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Os clóvis inventam o contemporâneo carioca | de Marcus Vinícius Faustini

Em uma sequência do documentário
Carnaval, Bexiga, Funk e Sombrinha, o
líder da Turma do Pânico apresenta à
câmera o tema dos sete pecados capitais
que irá nortear todos os desenhos das
fantasias de sua turma.
Para representar o tema eles escolheram
os personagens da Disney. Segue-se
um pequeno plano–sequência, acompanhado
da voz em off do líder da turma,
em que a câmera observa em vários
desenhos pendurados numa corda as representações
dos pecados: para a luxúria,
eles escolheram uma Minnie em expressão
levemente maliciosa e cercada
pelos esquilos.
Essas imagens podem parecer, ao
juízo de alguns, um forte argumento para
caracterizar a prática contemporânea da
manifestação dos clóvis na periferia do
Rio de Janeiro como algo de baixa cultura,
sintoma da invasão da indústria
cultural, ou até mesmo alienante.
É um fim de tarde de um final de semana
próximo do carnaval e estamos em
cima de uma laje onde mais de 30 integrantes
da turma acompanham as filmagens.
No entorno, Marechal Hermes
pode ser vista e reconhecida como subúrbio
carioca de pungente significado.
Depois que a câmera é desligada, todos
os membros da equipe de filmagem são
convidados para participar do churrasco
do grupo, que se seguiria.
Nesta pequena descrição de um momento
do processo fílmico do documentário
em questão, reside toda a natureza
teórica possível que faz, em minha opinião,
da prática contemporânea da manifestação
dos clóvis na periferia carioca
um importante elemento para compreendermos
a complexidade de uma
cidade muito cantada nos sambas e nas
marchinhas de carnaval, mas pouco experimentada
fora do eixo Centro–Zona
Sul. Durante nossa pesquisa para iniciar
as filmagens, encontramos mais de
70 turmas em atividade que articulam
uma expressão estética capaz de pegar
elementos da sociedade de consumo
(Disney, Nike, etc.) e dar-lhes novos significados,
criando também uma dinâmica
econômica que envolve várias redes
e códigos éticos que se constroem em
torno da territorialidade. A capacidade
de gerar procedimentos estéticos livres
de conceitos limitadores é tão instigante
que as turmas criam, sem nenhum constrangimento,
seus hinos em cima de bases
funk.
Minha aproximação e desejo de me
relacionar com essa expressão vão além
da observação intelectual sobre determinado
tipo de manifestação. Nas férias de
minha infância, entre as casas de minha
avó, no Jacarezinho, das tias, na
Baixada Fluminense, e minha própria
casa, em Santa Cruz, sempre presenciei
as turmas de mascarados que invadiam
as ruas e tentavam assustar a molecada,
que se vingava cantando que o Bate-Bola
apanhava de mulher. Com o passar dos
anos, comecei a perceber que aquela era
uma manifestação desconhecida por
grande parte da cidade e que só saía de
sua invisibilidade por meio de um processo
de criminalização muito presente
na mídia durante os carnavais. O filme
usa como estratégia uma aproximação
com as ações dos personagens e os acontecimentos
para dar uma resposta a esse
outro olhar jornalístico distanciado, descrito
acima, que de maneira bastante
nebulosa reduz a prática cultural dos
Clóvis a uma dinâmica de vandalismo e
descontrole juvenil.
O procedimento que usamos para essa
estratégia foi a conversa no lugar da
entrevista, a observação das imagens que
apareciam no lugar de uma tese pré-determinada
que busca nas imagens suas
justificativas. Por outro lado, no processo
de montagem do filme, percebendo a
força social e a expressividade estética
dos clóvis e ao mesmo tempo singularidades
territoriais que diferenciavam em
muitos aspectos as turmas, resolvemos
partilhar o filme territorialmente também,
em seu espaço fílmico. De Marechal
Hermes até Santa Cruz as turmas
vão ganhando diferenças nas estratégias,
procedimentos e práticas que obrigam
uma possível tarefa de radiografia
a ter que ser atenta e não generalizante.
