artigo
Tempo de leitura estimado: 28 minutos

O AUTOR COMO FETICHE: A AUTOFICÇÃO EM J. P. CUENCA

Resumo: Cruzamento entre performance e autobiografia ficcional, a autoficção tem pautado muitas das discussões literárias contemporâneas sobre autoria, representação e realismo. A publicação do livro Descobri que estava morto, de J.P. Cuenca, simultânea à exibição do falso documentário biográfico A morte de J.P. Cuenca, duas obras que funcionam como paródias da autoficção, insere novos elementos nesse debate ao questionar os limites e as contradições da literatura autoficcional. O texto busca entender como a obra de Cuenca ajuda a pensar esse gênero como resposta à aporia do escritor contemporâneo na era da espetacularização da personalidade do escritor.

Palavras-chave: Autoficção; performance; J.P. Cuenca.

Abstract: Combining performance and fictional autobiography, autofiction has guided many of the contemporary literary discussions on authorship, representation and realism. The publication of Descobri que estava morto, by J.P. Cuenca, simultaneously with the exhibition of his fake biographical documentary A morte de J.P. Cuenca, both works that function as parodies of autofiction, inserts new elements in this debate by questioning the limits and contradictions of the genre. This text intends to understand how Cuenca’s works help us to think autofiction as a response to the aporia of contemporary writer in the era of spectacularization of writer’s persona.

Keywords: Autofiction; performance; J.P. Cuenca.

 

1.

Não custa lembrar, mais uma vez, que, no início do século XVII, um grande parodista já brincava com a confusão entre as várias vozes que enunciam um simples eu num romance. No capítulo IX do primeiro livro de Dom Quixote, o narrador compra os originais em árabe da história do fidalgo da Mancha e faz o mouro traduzi-los para a “língua castelhana”. Esse eu do narrador confunde intencionalmente autor empírico (o Cervantes real) e autor-modelo (o autor hipotético imaginado pelo leitor), narrador e personagem, todos, claro, chamados Cervantes[1].

Para esse jogo funcionar, o leitor – ou leitores, porque aqui também temos um “leitor-modelo” inexistente no mundo real e vários leitores empíricos – deve ter acesso a um conjunto de informações contextuais e paratextuais: precisa saber que Dom Quixote é uma paródia dos romances de cavalaria, por exemplo, e talvez ter alguma ideia do subgênero da pseudotradução. A paródia e outros gêneros, como o roman à clef, só funcionam se o leitor tiver acesso a uma chave. Quando a comunidade de leitores perde a chave, o texto muda de gênero textual.

Em Cervantes, portanto, já havia essa piscadela moderna para o leitor, embaralhando as vozes que enunciam aquele eu, de certa forma inaugurando a história de jogos, paródias, pastiches, sátiras e pistas falsas que marca a literatura moderna.

 

2.

Se nos meus planos de fuga e desterro eu sempre quis ser outro em outro lugar, agora eu tinha conquistado uma prova material desse alheamento: um cadáver com meu nome (Cuenca, 2016, p. 141).

Num curioso caso em que uma ideia relê retrospectivamente toda uma série de obras, nos anos mais recentes “autoficção” – um conceito que surgiu na teoria francesa – virou moda teórica, depois ganhou os cadernos culturais dos jornais brasileiros e as editoras que publicam ficção nacional. Romances que antes seriam apenas autobiográficos, romans à clef ou jogos pós-modernistas – metaficções – de questionamento da autoria agruparam-se nessa etiqueta. A piscadela virou (mais uma vez) uma novidade.

O termo autoficção, portanto, carrega o risco de criar uma ruptura onde há continuidade, ou menos o risco de funcionar como um conceito que gera seu próprio exemplo (isto é, a moda teórica precede o fato literário). Apesar disso, tornou-se uma discussão necessária para quem deseja trabalhar com realismo na literatura contemporânea brasileira. É preciso, no entanto, distinguir ao menos três sentidos em que se pode falar em autoficção: como um outro nome para ficção autobiográfica, algo tão antigo quanto o romance; a partir da ideia nietzschiana de vida como fenômeno estético; como a já citada refutação da ideia de pacto autobiográfico por escritores teóricos franceses[2].

