríamos artistas, pois ela nos proporciona essencialmente o contato com o inesperado.

Conversas e leituras sugeridas pelo crítico Mário Pedrosa ajudaram Palatnik a criar o campo propício para essa mudança. Pesquisando as teorias da forma e as possibilidades da luz e do movimento, ele não abandonou a pintura, mas encontrou outros caminhos para expressar as questões suscitadas por ela. O crítico de arte Luiz Camillo Osório expõe o forte impacto produzido pelos cinecromáticos:

Quem depara com um aparelho cinecromático é imediatamente enfeitiçado. Os olhos ficam paralisados pelo movimento de luzes e cores, pelo ritmo luminoso que invade o espaço. É como se uma pintura abstrata repentinamente ficasse animada, produzindo efeitos de cor variados e sincronizados. As questões do artista são oriundas da pintura, mas transformadas pelo uso da tecnologia, do motor que dá movimento a um circuito elétrico, que vai acendendo um conjunto variado de luzes coloridas. (…) A cor-luz pondo-se em movimento diferencia-se da cor-pigmento das pinturas e se expande no espaço incluindo o próprio expectador. É uma experiência de absorção e sedução (…).

Essas obras foram descritas pelo poeta Murilo Mendes no catálogo da Bienal de Veneza de 1964 como “tangentes à pintura e ao cinema”. Surpreendendo o meio artístico internacional, Palatnik deu prosseguimento a seu trabalho criando as progressões, pinturas que usam a madeira como suporte, e os objetos cinéticos, nos quais pequenas formas geométricas planas e coloridas, sustentadas por varetas e conectadas a um motor oculto, se movem lentamente, produzindo efeitos rítmicos delicados.

Ao longo de sua trajetória, o artista percorreu vários caminhos, dialogando sempre com as principais questões que marcam a arte de meados do século XX aos nossos dias. Em depoimento ao Museu Casa do Pontal[4] o artista disse:

Devo o interesse na arte popular à minha esposa Lea. Ela que descobria as coisas e eu vi que tem realmente uma vida aquilo, que não é só a arte abstrata, e eu acabei adquirindo algumas coisas. Porque eu vi naquilo uma coisa espontânea, do mesmo jeito que eu também me senti espontâneo nas coisas que fazia. Quando eu pegava os instrumentos e tentava compor alguma coisa, eu estava praticamente me equiparando a eles. É uma atividade um pouco cerebral, mas também é muito espontânea. Eu acho que na arte popular o que existe é muita invenção também, porque eles abordam muitos problemas, e isso se justifica porque eles estão cercados de informações e as informações são traduzidas, na habilidade deles, em realidade. Para eles a realidade é o que eles estão fazendo.

Para aprofundar o entendimento da história e dos rumos tomados por este artista, o livro Palatnik, com texto e organização de Luiz Camillo Osório, citado na nota acima, é leitura indispensável.

Obras animadas – como as feitas por Adalton, Laurentino, Nhô Caboclo e Saúba – não são raras na arte popular. Os nomes pelos quais são referidas variam, mas o encantamento que o público demonstra por elas é sempre o mesmo.  Todas fascinam. No Museu Casa do Pontal elas foram catalogadas como engenhocas ou geringonças, mas são conhecidas também por diversos outros nomes. Laurentino chamava suas esculturas móveis de papa-ventos. Nhô Caboclo referiu-se aos seus trabalhos como equilibristas, toré, balsa e engenhoca. Saúba dá a conhecer suas criações pelos nomes de mesa ou engenharias. Comentando o trabalho cinético dos artistas populares Antônio de Oliveira e Manuel Molina, a crítica Lélia Frota[5] usou as expressões universos moventes e engrenagem/bricolagem elétrica.

Se há inequívocas distinções em seus processos de feitura, em todos a ousadia é inegável e está associada à invenção de mecanismos capazes de fazer mexer e animar personagens e objetos. No geral, esses processos envolvem a fabricação caseira de mecanismos que utilizam na sua composição partes de outros aparelhos e materiais reciclados. Muitas vezes é o artista quem cria as peças, engrenagens e sistemas necessários para movimentar as figuras. Em outras, ele adapta pequenos motores, como os de eletrodomésticos descartados. Essas ações resultam sempre numa estrutura rústica e única, que poucos, além do próprio autor, sabem mexer ou consertar.

