Ano XIII 0201
2º semestre de 2018
artigo
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SUBJETIVIDADE NA CENA MARGINAL CARIOCA

Resumo: Este texto busca refletir sobre as novas criações teatrais das subjetividades das margens e a sua dramaturgia que entrecruza real e ficção na cena contemporânea carioca. Busca também uma reflexão do teatro enquanto interdisciplinaridade e enquanto cena expandida no momento em que propõe uma revisão ética, estética e política da sociedade brasileira. Os espetáculos analisados são de companhias formadas por atores que vivem na favela da Maré ou nas periferias cariocas, revelando a urgência de falar de sua realidade, da violência, da exclusão e de partilhar um teatro como potência de afetar e transformar as questões sociais. Os espetáculos são Eles não usam tênis naique, da Cia Marginal, e Cidade Correria, do Coletivo Bonobando.

Palavras-chave: Subjetividade; teatro político; Cia Marginal; Coletivo Bonobando.

Abstract: The aim of this paper is to analize recent theatrical productions about the subjectivity of the marginal communities and the mix of reality and fiction in their dramaturgy, in Rio de Janeiro’s contemporary scene. It also reflects on the interdisciplinarity of theatre and its expanded scene that proposes an ethical, aesthetic and political review of Brazilian society. The plays analyzed were produced by companies from the Maré slum and other communities on the outskirts of Rio de Janeiro, demonstrating the urgent need to speak about their reality, violence, and social exclusion, as well as to share the theatrical experience as a way to affect and transform society. The examined plays are Eles não usam tênis Nike (They don’t wear Nike sneakers) by Cia Marginal, and Cidade Correria (City Rush) by Coletivo Bonobando.

Keywords: Subjectivity; political theatre; Cia Marginal; Coletivo Bonobando.

Introdução

Nota-se, nos palcos cariocas, uma grande emergência de espetáculos que falam sobre a condição de vida marginal. Os espetáculos, criados a partir de textos ficcionais e processos de criação coletiva, apresentam momentos das próprias histórias dos atores de violência e de discriminação na sua comunidade, porém não se trata de espetáculos autoficcionais, visto que partem de textos ficcionais (um escrito pela dramaturga Marcia Zanellato, e outro, por meio de um processo coletivo de criação). No entanto, é visível o cruzamento com o real por meio dos depoimentos e testemunhos dos próprios atores em determinados momentos.

Assim como na literatura marginal, conforme explicitou Silviano Santiago (2015, p. 10), a cena marginal contemporânea surge com o desejo de abalar, perturbar, instigar e desequilibrar as previsões modernas e bem assentadas da história social, política e econômica do Brasil. A cena marginal trata de uma fatia do Brasil que foi ocultada, que não faz parte do futuro, que não tem futuro.

Conforme afirma Santiago:

A negligência dos periféricos em sua relação aos arriscados e temerosos projetos alternativos de futuro teve e tem fundamento no fato de que, por nestas e noutras terras, a expressão livre do pensamento da margem e da ação intempestiva apenas denota – aos olhos dos donos do poder […] – o despreparo e o desplante de quem fala (Santiago, 2015, p. 10-11).

De acordo com Santiago, a gradativa conquista do direito à fala, à escrita e à arte propõe novas opções de direito à cidadania plena. Dessa forma, perturbar o coro dos contentes é um modo de liquidar o passado para, em seguida, reinventar o futuro. Reinventar o passado para que se possa inventar um futuro alternativo da nação que se esvaziou do conteúdo dado pela modernidade, isso porque o presente só tem sido razão para negligência e recusa dos atores sociais marginais.

