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Cinéfilos e fazedores de cinema a contrapelo | de Alice Fátima Martins

Na sétima de suas Teses sobre História, Walter Benjamin (1994) destaca que, em geral, historiadores constroem suas narrativas com base na relação de empatia com os vencedores e poderosos. No entanto, os bens culturais devem sua existência não somente ao esforço de gênios ou poderosos, mas também (talvez, sobretudo…) “à corvéia anônima dos seus contemporâneos” (p. 225). Assim, reivindica como fundamental a tarefa de “escovar a história a contrapelo”, desde o ponto de vista dos oprimidos, ou dos vencidos, lançando-se em insurgência não só contra a tirania, mas também contra a própria corrente histórica.

Sem perder de vista o necessário esforço para evitar as armadilhas reducionistas das análises dicotômicas, a expressão “a contrapelo”, que assume o lugar de advérbio de modo no título deste artigo, buscada em Benjamin, refere-se ao trabalho de cidadãos comuns que, movidos a paixão pelo cinema, dedicam seus esforços para assegurar, não só para si, como também para suas comunidades, o acesso a histórias contadas pela indústria cinematográfica, e também a aventura de contar suas próprias histórias, ainda que em condições precárias, e à revelia dos sempre onerosos orçamentos das produções cinematográficas disponíveis no mercado do entretenimento.

Nesses termos, o trabalho desenvolvido por fazedores de filme tais como Afonso Brazza (DF) e seu Manoel Loreno (ES), e pelo senhor José Zagati (SP), responsável pelo Mini Cine Tupy, fornece pistas para que sejam tecidas algumas reflexões sobre as noções de identidade(s) e pertencimento na cultura contemporânea, no panorama do complexo mercado das narrativas audiovisuais, dentre as quais estão as cinematográficas, e suas dinâmicas de produção / distribuição / circulação / consumo / descarte das mercadorias culturais no mundo globalizado.

Como linguagem, o cinema instaurou sintaxe própria para a arte de contar histórias, ficcionais ou não, atendendo a diferentes propósitos e objetivos. No decurso do século XX, o cinema instituiu-se indústria de narrativas e um dos principais filões de entretenimento, com abrangência planetária, partindo de alguns núcleos localizados no Ocidente, estendendo-se para o Oriente, num trânsito intenso de fluxos de narrativas e contranarrativas cujas histórias afirmam e questionam posições e pontos de vista, defendem e denunciam, reafirmam e negam relações de poder, chocam e entediam, omitem e explicitam, dissimulam, surpreendem, assustam, divertem, sempre forjando e alimentando imaginários, integrando, no continuum, as dinâmicas de (re)configuração das relações identitárias.

Desde os seus primórdios, o cinema é portador de uma natureza inerentemente globalizada, multicultural e transnacional. Stam e Shohat chamam a atenção para o fato de que “os mesmos filmes projetados em 1895 no Grand Café de Paris eram projetados apenas alguns meses depois em locais como Beijing (então Pequim), Cairo, Bombaim e Cidade do México” (2004, p. 400). Não por acaso, ele foi instaurado no auge da efervescência da sociedade industrial, integrando o que se costumou chamar de indústria cultural, expressão cunhada, inicialmente, no contexto das discussões propostas pelos pensadores da Escola de Frankfurt. Dando sequência, então, a essas ideias, na década de 60, Edgar Morin (1999), no texto A indústria cultural, tratou dessa questão, no contexto da sociedade-indústria, a partir dos processos culturais que se desenvolvem sob o impulso primeiro do capitalismo privado. Essa indústria, ultraligeira, produz uma mercadoria intangível, destinada ao consumo psíquico, do comportamento, e obedece à reprodução de certos padrões, para assegurar sua aceitação pelo público. No entanto, ao mesmo tempo, seus produtos precisam apresentar novidades capazes de manter a motivação de consumidores susceptíveis de se entediarem com o já conhecido. Devem ser capazes, também, de conquistar novos públicos-consumidores, no desafio contínuo de ampliação de domínio de mercados. Fica estabelecida, assim, uma contradição dinâmica entre inovação e padronização.

Para Morin (1999), o cinema é uma usina de produzir histórias (ou um complexo de usinas), organizada em torno de uma rígida divisão de trabalho que tem como base a estrutura industrial. A fabricação de suas mercadorias observa uma racionalização que preside o processo desde o planejamento, o estudo do mercado cultural, até o consumo propriamente dito pelos públicos-alvo. E pressupõe, também, sua rápida substituição por outros itens, com inovações que os tornem, supostamente, mais interessantes que seus precedentes.

Ora, a divisão do trabalho e a padronização podem sufocar os processos de criação. Para superar esse risco, a indústria cultural – nela, a indústria cinematográfica – estabelece relações com produções culturais situadas fora dos circuitos dominantes, nos processos de criação ou de distribuição, marcadas por baixos orçamentos, muita invenção e experimentação, formando, assim, trânsitos entre centros e periferias, de modo que as relações entre o padrão e a invenção resultam sempre dinâmicas e imprevisíveis, nunca estáveis.

