Ano XIII 0201
dossiê
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PAULO FREIRE E A COMUNHÃO EDUCACIONAL NO MUNDO

Resumo: Este ensaio busca representar um modo freireano de responder a críticas desferidas contra o pensamento do educador. Companheiro de trabalho de Freire nos anos de 1990, o autor do ensaio recupera vozes de seus textos para dialogar com um dos últimos críticos, cujo livro também imputa ao patrono da educação brasileira certo extravio dos estudos de pedagogia no Brasil. Os textos são postos em relação e analisados com base em repertório linguístico, buscando evitar o mero confronto ideológico, como faria Paulo se vivesse em tempo de grande virulência verbal e intolerância, como o nosso.

Palavras-chave: Pedagogia; educação brasileira; Paulo Freire; influência; crítica.

Abstract: This essay seeks to represent Freirean way of responding to  the critiques issued against the educator’s thinking. As a former working partner of Paulo Freire in the 1990s, the author of the essay recover voices from his texts in order to dialogue with one of the last critics of Freire, whose book imputes to the patron of Brazilian education some misplacement of studies of pedagogy in  Brazil. The texts are put into relation and analyzed comparatively under linguistics repertoire that avoids ideological labels, as Freire would have done so if he were to live in times of great verbal virulence and intolerance, like ours.

Keywords: Pedagogy; Brazilian education; Paulo Freire; influence; criticism.

 

Introdução

O ano de 2017 assinalou investidas contra Paulo Freire. Abaixo-assinado e discursos midiáticos trataram do “desastre” representado pela obra de Paulo Freire no desenvolvimento da educação brasileira contemporânea. No Congresso Nacional, alguns deputados, capitaneados pelo Sr. Rogério Marinho (RN) repercutiram tais discursos. Juntos, buscaram retirar do educador o patronato da educação nacional. Publicou-se, também, uma obra que pretende questionar Paulo Freire – ou “certa leitura” dele – assinada por Ronai Rocha. Trata-se do livro Quando ninguém educa –Questionando Paulo Freire[1].

Disponível em: https://www.saraiva.com.br/quando-ninguem-educa-questionando-paulo-freire-9738551.html. Acesso em: 08 jun 2018
Disponível em: https://www.saraiva.com.br/quando-ninguem-educa-questionando-paulo-freire-9738551.html. Acesso em: 08 jun 2018

Seria de todo desnecessário defender o autor de Pedagogia da autonomia. Reconheça-se, no entanto, que não temos o direito de ser sectários, como aprendemos com ele. Dizer que a obra de Rocha nada vale diante da grandeza do educador que ficou conhecido em parte significativa do mundo seria algo sectário. Daí, pelas anotações que faz em algumas partes do livro, o trabalho do Professor Rocha tem o valor de texto para o debate, assim como foi necessário intervir e debater para que as investidas citadas sucumbissem, por enquanto, nas comissões do legislativo nacional. Ademais, o mestre de Angicos e perambulante do mundo buscou sempre receber as críticas, considerá-las, analisá-las e respondê-las, o que manteve afiada a sua consciência crítica, coerente com os direitos fundamentais exercido pelas pessoas.

Pretende-se neste ensaio trabalhar a obra de Rocha menos exaustivamente do que em seus motivos centrais. Mesmo porque ela revela um Freire trabalhado algo perfunctório, como se fosse uma hipótese de trabalho no meio de uma “outra” obra que percorre as 153 páginas e que visaria discutir o currículo do ensino médio em face do advento de sua nova BNCC.