O primeiro sentido funciona como uma redefinição de um gênero ficcional e ressignifica todo o corpus de romances que se baseiam em maior ou menor medida em dados biográficos. É aqui que encaixamos, por exemplo, O filho eterno (2007), de Cristovão Tezza, que, devido a sua consagração (sucesso comercial, resenhas elogiosas e prêmios literários), despertou um interesse renovado na literatura brasileira pela simulação de confissão. A partir de então, todo romance que tivesse como fundo traços autobiográficos, mas que operasse estruturalmente como ficção, seria chamado de autoficção. Assim, para citar apenas um exemplo, é possível que se releia como autoficção O encontro marcado, de Fernando Sabino (Lima, 2013; Silva, 2015).

A segunda das três definições resumidas acima trabalha em um campo mais amplo do que o de gênero ficcional. Segundo ela, autoficção pode ser entendida como a experiência da existência como arte. Essa experiência pode tomar dois sentidos, ambos presentes em Nietzsche. Por um lado, a existência é aparência: “Se não tivéssemos aprovado as artes e inventado essa espécie de culto do não verdadeiro, a percepção da inverdade e da mendacidade geral […] seria intolerável para nós. […] Como fenômeno estético a existência ainda nos é suportável, e por meio da arte nos são dados olhos e mãos e, sobretudo, boa consciência, para poder fazer de nós mesmos um tal fenômeno” (Nietzsche, 2012, p. 124). Disso se conclui que a história e a memória podem ser vistas como ficção – ou, diríamos hoje, como narrativa. Por outro lado, se tivermos consciência de que a existência é aparência – diríamos hoje: de que sempre estamos atuando –, podemos “fazer de nós mesmos um tal fenômeno” (ou o tão citado “torna-te quem tu és” nietzschiano). Essa ideia é reeditada em diversos momentos na história, em experiências comunitárias – nos anos 1960, por exemplo – ou individuais de fusão entre arte e vida. Parte do teatro pós-dramático pode ser lido como essa indistinção entre performance artística e experiência vital, assim como os trabalhos de Sophie Calle.

O terceiro sentido, por fim, carrega a ideia de que todo texto com algum índice autobiográfico é, no fundo, uma ficção (um processo fictício de subjetivação): uma invenção de um eu ficcional por um autor empírico. Ou seja, não seria autoficcional apenas o texto que se coloca num ponto de indeterminação entre ficção e autobiografia, mas toda e qualquer ambição de dizer eu. Se as narrativas históricas ficcionais pós-modernistas desmascararam a nação (e seu mito fundador) como ficção, agora a ficção a ser desmascarada é o próprio sujeito que diz eu.

Nas autoficções contemporâneas mais radicais, como nos trabalhos de Ricardo Lísias (Divórcio, Delegado Tobias e Inquérito policial – Família Tobias) e J.P. Cuenca (Descobri que estava morto), esses três sentidos se encontram na recusa do autor empírico de se retirar da cena de enunciação; ele intencionalmente confunde as vozes envolvidas na enunciação do eu. Num primeiro nível, usam marcas autobiográficas (nomes próprios, intervenções na imprensa, reprodução de documentos) dentro de estruturas ficcionais; num segundo, expandem esse personagem construído ficcionalmente para fora do texto (atuando publicamente como personagens ou lançando pistas falsas sobre o que é real e o que é inventado, o que não ocorre, por exemplo, em O filho eterno); e essas estratégias se unem numa declaração de suspeição do sujeito.

Still do filme A morte de J.P. Cuenca (Duas Mariola Filmes)
Still do filme A morte de J.P. Cuenca (Duas Mariola Filmes)

 

3.

Ser um escritor me ocupava tanto tempo que eu já não podia escrever mais nada – o texto tinha sido substituído pelo personagem no palco de alguns festivais (Cuenca, 2016, p. 140).