Ajustando o foco da discussão nas histórias contadas pelo cinema, vale lembrar: essas fábricas de imagens sonoras em movimento produzem signos que articulam narrativas, nas quais se delineiam os vínculos de pertencimento seja daqueles que as realizam, seja do público, nas salas de cinema, ou nos ambientes domésticos, no momento em que interagem com essas histórias, incorporando-as ao seu imaginário. Nos percursos entre quem as conte e quem as consuma, entrecruzam-se elementos conformadores de identidades plenas de tensões e contradições. São as tramas de agonísticas cujas tessituras conformam perfis de bandidos e mocinhos, amantes e odiados, parceiros e solitários, forjando os que pertencem a este ou aquele grupo, os estrangeiros, e ainda os indesejados. Tais referências demarcam visões de mundo de quem conta as histórias na direção de quem as consome. Da parte dos espectadores, não há identidades monolíticas únicas. Ao contrário, nos mais diversos contextos, estão envolvidos em referenciais identitários múltiplos, a partir dos quais se relacionam com as narrativas cinematográficas: “As posições espectatoriais são multiformes, fissuradas, esquizofrênicas, desigualmente desenvolvidas, cultural, discursiva e politicamente descontínuas, e constituem parte de um domínio em constante modificação (…).” (STAM & SHOHAT, 2005, p. 421).

A noção de identidade, neste trabalho, está estreitamente relacionada com a depertencimento(s). O sujeito se reconhece na medida em que reconheça seu pertencimento a esta ou aquela rede de relações. E ainda a esta e aquela rede. Ou ainda se localize em interstícios, entrerredes, na perda de uns e no estabelecimento de novos pertencimentos, de diversas naturezas. Assim, cada indivíduo liga-se, em diferentes intensidades, a redes de vínculos e, portanto, de relações identitárias que se entrecruzam, sobrepõem, concorrem, tensionam, configurando seu estar no mundo, sempre em movimento. Nessa linha, a cultura pode ser pensada como produção de signos compartilhados coletivamente, que estabelecem as mediações dos elos nas redes de pertencimento. E as narrativas fílmicas, que são, ao mesmo tempo, produto da indústria cinematográfica, entretenimento, mercadoria cultural intangível e imponderável, articulam, criam, sobrepõem, renovam signos em profusão, em interação com o contexto sócio-cultural no qual está inscrita.

A produção de excedentes

A sociedade industrial funda-se na produção de excedentes. Isso significa que as mercadorias não são produzidas para atender a necessidades objetivas, mas trazem, na sua própria concepção, a geração de novas e sempre insaciáveis necessidades. Assim, mercadorias são produzidas em excesso, sempre a mais, para ampliar o seu consumo. A entrada de novas mercadorias em circulação pressupõe o descarte das velhas (as ideias de novasvelhas constituem solo incerto…), de modo que se produz, também, lixo em excesso. Uma das consequências é que, nos centros urbanos, formam-se lixões, nos quais são jogados os mais diversos itens, danificados, perecidos, ou simplesmente substituídos por novos modelos.

Mas os lixões não são o ponto final do percurso cumprido por essas mercadorias, como descartes. Nesses territórios, desafiando desconfortos, mau cheiros, riscos de contaminações as mais diversas, e disputando espaço com animais outros, legiões de cidadãos recolhem os restos, e os reaproveitam de quantas formas: em construções alternativas e rudimentares de moradias, no consumo de alimentos muitas vezes em processo de deterioração, na recuperação de vestuários, na seleção de papelões, garrafas, dentre outros itens de interesse para as indústrias de reciclagem.

Na sociedade pós-industrial, marcada pela expansão sem precedentes das tecnologias de comunicação e de informação, igualmente, há circulação de informação, signos e entretenimento em demasia. Portanto, não são apenas as fábricas de mercadorias materiais que produzem em excesso, entulhando prateleiras e desejos dos consumidores, e gerando, no outro polo do processo de consumo, lixões cada vez mais extensos. Da mesma forma, há mercadoria simbólica em excesso, multiplicada em progressão geométrica, a cada fração do tempo, confundindo e saturando a percepção da audiência.

Do mesmo modo que parcelas significativas da população dos grandes centros urbanos trabalham nos lixões, tendo em vista toda sorte de reciclagem, é possível pensar, também, na existência de lixões intangíveis de produtos simbólicos da indústria cultural, de cujos descartes quantos cidadãos se apropriam, devorando-os, para regurgitá-los, recriando narrativas próprias, e, nelas, a própria noção de pertencimento. Stam e Shohat (2005) referem-se aos processos pelos quais as mercadorias culturais são importadas, nacionalizadas e mobilizadas para uso local.