Para desenvolver este trabalho cabem, portanto, preliminares: 1. Não serão dispostos os conceitos de conservador/revolucionário/reacionário/progressista e similares porque, embora úteis na marcação de posições, servem neste tempo de banalização midiática como etiquetas que se projetam na história cultural brasileira já muito marcada e posta a reboque por grupos de interesse[2]. Melhor, pois, situar-se noutro repertório, sem prejuízo hermenêutico. 2. Interessa saber se o dinamismo do pensamento freireano foi objeto de conhecimento da obra de Ronai Rocha, a fim de justificar uma crítica fundamentada sobre um movimento de ideias que vai de 1960 ao início deste século, já por meio de obras póstumas de Freire; 3. O título da obra em questão sugere o questionamento direto da obra de Freire, diferentemente das partes que o compõem: como já escrito, existe em Quando ninguém educa uma obra já composta sem a temática freireana e que está em busca de pensar uma base nacional comum do ensino médio, a qual se revela ao autor como inexistente, mal projetada nas relações MEC-CNE e, de outro, a suposição de uma leitura inadequada de Freire sobre um conjunto irrisório de textos; o autor avança para o final da obra sem os dois objetos, Freire e BNCC do ensino médio e, portanto, deriva sua escritura, ou a re-monta em direção à interdisciplinaridade e algumas digressões. De todo válidas, embora melhor fosse entender seu livro como um conjunto de ensaios distintos. 4. Não é possível ater-se exclusivamente ao texto de Pedagogia do oprimido, ou citar por acaso e mero adjutório uma ou outra obra, porque os grandes motivos freireanos são sinérgicos, aprendentes no movimento do viável e receptores do mundo movente, com o qual interagem e dialogam de modo indispensável e imprescindível. O próprio Freire sugere um processo de leitura na Breve explicação de Ação cultural para a liberdade: “Juntamente com Extensão ou comunicação, publicado no Brasil em 1970 por Paz e Terra, alguns deles (textos) talvez aclarem certos possíveis vazios entre Educação como prática da liberdade e Pedagogia do oprimido[3]”. 4. Não teria sido a leitura do autor de Educação e mudança muito ligeira ou marcada pelo marketing das redes sociais de modo a confundir fins e meios da obra crítica ou, no melhor dos casos, levar o acadêmico a ombrear-se com o deputado Rogério Marinho (RN) e os autores do abaixo-assinado para arrancar de Freire o patronato da educação brasileira? Como se sabe, o primeiro listou todas as citações políticas de Pedagogia do oprimido como se estivesse a trabalhar com o texto de Ionesco, O rinoceronte, e o grupo midiático encontrou em Freire o bode expiatório para a falta de política nacional e integrada de educação, incluído nela aquele amor às novas gerações de que tratou Hannah Arendt[4]. Exceção feita ao livro de Rocha, legisladores e ativistas de redes não souberam o que fazer com o Paulo Freire que viram de seu viés, a despeito de continuarem a manter o seu ódio difuso diante de um pensador que de todo desconhecem. Mas este não é o caso do autor de Ninguém educa ninguém.

A atitude

Este ensaio se limita a ler Quando ninguém educa com a disposição de considerar atentamente o seu título, o qual é desdobrado em momentos destacados do texto; assim também, compulsa textos freireanos para exercer o trabalho de recepção, análise e diálogo intelectual sobre conceitos, confrontos e julgamentos na história das últimas décadas da educação no Brasil. Nesse quadro, o autor do ensaio se apresenta como professor de crianças e adolescentes da escola pública paulista entre 1968 e 1988, professor e pesquisador na universidade e membro do CNE por um mandato de 4 anos (2012-2016). Afirme-se que faz um exercício que homenageia, do seu lado, o mestre capaz de, em tantos momentos, relembrar a incompletude, a finitude e a necessidade imperiosa de não se bastar. Como, por exemplo, em À sombra desta mangueira:

Nunca me recolho como quem tem medo de companhia, como quem se basta a si mesmo, ou como quem se acha uma estranheza no mundo. Pelo contrário, recolhendo-me conheço melhor e reconheço minha finitude, minha indigência, que me inscrevem em permanente busca, inviável no isolamento (Freire, 1995, p. 17).

Cabe anotar que as referências à Pedagogia do oprimido neste ensaio consideram o livro manuscrito por Freire em 1968 e oferecido ao casal Jaques Choncol, ministro de Allende e sua esposa Maria Edy. Sabe-se que a primeira edição da obra foi em inglês e, à luz do manuscrito, observam-se na primeira edição diferenças textuais, inclusive figuras desenhadas por Freire. Portanto, as indicações são distintas de qualquer edição brasileira ou estrangeira. O manuscrito foi publicado em 2013 por Ed, L do Instituto Paulo Freire, Uninove e MEC, com 233 páginas. Projeto editorial, organização, revisão e textos introdutórios de Jason Ferreira Mafra, José Eustáquio Romão e Moacir Gadotti.

Nunca faltou em Freire e nos que o leram (Paulo também não exigiu leitura única ou “certa”) a clareza de que, se não publicizou um método, deu indicações seguras para que as comunidades educativas e ensinantes trabalhassem currículos e suas metodologias. No entanto, tais práticas seriam projetos de um conhecer compartilhado entre pessoas e comunidades e, num crescendo, quem sabe nacional, libertador dos modos de fazer educação no Brasil que a muito poucos satisfaz.