Adalton Fernandes Lopes tornou-se um especialista neste gênero. Nasceu em 1938, em Niterói, no estado do Rio de Janeiro, onde viveu até sua morte, em fins de 2005. De família simples, cursou até o segundo ano do primeiro grau e logo teve que começar a ganhar o sustento. Enfrentou grandes dificuldades, teve vários empregos que lhe garantiam apenas o básico. Depois de passar de uma ocupação para outra, conseguiu certa estabilidade na Companhia Nacional de Navegação Costeira, onde ficou por cerca de sete anos. Ao ser demitido deste emprego, enfrentou sérios apertos financeiros, mas encontrou nos bonecos o que chamou de válvula de escape. Leitor da Bíblia, moldou suas primeiras imagens inspirado na temática religiosa. Encontrando interesse pelo que fazia, soltou-se no mundo e deu asas à imaginação. É notável a forma pela qual abordou a vida nos bairros periféricos de Niterói, abrindo espaço para o protagonismo do homem comum. Seus fascinantes recortes do cotidiano urbano registram a argúcia de seu pensamento e a complexidade da vida social que lhe coube experimentar e transmitir com grande talento. O prazer de Adalton com seu trabalho

fica patente nesse depoimento:

Eu gosto de todos eles, sabe? Eu gosto de fazer isso. Da coisa mesmo e de fazer. Não tem dinheiro, tempo, não tem nada disso! Eu quero que o trabalho fique bonito. Legal, sabe? (…) Depois que eu acabo os trabalhos, pra mim acabou. Eu quero mais outro. Uma coisa diferente. Eu quero fazer uma coisa nova. Sempre a coisa nova.

Segundo o artista, sua chegada ao mundo da arte se deu por inspiração das notícias que ouvia sobre o ceramista Mestre Vitalino, recebido com honras por toda parte – inclusive pelo presidente Jânio Quadros, em 1961. Adalton, então com 23 anos, percebeu que as modelagens que fazia por prazer e diversão poderiam ter valor como um tipo de trabalho, ao qual decidiu se lançar com muito empenho.

Esse fato nos ajuda a entender a dimensão sociológica presente no que tem sido chamado de “arte popular brasileira”. Adalton – que já criava seus bonecos, a exemplo de muitos outros artesãos que vieram a desenvolver um trabalho autoral – inspirou-se na figura de Mestre Vitalino para dar plena vazão à sua própria imaginação.

Ou seja, um determinado tipo de produção, que provavelmente já existia em muitas partes do país, encontrou acolhimento no mercado cultural a partir do momento em que passou a ser valorizado como bem simbólico, como “trabalho”, que demarca um ethos e remete a valores identitários reconhecidos como brasileiros. No caso de Adalton, essa legitimidade permitiu também que ele se situasse socialmente como participante de uma tradição coletiva, sem, contudo, abrir mão da sua própria singularidade.

Sabemos que a emergência de novas realidades culturais faz parte de uma intrincada rede, que articula fatores históricos, econômicos e sociais. Está ligada, portanto, às mudanças que vêm ocorrendo no país e no mundo, tais como a valorização da diversidade cultural, o incentivo aos estudos sobre as tradições populares e o folclore, a ampliação do debate sobre a alteridade, os movimentos de resistência de povos locais ao colonialismo, as mudanças de patamar tecnológico, além do alargamento das fronteiras do que pode ser considerado como arte e de quem pode ser reconhecido como artista.

Para os estudos do folclore, que tradicionalmente acolhem este tipo de produção, o reconhecimento das artes do povo implica muitas vezes no entendimento de que a autoria é coletiva ou anônima. Entretanto, pelo viés da arte, em que vigora a ideia renascentista de gênio autoral, os integrantes das camadas populares podem também ser vistos como autores, indivíduos com características próprias e pensamento original.