Nesse cenário, entre a grande indústria e esses lixões culturais, há complexas redes e instâncias de fermentação da cultura, por vezes mais, noutras vezes menos artesanais, podendo ser mais, ou menos, inseridas nos circuitos culturais oficiais, por vezes mais locais, intracomunitárias, noutras mais afeitas ao caráter globalizado de produção: transculturais, “desterritorializadas”, multimidáticas, “pós-modernas”…

Se, de um lado, a indústria cinematográfica dominante tem produzido, em excesso, narrativas sobre “os ‘vencedores’ da história, em filmes que idealizam o empreendimento colonial como uma ‘missão civilizatória’ (…)” (STAM & SHOHAT, 2005, p. 400), entre os públicos consumidores dessa mercadoria intangível, agentes anônimos de cultura tratam de realizar e difundir suas narrativas, fazendo uso da imagem em movimento, pautados pela sintaxe do cinema, apropriando-se de repertórios aprendidos nos filmes veiculados por salas de cinema e programações televisivas. Tais narrativas trazem, como traço fundante, as marcas digitais de modos próprios e singulares de contar histórias e com elas interagir.

Muitas dessas produções são classificadas, por quantos críticos de cinema, como filmes trash,1 desqualificando-os. Uma coisa é certa: é preciso questionar desde onde tais avaliações são formuladas: se desde o ponto de vista dos poderosos e vencedores, ou da corvéia anônima… Além disso, os chamados filmes trash podem ser pensados como resultado desse processo de saturação de signos, informações e histórias, no mercado cinematográfico dominante. Produzem-se narrativas em excesso, nas quais há excesso de correrias, destruições, assassinatos, mortos, explosões, tiroteios, acidentes espetaculares, dentre outros ingredientes recorrentes em boa parte dos títulos colocados à disposição do grande público. Esses agentes anônimos que atuam nos lixões da indústria cultural reciclam os restos descartados pelo grande mercado, criando suas próprias histórias, que interagem, dialogam com as histórias contadas pelas grandes produções. E o fazem dispondo de poucas e precárias ferramentas, em estruturas narrativas que, ou por falta de condições técnico-orçamentárias, ou mesmo pela própria natureza de seus projetos, constituem-se a contrapelo dos cânones oficiais, sobretudo das narrativas dos vencedores.

Da Boca do Lixo para o cerrado, um Rambo brasileiro

Agora vou partir, vou viver junto com os animais, eles não têm maldade no coração. (Dirige-se à mocinha). Vamos. Mas sempre tem a verdade. Nem Cristo escapou dos inimigos. Agora eu lhe pergunto: pra quê tanta violência? Pra quê matar, destruir a vida do próximo, sabendo que somos todos irmãos, na paz, na alegria e na tristeza. Meu Deus, eu não lhe peço perdão, porque isso eu não mereço, mas lhe peço: perdoe o resto do mundo. Deus escreve certo por linhas tortas…

Fala da personagem interpretada por Afonso Brazza, na sequência final do filme No eixo da morte (1997).

Os filmes realizados pelo cineasta-bombeiro Afonso Brazza fizeram com que ele chegasse a ser considerado, por alguns críticos de cinema mais entusiasmados, se não o maior cineasta de Brasília, um dos mais criativos e instigantes. Em contrapartida, seus filmes foram qualificados, muitas vezes, como trash. Ele próprio costumava fazer provocações, reivindicando, para si o título de “pior cineasta do mundo” (PROGRAMA DO JÔ, 2002).


Ainda adolescente, Brazza seguiu para São Paulo em busca do cinema. Ali, iniciou-se na Boca do Lixo, onde conheceu José Mojica Marins, o Zé do Caixão, e aprendeu a trabalhar com produções de baixo orçamento. Nos anos 80, mudou-se para o Gama, no Distrito Federal, onde passou a trabalhar como soldado do Corpo de Bombeiros. Entre os anos 1982 e 2002, dirigiu quase uma dezena de filmes de longa metragem: O matador de escravos (1982); Os Navarros (1985); Santhion nunca morre (1991);Inferno no Gama (1993); Gringo não perdoa, mata (1995); No eixo da morte (1997); Tortura selvagem: a grade (2000); Fuga sem destino(2002). Este último ficou inacabado, por ocasião de seu falecimento. Editado por amigos, sob a liderança de Pedro Lacerda, foi lançado em 2006, integrando a programação oficial do Festival de Cinema de Brasília.

A ideia de reciclagem transpira no corpo todo de sua obra, formada por histórias contadas com retalhos cujas emendas não são disfarçadas. Narrativas que divertem, antes de tudo, a quem as realiza. As sequências são desconexas, não há preocupação com continuidade, o som é dublado com vozes de outras pessoas, e muitas vezes os lábios dos atores indicam que estão pronunciando falas diversas das que se está ouvindo. Morrer nas mãos do herói é sempre divertido: por vezes, os bandidos resistem em morrer, para permanecer mais na cena, noutras, morrem antes mesmo dos disparos os atingirem. Tais características, que serviriam para desqualificá-los, ao contrário, tornam esses filmes obras vibrantes e intrigantes. E, para o público, diversão garantida!

