Ano XV 030201
1º semestre de 2020
dossiê
Tempo de leitura estimado: 19 minutos

COPACABANA, RIO DE JANEIRO, RJ

Este ensaio foi apresentado no seminário Espécies de Espaço, realizado na PUC-Rio e depois publicado em livro pelos organizadores. Como em muitas outras vezes, foi Renato Cordeiro Gomes, amigo e parceiro da vida toda, quem me incentivou a escrevê-lo. Vai reproduzido aqui, com poucas modificações, como homenagem ao grande estudioso das cidades, autor de Todas as cidades, a cidade.[1]

Em janeiro de 1958, Rubem Braga publica aquela que se tornará uma de suas mais conhecidas crônicas, “Ai de ti, Copacabana”, exercendo mais uma vez a maestria que muito contribuiu para dar à crônica, no Brasil, prestígio tanto como forma de jornalismo quanto de literatura, especialmente pela posição única que o autor ocupou em nosso cânone: ser considerado um grande escritor tendo sido, por toda a vida, unicamente cronista.

Capaz de moldar sua escrita ao tema escolhido, lírico diante da borboleta, coloquial ao descrever a cena de rua, dramático ao falar dos personagens da cidade, nesta crônica Rubem Braga assume um tom bíblico, senhor de mares e terras, arrebatado pela defesa de seu espaço, de seu território. Demiurgo, capaz de prever o futuro, o cronista ergue-se ameaçadoramente sobre os vendilhões que avançavam às joias da princesinha. E, sem piedade, prevê a todos, a Copacabana e a seus habitantes, futuro negro.

Diz Rubem Braga:

1. Ai de ti, Copacabana, porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste; porém minha voz te abalará até as entranhas.
2. Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram Princesa do Mar, e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras; e deste risadas ébrias e vãs no seio da noite.

Para terminar em enlutada despedida de amante abandonado:

22. Pinta-te qual mulher pública e coloca todas as tuas joias, e aviva o verniz de tuas unhas e canta a tua última canção pecaminosa, pois em verdade é tarde para a prece; e que estremeça o teu corpo fino e cheio de máculas, desde o Edifício Olinda até a sede dos Marimbás porque eis que sobre ele vai a minha fúria, e o destruirá. Canta a tua última canção, Copacabana!

Metafóricas ou não, muitas dessas previsões irão se cumprir nos anos que se seguiriam. Equivocou-se, porém, o escritor ao imaginar que Copacabana cantava sua última canção. Degradada, empobrecida, rodeada por favelas, emparedada por torres de cimento, a Copacabana superpovoada se tornará abrigo dos solitários e tema de poetas e escritores. Espaço de paradoxos, de dores, de desigualdades extremas, a Copacabana que foi tema de Hollywood foi se tornando espaço especial da criação literária.

Não há nisso, porém, ao falarmos de Rio de Janeiro, tão grande ineditismo. É inspirada no estudo que Renato Cordeiro Gomes fez do grande autor do Rio de Janeiro, João do Rio, cronista do Centro da cidade no início do século, não apenas do Centro elegante que se queria Paris, mas do Centro das vielas e ruas escuras, das casa de ópio e outros vícios, que evoco a cidade dos vícios e os vícios da cidade.

Na apresentação que faz do autor para a coleção Nossos Clássicos, Renato cita João do Rio, que, em “A alma encantadora das ruas”, alerta os cariocas: “Olhai os mapas das cidades modernas. De século em século a transformação é quase radical.” Pois é justamente isso que atrai João do Rio, o desejo de falar da “Cosmópolis” – e agora a expressão é de Ribeiro Couto, também lembrado por Renato –, “Cidade do vício e da graça”. Mais adiante, usando o pseudônimo de Godofredo de Alencar, Paulo Barreto/João do Rio define o interesse do escritor, do artista, de forma provocante e bastante contemporânea: “Nas sociedades organizadas interessam apenas: a gente de cima e a canalha.”

Copacabana incorpora-se à cidade em 1892, quando é inaugurado o Túnel de Copacabana, o Túnel Velho, mas é depois da abertura do Túnel Novo, em 1906, que começa a se transformar de areal em espaço de crescimento da cidade e atração para visitantes e estrangeiros. Em 1910, Copacabana tem vinte mil habitantes e, em 1923, oferece-se ao gosto europeu com a inauguração do Copacabana Palace e sua arquitetura destinada a lembrar hotéis de elegantes balneários franceses.