Quando secretário da educação em São Paulo (1989-1991), dialoga com Ana Maria Saul e pensa currículo, entendido aqui, metaforicamente, como o coração das relações ensino-aprendizagem comungadas na história das gerações e sistematicamente compartilhadas. Não há currículo sem projeto pedagógico, memória cultural, lugares criativos da ação, educadores e educandos “inconclusos” em crescimento. Daí as propostas de Paulo Freire no diálogo:

O que proponho é um trabalho pedagógico que, a partir do conhecimento que o aluno traz, que é uma expressão da classe social à qual os educandos pertencem, haja uma superação do mesmo, não no sentido de anular esse conhecimento ou de sobrepor um conhecimento a outro. O que se propõe é que o conhecimento com o qual se trabalha na escola seja relevante e significativo para a formação do educando. (…) A escola pública que desejo é a escola onde tem lugar de destaque a apreensão crítica do conhecimento significativo através da relação dialógica. É a escola que estimula o aluno a perguntar, a criticar, a criar. (…) …é preciso um grande investimento na formação permanente dos educadores para que se possa reverter a situação existente e se conseguir um trabalho onde a relação dialógica aconteça de verdade (2001, p. 83).

 Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Method_Paulo_Freire.jpg Acesso em: 08 jun. 2018

Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Method_Paulo_Freire.jpg
Acesso em: 08 jun. 2018

Esta reflexão não é uma aula de sociologia e sim a marcação de caminhos para a construção de projetos pedagógicos pelas comunidades escolares. Ora, há lugares de educação e ensino, há educantes e ensinantes. A questão é onde eles se situam, a favor de quê, contra o quê, com quem, para quem, como, onde. Situar-se em relação pedagógica, curiosa e perguntadora induz ao conhecimento comungado. Não é possível banalizar tal texto! Mas é necessário acrescentar que, sem citar Freire (talvez sua influência) Rocha (p. 43) não aceita que equipes docentes sejam instância decisória da ação curricular, visto que, neste caso, estarão abandonadas à própria sorte. Rocha inverte o caminho dos processos. Sabedor de que, após 1970, sob ditadura, a abertura insana das instituições de ensino superior que visaram lucros e competições comerciais não conheceu rigor avaliativo, mais ou menos implantado muito mais tarde, ele parece culpar seguidores do pensamento freireano pela fraqueza generalizada da formação de professores. Para não criar nenhuma etiqueta e pregá-las nas testas das posições e movimentos educacionais, o que Rocha faz sistematicamente, basta dizer que foram sufocadas experiências de trabalho em todo o país, reprimidas revistas de qualidade, baixados os salários a ponto de governadores dizerem que as professoras ganham mal porque são mal casadas etc. Ora, a quem o senhor Rocha reclama então?  Efetivamente o currículo vai sendo dinamicamente definido e, mesmo quando não gostamos, disputado. Na sociedade brasileira redemocratizada ampliou-se muito a literatura a respeito, mas não deixou de ser um processo com disputas. Importante, porém, é que o autor criticado no texto de Rocha trabalhou sistematicamente a favor de se chegar, exaustivamente, a algum consenso, a algo que se pudesse comungar, fazer em comum. Como ele aprendeu nas comunidades africanas aqui e ali citadas, ou com gente do campo e da cidade noutras partes do mundo, para não citar o primeiro aprendizado em Angicos.  Evidentemente, sempre horrorizou a Paulo Freire que o currículo fosse preparado em outro lugar e enviado à escola para ser cumprido. Se assim fora, morreria o sentido de comunhão e de projeto escolar. Rocha encontra estranhos culpados para as crises da educação brasileira sob ditadura e, em razão de seu método de leitura, tem dificuldades para ver a dinâmica pós redemocratização, perigosamente marcadas por outros culpados.

Os percursos

Para realizar todo o percurso a favor da educação brasileira, ele precisou entender, de obra a obra, os sentidos da educação no mundo e, mais importante, sua viabilidade humana. Por isso, ganha corpo em seu movimento de aprendizado e descoberta o valor antropológico da educação, exemplarmente exposto em Pedagogia do compromisso. Texto póstumo e tão vivo quanto suas enunciações noutros textos a compor feixes de sentidos, ou a criar a gramática freireana de significações:

A invenção de nós mesmos como homens e mulheres foi possível graças ao fato de que liberamos nossas mãos para usá-las em outras coisas. Não temos data desse evento que se perde no fundo da história. Fizemos essa coisa maravilhosa que foi a invenção da sociedade e da linguagem. E foi aí, nesse preciso momento, no meio desse e outros “saltos” que demos, que nós, mulheres e homens, alcançamos esse momento formidável que foi compreender que somos interminados, inconclusos, incompletos. As árvores e os outros animais também são incompletos, porém não se sabem incompletos. Os seres humanos ganham com isto:  sabemos que somos inacabados. E é precisamente aí, nesta forma radical da experiência humana, que reside a possibilidade da educação. A consciência da nossa incompletude criou o que chamamos de “educabilidade do ser”. A educação é então uma especificidade humana (Freire, 2008, p. 22).