Cenas do filme Tortura selvagem: a grade(2000), dirigido por Afonso Brazza.

Nelas encontram-se alguns elementos indispensáveis aos filmes de ação produzidos em massa pela indústria norte-americana: um herói, sempre interpretado pelo próprio Brazza, cujas entradas envolvem mistérios, estratégias, gestos amplos, falas de efeito, vociferações, ameaças e advertências aos “agentes do mal”; mulheres bonitas, algumas vilãs outras vítimas; a mocinha de todas as suas histórias, bela e loira, interpretada pela sua esposa, a atriz Claudete Joubert; muitos bandidos que aparecem de todos os lugares, não interessa saber como, mas por certo para serem implacavelmente combatidos e mortos das mais diversas formas; fugas de carro, saltos de pontes, lanchas velozes, explosões. Tudo executado como quem brinca: fazer cinema é, sobretudo, diversão, nas versões de Afonso Brazza.

O herói composto pelo cineasta, recorrente em todos os filmes, embora assumindo diferentes nomes e trajetórias, é inspirado na personagem Rambo, interpretado pelo ator norteamericano Silvester Stalone, o que lhe valeu a alcunha de Rambo do Cerrado2: um soldado do Corpo de Bombeiros, orgulhoso de sua farda, ocupado em salvar as pessoas, com sua missão levada às últimas consequências, inclusive na dimensão do imaginário.

No tocante aos custos, a maior parte de seus filmes foi realizada com orçamentos bem modestos. À medida que ganhou espaço e visibilidade para o seu trabalho, passou a ampliar as fontes e a forma de apoio com que passou a contar. Assim, o filme Tortura selvagem: a grade, por exemplo, custou R$ 200.000,00, podendo ser considerado uma superprodução, tendo-se em vista que seu primeiro título, O Matador de escravos, realizado em 1982, custou o correspondente a R$ 8.000,00, em valores atualizados.

Na passagem gradativa para produções mais sofisticadas e caras, sem terem sido apagados os traços de autoria, seus filmes, que não deixaram de ser trash, rapidamente ganharam o status de cult. Muitos intelectuais de Brasília, entre jornalistas, artistas, poetas e outros, faziam questão de colaborar e participar dessas produções. Por ocasião da morte do cineasta, em 2003, o jornalista Ricardo Noronha declarou, em matéria veiculada num jornal local:

Tenho a honra de ter sido morto por Afonso Brazza duas vezes. O primeiro tiro pegou exatinho no meio da testa. (…) Caí de costas e ainda reuni forças para virar a cabeça de lado, de maneira assim pouco provável, antes de expirar. [a cena] está em Tortura Selvagem – a grade, filme de pancadarias e tiroteios deliciosamente sem nenhuma cena de tortura, sem grade alguma. A segunda vez que Afonso Brazza me matou foi à traição. Me acertou um tiro pelas costas. (…) Dei um rolamento para a frente, me estabaquei no chão. (…) Ainda não vi essa cena. Está em Fuga sem Destino. A não ser que nosso Brazza tenha aprontado das suas e deixado esse pedaço de película perdido no chão de sua sala de edição caseira, no Gama. (NORONHA, 2003).

Embora tenha conquistado mais visibilidade junto à mídia e espaço junto às agências de fomento para o cinema, o que lhe valeu voos mais ousados em cenas de ação, não conseguiu avançar muito junto aos meios de distribuição de seu trabalho, de modo que a circulação dos filmes não conquistou maiores espaços fora do Distrito Federal, seja na projeção em salas de cinema, ou no formato VHS ou DVD para venda e empréstimo. Ainda hoje, um número muito reduzido de títulos pode ser encontrado em poucas locadoras da capital federal.

O sonho de Loreno, o cineasta analfabeto, servente de pedreiro, locutor de rádio

Até debaixo de chuva eu gravei filme. ‘Tava chovendo, e chuva grossa. Nós ‘tava lá no meio do pasto, correndo atrás uns dos outros, dando tiro, tudo moiadinho, e todo mundo alegre, todo mundo animado. Era aquela alegria! Sabe por quê? Não era pra aparecer lá fora na televisão, era pra ver. Quando chegava de tarde, a gente aprontava a fita, quando era mais tarde, ficava pronto, aí ia todo mundo lá pra assistir o filme, sentir o prazer de ver ele no próprio trabalho, alegria só pra vê eles ali dentro da televisão.

Seu Manoel Loreno, Mantenópolis, ES (2009).

A pequena Mantenópolis fica no noroeste do Espírito Santo. Atualmente, uma das principais atividades econômicas da região é a produção de café. A migração de parcela importante da população para os Estados Unidos da América do Norte também é um traço marcante da cidade, com reflexos na economia local, na organização das famílias, nas construções de casas, nos sonhos de futuro, e, sobretudo, no imaginário dos que ficam… Seu Manoel Loreno nunca saiu do país, mas tem notícias de que seus filmes já foram vistos em redes norteamericanas de televisão, fazendo sucesso entre as comunidades brasileiras lá instaladas. Mas nunca recebeu nenhum comunicado oficial a respeito, tampouco foi remunerado de qualquer forma por alguma possível exibição de seu trabalho.