Adalton criou imensas máquinas poéticas, nas quais os personagens ganham animação a partir de um sofisticado sistema de cordas e polias, que, acionado pelo público, conjuga música e movimento. Tanto no mecanismo de suas engenhocas quanto na criação de materiais alternativos ao barro (como misturas de outros insumos ao papel machê), fica evidente a importância das técnicas desenvolvidas por ele para que os seus personagens possam suportar o movimento, ganhando leveza e maleabilidade. Essas características são assim destacadas pelos antropólogos Guacira Waldeck e Ricardo Lima:

Seguramente o que mais marcou a produção plástica do artista foi o percurso que trilhou em busca do movimento. Desde as primeiras peças em que retratou a figura humana, isolada ou em grupos, pelos contornos dados aos corpos modelados em barro, se percebe que o artista evitava as posições estáticas. (…) As cenas indicam movimento e imprimem ritmo à ação. Ao artista, porém, não bastou sugerir ao expectador o movimento que a cena propõe. Ele quis mais: que, literalmente, o barro se movesse e que, como num sopro, seus bonecos se fizessem vivos.[6]

Adalton Lopes toma o mundo vivido como inspiração. Suas obras alargam a noção de experiência, incluindo, sem hierarquias, o vivido e o imaginado.

Nhô Caboclo [Manoel Fontoura], falecido em 1976, nasceu em data incerta na aldeia de Águas Belas, interior de Pernambuco. Filho de mãe indígena, da etnia Funiô, e de pai provavelmente negro, viveu e realizou expressiva parte de sua obra em Olinda, PE.

Sua memória do passado começou em Garanhuns, onde sabe que se criou. Emigrante da zona rural, ele costumava contar que nunca gostou de trabalhar na diária, na lavoura, mas que sempre inventou peças fortes como, por exemplo, um objeto para prevenir o mau olhado, para ser usado no alto das casas. Chegou às obras articuladas por não se satisfazer mais com as peças mortas, que não se movimentam. Seu desejo de entender e interferir no mundo, ao menos no seu mundo imaginário, levou-o a criar personagens em permanente estado de alerta. Em seu linguajar original, compartilha sua trajetória:

Antigamente eu prinspiei a fazer um piscui de acubagem: uma pecinha morta, que não tinha graça. Depois eu peguei de fazer peça manual para trabalhar no vento, com um corta-vento, ligado a um vaivém, do jeito da máquina do trem que locomove uma elce. Aí a elce trabalha e em tudo o que o vaivém tiver enganchado tem de bulir: todo mundo trabalhando. Depois disso principiei a fazer a roda-dágua: a caçamba enchia de água, ficava pesada, aí as máquinas tinham força pra puxar um dínamo e moer a cana.[7]

Fascinado pelo trem, pelos processos de automação trazidos pela industrialização, mas enfrentando grandes dificuldades no viver, ele olhava a vida como uma guerra sem fim. “E o derradeiro a ficar vivo sou eu mesmo”, dizia.

Para as autoras de O reinado da lua,

Caboclo desafia os artifícios do poder, inventa uma linguagem própria, inacessível aos eruditos, e de forma muito especial inverte a hierarquia. (…) Para ele sua arte encontra-se intimamente associada à ideia de movimento – movimento que remete à própria dinâmica da sociedade moderna, da força da máquina, da guerra. Presentes em suas esculturas, engrenagens se articulam, figuras se equilibram, pássaros rodam – traduzindo seu entendimento do mecanismo da sociedade, ao qual caboclamente impõe seu ritmo.[8]

Laurentino Rosa dos Santos, nascido em 1938 e falecido em 2009, tornou-se conhecido pelos sinaleiros dos ventos, por ele denominados de índios do futuro. Seus personagens, munidos de facões – que parecem pás ou hélices – apontam a trajetória mutante dos ventos. O artista chegou aos sinaleiros de maneira casual, pensando em chamar a atenção dos transeuntes para seu carrinho de pipocas. Empregando ferramentas simples, escolheu inicialmente os pequenos formatos. Embora este tipo de objeto seja bastante comum, a maneira como ele os realizou foi altamente personalizada.

Logo que se mudou da zona rural para a periferia de Curitiba, fez gaiolas, pequenos animais e cata-ventos. Conseguindo compradores interessados nas formas e na originalidade de seus traços, passou, mais tarde, a se dedicar inteiramente à feitura dessas obras/brinquedos, conferindo maior ênfase à figura humana e aos pássaros. A introdução de sinais e simbolismos judaicos em suas criações parece ter se dado de maneira similar[9]. Como fazia ponto diante do cemitério israelita de Curitiba, foi pouco a pouco absorvendo e integrando essas imagens em seus personagens. Depois de ter sua obra aceita em circuitos da arte popular, Laurentino passou a se dedicar com mais ênfase aos sinaleiros em grandes formatos.