Descobri que estava morto parte de uma história ao que tudo indica real: o escritor descobriu que um homem havia morrido portando seus documentos num prédio invadido na Lapa e por isso haviam registrado o óbito de João Paulo Cuenca. Obcecado com essa ideia absurda, ele tenta descobrir os detalhes do caso (qual a identidade verdadeira do morto, por que ele estava com seu documento, quem era a mulher que havia comunicado o falecimento à polícia). Enquanto realiza uma investigação um pouco frouxa, o personagem relata ao leitor como é a vida de um escritor mais ou menos conhecido em um Rio de Janeiro que se prepara para grandes eventos (a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos). Há descrições de uma festa na casa de um editor do maior jornal da cidade, de um encontro de escritores e críticos na Universidade Brown, entremeadas de análises cáusticas do Rio de Janeiro, dos jornais, dos críticos, dos outros escritores e, claro, do próprio João Paulo Cuenca. Afinal, “para um escritor é sempre bom morrer” (Cuenca, 2016, p. 102): não apenas os defeitos do morto parecem desaparecer por um passe de mágica, como também o defunto-autor pode se entregar a uma sinceridade sem limites.

O que o romancista pretende fazer aqui está bastante claro: trazer para dentro da obra, com a ajuda de uma coincidência providencial, um traço cada vez forte do campo literário: o culto do autor como performer, presente em palestras, eventos, filmes – Cuenca dirigiu e protagonizou A morte de J.P. Cuenca, mais ou menos com o mesmo enredo de Descobri que estava morto –, que substitui a leitura e a obra. É uma espécie de versão perversa da vida como fenômeno estético nietzschiana: a arte é apenas álibi para a exposição do autor transformado em fetiche (por uma operação mágica, o valor de exposição do autor substitui o valor de uso da obra). Pressionado pela demanda do mercado, o escritor J.P. Cuenca se entrega anestesiado ou eufórico a essa exploração da personalidade: se é a figura do escritor que o público deseja, é isso que ele receberá, mas junto irá uma imagem refletida da própria perversão desse público.

(Acredito que essa substituição do autor – como função-autor – pelo autor como performer é mais um sintoma do fim da autonomia do campo literário, que no Brasil parece datar dos anos 1990. Em As regras da arte, Pierre Bourdieu (1996, p. 111) lembrou uma frase de Zola: “o dinheiro emancipou o escritor, o dinheiro criou as letras modernas”. Esse período de emancipação acabou. Hoje a leitura, que tende para a impessoalidade, foi substituída pela presença do autor, sempre pessoal, e os critérios literários autônomos são substituídos pela avaliação da performance do autor “bom de palco”, do qual ele muitas vezes tira seu sustento.)

 

4.

Cada um daqueles arquivos […] continha narrativas cujo ingrediente era o desentendimento entre os seres humanos da minha cidade. Histórias transmitidas oralmente pelos seus habitantes e registradas por escrivães […] (Cuenca, 2016, p. 24).

O ato de tornar um texto público costuma envolver a tentativa de estabelecer um pacto, que determina algumas regras de recepção do texto, em diálogo com as regras do campo discursivo em que o texto se inscreve. O pacto ficcional supõe a suspensão da descrença; o pacto autobiográfico supõe que o enunciador tentará ser fiel a sua memória dos eventos e que o leitor confiará nessa tentativa de sinceridade. O pacto, claro, pode ser recusado por um leitor ou pela comunidade de leitores, de modo que o que era para ser lido como ficção passa a ser lido como documental, ou o contrário. O autor, por sua vez, pode tentar jogar com o pacto ou burlar suas regras – quando revela que estava manipulando o leitor, por exemplo.

O gesto capital do pacto autobiográfico – do qual deriva o pacto autoficcional – não está na estrutura interna do romance. O efeito de real barthesiano não é o que instaura esse pacto, como no romance realista clássico, mas outro tipo de efeito, talvez o que Lionel Ruffel (2012, p. 18) chama de “efeito de documento”: algo naquele texto é não apenas (ou necessariamente) verossimilhante, mas sim concreto, exterior ao texto.