Entretanto, o procedimento que acredito
ter sido mais importante na construção
da diegese do filme foi a utilização
do dispositivo de só filmar as turmas
durante sua preparação para o carnaval
de 2005, e não a inclusão de um
intelectual organizando teoricamente a
manifestação em qualquer sistema de
folclore ou cultura popular. O que vemos
ao longo de todo o filme são os próprios
membros das numerosas turmas
discorrendo sobre suas práticas, estratégias,
afetos e memórias de uma manifestação
que tem na emoção uma de suas
bases principais. Dois momentos me
parecem importantes para demonstrar
esse aspecto da emoção. Durante a preparação
da saída da Turma do Cobra,
que se esconde dentro de uma garagem,
para que ninguém veja sua fantasia, a
rua vai ficando cheia de moradores da
comunidade do entorno, e no momento
da saída os quase 100 integrantes da turma
vão para a rua ao som de fogos ininterruptos
e batem suas bexigas no chão
com uma encenação de fúria que, para
desconhecidos, pode ser interpretada
como manifestação de violência, mas
que toda a comunidade vê como belo e
entusiasmante, o que fica bem definido
na voz de uma senhora que passa naquele
momento e diz para a câmera: “são
os nossos meninos, eu estou muito feliz!”.
O que temos diante de nós é um
gesto de significação contemporânea,
pois o que vimos flerta diretamente com
a idéia de performance muito presente
em trabalhos de artistas dos mais
instigantes de nossa época. Outro procedimento
bastante interessante e que
pode, desta vez aos olhos de intelectuais
insensíveis a essas expressões, provocar
um olhar preconceituoso e crítico,
é a incorporação do tênis de marca
nas fantasias: Nike, Adidas, em modelos
que ao serem molhados expelem
imediatamente a água, são agregados à
fantasia sem nenhum sentimento de culpa
associado a noções como consumismo
ou descaracterização da prática cultural
em questão. No momento da história do
capitalismo em que este deixa de ser
fordista e passa a ser cognitivo, procurando
se apropriar e colocar na roda do
capital produções imateriais, ver uma
manifestação popular evocando algumas
das marcas mais importantes desse capitalismo,
e a sensação imaterial que ele
quer nos render, é uma provocação no
mínimo interessante, pois o tênis nesse
momento deixa de representar sua função
primária (calçar) e também sua função
na lógica do capital (o reconhecimento
como aquele que usa aquela marca)
e passa a ser incorporado como mais
um elemento da fantasia. É como se eles
dessem o seguinte recado: Esse tênis
caro e difícil, nós podemos ter em grandes
quantidades, e podemos usá-lo até
em nossas brincadeiras, como quisermos,
e não apenas como os comerciais
anunciam.
Esse elemento do tênis somado à
enorme quantidade de pano necessária
para fazer a fantasia e seu custo total
trazem à cena a necessidade de redes e
estratégias econômicas que as turmas
realizam durante o ano inteiro para produzir
a tão esperada saída no sábado de
carnaval. É uma rede econômica complexa,
com vários atores executando vários
papéis. O filme acompanha principalmente
o policial Leonardo, que faz
pinturas para as fantasias de várias turmas.
A sutileza e a sofisticação são tantas
que até as máscaras têm pinturas singulares
e pessoas específicas que realizam esse trabalho.
Nos aproximamos de mais um carnaval no Rio de Janeiro e mais uma
vez as turmas estarão presentes nos territórios colocando em questão,
com sua prática, a ideia de centralidade e representação da cultura.
Por fim, quero ressaltar a presença
das crianças nessas turmas, que no
meio de homens já ensaiam a continuidade
dessa história. O intrigante é pensar
que esses meninos, invisíveis para
grande parte da cidade e da sociedade,
colocam máscaras para serem vistos.

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* Marcus Vinícius Faustini é cineasta, diretor teatral, escritor, atual Secretário de Cultura de Nova Iguaçu e lançou nos cinemas o documentário Carnaval, Bexiga, Funk e Sombrinha no ano de 2006. O filme recebeu menção honrosa da 11a Mostra do filme etnográfico e participou de vários festivais no Brasil, India e Itália.