Homem de vida simples, analfabeto, teve muitos filhos, e nunca pôde dedicar-se exclusivamente ao artesanato por ele inventado. Ao final da vida, trabalhava como jardineiro, aparando gramados, podando árvores, cuidando de flores. Seu filho Francisco seguiu-lhe na profissão e tem feito exposições individuais.

Já o pernambucano de Carpina, Saúba [Antonio Elias da Silva], parece ter um projeto mais consciente de seu trabalho como artista. Para esse mamulengueiro, ator e autor, que vive de sua arte e anda de um lado para o outro realizando suas performances, a experimentação aparece como condição mesma de seu trabalho artístico. Vindo da tradição do teatro de mamulengo – teatro de bonecos da zona da mata pernambucana, cada apresentação lhe pede improvisos. Buscando o riso e o envolvimento da plateia, o artista treina a cada dia, aprende e transforma seu trabalho a cada instante.

A ideia do movimento está no cerne do teatro de bonecos. O ator manipula os personagens e os faz andar, falar, sorrir, brigar e namorar. Apresenta histórias curtas, conhecidas como passagens, encarregando-se não apenas da feitura dos bonecos, mas também do seu manejo, da adaptação e mesmo da invenção de novas histórias e ainda da contratação de um grupo musical para acompanhar seus espetáculos.

Atualmente suas exibições públicas incluem também a dança com a boneca Dona Lindalva, de tamanho natural. Grande dançarino de forró, o artista desenvolveu uma técnica que faz com que a boneca pareça viva.  Ao final das apresentações, exibe as engenhocas criadas por ele, hoje chamadas de mesas ou engenharia do Mestre Saúba.

Suas engenhocas potencializam a cena teatral, dando suporte às performances do ator. Diferentemente dos bonecos manipulados à mão, as engenharias permitem a criação de uma cena complexa e dinâmica, em que personagens, fixos numa base, articulam imagem, cor, som e movimento. Em suas apresentações, o artista dialoga com a cena exibida. É inevitável perceber que nestas cenas seus personagens protagonizam por si, liberando-se dos manipuladores, dos brincantes.

Na obra Volta do Cangaço é impressionante como o artista concretiza a presença do mal, elencando uma sequência de situações dramáticas e explorando o imaginário acerca das perversidades de Lampião e seu bando. Surpreende também a sofisticada associação que promove entre imagem e som: o barulho das engrenagens em ação remete ao tropel dos cavalos. Esse recurso fascina duplamente as plateias, sobretudo se lembrarmos que no momento em que essa e outras obras foram produzidas, não havia tanta familiaridade com os equipamentos elétricos em muitas partes do sertão nordestino, por onde o artista costumava se exibir, com seus bonecos e máquinas. Assim o artista se autodefine[10]:

Eu não tenho leitura. Tenho inteligência. Quando me apresento junta uma multidão de gente. Conto o que vi e ouvi. Quando chego digo: ‘sou o Mestre Saúba, trago novidades que vocês nunca viram na vida!!!’ Gosto de boneco bem malcriado, gosto de provocar: ‘solteiro ou casado?’ Agora estou fazendo uns bonecos tocados pelo vento. Correndo no vento. Os bonecos de bicicleta correndo no vento…

O artista fala rapidamente, animadíssimo. Mistura os assuntos, transborda:

Sou viajado no mundo. Não tenho parada. Eu queria andar o Brasil inteiro. Eu queria ir a Aparecida do Norte…

Embora dê continuidade a uma antiga tradição nordestina, Saúba traz a marca do artista absolutamente original, traço destacado pelo músico e dançarino Antônio Nóbrega:

Ele é um magistral criador de bonecos. Tem uma genial inteligência mecânica, pois faz os bonecos se movimentarem espetacularmente. Pois bem, Mestre Saúba, para mim, é uma dessas figuras nas quais vida e arte se confundem milagrosamente.[11]

Saúba entalha, pinta, canta, improvisa versos, dança, inventa histórias, vive a arte em suas múltiplas dimensões. Sua maestria é reconhecida, embora nem sempre tenha encontrado oportunidades financeiras à altura de sua criação. Ele e os demais artistas que integram esta exposição são homens que se lançaram sem receios na experiência revigorante do fazer, inventando o inexistente e ultrapassando antigos limites.