Esse efeito de documento pode ser alcançado pelo uso de nomes próprios, citações, fotos, depoimentos – ou, no caso do romance Descobri que estava morto, pela reprodução do atestado de óbito em nome do autor, João Paulo Cuenca. Mesmo assim, é necessário um aparato paratextual – no caso do livro de Cuenca, textos assinados por Enrique Vila-Matas, Silviano Santiago, Gonçalo Tavares e Sergio Sant’Anna impressos na orelha e na quarta capa – e contextual – entrevistas e textos para a imprensa, palestras, participação em feiras literárias etc. – para que o pacto funcione.

 

5.

A queda chega e você, com certa tranquilidade, como se fosse um observador externo de si mesmo, pode ouvir o golpe (Cuenca, 2016, p. 168).

Em um comentário a O que é um autor?, de Michel Foucault, Agamben (2007, p. 59) sugere: “o autor está presente apenas em um gesto, que possibilita a expressão na mesma medida em que nela instala um vazio central”. Esse gesto é um afastamento do texto, por meio do qual o autor como indivíduo real abandona o texto e abre espaço para aquilo que Foucault chamou de função-autor. A partir daí, o autor está presente no texto somente como uma ausência, como uma função dentro da economia discursiva, e cabe ao leitor atualizar o jogo lançado pelo autor.

É esse gesto de afastamento do autor que possibilita que o leitor emerja. Barthes também expõe essa ideia no ilusoriamente simples, e talvez por isso tão mal lido, “A morte do autor”, em que defende que é o leitor, e não o autor, quem dá “unidade” ao texto (Barthes, 2004, p. 64). No processo de leitura e atualização de um texto, o receptor-leitor é o único agente “real” da obra de arte – uso aqui a terminologia de Linda Hutcheon (1989, p. 36) –, enquanto o autor é um agente potencial, cujas intenções (codificadas) são inferidas no processo de leitura.

O autor como performer, no entanto, recusa esse gesto de retirada, anulando a “impessoalidade prévia” que permite que o texto aja, “performe” (Barthes, 2004, p. 59). Num mundo em que a presença do escritor é mais importante que o texto, o autor retorna de sua anunciada morte, mas transformado, isto é, como fetiche (ainda assim, numa estranha inversão ou autonomização do mecanismo fetichista): o autor não aparece como resultado ou função da obra, mas como um ser independente da própria existência da obra.

 

6.

É possível citar uma série de autores que parecem inspirar o romance de J.P. Cuenca: Lima Barreto e João Antônio em sua relação com a cidade; Enrique Vila-Matas nos jogos metaliterários; Paul Auster na incerteza da identidade do personagem; Nabokov no uso particular do narrador não confiável (deve haver outros, talvez mais óbvios).

Acho, no entanto, que, ao menos na leitura que tento fazer, a referência mais relevante é a de Michel Houellebecq. Primeiro, no impulso de criar um retrato distópico do futuro imediato do Rio de Janeiro – presente principalmente em capítulos de um romance inacabado que Cuenca estava escrevendo quando descobriu que alguém havia morrido com seu nome –, há muito da mistura de diagnóstico implacável e autoescárnio que encontramos nos dois últimos romances de Michel Houellebecq, Submissão (2015) e O mapa e o território (2010) – neste, aliás, um personagem chamado Houellebecq é brutalmente assassinado. Ou seja, Cuenca parece indicar em alguns momentos que ele deseja fazer, como o autor francês, o tipo de diagnóstico forte, pessimista e realista que caberia à literatura contemporânea.