Sendo assim, ao fazer circular espetáculos realizados por atores que vivem nessas margens, com suas histórias de vida dentro de um teatro considerado contemporâneo, inaugura-se a possibilidade de uma cena que valoriza o empoderamento dessas subjetividades. O sujeito marginal deixa de ser um objeto representado (sociologicamente pelo intelectual letrado da primeira metade do séc. XX) e passa a se autorrepresentar, como acontece na literatura com autores que narram histórias sobre a sua própria realidade, estabelecendo uma estética que vai predominar no cinema, na literatura e na TV no séc. XXI como, por exemplo: Cidade de Deus, de Paulo Lins, e MV Bill, que retratam a experiência do surgimento de uma das maiores favelas do Rio de Janeiro na literatura e na música, respectivamente, e ainda Ferréz com Capão Pecado, relatando a violência ocorrida num dos bairros mais violentos de São Paulo, Capão Redondo.

Faz parte da cena contemporânea o reconhecimento de novas subjetividades, seja por meio da criação de uma companhia, seja de coletivos, que se engajam em uma determinada pesquisa com o propósito de realizar uma produção teatral. Essa produção normalmente parte de um processo coletivo que engloba um olhar ético, estético e político das vozes dessas subjetividades no seu território, ampliando a noção de teatro documentário na cena contemporânea, na qual se apresentam as próprias histórias de vida dos atores e sua relação com a comunidade em que vivem. Este teatro realiza um trabalho dramatúrgico de criação embasado em textos ficcionais e nas próprias vivências dos atores, apresentando um cruzamento entre real e ficção, além de um estudo etnográfico ao relatar a experiência de vida e a violência nas comunidades.  

Esta cena se aproxima da noção de etnografia pós-moderna, conforme apontou Clifford, como um rompimento do paradigma da representação:

Torna-se necessário conceber a etnografia não como a experiência e a interpretação de uma outra realidade circunscrita, mas sim como uma negação construtiva envolvendo pelo menos dois, e muitas vezes mais, sujeitos conscientes e politicamente significativos. Paradigmas de experiência e interpretação estão dando lugar a paradigmas discursivos de diálogo e polifonia […]. Um modelo discursivo de prática etnográfica traz para o centro da cena a intersubjetividade de toda a fala, juntamente com seu contexto performativo imediato (Clifford, 1998, p. 43).

Longe de pretender a representação de um Outro essencializado, como na antropologia tradicional, em que o sujeito é o produtor de conhecimento em relação ao objeto, a etnografia busca ser uma escrita coerente com a perspectiva dialógica e polifônica, produzindo uma visão compartilhada da realidade. O diálogo e a intersubjetividade são relevantes quando se pensa em como colocar em cena as novas subjetividades de forma a valorizar a sua experiência e performatividade. Dessa forma, os atores buscaram um diálogo da sua própria realidade com a ficção e, a partir daí, uma forma de potencializar a sua voz ao incorporar a sua dor e sofrimento de uma forma poética, revelando a performatividade própria de seus corpos.

O fato de esses atores terem a oportunidade de ver seus projetos contemplados por editais de teatro e de realizar seus espetáculos em teatros dentro da cidade do Rio de Janeiro que são referência da cena contemporânea (como Sergio Porto, Glauce Rocha e a rede Sesc de teatro), permite que eles deixem de ser enquadrados como “atores da favela” e possam realizar uma carreira como qualquer outro ator, criando-se, assim, a oportunidade de um futuro inclusivo para esses atores.

A cena marginal propõe trazer o olhar de quem vive dentro da comunidade com suas implicações, tais como: a convivência diária com a violência, o preconceito racial, social e econômico, buscando não somente a valorização de sua cultura e identidade por meio da linguagem, do rap, da corporalidade, da dança e da música do funk, mas também um processo de reflexão e de transformação dessa realidade e desses sujeitos. Essa cena parte de uma nova linhagem na cultura contemporânea brasileira ao abordar os seus territórios de pobreza urbana com implicações éticas de falar em nome ou no lugar dos que sofrem ou, até mesmo, por ser o próprio sujeito dessas experiências, assumindo o ponto de vista de quem fala de dentro da violência.