Ele, que já foi servente de pedreiro, é apaixonado por cinema, desde muito cedo. Em meados da década de 60, enquanto o Cine Império estava em funcionamento, ainda meninote carregava cartazes pelas ruas, anunciando a programação da sala, para assistir aos filmes nas sessões noturnas. Nos anos 70, continuava trabalhando como anunciador, sem salário, tão somente em troca dos ingressos para as sessões.

Seu Manoel relata que, enquanto via os filmes, em sua maioria, estrangeiros – filmes de Tarzan, de faroeste, dentre outros – ficava imaginando suas próprias histórias projetadas no telão. Em seu sonho, anunciadores, outros que não ele, carregariam cartazes pelas ruas com a propaganda de seus filmes. No final dos anos 80, soube aproveitar a oportunidade quando apareceu alguém com uma câmera de vídeo, que se dispôs a fazer as gravações: realizou seu primeiro filme, A vingança de Loreno (1989). Desde então, segundo relata, já contabiliza quase 50 títulos de sua autoria 3, boa parte dos quais, contudo, encontra-se perdida: realizados em VHS, sem cópia, tomados emprestados por vizinhos, forasteiros, curiosos, muitos dos quais não foram devolvidos. Quantos desses foram remetidos para amigos ou conhecidos que moram nos Estados Unidos da América do Norte, sem que deles mais se tivesse notícias…

Quando começou a fazer seus filmes, a população de Mantenópolis não tinha mais o hábito de assistir filmes no cinema. A sala de projeções já havia fechado há algum tempo – ainda hoje não há sala de cinema na cidade – e as pessoas acompanhavam apenas a programação das redes abertas de televisão. Desse modo, seu Manoel instaurou uma atividade inovadora que, além da natureza artística, cultural e de entretenimento, mostrou grande potencial agregador da comunidade, que se reunia para trabalhar nos filmes e para assistir aos trabalhos realizados. Ele não tem dúvidas: “Eu sei que eu emocionei muita gente fazendo filme aí…”, ainda que a exibição não fosse em grandes telões, mas no écran de modestos aparelhos de televisão, instalados na quadra de esportes. Seus olhos brilham, recordando os primeiros anos, quando “todo mundo ficava doidinho pra ver”.

Seu Manoel Loreno, em cenas do filme O homem sem lei (2003), de sua própria direção.

Para realizar seus filmes, em primeiro lugar ele imagina toda a história, e a divide em partes: “se eu vou fazer um filme daqui a uns trinta dias, aí eu já vou pensando a história dele, eu penso quantas pessoas vai gastar, cena por cena, quantas partes vai gastar…” (LORENO, 2009) Em geral, seus filmes contam com aproximadamente trinta partes. Então ele planeja a execução de cada uma delas, incluindo o número de participantes, as roupas e locações necessárias, os acontecimentos. Após as orientações sobre o que cada um deve falar e fazer, inicia a gravação. Os atores são membros da comunidade, trabalhadores rurais, vizinhos, pessoas com mesmo tipo de inserção sociocultural que ele. Ele conta, também, com a atuação entusiasmada e bem humorada da esposa, dona Isa. Geralmente, os trabalhos duram um final de semana. E como as cenas são gravadas na própria sequência da história, ao final, o filme está pronto (uma espécie de copião, sem edição), razão pela qual, findas as gravações, todos podiam assistir ao trabalho concluído, sempre no domingo à noite.

Embora tenha conseguido mobilizar tantas pessoas da comunidade desde o início, ele era, quase sempre, referido como lunático, e seu trabalho considerado como uma atividade sem maior relevância, não muito mais do que mera distração. Seu reconhecimento veio a partir da visibilidade conseguida com a participação em programas de entrevista em redes de televisão de grande audiência. Tornou-se uma espécie de embaixador da pequena cidade no cenário nacional, e foi recebido entre os conterrâneos como celebridade. No entanto, essa inserção na mídia resultou no imprevisível:

(…) mas agora eu vou falar: (…) aparecer na televisão no Brasil inteiro não me trouxe facilidade pra fazer mais filme. Num ponto foi bom, mas no outro não foi não. Então, foi ruim, que as pessoas não ajudam mais: tem que pagar o dia, e tem que dar o almoço prá eles. Por que, de qualquer maneira, se for um filme de faroeste, eu tenho que gastar umas 80 pessoas. Pra fazer esse filme, então, 80 pessoas, como é que a gente aguenta pagar? (LORENO, 2009).