O mapa e o território, em especial, é uma espécie de romance programado para fazer o campo literário se voltar contra si próprio. Não à toa, é um livro que dialoga o tempo todo com a arte contemporânea, principalmente com Jeff Koons, sobre quem Houellebecq já escreveu – o protagonista, um artista plástico, está preparando um quadro não à toa chamado Damien Hirst et Jeff Koons se partageant le marché de l’art. O romancista deixa claro que está parodiando o projeto de Jeff Koons – e ao mesmo tempo aderindo a ele – ao usar as regras do campo artístico contra o próprio campo. Autoexposição (a série Made in Heaven, de Koons, o retrata com sua então mulher, Cicciolina, em cenas eróticas, algumas inspiradas em imagens religiosas; Houellebecq atuou no filme L’enlèvement de Michel Houellebecq, inspirado em rumores de que seria sequestrado), indiferenciação entre original e cópia (o que Koons trabalha nas séries de “balloon animais”; Houellebecq faz algo similar em O mapa e o território ao copiar trechos da Wikipédia, sem indicar que são citações e sem corrigir possíveis erros), questionamento e aproveitamento das distorções do mercado da arte (ou da literatura): todos esses são traços que Koons compartilha com Houellebecq e que Cuenca explora em seu romance-filme.

Nos três artistas, fica clara a ambiguidade de suas estratégias paródicas: quanto é crítica e quanto é “recalque e oportunismo barato” (Cuenca, 2016, p. 63); o que é transgressão e o que é adesão; ou melhor, quanto essa transgressão – que põe em questão a autonomia do campo e a autoridade da arte de falar sobre qualquer coisa além dela mesma – pode domesticar qualquer possibilidade de transgressão?

Cartaz de Made in Heaven, 1989, de Jeff Koons
Cartaz de Made in Heaven, 1989, de Jeff Koons

 

7.

Gerações reproduziram a história do seu espanto quando desembarcou no Cais do Porto do Rio de Janeiro e viu um negro pela primeira vez na vida, em 1911 – apenas 23 anos depois da abolição da escravatura no Brasil (Cuenca, 2016, p. 146).

Alguns romances autoficcionais brasileiros – como O filho eterno, de Tezza, Divórcio, de Ricardo Lísias, e Descobri que estava morto – compartilham um conjunto interessante de características. Primeiro, seus protagonistas são escritores que usam a escrita como uma espécie de justificação de conduta às avessas: olhem como sou corajoso a ponto de mostrar quão execrável sou, parecem dizer. Além disso, se eliminarmos o contexto discursivo e os lermos como pura ficção são – com possível exceção de Cuenca, que em determinado momento desvia a trama para um final “imaginativo” – romances realistas clássicos, pouco experimentais, se é que ainda cabe falar nesses termos.

Há, no entanto, outra questão que parece separar o livro de Cuenca dos demais. Se observarmos com atenção, o tema autoficcional é pontuado por outro assunto insistente: o outro lado da “cidade partida”. Percebemos isso na insistência do narrador de Descobri que estava morto em qualificar os “não brancos”: o morto é “pardo” (2016, p. 25), a mulher desconhecida é “negra” (p. 27, 173, 207, 229), o homem que invade a casa do protagonista na infância é negro (p. 92), como também os “jovens negros nas favelas” exterminados “sob o pretexto da guerra contra as droguinhas” que são consumidas na festa do editor (p. 94), enquanto a “raça” da maior parte dos outros personagens permanece indeterminada. Isso fica claro também nas referências às favelas, sempre distantes, mas objeto de um desejo que emerge com bastante evidência no filme, cuja câmera voyeurística busca com insistência os morros da cidade.

É essa consciência de que há um outro a que não se tem acesso que destaca o livro da autoficção contemporânea. O romance nos diz o tempo todo que esse escritor – consciente da inutilidade da literatura, da futilidade de seu posicionamento político e de como ele enquanto escritor também se aproveita dos problemas alheios – nutre um desejo perverso por conhecer outro social, ou, em outras palavras, por ter a autoridade do discurso do despossuído. A favela provoca um misto de fascínio e horror[3].

É essa autoconsciência culpada que faz com que o romance de Cuenca revele algo sobre a autoficção que parece ficar esquecido nas discussões teóricas: seu formalismo e sua alienação narcisista.