Abraham Palatnik, decada de 1960, Rio de Janeiro, coleção Gilberto Chateaubriand, Museu de Arte Moderna, RJ. Exposição Máquinas Poéticas, Museu Casa do Pontal, RJ.

Nhô Caboclo, década de 1960, Recife, PE. Acervo Museu Casa do Pontal. Exposição Máquinas Poéticas, Museu Casa do Pontal, RJ.

Adalton Fernandes Lopes, década de 1980, Niterói, Rio de Janeiro, RJ. Acervo Museu Casa do Pontal. Exposição Máquinas Poéticas, Museu Casa do Pontal, RJ.

 

Adalton Fernandes Lopes, década de 1980, Niterói, Rio de Janeiro, RJ. Acervo Museu Casa do Pontal. Exposição Máquinas Poéticas, Museu Casa do Pontal, RJ.

 

Saúba, década de 1970, Niterói, Rio de Janeiro, RJ. Acervo Museu Casa do Pontal. Exposição Máquinas Poéticas, Museu Casa do Pontal, RJ.

*Angela Mascelani é doutora em Antropologia Cultural pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Antropologia Visual pela Escola de Belas Artes da mesma universidade. Autora dos livros “O mundo da Arte Popular Brasileira”, editora Mauad, 2002 e “Caminhos da Arte Popular: o Vale do Jequitinhonha”, Museu Casa do Pontal, 2008.

 

[1] Exposição – Máquinas Poéticas. Abraham Palatnik e os Artistas Populares Adalton Lopes, Laurentino, Nhô Caboclo e Saúba. Curadoria de Ângela Mascelani e Afonso Henrique Costa. De 5 de fevereiro a 5 de maio de 2011, no Museu Casa do Pontal, no Rio de Janeiro.

[2] O Museu Casa do Pontal, no Rio de Janeiro, é considerado o maior e mais significativo museu de arte popular do país. Seu acervo – resultado de quarenta anos de pesquisas e viagens por todo o Brasil do designer francês Jacques Van de Beuque – é composto por cerca de 8.000 peças de 200 artistas brasileiros e recobre a produção feita a partir do século XX. A exposição permanente do Museu reúne obras representativas das variadas culturas rurais e urbanas do país. Mostradas tematicamente, abrangem as atividades cotidianas, festivas, imaginárias e religiosas. O Museu está instalado no Recreio dos Bandeirantes, próximo à Barra da Tijuca. Tombado em 1991, recebeu, em 1996, o prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, concedido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e, em 2005, a Ordem do Mérito Cultural. www.popular.arte.br

[3] Enciclopédia Itaú Cultural (www.itaucultural.org.br). Acesso em 12/01/2011.

[4] Entrevista gravada em 21 de dezembro de 2010, na casa de Abraham Palatnik, com a participação de Lucas Van de Beuque.

[5] Frota, Lélia Coelho. Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro, século XX. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2005.

[6] No artigo “Adalton: o senhor do barro”, publicado pelos dois autores no catálogo da exposição de mesmo nome: Mascelani, Angela; Waldeck, Guacira & Lima, Ricardo Gomes. Adalton: o senhor do barro. Rio de Janeiro: IPHAN, CNFCP, 2007, p.13.

[7] Coimbra, Silvia; Martins,Flávia & Duarte, Letícia. O reinado da lua. Rio de Janeiro: Salamandra, 1980, p. 275.

[8] Idem, ibidem, p. 271.

[9] Contudo, no Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro, Lélia Frota associa a disseminação desta imagem à religiosidade católica popular portuguesa.

[10] Em entrevista à autora, concedida em janeiro de 2011.

[11] Coelho, Marco Antônio & Falcão, Aluísio. Antônio Nóbrega: Um Artista Multidisciplinar. In: Estudos Avançados. Volume 9. Número 23. São Paulo. Janeiro/Abril. 1995 (Dossiê Cultura Popular; Print Version Issn 0103-4014.