Seu Manoel sempre contou com a colaboração dos membros da comunidade para realizar seus filmes, pelos quais não recebe retorno financeiro, ou quando recebe algum valor, é simbólico. No entanto, a visibilidade conquistada criou uma nova condição nessa rede solidária. A maior parte de seus parceiros entendeu que ele teria conquistado, além da visibilidade, alguma forma de ganho em dinheiro, de modo que passaram a reivindicar para si, também, alguma forma de pagamento. É possível supor que, inicialmente, houvesse uma espécie de contrato intracomunitário para a produção desse trabalho, o que teria sido rompido a partir da projeção midiática de seu Manoel, em detrimento dos demais, e da expectativa destes quanto a ganhos financeiros. Quebrou-se, assim, a magia das contações de histórias por meio das imagens sonoras em movimento, sob a liderança do cineasta analfabeto, ex-servente de pedreiro, atualmente locutor-comentarista da TransaSon FM, rádio comunitária de Mantenópolis.

Hoje, ele imagina pelo menos três projetos: “Se eu tivesse uns dois mil, eu conseguia fazer um filme com menos pessoas…” As histórias latejam em profusão em sua imaginação. O desejo de realização o inquieta, e a frustração ante as dificuldades têm angustiado seu Manoel Loreno, em pleno impulso de criação… “Não tem cabimento eu não conseguir fazer mais nenhum filme!” Ele tem o roteiro pronto de um filme intitulado Liberado para matar, cuja ação começa em Vitória, e termina em Mantenópolis… umroad movie de ação… “Ah, mas pra esse, ia precisar de muito mais dinheiro, pelo menos uns vinte mil…” (LORENO, 2009)

Cinema, reciclagem e meio ambiente, tudo a ver!

Eu sempre querendo fazer plateia. Não é que eu queria fazer cinema, fazer cinema é outra coisa. Aquela lembrança, quando eu entrei no cinema, a primeira coisa que fiz foi ver o filme passando: a luz tá vindo de lá, e a tela, e aquelas pessoas estavam ali, sentadas, assistindo. A luz, a tela, e as pessoas. Então eu queria fazer era aquilo. Era a emoção, as pessoas assistindo e eu passando o filme, eu sonhei com isso por toda a minha vida. Era um sonho.
Sr. José Zagati, Taboão da Serra, SP (2009).

O corpo esguio e elegante, o sorriso largo, os gestos que acompanham os relatos, avivando-os para a oitiva dos interlocutores, as mãos expressivas e calejadas pelo trabalho braçal de catar papel para reciclagem: o sr. José Zagati é um narrador por excelência, dentro do espírito descrito por Walter Benjamin:

(Pois a narração, em seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto exclusivo da voz. Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente com seus gestos aprendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito). A antiga coordenação da alma, do olhar e da mão (…) é típica do artesão, e é ela que encontramos sempre, onde quer que a arte de narrar seja praticada. Podemos ir mais longe e perguntar se a relação entre o narrador e sua matéria – a vida humana – não seria ela própria uma relação artesanal. (BENJAMIN, 1994, pp. 220-221)

Fazendo uso da habilidade para narrar vidas, desde a sua própria, ele relata ter ido ao cinema, pela primeira vez, aos cinco anos de idade, na pequena cidade de Guariba, no interior de São Paulo, levado pela irmã. Era um filme de Billy the Kid. A experiência primal não se apagou de sua memória. Mais tarde, tendo se mudado com a família para Taboão da Serra, conheceu o Cine Tupy, que, na adolescência, passou a frequentar. Durante a semana, fazia pequenos trabalhos para comerciantes do bairro onde morava, em troca dos quais recebia “umas moedas” que guardava para ir ao cinema no domingo. “Então eu pegava o ferro-de-brasa da minha mãe, fazia questão de pegar minha melhor roupinha, eu esquentava o ferro e passava: eu vou ao cinema!” (ZAGATI, 2009)

Sr. José Zagati | Foto: Hamilton Alves(2009)
Kombi do Mini Cine Tupy | Foto: Alice Fátima Martins 2009)
Coleção de rolos de filme e fitas VHS | Foto: Alice Fátima Martins (2009)
Sr. José Zagati e crianças assistem projeção de filme | Foto: J. Bamberg (2009)

Na vida adulta, trabalhou como servente de pedreiro, metalúrgico, dentre outras tantas atividades. Mas, em 1990, desempregado, começou a catar papel, “e foi daí que eu consegui realizar o meu sonho”, afirma. Frequentemente encontrava pedaços de filme: “quando eu achava um pedaço de filme, aquilo para mim era um grande tesouro que eu tinha encontrado”. Ele próprio questiona por que se encontravam tantas coisas relativas a cinema no grande aterro sanitário, e explica que todo o lixo resultante das reformas feitas nos prédios do centro de São Paulo era depositado ali. Eram entulhos de quantos prédios derrubados para que outros fossem erguidos, e outros tantos refeitos, para assumir novas feições e funções, pela pressão do progresso. Dentre esses prédios, estavam as antigas salas de cinema, muitas das quais fechadas, recebendo outras destinações. “Eu comecei a encontrar esses restos, esses pedaços de filme, fui guardando, tudo quanto foi pedaço, aquela coisa de Cinema Paradiso, (…) vou guardar, isto aqui é história…” (ZAGATI, 2009). Então, ele encontrou a carcaça de um projetor no lixo. Embora não funcionasse, ele a levou consigo, para casa. Algum tempo depois, numa “loja de usados” do centro de São Paulo, comprou o primeiro projetor em condições de funcionamento. Seu relato é emocionado:

Peguei o projetorzinho e vim (faz o gesto de quem carrega uma criança), peguei o ônibus e vim com ele no colo assim, parecia um bebê, louco prá chegar em casa prá botar ele prá funcionar, e ver os pedaços dos filmes que eu tinha juntado. Aí eu arrumei, quando foi no outro dia de tardezinha, estendi um lençol lá em cima duma cerca, eu morava num bairro aqui perto, né, aí eu pendurei um lençol, de tardezinha, puz uma mesinha lá na rua, botei o projetorzinho. Foi escurecendo, comecei a passar aquele filme (imita o som da máquina) rrrrrrrrrrrrrrrrrrr. Assim que surgiu o cinema aqui! (sorri) Aí começou a vir aquelas crianças todas, todo mundo curioso, o que é isso, Zagati? Que é isso seu Zagati? Eu falei: Isso é cinema! Eles nunca tinham visto aquilo… Como ainda tem muita gente que nunca foi ao cinema, ainda tem muita gente assim, que nunca viu. Aí, eles erguia o pano, não via nada, olhava no projetor, tão encantados com aquilo, eu tão feliz com aquilo! (ZAGATI, 2009).

A primeira projeção de um filme de longa metragem, completo, ele conseguiu realizar em agosto de 1998, inaugurando o Mini Cine Tupy, numa homenagem ao antigo Cine Tupy, que povoou sua infância e juventude com histórias e sonhos. Desde então, o trabalho de projetar filmes para a comunidade, na sede do “cineminha”, ou em outros locais, tais como escolas, asilos, hospitais, praças, dentre tantos, confunde-se cada vez mais com o de catar material para reciclagem. Atualmente, ele é membro da Cooperativa Zagati de Agentes Ambientais, que ajudou a fundar. Tem orgulho de seu papel social, e clareza das relações intrínsecas entre os cuidados com o meio ambiente, a reciclagem, e a produção de cultura. Por isso mesmo, escreveu em seu carrinho de coleta de papelão os seguintes versos, de sua autoria:

Reciclar é bom

A natureza agradece

Tudo pelo cinema!

A sétima arte merece!

(ZAGATI, 2009)

Banquetes antropofágicos: da dor e da delícia de devorar o outro

Nas últimas décadas, muitas salas de cinema foram fechadas, em cidades do interior e nas periferias dos grandes centros urbanos. Uma pesquisa realizada por uma parceria entre o Ministério da Cultura e o IPEA constatou que mais de 90% dos municípios não possuem sala de cinema. A migração das salas para as grandes redes instaladas em shopping centers implicou na exclusão do acesso a uma parcela significativa da população de suas programações, o que se reflete na informação de que apenas 13% dos brasileiros frequentam cinema pelo menos uma vez ao ano. Ou seja: os outros 87% não vão ao cinema, ou vão muito raramente. (BRASIL, 2007).

Os srs. Manoel Loreno e José Zagati desenvolvem um trabalho na contramão desse cenário, reunindo os poucos recursos de que dispõem para veicular realização e exibição de filmes à sua comunidade, no exercício incansável de busca do sonho. Se Afonso Brazza, residente no Gama, Distrito Federal, também, à sua época, não contava com salas de cinema, cumpriu uma trajetória que, embora mais cosmopolita, não foi menos entulhada pelos excessos da indústria cultural.

Esses três homens têm em comum a paixão pelo cinema, que mobilizou seu imaginário e nutriu seus sonhos desde a infância. Do mesmo modo, são apaixonados pelo lugar onde vivem, estabelecendo com ele uma relação de intimidade e encantamento, endereçando-lhe o seu trabalho. Brazza traz para as telas as paisagens e os percursos da capital federal, tornando-os personagem de primeiro plano em seus enredos. Suas histórias são urbanas, trespassadas pelo trânsito de automóveis, ônibus, ruas movimentadas, arquitetura, edifícios, construções, mas também por amplas áreas verdes, e sobretudo pela abóbada celeste do Planalto Central. Seu Manoelzinho respira uma atmosfera mais rural, interiorana, traços fisionômicos de sua pequena Mantenópolis. Reconta histórias de homens brabos as quais tem ouvido desde seus tempos de infância. E reinventa outras, sempre pensando, como cenário, nos caminhos entre o cerrado e as matas da paisagem recortada por morros e pedras de grande plasticidade. A comunidade e sua inserção sociocultual e ambiental também constituem a paisagem para a qual é endereçada uma das paixões do sr. José Zagati (ao lado do cinema, é claro, e de sua esposa, d. Madalena…), que percorre suas ruas, recolhendo material para reciclagem, olhando suas gentes, observando os movimentos, levando projeções de filmes, reunindo crianças, artistas, outros quantos sonhadores, estabelecendo elos, relações, sentidos…