A autoficção – fico tentado a usar o adjetivo “burguesa” – é um exercício de questionamento da autoria e do documento que usa como instrumentos justamente o documento e a função-autor. Qualquer que seja seu assunto, seu tema final vai ser o estatuto do ficcional e do documental. A autoficção não fala de nada além da autoficção. Por isso, ela precisa construir o aparato contextual cuidadosamente, para produzir o efeito passageiro de choque, que deverá lembrar a seu público – o campo literário hegemônico – que a literatura é, afinal, apenas isso: um discurso construído (algo que já sabemos há algum tempo).

A literatura periférica, discurso primeiramente comunitário, realiza uma versão muito menos formalista dessa operação: Capão pecado, de Ferréz, por exemplo, confunde personagens reais com ficcionais, mas o questionamento do documental – apesar de alguns críticos ainda lerem a literatura marginal como mero documento, o que me parece um equívoco reducionista – e do autoral transcende rapidamente a esfera formal e parte para o embate político do presente. É uma literatura que desde o princípio opera entre o ficcional e o documental, entre o textual e o contextual, sem precisar reforçar retoricamente essa indefinição. Sem anunciar e enfatizar essa indistinção, ela subverte as regras do campo literário hegemônico, justamente as regras a que a autoficção presta homenagem (mesmo que formalmente as subverta).

É nisso que está o realismo desconcertante de Cuenca: não na mímica de discurso político, mas no desvelamento de nossa impotência prática, da futilidade dessa versão sofisticada dos jogos pós-modernistas que é a autoficção, do narcisismo do campo literário e da precariedade de nossas políticas literárias.

 

8.

…a literatura morre um pouco cada vez que alguém levanta a voz para defendê-la num desses palcos construídos para que ainda acreditem na sua existência (Cuenca, 2016, p. 157).

Apesar de tudo que tentamos até aqui extrair do romance de Cuenca, é preciso concluir que ele muito provavelmente não passa de uma paródia (ou pastiche, como prefere Fredric Jameson).

Em Uma teoria da paródia, de 1985, Linda Hutcheon diz que “As formas de arte têm mostrado cada vez mais que desconfiam da crítica exterior, ao ponto de procurarem incorporar o comentário crítico dentro das suas próprias estruturas, numa espécie de autolegitimação que curto-circuita o diálogo crítico normal” (1989, p. 11). Essa autorreflexividade teria um de seus avatares na paródia, gênero em que ocorre a citação intencional de dois ou mais códigos ou obras com distância crítica ou irônica, invertendo, recontextualizando e/ou refuncionalizando algumas das características dessas obras e códigos, de modo a reler, criticar ou satirizar os modelos ou o nosso presente. Para funcionar, no entanto, a paródia precisa de um leitor “sofisticado” o suficiente para decodificar as alusões.

Para voltar à terminologia que adotei até aqui, a paródia – como conceituada por Hutcheon – estabelece um pacto segundo o qual o leitor deve procurar na obra quais são os dois (ou mais) pactos que serão invertidos, subvertidos ou satirizados.

O leitor de Cuenca até aqui estava dentro do pacto autoficcional, imerso num jogo em que referências documentais tinham sua autenticidade posta em dúvida (os documentos reproduzidos eram reais? Se são reais, a história em torno deles é verdadeira? Até que ponto? Qual a intenção do autor ao propor esse jogo? O que mais ele coloca em dúvida?). Mas então o livro inflete abertamente para a ficção, de uma maneira que lembra a narrativa policial pós-modernista de Paul Auster na Trilogia de Nova York: o personagem Cuenca-escritor parece assumir o papel do falso Cuenca, o sem-teto que morreu com os documentos do personagem Cuenca-escritor, numa trama parecida com a de Daniel Quinn (personagem da Trilogia que, não por acaso, tem as mesmas iniciais de Dom Quixote).