De acordo com Beatriz Resende, em Possibilidades da nova escrita literária no Brasil (2014, p. 10), os representantes da periferia das grandes cidades se tornaram expressões de novas subjetividades que se afirmam no quadro de produção artística inaugurando um novo contexto que se configura não apenas político, mas ético e também estético. Essa configuração democrática e cultural se aproxima das reflexões do antropólogo indiano Arjun Appadurai, ao se referir à condição global do terceiro mundo em seu livro The future as cultural fact (O futuro enquanto fato cultural). O futuro de que fala o autor não é um futuro neutro ou vazio, mas sim construído por afeto e sensações, propriedades humanas que o formatam. O futuro que se organiza pela sensibilidade é o que ele chama de ética da possibilidade em oposição à ética da probabilidade construída unicamente por números. O autor afirma:

Por ética da possibilidade quero dizer de modos de pensar, sentir e agir que aumentam os horizontes de esperança, que expandem o campo da imaginação, que produzem uma maior equidade no que chamei de capacidade de aspirar e que alargam o campo de cidadania informada, criativa e crítica (Appadurai apud Resende, 2014, p. 11).

Vejo, assim como na reflexão de Beatriz Resende, a possibilidade de pensar a arte como um encontro entre a ética e a política ainda a ser buscado. Essas novas subjetividades das margens têm muito a contribuir com suas falas e com sua visão de mundo ao buscar um olhar ético de nossa realidade e uma estética baseada no precário e no cotidiano, valorizando a criatividade na produção cultural nesses territórios de pobreza. Busca ainda refletir sobre a questão das políticas emergentes, como a exclusão e a execução da população negra e marginal da cidade, e de um olhar transformador sobre o Outro.

Sendo assim, a emergência da cena das subjetividades marginais atua como possibilidade de inserção dessas vozes na cena contemporânea brasileira, levando em conta a diversidade social e econômica do Brasil. A cena marginal revela o desejo de reconhecimento desses sujeitos dentro da sociedade, as suas dificuldades, o preconceito e a luta contra as condições desumanas a que são submetidos, proporcionando um novo olhar sobre essa realidade e uma transformação política no nível dos afetos.

Eles não usam tênis naique: a poética da violência

Com dez anos de formação, a Cia Marginal nasceu na Favela da Maré e já realizou quatro espetáculos: Você faz parte de uma guerra? (2005); Qual é a nossa cara? (2007); Ô, Lili (2011) e In trânsito (2013). Situada na Zona Norte do Rio de Janeiro, com aproximadamente 130 mil moradores, numa faixa entre a Avenida Brasil e a Baía de Guanabara, cortada pela Linha Vermelha e pela Linha Amarela, a ocupação do território da Maré começou na década de 1940. Durante a década de 1960, recebeu famílias removidas de outras áreas da cidade e, com o seu crescimento, aproximou-se de antigas habitações de pescadores. O Morro do Timbau é o único local seco, uma vez que toda a área ocupada pela Maré foi um imenso manguezal.

O espetáculo Eles não usam tênis naique, dirigido por Isabel Penoni, interessa ao debate público como amostra da violência que se instalou no cotidiano da cidade. O texto de Marcia Zanellato foi resultado de uma pesquisa sobre a linguagem dos moradores de comunidades e começa com uma narração: “Então, irmão, eu vou contar a história do retorno de Jedai. Mas o Jedai é o Santo, tá ligado? Então eu vou contar a história do retorno do Santo. Aconteceu no dia de operação. Tava rolando uma megaoperação (…)” (Zanelatto, 2004). O narrador passa a enumerar todos os envolvidos na operação para tomar o morro: Exército, PM, Bope, civil, marinha, armas. A história a ser dramatizada trata do reencontro de Roseli e Santo (seu pai) após 20 anos da ausência paterna.