É a partir daí que Copacabana passará a frequentar a literatura. Com o gosto art decó, o mesmo que vai inspirar a construção dos cinemas da cidade e a novidade dos arranha-céus, Copacabana surge no romance brasileiro já como espaço de elegância e sedução. No início dos anos 1920, Benjamin Costallat coloca sua personagem de maior sucesso, a fútil Mlle. Cinema, na varanda de um dos edifícios art déco que surgiam no bairro – como os edifícios Itaóca (rua Duvivier), Tuyuty (rua Ministro Viveiros de Castro), ou os edifícios Ophir e Guahy (rua Ronald de Carvalho) –, a contemplar a nova avenida. Assim se inicia O marido de Mlle. Cinema:

Rosalina, na janela, observava.
Pela Avenida Atlântica, cruzavam-se automóveis velozes.
A praia, com seu colar iluminado, estendia-se muito branca na noite escura.
Um lindo luar prateava o oceano.

As meninas que faziam o footing com “o passo e o andar de modelos parisienses” não poderiam imaginar que o bairro abrigasse, no início do século seguinte, 161.178 habitantes, ou seja, 3,4 habitantes por metro quadrado, tendo entre seus moradores 16,7 por cento de idosos e servindo de refúgio especialmente para aqueles que a vida tornou solitários: viúvos (10,8%) e divorciados (6%.)

A verdade, porém, é que no início da década de 1960 todo um ciclo da vida de Copacabana chegava ao fim. A Copa das boates elegantes, dos pianos em nightclubs, a Copa das crônicas de Antonio Maria, melancólico intérprete maior do bairro que começava a desaparecer.

Chegados os anos 60, mais precisamente depois de 1964, Copacabana e a crônica começam a definhar. Gênero que só viceja em liberdade, a crônica carioca padecerá de raquitismo durante bem duas décadas. Os anos do regime militar inibirão o país, a cidade, o bairro, o jornalismo. E Copacabana começará sua decisiva transformação.

No decorrer dos anos 1960, parca será a presença de Copacabana em nossa literatura. Clarice Lispector deixará que sua sombra – a do Leme, em especial – surja por entre as narrativas, como em A paixão segundo G.H., em que a narradora se encosta à murada da área para fumar um cigarro: “Olhei para baixo: treze andares caíam do edifício.” Mais do que o Leme da escritora, nesta e em outras obras, é certo espírito opressor do espaço fechando-se em torno dos habitantes que povoa sua ficção.

Com a transferência da capital para Brasília, a cidade começa a se modificar. A vida política que se organizava em torno de copos de uísque nos apartamentos ou boates de Copacabana espalha-se pelo país. É nos anos 1970 que as previsões de Rubem Braga vão se fazendo mais nítidas. A decadência da noite, cuja vida se transferira para Ipanema, a especulação imobiliária, o aumento de moradias empobrecidas são, de algum modo, compensados pela reforma urbanística que moderniza o bairro, com o aterro das praias e o alargamento da avenida Atlântica.

O deslocamento da vida boêmia e do convívio de intelectuais e políticos fará desta década o momento de maior modificação na vida do bairro, tomado pelos automóveis da era JK e com o gabarito das construções liberado.

Adriana Prieto em Lúcia McCartney, uma Garota de Programa (1971), de David Neves
Adriana Prieto em Lúcia McCartney, uma Garota de Programa (1971), de David Neves

No início de 1970, com Um edifício chamado 200, o dramaturgo Paulo Pontes torna célebre o maior “cabeça de porco” do bairro, o Barata Ribeiro, 200, com seus 507 apartamentos distribuídos em doze andares. Mudou de nome e numeração, mas o Edifício Richard, no número 194, continua sendo o que disse o escritor João Antônio: “um dos crimes mais consideráveis da nossa construção civil. E um dos pontos mais críticos a que pode chegar a chamada civilização do quarto-e-sala.” Ô, Copacabana, de João Antônio, celebrará, em livro de 1978, as previsões de Rubem Braga.

Nesse momento, a própria cidade já se modificara. E seguida às remoções do governo Lacerda, ao surgimento de Vila Kennedy e da Cidade de Deus, a cidade vai-se partindo, como vai mostrar, bem depois, Zuenir Ventura.