Esse desvio no enredo – que formalmente é explicitado pelo deslocamento da narrativa em primeira pessoa para uma narrativa em segunda pessoa ou, para ser mais exato, primeira pessoa com destinatário, que entendemos ser a mulher negra que estava com o sem-teto morto –, que serve para dar uma resolução aos impasses da trama, termina com a suposta morte também do Cuenca original. O livro termina com um posfácio acadêmico ficcional escrito pela fictícia Maria da Glória Prado, crítica acadêmica que já havia aparecido como personagem no romance, que explica ao leitor que o Cuenca-escritor morreu realmente e interpreta a obra usando o arsenal teórico esperado: “autoria como performance” (Cuenca, 2016, p. 233), “quebra-cabeça autoficcional” (p. 234), “fetiche exibicionista” e, claro, a morte do autor de Barthes (p. 235). Aqui também modelos não faltam: o prefácio ficcional de John Ray, Jr., em Lolita, de Nabokov, ou a longa tradição do manuscrito descoberto e da falsa autobiografia, como em Robinson Crusoé, de Daniel Defoe.

Essa estratégia narrativa, claro, funciona como um grau a mais de autorreflexividade em relação à autoficção contemporânea, mas também pode ser lida como um grau a mais de defesa da persona autoral: é como se a estratégia de usar o álibi ficcional para falar de si agora não bastasse e o autor precisasse dar mais uma volta no parafuso e expor por dentro a autoficção, mas ainda assim estivesse falando de si. Se antes, ao apontar para sua impotência diante do outro – a favela removida pela política higienista do governo, o sem-teto –, Cuenca parecia nos mostrar como a autoficção seria um trabalho puramente formal e autorreferente, aqui o livro se mostraria também autorreferente e formalista.

Mas essa conclusão também é apressada. Precisamos ver quais códigos Cuenca parodia. Primeiro, claro, o código autoficcional, com seu jogo sofisticado de referências contextuais e teóricas (a autoficção é sempre um texto que se oferece para a teoria, que pressupõe esse tipo de leitor-modelo informado). Em segundo lugar, Cuenca parodia o discurso político – que é exercido pelo Cuenca real, colunista da Tribuna da Imprensa, do Globo, da Folha de S. Paulo e agora do Intercept, além de comentarista do canal de TV Globonews por um bom tempo – da classe média letrada, o discurso teórico e, talvez o mais importante, os próprios livros de Cuenca, com sua mistura de realismo urbano e expressionismo distópico. E, por fim, parodia o código do romance policial pós-modernista.

Diante dessa leitura do romance como paródia de três códigos, acredito que podemos propor uma leitura dupla dessa aparente aporia final do romance de Cuenca, que assim se mostra mais rico do que um mero exercício autorreferente. Por um lado, o livro é um acerto de contas com a contradição inerente à função do escritor contemporâneo. Cuenca é um exemplo do autor cujo papel performático veio junto (ou mesmo antes) da efetiva transformação mágica do literato em escritor operada pelo reconhecimento do campo literário. De maneira mais simples: antes de ser um autor publicado, Cuenca era um personagem (público) do campo literário expandido (festas literárias, palestras, debates, entrevistas, cadernos na imprensa) por ter participado da primeira Festa Literária Internacional de Paraty, de 2003. Descobri que estava morto é um acerto de contas com essa situação paradoxal do escritor contemporâneo – que ganha mais capital financeiro e simbólico falando da obra do que sendo lido, e que por isso de certa forma precisa ser melhor falando do que escrevendo – e com os caminhos que o Cuenca-escritor adotou para tentar produzir uma obra apesar da futilidade dessa pretensão. Essa interpretação é reforçada pela identificação de pontos de contato – citações quase literais – de cenas do primeiro romance de Cuenca (Corpo presente, 2003) no filme A morte de J.P. Cuenca, como apontou Ieda Magri (2016).