O título da peça sugere uma aproximação com Eles não usam black-tie (1958), de Gianfrancesco Guarnieri, cujo tema principal era a luta dos operários por melhores condições de trabalho. O conflito é entre o pai e o filho que resolve não aderir à greve dos seus companheiros da fábrica por uma questão pessoal, de que vai ter um filho e não pode correr o risco de perder o seu emprego. Zanelatto aborda a mesma questão de conflito de gerações dentro de uma classe social empobrecida das favelas e que luta por uma vida mais digna. O tema deixa de ser o operário e passa a ser a subjetividade marginal.

O espetáculo começa com um ator, com o rosto escondido com uma camiseta, dando um depoimento sobre o que se passa na favela. A sua voz é alterada pelo microfone aparentando uma coisa monstruosa. A sua fala contém relatos reais misturados com a ficção retratando, de uma forma irônica, a sua realidade. A autora oferece explicações relacionadas a um processo social de reflexão sobre a realidade dos próprios personagens, criando um distanciamento ao mesmo tempo em que ocorre um envolvimento com as suas histórias. A cena começa com um diálogo sobre Seu Jaca, um possível benfeitor da favela, quando ainda não era o tráfico a dominar a vida dos moradores, um longo diálogo que deixa em evidência o ponto de vista do grupo sobre a situação de crianças abandonadas, quando elas roubam e se tornam uma questão de “segurança” e ainda com a inserção de relatos pessoais.

O pai, Santo, fugiu da favela para encontrar a paz no interior, ingressando na religião evangélica e, quando retorna, encontra a filha revoltada com a condição violenta de vida à qual é submetida dia a dia. Santo tenta mostrar para Rosa que existe uma vida melhor por meio da crença na religião evangélica, mas Rosa não acredita em Deus e sim no embate da vida, e não admite a fuga do pai. A questão que se evidencia é uma reflexão sobre até que ponto o ser humano pode ser afetado pela violência e pelo medo e até que ponto se é capaz de viver nessas condições.

A peça é realizada com quatro atores e um músico, que toca os instrumentos ao vivo, dando o clima das cenas. As atuações transitam entre ternura e agressão e estão presentes nos gestos que aproximam e, ao mesmo tempo, distanciam os atores. Os personagens se confrontam com pensamentos diferentes, acusações, culpas, se batem e também brincam, mas a própria brincadeira também é violenta.

O jogo corporal dos atores é muito intenso, principalmente na cena com as cadeiras, no momento em que eles mudam de lugar rapidamente, jogando as cadeiras um para o outro ou quando sobem em cima delas andando em desequilíbrio, criando uma tensão também em relação ao texto, o que potencializa a performance dos atores. Há um momento em que Rosa fala do chefe do tráfico, Litinho, que mata rindo, e os atores cantam e dançam um funk com gestos violentos, conotação sexual e agressiva com as cadeiras presas em partes do corpo. O funk ajuda a criar a musicalidade das palavras e cria uma poética nas falas dos atores que, junto com o músico, dão o clima da realidade em que vivem.

Percebe-se uma revolta e uma aceitação da condição de vida dos personagens que se encaixam plenamente dentro da realidade desses atores, tornando a cena ainda mais próxima da realidade. A cena que melhor representa esse real se dá pelos relatos pessoais quando os atores se viram para a plateia e se perguntam se gostariam de continuar a viver na Maré. São relatos de perda, de violência e de dor que retratam a esperança de uma vida melhor, seja dentro ou fora da Maré. Como se pode observar no relato da atriz que representa a personagem Rosa:

A minha militância é na Maré. Tudo o que eu tenho de mais importante na minha vida tá ali naquele espaço. E eu nunca pensei em sair dali. Eu penso cada vez mais em me enraizar naquele lugar. Eu penso em construir família ali. Eu penso em viver na Maré para sempre (Zanelatto, 2004).

Atriz e personagem se entrelaçam nesse relato, real e ficção se misturam na performance potente da atriz que, de certa forma, está falando de sua própria experiência de vida na Maré. Os relatos pessoais projetam para o futuro a vida dos atores e assumem uma reflexão ética diante da possibilidade de construir uma vida digna, mesmo que em um ambiente precário.