Não será de modo estranho a esse pensamento que Freire analisará quaisquer temas da educação e do ensino, quaisquer discussões sobre a cultura. Provavelmente esteja no fundo da sua ideia de constituir “círculos de cultura” (quaisquer lugares de ensino-aprendizagem, onde quer que se realizem) o encontro dos que são e se desenvolvem para compreender o inacabamento, que não é desvantagem, mas desafio educacional.[5] Nesse processo, o inédito se faz viável e um e  outro ser, uma e outra pessoa, educadores e alunos, que também não se bastam e sabem que a comunhão dos saberes científicos, estéticos, filosóficos, sociológicos e linguísticos leva ao compartilhamento dessas linguagens, realiza-se a construção comunicativa, que se  constitui, radicalmente, na educação. Não é inverdade afirmar que Freire não usou às escâncaras a palavra escola, que Rocha (2017, p. 68) observa faltar em Pedagogia do oprimido. Ocorre que ele construiu seu campo semântico dos lugares da educação e do ensino a partir dos seres educandos que se educam em comunhão. A escola pode ser um lugar importante para tal ação, como já se frisou e se citou.

Quem educa? Quem conscientiza? Quem liberta?

A atitude freireana de tratar um tema pode ser bom método. Se ele tivesse em mãos um exemplar do livro de Rocha, diria, dialeticamente, que estava, com razão, a ser questionado em um de seus pensamentos contínuos, que tanto surgem nas obras iniciais quanto nas posteriores. Freire iria assumir sua disposição radical[6], isto é, afirmar em contextos diversos, que

Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo. Mediatizados pelos objetos cognoscíveis que, na prática “bancária” são possuídos pelo educador que os descreve ou os deposita nos educandos passivos.

Lembraria expressões similares no quadro do pensamento radical, que manteve até a última obra, incluídas as póstumas. A saber:

Não podemos esquecer que a libertação dos oprimidos é libertação de homens e não de “coisa”.  Por isto, se não é autolibertação – ninguém se liberta sozinho – também não é libertação de uns feita por outros. Porque é fenômeno humano não se pode realizar com os homens pela metade, que estes, inclusive, não existem e quando os tentamos realizamos a sua deformação. Mas, deformados já estando, enquanto oprimidos, não pode a ação de sua libertação usar o mesmo procedimento empregado para sua deformação (2013, p. 59).

E, para ampliar o diálogo com o crítico – este autor faz o mesmo – citaria mais:

Não há conscientização se, de sua prática, não resulta a ação consciente[7] dos oprimidos, como classe social explorada, na luta por sua libertação. Por outro lado, ninguém conscientiza ninguém. O educador e o povo se conscientizam através do movimento dialético entre a reflexão crítica sobre a ação anterior e a subsequente ação no processo daquela luta (1982, p. 109).

No mínimo, Freire encetaria um diálogo com seu crítico sobre o conhecimento de três negações, ou três condicionamentos capazes de se realizar, metonimicamente, num dos motivos centrais de sua obra, que é a história como possibilidade. Aí, a afirmação plena. Para países como o nosso, sempre condicionadas, mas não determinadas, o que é central em todos os seus livros.  Independentemente do fato de ter citado Mao Tse Tung, Sartre, Lênin, Erich From, ou o Fernando Henrique Cardoso antes da abjuração das suas obras etc., visto que nunca tirou o direito de outros escritores citarem preferencialmente os americanos (não se pretende etiquetá-los) ou os ingleses do pós-guerra 1939-1945. Os autores não têm lepra e sim posturas ideológicas. Carece assumi-los, pensá-los, rejeitá-los. Os autores não têm culpa de serem citados. Citar textos de Sartre ou do jovem Fernando Henrique sugere a busca de opções num espaço de liberdade, especialmente para quem estava fora do Brasil, exilado. Não foi fácil citá-los aqui dentro!

Mas cabe compreender o pronome indefinido ninguém… que antecede educar, libertar, conscientizar.