Lembro então, aqui, a importante pergunta que faz Henri-Pierre Jeudy em seu Espelho das cidades:

Mas pode-se verdadeiramente detestar uma cidade? E quais seriam as razões? Sua ausência de centro? Seu aspecto desordenado? A feiura de suas construções?
Sua violência cotidiana? Todas as razões para detestá-la terminam por lhe conferir um atrativo. Assim é a natureza humana, que se deixa estranhamente atrair pelo que crê abominar.

Completando mais adiante:

A cidade resiste ao que se espera dela, sobretudo quando não se espera mais nada, e ao que vão fazer com ela, sobretudo quando se crê poder decidir o que ela se tornará.

João Antônio é um caso peculiar de amor a Copacabana. Nascido e criado em São Paulo, muda-se para o Rio de Janeiro no fatídico ano de 1964. Vez por outra tenta voltar para São Paulo, inutilmente. É no Rio, e mais especialmente em Copacabana, que o autor de Malhação do Judas Carioca encontra material para sua literatura, tão malcomportada quanto sua própria vida. Pelas ruas do bairro que atravessa nos horários mais improváveis ou do alto de seu apartamento na praça Serzedelo Correa – que assim define: “ela também é Rio de Janeiro, além de norte, sul, nordeste do país e estranjas”. Com essa espécie de novela-reportagem (chamava a alguns de seus escritos “conto-reportagem”), é aquela Copacabana de todos os vícios e algumas virtudes que entra de vez para a literatura brasileira.

Em dura e corajosa narrativa, que escala todos os personagens que habitam o bairro das manhãs às madrugadas, do Leme à Galeria Alaska, da domingueira pau-de-arara à prostituição da rua Prado Júnior, João Antônio vai apresentando também o salva-vidas à beira-mar, os fanáticos por futebol, o suburbanos que chegam no fim de semana, os moradores do antigo Barata Ribeiro 200 celebrizado por Paulo Pontes e de quarto-e-salas semelhantes, como o edifício Master, de 1955, que deu origem em 2002 ao premiado filme de Eduardo Coutinho.

Do alto das favelas Babilônia, Pavãozinho, Cantagalo, aos becos de “botequins acrilizados”, o interesse de João Antônio era bem definido. A Copacabana que lhe interessa não é a de saudades, nem do cotidiano regular, trabalhador. “Os antigos são uns chatos. Ficam falando uma porção de bagulhos que não tem nada a ver”, e, mais adiante: “Nosso bairro mantém certas manias ridículas, como conservar a Confeitaria Colombo, da rua Barão de Ipanema ou A Marisqueira, da Barata Ribeiro (…) Nenhum desses lugares tem a vida, a confusão e a badalação de uma Adega Pérola.”

O escritor termina o livro com a apologia da contradição, dos paradoxos, em turbilhão amoroso que caracteriza grandes momentos de sua obra. Vale a citação:

Copa injuriada, mal lambida, prejudicada, velha antes do tempo, mijada e cagada pelos cachorros, marafona fanada, os letreiros das fachadas de tuas lojas estão ficando passados, marafona muquirana, muquira, lambona, estuprada, matas cachorro a grito e jacaré a beliscão, haja-te Deus, pasto de energúmenos, caxinguenta outrora linda, atopetada de carros e viventes até onde não aguenta e diz chega. És a que nos resta. (…) É a infeliz, a que foi, calada. Lá no fundo dos olhos, morteiros hoje, de cadela mansa, onde o tempo se esconde, ela ainda atiça, volta e meia, depois da espreita, matreiro, debochado, raro, um brilho, aquele que espeta, chamado dos dezoito anos.

A Copacabana que entra nos anos 1980 é o espaço por onde circulam culturas múltiplas, forçadas pela densidade demográfica crescente a um convívio quase íntimo. A proximidade entre o morro que se expande e o asfalto que encurta toma aí uma configuração inédita que irá, mais tarde, se reproduzir muitas vezes pela cidade.

Provocativamente, falo de segmentos urbanos de desejos profundamente diferentes que circulam por um mesmo espaço geográfico, partilhando, queiram ou não, das mesmas imagens na noite ou no dia. Falo de um convívio com os mesmos cenários, cercados pelos mesmos habitantes sempre que circularem pelos lugares públicos. O texto de João Antônio aparece como um importante turning point na constituição de um imaginário artístico que feche o foco, seja como for, no bairro de Copacabana.