Pai e filha se enfrentam no morro em Eles não usam tênis naique / Foto: Maura Martins

Cidade Correria: a cidade marginal

O coletivo Bonobando foi criado em 2014 em residência artística no Teatro da Laje, na Arena Carioca Dicró, na Penha, e a peça Cidade Correria ficou em cartaz no mês de maio de 2016, no Espaço Cultural Sergio Porto, e em maio de 2017 no Teatro Ipanema. A peça trata da relação das pessoas que vivem nas comunidades pobres do Rio de Janeiro com o preconceito e a violência na cidade. O espetáculo foi feito em forma de esquetes, ironizando situações vividas pelos próprios atores do espetáculo, deixando a teatralidade visível na forma de compor o cenário, os objetos, o figurino e a música tocada pelos próprios atores com instrumentos de samba.

Trata-se de um processo coletivo de criação iniciado em 2014 quando o Teatro da Laje ganhou o edital da Prefeitura do Rio de Janeiro para realizar uma pesquisa sobre o território na Arena Dicró, na Penha. Adriana Schneider e Lucas Oradovschi dividem a direção do espetáculo, composto por atores que já tinham uma experiência em teatro nas comunidades. Foram realizadas diversas oficinas, como as de máscaras, palhaçaria, performance, objetos em deriva para estimular o treinamento do grupo e criar uma poética com elementos que vieram a compor uma dramaturgia. 

Em 2015, eles ganharam novamente um edital para realizar uma montagem com esse material sobre a cidade e, assim, começou o processo de montagem que utilizou a ficção, partindo de contos latino-americanos e africanos a fim de estabelecer os dispositivos que estruturassem o processo de criação dos atores. O método dramatúrgico, organizado pela diretora Schneider, partiu dos contos ficcionais e da experimentação dos atores por meio de suas próprias vivências e histórias no dia a dia na cidade. No entanto, havia uma preocupação de que o espetáculo não fosse autobiográfico, pois eles não queriam ser enquadrados como os atores da favela, falando somente de sua realidade, mas queriam aproveitar a oportunidade para mostrar a sua criação poética por meio da cultura popular e de técnicas aprendidas durante o processo, inserindo-se, assim, na cena contemporânea.

Ainda que as experiências pessoais tenham servido de matéria-prima na estruturação desse trabalho, a montagem não pode ser considerada uma autoficção, pois não parte de uma linha confessional das histórias dos atores, mas pode-se dizer que se baseia em fatos reais. Concebida em criação coletiva a partir dos textos “O bebê de tarlatana rosa”, de João do Rio, “A última chuva do prisioneiro”, de Mia Couto, “O duelo entre a criança que diz sim e a cidade que diz não”, de Thiago Rosa, “Banzeiro”, de Ricardo Cotrim, “Cidade Correria 1”, de Thiago Florencio e “Cidade Correria 2”, de Daniel Guimarães, a dramaturgia mescla obra literária e a escrita urgente que visa à cena, às esferas do real e do poético.

Dessa forma, o espetáculo começa satirizando o que seria uma cena autobiográfica com um ator sentado num sofá velho falando de sua vida, da relação conflituosa dos pais e do desejo de sua mãe de que ele se torne um homem importante trabalhando numa grande empresa como Mc Donald’s, Burger King ou KFC, mas ele revela que o seu sonho era ser ator de teatro. Nesse momento, entram outros atores, que se juntam a ele, para pensar qual a cena de teatro que gostariam de montar, revelando a estrutura de um processo coletivo de criação, embasado nos depoimentos dos atores que podem ser reais ou não. Eles encontram uma caixa com elementos cênicos e vão se fantasiando e, com seus corpos, criam um grande barco que os leva para uma viagem de texto e ritmo, para uma cidade caos, cidade contradição, cidade impedida, inventada, cidade revolução, cidade correria, que é o Rio de Janeiro.