Ora, existe razão em Rocha. Não se educa, exceto… Não somos nós que construímos o outro, especialmente num autor fervoroso do fato de que o outro é constituinte do eu. Educa-se no mundo, mas, segundo Paulo Freire, ninguém pode fazê-lo sem comunhão entre quem educa e quem é educado. Destaque-se comunhão, palavra desprezada pelos críticos e pelos horrorizados das mídias. A mãe somente educa quando entra em comunhão com o filho posto na concretude do mundo e de suas relações: história familiar, assistência médica, papel do pai e demais parentes, desejos de futuro, preocupações com segurança, melhor encaminhamento educacional. Tanto é verdade a asserção que em muitos pontos da obra freireana existe certa agonia diante do horror das desigualdades que vitimam os “esfarrapados do mundo” na ordem liberal e neoliberal, notadamente as mulheres (hoje a dirigir 44% dos lares brasileiros, sem a presença efetiva de homem) pois aí a educação em comunhão será muito mais difícil, quase despedaçada. A propósito, argumente-se que, não fossem as mulheres brasileiras, especialmente após a suposta libertação de escravos e constituição da frágil república, brilhantes organizadoras sociais, nossa desgraça social, cultural, educacional e de segurança seria ainda pior do que é. Elas foram provedoras e seguraram a barra do mundo familiar e comunitário. Portanto, a educação se faz no quadro da comunhão possível.

Freire perguntaria ao seu crítico: como alguém pode libertar-me de algo, ou conscientizar-me, se eu não tiver comungado socialmente, apreendido e aprendido nos confrontos do mundo  para não mais carregar em mim os valores de quem me oprime, como se dá nas relações de gênero e muitas vezes nos muitos assédios do mundo do trabalho, para não dizer da relação de poder entre professores e estudantes? Portanto, a alternativa humanizada e de longo alcance para o exercício de valores tão importantes: educar(se), conscientizar(se) e libertar(se) está na construção de um diálogo contínuo, sem opressão de qualquer espécie, numa operação cultural em que ninguém é ignorante de tudo e ninguém sabe tudo, mas as pessoas são capazes de comungar conteúdos da vida e do mundo. Nessa comunhão, exige-se bem-querer, rigor e alegria, abertura e ciência, método e curiosidade, enfim a criação e o desenvolvimento de epistemologias no concreto da experiência.

Evidentemente, a comunhão freireana (que é um conjunto de degraus do conhecimento compartilhado), estranha e distante dos leitores apressados, ou não-leitores, inclusive o Professor Rocha, é um impulso existencial da obra, quer no exílio, quer no retorno, inclusive o tempo de secretário de educação em São Paulo, quando refletiu e fez:

(…) nos momentos que se seguem do processo de reformulação curricular, estaremos conversando com diretoras, com professoras, com supervisoras, com merendeiras, com mães e pais, com lideranças populares, com as crianças. É preciso que falem a nós de como veem a escola, de como gostariam que ela fosse; que nos digam algo sobre o que se ensina ou não se ensina na escola, de como se ensina. Ninguém democratiza a escola sozinho, a partir do gabinete do secretário (2001, p. 43).

Assim como Rocha encontra (p. 73) uma fresta para  admitir que o professor ensina algo a alguém (como se Freire fizesse concessão ao conceito desastroso de antes), a leitura dos encontros da obra freireana deveria levar, imediatamente, a superar o fantasma sociológico que o autor de Ninguém educa ninguém etiqueta na testa do patrono da educação brasileira e ver que sempre se educa e se ensina, mas somente se faz, na perspectiva de autonomia dos envolvidos, na comunhão social, nos compartilhamentos e mesmo confrontos no mundo.

Há, no entanto, para continuar o diálogo com Rocha, diferenças pedagógicas entre educar, conscientizar e libertar. Digamos que a educação liberta e conscientiza. Toda a obra de Freire pensou nesse fenômeno e o “viveu”.  A sua perambulação pela Europa, pelas universidades americanas, pelos asentamientos chilenos, tribos e comunidades africanas, igrejas, escolas ao ar livre e escolas plenamente formalizadas, debates, cursos, encontros levaram a pensar que a educação não pode tanto, mas sem ela não poderíamos sequer iniciar uma jornada de mudança social. E este ato libertador (porque portador de curiosidade epistemológica) fica plenamente evidenciado no Pedagogia do oprimido  e suas muitíssimas retomadas até as obras póstumas. Convém citar:

Educador e educandos, co-intencionados à realidade, se encontram numa tarefa em que ambos são sujeitos no ato, não só de desvela-lo e, assim ganhar o seu conhecimento racional ou a sua razão, mas também de recriar este conhecimento. Ao alcançarem, na reflexão e na ação em comum, este saber da realidade, se descobrem como seus refazedores permanentes. Deste modo, a presença dos oprimidos na busca de sua libertação, mais que pseudo-participação, é o que deve ser: engajamento (Freire, 2013, p. 63).