Por outro, ao contrário de Lísias e Tezza, Cuenca busca lidar diretamente – de maneira talvez desajeitada, mas hoje há outro modo? – com temas políticos, principalmente ligados a sua obsessão desde Corpo presente: a cidade; mais que isso, às ruas da cidade, como em João Antônio, Lima Barreto e em parte da obra de Rubem Fonseca. A ideia do escritor como observador total – que às vezes se confunde com a ideia do andarilho que, na anonimidade da multidão, pode encontrar a si mesmo – cai, claro, na impossibilidade dessa utopia moderna do intelectual como representante dos despossuídos: o escritor pode apenas fantasiar a realidade daquele sem-teto que morre de toxoplasmose dentro do esqueleto de um prédio na Lapa. Diz o Cuenca ficcional: “… no fim das contas, o movimento de encarecimento da cidade e as violações dos direitos humanos me incomodavam apenas o suficiente para eu me aproveitar disso num livro antes de me mudar de cidade e de país” (2016, p. 63). O outro da Literatura, aquele que só era representado filtrado pelas lentes idealizadoras do romantismo ou pelas lentes animalizantes do naturalismo, é o grande ausente da autoficção; resta ao autor – essa talvez seja a síntese de minha leitura do romance – falar desse desejo sempre frustrado de ser outro, da certeza de que qualquer tentativa vai resultar numa fraude, que, infelizmente, será levada a sério pelo campo literário.


* Lucas Bandeira de Melo Carvalho é jornalista, editor de livros e doutorando em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

 

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007 [2004].

BARTHES, Roland. A morte do autor. In: O rumor da língua. Trad. Leyla Perrone-Moysés. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004 [1968], p. 57-64.

BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. Trad. Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996 [1992].

CUENCA, João Paulo. Corpo presente. São Paulo: Planeta, 2003.

CUENCA, João Paulo. Descobri que estava morto. São Paulo: Tusquets, 2016.

ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Trad. Hildegard Feist. 8ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004 [1994].

HOUELLEBECQ, Michel. O mapa e o território. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Record, 2012 [2010].

HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia. Trad. Teresa Louro Pérez. Lisboa: Edições 70, 1989 [1985].

JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco. 2ª ed. São Paulo: Ática, 2004 [1991].

LIMA, Ricardo Vieira. Encontro marcado do menino com o espelho. Anais do SILEL, vol. 3, nº 1, Uberlândia, EdUFU, 2013.

LOGAN, Peter Melville. The Encyclopedia of the Novel. Berkeley: Wiley-Blackwell, 2011.

MAGRI, Ieda. Autocomposição em Descobri que estava morto, de J.P. Cuenca. Z Cultural, Revista do Programa Avançado de Cultura Contemporânea, 2º semestre 2016. Disponível em: http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/resenha-autocomposicao-em-descobri-que-estava-morto-de-j-p-cuenca/.

NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. de Bolso, 2012 [1882].

RUFFEL, Lionel. Un réalisme contemporain: les narations documentaires. Littérature, fev. 2012, nº 166, p. 13-25. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-litterature-2012-2-page-13.htm.

SILVA, Vivian Bezerra da. A vida como produto de invenção: o caráter autobiográfico da escrita de Fernando Sabino. Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

 

Notas

[1] Uso aqui uma das muitas conceituações possíveis da divisão do emissor em um texto, baseada na versão de Umberto Eco (2004, p. 20); poderíamos também chamar essas funções de autor externo, sujeito da enunciação e sujeito do enunciado; ou indivíduo real, função-autor e sujeito do enunciado etc.

[2] No mundo anglo-saxão os termos da discussão costumam ser diferentes: “Formas de escrita ficcionais e não ficcionais partilham uma história longa e mutuamente influente. Por exemplo, ficção autobiográfica, auto/biografia ficcional ou romance semiautobiográfico são termos que foram usados para descrever textos que, deliberadamente ou devido a sua recepção, colocam-se entre [straddle] ficção e não ficção” (Douglas apud Logan, 2011, p. 485-486); ou então se agrupam esses gêneros no rótulo de metaficção.

[3] Acredito que não seria abusivo comparar o romance-filme de Cuenca com o filme Aquarius, de Kléber Mendonça Filho: sob o discurso heroico da protagonista de Aquarius, Clara, há um baixo contínuo nos dizendo que o que permite que ela resista à especulação imobiliária é seu capital social, construído pela exploração de pessoas como a empregada negra de quem a família não consegue lembrar o nome, ou pela exclusão da juventude da periferia, como os meninos que invadem uma sessão de terapia coletiva da protagonista e de outras pessoas de classe média.

 

Recebido em outubro de 2016
Aprovado em janeiro de 2017