Os atores dividem o palco com fitas amarelas em pequenas áreas. Os espaços se tornam compartimentados e os territórios, minados, apresentando uma cidade cindida, na qual as regiões mais valorizadas (Zona Sul e Centro) concentram grande parte das atenções, e as demais ficam condenadas ao quase esquecimento. A questão da gentrificação, a ironia com as propostas do governo em transformar o Rio numa cidade modelo para os jogos olímpicos, o processo de exclusão dos negros e pobres, com o aumento do preço da passagem, a questão da UPP que, ao invés de resolver, muitas vezes piora o conflito na favela, são alguns dos temas abordados.

Alguns espectadores são convidados a participar de uma cena conduzida por um apresentador de TV suburbano. A cena traz à tona a dinâmica territorial da favela (ruas ou vielas), enquanto participantes do público dão as mãos em diferentes posições formando barreiras e acessos, e um ator negro passa por entre eles perseguido por setores da sociedade, como a diretora de uma escola, uma ONG, uma apresentadora de TV, até ser pego pela polícia e enquadrado como marginal. Nesse momento, o personagem perseguido diz que é ator e o policial pede para ele mostrar o que faz. Ele, então, começa um show de striptease, no ritmo de funk, revelando uma roupa embaixo da outra, representando os estereótipos que o negro e o pobre assumem na sociedade, como lixeiro e doméstica, até ficar somente com uma sunga oferecendo seu corpo para o policial. 

Esta cena foi baseada em um fato real que aconteceu com um ator que foi pego pela polícia e teve que provar que era ator de teatro. Os relatos se misturam com a ficção, deixando claro que o tema principal é a exclusão do negro e o preconceito com as pessoas que vivem nas favelas. Durante as Olimpíadas, a cidade foi reformada para se enquadrar no esquema de uma cidade modelo e, dessa forma, os atores simulam uma operação plástica, colocando próteses e enfeitando uma atriz, que representa a cidade e, depois, a colocam de pé como uma boneca falando francês. Os contrastes se intensificam na Cidade Maravilhosa, ao tentar maquiar e esconder os podres, violências, injustiças e descasos, excluindo ainda mais a sociedade marginal para produção de uma cidade olímpica.

O espetáculo apresenta cenas de extrema violência, porém sem perder o humor e a intensa teatralidade, como na cena em que uma atriz de pijama faz o papel de uma menina brincando com suas bonecas e reproduz o que escuta no mundo dos adultos: a violência do estupro, do bandido perseguido pelo camburão, do assassinato e morte de sua família, concluindo com a sua própria morte. A voz infantilizada da criança narrando os episódios que acontecem na vida real demonstra o quanto essas pessoas são submetidas a uma violência cruel no dia a dia.

No final da cena, meninos entram soltando pipas coloridas, um ator dança capoeira e uma atriz entra vestida e dançando como Oxum, a orixá das águas, que vai molhando e limpando todo o sangue derramado, para que o amanhã possa renascer com esperança.  A atriz que representa a cidade vai se desfazendo de toda roupa, maquiagem e próteses que foram colocadas, ao mesmo tempo em que um poema é recitado em off, mostrando a sua revolta de tentar parecer com aquilo que não é. A beleza da cidade está na sua contradição, nas suas misturas e hibridismos culturais que, por vezes, se revelam de forma surpreendente, tal como nos mostra o texto final da Cidade:

Eu sou a Cidade Correria! Sou um fosso, sou um fóssil de um povo que nunca existiu, que nunca existiu? Sei não, sei que sou vil, sei que sou vão, sei que sou a cidade e que nela sou a faísca e sou também a isca na minha armadilha, já fui o fogo, já fui a cinza, sou um cheiro, serei meu chão, minha comida, meu miojo, meu pão, sou a feira no feriado, sou a fruta, sou o resto varrido da fruta, a alegria dos pássaros, o pedágio dos ratos, sou céu, enterrado no chão, sou o sol correndo, o coração batendo, na minha alegria, na minha fuga [Nesse momento os atores que haviam deixado o palco, voltam um a um, com pipas presas em bambu, compondo com relação à figura da Cidade] sou rápida, sou rasa como uma lâmina, era faca? era asa? ou era fome? Ontem me mataram, hoje esqueci meu nome, ontem era pássaro, hoje meu fóssil, sem nome sem data, rasga a calçada e vai passando, circulando, circulando, tenho hora, não tenho dinheiro, mas sou rápida, rápida e rapace como um rato, como carro voando baixo, sou chumbo grosso, metal pesado, sou trânsito, sou trabalho, trabalho, trabalho! Sou a Cidade Correria, sou a dor, a ferida, cimento, cinza, cinza, cinza, (Thiago leva uma bacia de água para Cidade, que se lava) tumor aberto, sinal fechado, corpo fechado, corpo riscado no chão, sou a Cidade Correria, sou a fuga do labirinto, sou meus passos sumindo, sou a multidão, esbarrão sem som, búzios sem relação, o tempo é corrente, meu tempo é corrente, chave e portão, sou a Cidade Correria, sou a flor bonita nascendo, os apesares da minha sorte, sou a beleza chorando no sangue bebido da Terra, Terra velha, terra assombrada, ai os fantasmas da minha terra, sou as histórias das minhas velhas, sou as histórias espalhadas dos meus velhos e das minhas velhas, morrendo de pé como nasceram, apertadas, lugar travesti, foi assim que nasci, maltratada, maquiada, sorriso nos olhos, revolta na mão! (Coletivo Bonobando, 2014).

Cidade Correria / Foto: Maira Barillo

Conclusão

As cenas das subjetividades que vivem à margem vêm despontando no contexto do teatro contemporâneo brasileiro com o surgimento de novos grupos teatrais, coletivos e artistas que aderem às opções estéticas, linguagens, suas experiências de vida e suas vivências de mundo. Esta cena urgente coloca em foco o debate das políticas identitárias referentes aos contextos locais mostrando que é preciso problematizar a cena contemporânea por meio de dramaturgias que correspondam, por potência, a atores negros e marginais. Dessa forma, esses espetáculos refletem sobre o pertencimento dessas subjetividades na cidade e dentro da produção artística hegemônica. Reflete também sobre a questão da violência e da exclusão das pessoas que vivem nas favelas, sobre o espaço precário oferecido para a diversidade cultural, sobre o teatro como forma de ativismo e transformação da realidade e, enfim, como potencialização do espaço afetivo de encontro ao outro.


* Andréa Stelzer foi professora substituta na ECO/UFRJ (2017-2018), é pós-doutora em Literatura Comparada pelo PACC/UFRJ, doutora em Artes Cênicas pela UNIRIO com bolsa sanduiche da CAPES na Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3, autora do livro A escritura corporal do ator contemporâneo (Confraria do Vento, 2010), além de diversos artigos acadêmicos.

Referências

APPADURAI, Arjun. “The future as global fact”. In: The future as global condition. London\NY: Verso: 2013.

CLIFFORD, James. “Sobre a autoridade etnográfica”. In: SANTOS, José Reginaldo (Org.). A experiência etnográfica. A antropologia e literatura no séc. XX. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998.

COLETIVO BONOBANDO. Cidade Correria. Texto não publicado, cedido pela diretora do espetáculo Adriana Schneider, 2014.  

RESENDE, Beatriz. Possibilidades da nova escrita literária no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2014.

SANTIAGO, Silviano. “Crítica de mutirão”. In: Modos da margem: figurações da marginalidade na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2015.

ZANELLATTO, Márcia. Eles não usam tênis naique. Texto não publicado, cedido pela diretora do espetáculo Isabel Penoni, 2004.