Destaque-se, ademais, que o “ninguém” do título da obra de Rocha é tão injusto quanto falso, pois no interior da obra o discurso se agarra à muleta da “leitura anacrônica” que se fez nos anos de 1970 e 1980 da obra de Freire e depois volta às reais críticas sobre a falta disso ou daquilo na obra de Freire e sua imerecida influência sobre a educação brasileira. Só se pode falar em leitura anacrônica se houver desconhecimento das belas experiências de alfabetização que foram vivenciadas e comungadas pelo país, em todos os Estados e centenas de cidades, ainda incapazes de superar a ausência de política educacional integrada e integradora, na qual diferentes saberes de governo e governança entram em sinergia para associar processos educacionais a transporte, moradia, habitação, cultura, coisa raríssima no Brasil, mas que, se realizada, honraria o espírito empreendedor das populações, demonstrado tanto na produção cultural e estética de sempre quanto nas start-up do presente. Paulo Freire teve alguma culpa do rosário de leis e normas que banalizaram o processo educacional cotidiano, que mataram a comunhão das comunidades, que se pautaram na desintegração e atomização dos espaços escolares?

Rocha teria, sem dúvida, escrito melhor obra se pensasse em profundar reflexões sobre o nosso ensino médio (e este autor conheceu, entre 2012-2016 centenas de experiências valiosas posteriores às Diretrizes para a etapa, quer o Ensino Médio Inovador, quer os diversos investimentos em projetos para juventude) e retirasse Paulo Freire de sua obra, que virou apêndice e massa de manobra que empurra razões enviesadas para o colo dos que trabalham nas redes sociais com o ódio.

Freire e outros males da educação brasileira (por ele causados)

A obra de Freire, especialmente o livro Pedagogia do oprimido, foi mal lido ou imerecidamente valorizado? E teria mesmo feito deslanchar a sociologia educacional que apagou currículos, didática, metodologias? Enfim, pelo sim, pelo não, de fato ajudou a constituir o desastre educacional que vivenciamos desde então, anos de 1970?

Pensemos se tais asserções, criadas no correr do contato direto do educador exilado com trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade e com suas leituras, seriam capazes de, ao caracterizar as possibilidades históricas de humanização diante das estruturas opressoras a operar nas sociedades (com interesse especial na América Latina), poderiam determinar tamanha e tão desastrosa influência sobre a educação brasileira, como supõe Rocha.

Se de um lado ele afirma que o preço da influência do livro Pedagogia do oprimido é uma leitura anacrônica (p. 67), por outro ele se basta em negar à obra freireana a presença de conteúdos, didática, metodologia e outros (reconheça-se, muito importantes) componentes do processo pedagógico. Mais ainda: nega à obra de Freire a preocupação com a memória, com as lembranças e sugere que deve haver “uma distinção essencial entre educador e educando”. Acrescenta que, em Freire, “é preciso que o educando, desde o primeiro momento, seja autor pleno de sua aprendizagem” (p. 71).

Freire teria de perguntar ao senhor Rocha se não lhe foi possível ler mais do que três obras e mais uma com Nogueira, pois a segunda obra do exílio, supostamente questionada por Rocha, foi, segundo o patrono da educação brasileira, uma continuação, ainda introdutória, à Educação como prática da liberdade. Não para justificar carência, mas de fato evidenciar a humildade pedagógica de Paulo Freire, cujo pensamento foi-se construindo desde as teorias da ação revolucionária à condição do educador e do educando na sociedade, aos males dos planos neoliberais de educação e à relação sublime dos atos de ensinar e aprender, comuns a professores e estudantes, como se dá em Educação na cidade e Pedagogia da autonomia.

Freire também indagaria se não fora viável ao crítico ler uma obra testemunhal indispensável: À sombra desta mangueira, na qual se projeta um ser de memória, que mostra todas as conexões memoriais e testemunhais de sua obra até aquele momento e o ser de uma educação para além de toda escola, mas também na escola (pois estranhamente Rocha se preocupa que Freire cite pouco a escola em Pedagogia do oprimido). Em capítulo que trata de fazer a passagem da curiosidade para a epistemologia, Freire observa:

Ao salientar a postura epistemologicamente curiosa como fundamental para a constituição do contexto teórico, fique claro a importância desse espaço. A atenção devida ao espaço escolar, enquanto contexto aberto ao exercício da curiosidade epistemológica, deveria ser preocupação de todo projeto educativo sério (Freire, 1995, p. 78).