A meu ver, a partir daí, o discurso literário que se ocupará de Copacabana será, sobretudo, a tradução de dois sentimentos. O primeiro é o desejo de encontrar nesse espaço o refúgio da solidão. A intimidade forçada dos edifícios, o trânsito devorador, o ar pesado pela poluição são também antídotos contra o silêncio forçado, contra o excessivo despertencimento. Ao cimento claustrofóbico, bem ou mal, se opõem as praias, importantes sobretudo por estarem onde estão, com sua clareza, sua beleza consoladora. A noite agressiva é, de certa forma, o oposto do abandono, do desamparo.

O outro é a constatação de que a partilha desse espaço de vícios e pecados, de obscenidades, de infrações, é também o espaço da eliminação da censura. Copacabana surge então como suspensão do controle (a despeito do ímpeto de síndicos, vizinhos, igrejas evangélicas) das ruas ao imaginário literário.

É com uma literatura que tem Copacabana como espaço de criação que surge aquela que me parece ser a mais importante e consistente autora da literatura feminista dos anos 1970: Sonia Coutinho. São dessa fase os contos de Nascimento de uma mulher, Uma certa felicidade e Os venenos de Lucrécia. O último verão de Copacabana é de 1985.

De Os venenos de Lucrécia cito o texto em um único parágrafo – e fôlego – do excelente “Doce e cinzenta Copacabana”:

Acorda com o quarto mergulhado em cinzenta penumbra, embora talvez não seja tão cedo quanto parece, o apartamento fica em andar baixo, de fundos, dá para o quadrado de edifícios de um quarteirão não muito extenso de Copacabana, o céu só é avistado erguendo-se bem alto a cabeça (tenta inutilmente espreitá-lo, de longe, através da cortina semicerrada) – um “céu amuralhado” – abre os braços e, de um lado, deitada na grande cama de casal comprada num brechó a preço de nada, toca em pilhas de roupas emboladas, livros, bolsas, papéis (sua mãe jamais compreenderá como se pode dormir numa bagunça dessas e, ainda mais, sem nunca usar camisola, toda vestida ou, como agora, sem roupa nenhuma), do outro lado tateia a mesinha de cabeceira, em busca do relógio: parado, naturalmente, (…) não tem compromisso certo de trabalho, depois que deixou o emprego de fotógrafa de jornal – não! (torna a repetir) não foi uma demissão! – estavam com excesso de pessoal e ela queria mesmo ficar mais disponível, sentia-se muito presa, trabalhando até nos fins de semana, sem tempo para se dedicar à fotografia de arte – e desde quando ganhou o prêmio do Salão não pensa em outra coisa, tem talento, dizem, só que, anda descobrindo, o emprego era bem mais divertido, uma coisa meio pioneira, despertava atenção e merecia algumas regalias, uma mulher fazendo cobertura fotográfica até da Polícia, aos sábados, agora só aparecem coisas desinteressantes, fotos de aniversários de criança e casamentos, felizmente tem suas economias, dinheiro não é problema imediato, gosta apenas da palavra, free-lance, quem sabe uma definição para sua maneira de viver, não é uma free-lance da vida? e às vezes acha até que está perdendo o medo, enfim já cumpriu um itinerário não tão curto, a partir da primeira trepada com aquele namorado lá da cidadezinha (ela tinha dezessete anos) e o que sofreu dos pais, quando descobriram (um ano no colégio interno, ouvindo as freiras falarem do que acontece quando se perde a pureza), e a fuga depois, logo que pôs a cabeça no lugar, para o Rio, para Copacabana.

Dos ricos ou visitantes estrangeiros da avenida Atlântica aos miseráveis andrajosos, na Copacabana que chega ao século XXI, o escândalo não é mais possível. Surge aí a positividade de uma decadência. As coleções de monstruosidades tão caras ao século XIX incorporaram-se às ruas do bairro. Seres de identidade sexual ambígua ou dupla, adultos/crianças e crianças/mulheres, deformados ou modificados, pivetes e aposentados, qualquer ser habita as ruas de Copacabana.

Ao sofrimento dessas exposições corresponde também a liberdade do mostrar-se. Os amores vendidos convivem com os amores liberados. Todas as violências são possíveis, mas todos os amores são também possíveis. O kitsch dos objetos turísticos convive plenamente com obras artísticas na potencialidade infinita desse território urbano.

Essa visão da cena urbana em liberdade sintetiza-se de forma excelente em um momento da poesia de Italo Moriconi, em Quase sertão, de 1996:

Meu novo amor é gente simples do povo.
Tem 19 anos, negro rutilante.
Entre a última vez que nos vimos (tempos atrás)
e hoje cedo
já trocou de nome pra Rick.