A escola, toda escola, qualquer escola, em qualquer espaço geográfico-temporal em que ela se instale e independentemente de sua riqueza ou pobreza, ela será importante na medida em que se comunguem educandos e educadores no encontro com o mundo e na construção de conhecimentos compartilhados entre pessoas no mundo. Esse lugar de educação e ensino se encontra parcamente expresso, pois humildemente introdutório, na Pedagogia do oprimido. Não pelo ângulo de sua arquitetura, mas pela possibilidade, suposta, de ser um círculo de cultura. Trata-se do capítulo III, que se organiza entre as páginas 88 e 140 do Manuscrito. De algum modo, o capítulo que Rocha entendeu com o da teoria dialógica na qual “bate o coração de Mao” (2017, p. 74).

Depois de discutir um pouco da metodologia dos círculos de cultura, mostrar como educadores populares trabalham, a exemplo de Gabriel Bode, e de citar Freyer, Goldman, Pierre Furter, Álvaro Vieira Pinto, Guimarães Rosa, José Luís Fiori, Malraux, Marx, o Freire de Educação como prática da liberdade e outros, ele conclui:

O importante, do ponto de vista de uma educação humanista, libertadora e não “bancária” é que, em qualquer dos casos, os homens se sintam sujeitos de seu pensar, discutindo o seu pensar, sua própria visão do mundo, manifestada, implícita ou explicitamente, nas suas nas suas sugestões e nas de seus companheiros (2013, p. 141).

Assim, também, outra vez a escola, lugar adequado, para nós, em função da construção simbólica que formata percursos de aprendizado de sujeitos em varias etapas da vida, é pouco citada em Pedagogia da autonomia, mas todo o livro está repleto de escola, de ensinagem, de ensinantes e aprendentes em comunhão. Há nele, como noutros lugares, trechos inequívocos, como:

Foi convencido disto (dedicação a problemas dos alunos) que, desde jovem, sempre marchei de minha casa para o espaço pedagógico onde encontro os alunos, como quem comparto a prática educativa. Foi sempre como prática de gente que entendi o que-fazer docente. De gente inacabada, de gente curiosa, inteligente (…) (1996, p. 144-145).

Começa-se a terminar

De uma vez por todas, a obra do patrono da educação brasileira é um convite à construção efetiva da educação para a sociedade democrática. Também da escola, incluída na educação e somente pouco citada porque o mestre perambulante assumiu, por onde andou desde os anos de 1960 todos os tipos e formas de lugares como possíveis para educar. Educa-se no mundo pela comunhão, tanto sob mangueiras e nas garagens e ocas, como nas escolas bem compostas, bem atendidas e sistematicamente avaliadas pelas políticas públicas. São estas as grandes ausências nos tempos da lei 5692/1971 e sequência da ação ditatorial, que não se findou no estado democrático de direito e continuou a dividir a sociedade. E essas ausências são o mal da alma dos detratores de Paulo Freire. Ademais, os maus leitores de antes e de agora tem uma corrosão de memória quanto às excelentes experiências de trabalho escolar, de avanço curricular e de comunhão na realização de experiências que se deram no Brasil em todo o tempo, embora incapazes de dirigir os programas e planos, visto que políticas jamais tivemos. Este autor comungou com uma experiência denominada Pluricurricular na escola paulista – similar às experiências de escolas vocacionais – no meio da ditadura e na cidade de Mauá, região metropolitana de São Paulo. Foram pouco mais de 100 unidades escolares as receptoras do currículo pluri, no qual havia avaliação contínua do processo de trabalho, debate de interfaces, implementação das mesmas, visitas familiares, um núcleo forte de esporte e cultura e, portanto, comunhão educacional. O encontro e a confidência entre alunos e professores continuam até hoje entre os pluris, a despeito de que os governos plantonistas, ao sabor de suas contingências, mataram essas vivências curriculares inovadoras antes dos anos de 1980, pelo menos em São Paulo.

Ademais, aprofundemos um pouco a teoria da política pública. Os planos educacionais sempre dependeram dos planificadores de plantão no MEC e nas secretarias e diretorias, bem como os programas dependeram de programadores, mas as políticas, desde a reflexão aristotélica, essas não existiram, porque o cerne delas é a participação mais ampla, a construção coletiva capaz de referendar os investimentos a favor do bem-comum. Portanto, algo de comunhão.

Enfim

Os textos de Freire, citados, são suficientes para enfrentar a obra de Rocha até a página 75, visto que depois dela tem-se uma outra obra, que discute interdisciplinaridade, faces do conhecimento, alguma memória e considerações sobre a formação do professor, com retornos a suas desconectadas parábolas do Brazil-Zilbra e pitadas textuais referidas a certo freirismo, o que não significa citar freire ou considerá-lo. O Brazil parabólico de Rocha vem a calhar: ele não tem nada a ver com Paulo Freire, nem nos anos de 1970, nem na década de sua morte e textos póstumos. Até porque o suposto Freire citado pelo autor de Quando ninguém educa não é rigoroso, crítico ou apaixonado. Para Rocha, Paulo só é importante porque teve muitas supostas leituras que inundaram a educação brasileira das “teorias da ação social aplicadas à educação” (p. 33), o que se afirma sem considerar suficientemente os momentos diversos da sociedade brasileira a penetrar no mundo escolar, as repressões, as prisões no campo educacional, as mortes, o sufocamento de currículos escolares, as concessões ao horror dos livros didáticos imbecilizantes, que passaram ao longe dessas teorias da ação social. A obra de Rocha não é capaz de nenhuma leitura dialética do processo histórico.  De fato, o trabalho de Rocha poderia ampliar-se na direção do que já estaria escrito e desejado e, portanto, abandonar a obra de Paulo Freire, impossível que lhe foi, por falta de prazer ou empenho, lê-la como leitura conjunta de palavra e mundo, horizontal e vertical, como processo articulado de linguagens, no qual o aluno em processo de construção de conhecimento que autonomiza comunga com o educador bem formado, consciente do seu trabalho no mundo, ambos a trabalhar valores hauridos nas leituras conjuntas de mundo e palavra, história, memória, textos, fenômenos, processos, vida. Felizmente, a partir da página 75 Rocha abandona Paulo Freire e segue sua reflexão, no interior de textos talvez já produzidos, sem Freire, bastante fundamentada em Bernstein[8].

Paulo Freire teria prazer em ler um trecho da página 85 de Rocha e faria com ele boas elaborações, produziria memórias e daria testemunhos a partir de sua própria obra e de leituras de mundo:

A capacidade profissional de intervenção do pedagogo não é adquirida somente pelo estudo de teorias; ela surge da combinação disso com a formação de uma capacidade de julgamento e avaliação de situações particulares. Essas habilidades aparecem no contexto de uma formação por meio de situações de conhecimento por familiaridade, ligadas ao desenvolvimento da capacidade de saber-fazer.

Não haveria qualquer chance para leitura anacrônica, ou para negar a escola e o currículo escolar. Trata-se de um aprendizado no mundo concreto de quem trabalha em educação e que, para tanto, avalia e julga. Talvez Rocha não tenha sido influenciado por Paulo Freire, mas nesse e noutros textos eles dialogam. A aventura linguística da criação é sempre maior do que os seus autores, porque inclui as histórias que os incluem.


 

* Luiz Roberto Alves é professor aposentado da ECA-USP e da Universidade Metodista SP. Educador da rede pública de educação básica entre 1968 a 1988. Membro do Conselho Nacional de Educação entre 2012 e 2016 e presidente da CEB-CNE entre 2014-2016.

 

Referências

LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro. 2.ed. São Paulo: Pioneira, 1969.

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972.

FREIRE, Paulo.  Pedagogia do oprimido (o manuscrito). Projeto editorial, organização, revisão e textos introdutórios de Jason Ferreira Mafra, José Eustáquio Romão e Moacir Gadotti. São Paulo: Ed. L Instituto Paulo Freire, Uninove, MEC, 2013.

FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. São Paulo: Olho d’água, 1995.

FREIRE, Paulo. A educação na cidade. 5.ed. São Paulo: Cortez Editora, 2001.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do compromisso. São Paulo: Villa das Letras, 2008.

FREIRE, Paulo. A educação na cidade. 5.ed. São Paulo: Cortez Editora, 2001.

FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros ensaios. 8. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. 2.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

 

Notas

[1] A obra, da Editora Contexto, é de autoria do Professor Ronai Rocha, da UFSM. Publicada em 2017, 160 p.

[2] Há uma obra imprescindível sobre a questão. LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro. 2.ed. São Paulo: Pioneira, 1969.

[3] Escrita no outono de 1975 em Genebra. Inserta à página 7 de Ação cultural para a liberdade. 6.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

[4] Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 247.

[5] Cabe lembrar que a parte III da obra de Arendt tratou de modo belo e justo o tema do inacabamento, quer de crianças, quer de adultos, o que a leva a repelir os treinamentos e adestramentos via conteúdos dos inacabados que crescem também pela educação, pela formação que os situa no mundo e na vida.

[6] Pedagogia do oprimido, o manuscrito, 2013, p. 78.

[7] Freire cita Sartre de Search for a method. Vintage Books, s.d. p. 109.

[8] Basil Bernstein. Por exemplo, o texto Classification and Framing of Educational Knowledge, inserto em Young, Michael F.D. Knowledge and Control. New Directions for the Sociology of Education. London: Collier-Macmillan, 1971.