O poema se completa magnificamente pelo título: “Copacabana”.

Para abreviar a trajetória até a literatura contemporaníssima, a literatura do “agora, agora” que vem me interessando de forma especial, pulo para o final dos anos 1990, a caminho do início do século XXI.

A Copacabana que chega ao final do século descobre uma interlocução nova com o universo global, antes de mais nada por seus aspectos menos cobiçáveis. A violência, as populações de rua, os desabrigados, as vítimas dos excessos do capitalismo, o desapreço à natureza, os resultados dolorosos da desigualdade circulam como imagens a viajar por mídias de todo o mundo, parecendo povoar – ainda que em proporções diferenciadas – cenas protagonizadas por todas as cidades globais.

São muitas as cidades feridas, para usar a expressão feliz de Barbara Freitag. E é essa mesma especialista em cidades que estabelece a distinção entre cidades em ruínas e cidades feridas. Diz ela:

Diferentemente de “cidades em ruínas” ou “cidades mortas”, onde a vida já foi extinta, depois de ataques externos ou enfermidades internas, a “cidade ferida” ainda dispõe de uma população urbana disposta lutar pela “cura”de sua cidade, esforçando-se por tratar das feridas e devolver à cidade outrora orgulhosa a dignidade e a beleza que a distinguiam das outras.

Dentre as vozes que se manifestam como porta-vozes desse esforço pela busca da dignidade, ainda que sem qualquer intenção expressa ou exercício de militância démodé, estão os diversos escritores contemporâneos que falam de dentro do estômago da baleia: Silviano Santiago, Sérgio Sant’Anna, Arthur Dapieve e mesmo um visitante como Marcelo Mirisola do conto “Rio Pantográfico”.

Foi ainda com essa voz que João Paulo Cuenca começou sua carreira de escritor em 2003 com Corpo presente:

Copacabana amanhece isolada do resto do mundo por pedras e pelo mar. O Túnel Novo abre caminho pra onde a vida parece desenrolar sem culpa. O ressentimento dos duzentos mil moradores começa a escorrer pelos bueiros dos botecos em cada esquina, cinco por quarteirão. São poucos os que veem o dia surgir vermelho. Vagabundos, garis, entregadores de jornais, meia dúzia de travas, putas cansadas, cachorros e alguns velhos andando na praia. (…)  O sol se desprende do mar, esquenta o sono das putas, gringos por trás de cortinas prateadas, mendigos e pivetes sob marquises, cobertores imundos. Ilumina janelões na avenida Atlântica. Brilha em cada fresta de ar-condicionado, desenha o teto de conjugados porcos, superpovoados, ilumina quadros caros, coberturas e a piscina do Copacabana Palace, espia basculantes, esquenta as lágrimas de crioulas gostosas, cicatrizando feridas, pingando sangue pelo chão, a oração de beatas que rezam ajoelhadas em frente do espelho de cômodas gastas, o passeio de cachorrinhos estúpidos, o tédio dos porteiros, essa gente sem esperança que dorme cada vez menos enquanto seus dias somem num ralo comum. O sono dos velhos é cada vez menor. Amanhece em Copacabana, as crianças vendendo pó na Djalma Ulrich. Sonhos caindo do céu. Amanhece por trás dos prédios, amanhece o que é feio no que é belo. Amanhece até que não exista diferença.

Nem princesinha do mar, nem Iemanjá salvadora, nem marafona muquirana. Simplesmente, Copacabana é aqui.[2]

Helena Ignez em Copacabana Mon Amour (1970), de Rogério Sganzerla
Helena Ignez em Copacabana Mon Amour (1970), de Rogério Sganzerla

* Beatriz Resende é editora da Revista Z Cultural.

Notas

[1] Espécie de espaços: territorialidades, literatura, mídia (Belo Horizonte: UFMG, 2008) foi publicado com organização dos responsáveis pelo seminário, Izabel Margato e Renato Cordeiro Gomes. Todas as cidades, a cidade teve sua primeira edição em 1994 (Rio de Janeiro: Rocco) e, republicado em 2008, tornou-se referência para estudos sobre literatura e cidade.

[2] Se quisermos retomar o tema deste estudo/homenagem ao meu amigo que morava na rua Júlio de Castilhos, será fundamental nos dedicarmos ao importante romance de Beatriz Bracher, Anatomia do Paraíso (2015), que se passa todo na Copacabana de nossos dias.