Afonso Brazza e seu Manoelzinho, fazedores de cinema, apropriam-se de signos produzidos pelo outro, particularmente pela indústria norteamericana de cinema, que concentra parcela majoritária das produções cinematográficas ocidentais, mas, sobretudo, detém a hegemonia das redes de distribuição dos filmes. Mas essa apropriação pressupõe a assimilação e a retradução em termos de parâmetros próprios, identitários. Heróis dos outros, como o Rambo, cowboys e outras personagens, ganham versãotupiniquim. Mais que isso, ganham identidade própria numa nova malha de pertencimento. São devorados e regurgitados, numa apresentação para o mundo a partir dos cenários onde as novas versões são gestadas.

Em termos conceituais, a ideia de antropofagia como metáfora do processo cultural brasileiro foi eleita pelos modernistas, na década de 20 do século passado. O Manifesto Antropofágico, escrito, em 1928, por Oswald de Andrade (1995), busca responder a algumas questões colocadas pela Semana de Arte Moderna, em 1922, e reivindica uma atitude de devoraçãodos valores europeus, suas condutas normativas, seus cânones hegemônicos, para a reformulação na perspectiva das referências identitárias brasileiras.

Para o filósofo espanhol Eduardo Subirats (2001), a antropofagia brasileira inverteu o discurso das vanguardas européias e da definição da modernidade como um modelo externo, uma nova figura de colonização estética e política. Ela formulou, além disso, um projeto original de civilização não redutível às categorias do progresso capitalista ou tecnológico-industrial, buscando realizar a síntese o erudito e o popular, o hegemônico e o marginal, o altamente tecnológico e o artesanal.

No entanto, a ideia de antropofagia neste trabalho evoca uma outra fonte metafórica, da obra de João Ubaldo Ribeiro, Viva o povo brasileiro! (2008). O romance trata da saga de pequenos heróis da nação, tecendo uma anti-história em contraponto à história oficial, ou, retomando a ideia inicial deste artigo, uma história escovada a contrapelo (BENJAMIN, 1994). Embora esse romance tenha vários pontos de aproximação com o manifesto e o ideário modernista, com ele estabelecendo um diálogo inevitável, o texto de Ribeiro não tem um projeto político e intelectual em que a antropofagia seja apontada como o caminho para a solução dos impasses culturais no cenário brasileiro. Em contrapartida, também não assume o ponto de vista falso moralista dos colonizadores que condenam o ritual antropofágico. Ao abordar a história da dominação, fundada em quantas formas de violência, João Ubaldo Ribeiro busca a própria voz do dominado, seja do ponto de vista das relações de poder, da produção da cultura, da história como um todo. Nela, o ato de devoração prazerosa do outro aparece como o gesto germinal dos processos de miscigenação que articulam o sentido de brasilidade, no seu melhor, e também no seu pior…

A diferença entre a antropofagia e o canibalismo está no aspecto ritual, presente na primeira, ausente no segundo. O canibal devora o outro, seu semelhante, reduzindo-o à condição de caça, ou alimento circunstancial. Nos rituais antropofágicos, o outro é reconhecido e respeitado, e seu devorador quer assimilar sua vitalidade e força, incorporando, assim, suas características à própria identidade. Embora a distinção conceitual entre antropofagia e canibalismo não seja consensual entre estudiosos e pesquisadores, essa concepção orienta a discussão proposta neste trabalho, que trata da atuação de agentes produtores de cultura mais que meros caçadores de restos nos lixões intangíveis da indústria cultural: na verdade, devoradores rituais do excedente simbólico despejado pelo outro, pelos outros. Devorando ritual e prazerosamente o lixo descartado, reprocessam-no, integrando-o às suas próprias redes de pertencimento e sentidos. A natureza, a cultura e o cinema agradecem, como preconiza o sr. José Zagati.

Figuras que não se submetem aos modelos impostos por outrem, mas os incorporam aos seus próprios referenciais e ferramentas, Afonso Brazza, seu Manoelzinho e o sr. José Zagati não estão sozinhos no cenário brasileiro. Tantos outros se aventuram à labuta de catar lixo da indústria cultural, fazendo uso de recursos geralmente precários para produzirem suas próprias narrativas, para abrir espaços de veiculação de narrativas, de modo independente em relação ao mercado oficial cinematográfico. De alguma forma, esses agentes culturais interagem não apenas com as narrativas e os veículos hegemônicos, mas com a própria intervenção colonizadora destas em seus contextos, absorvendo e retraduzindo seus signos, atribuindo-lhes novos significados, recontando suas próprias histórias.

São tomadas de posição no mundo presididas pela interlocução ativa e criadora, dialogal. Afinal, nenhuma imagem, e, de resto, nenhuma narrativa é fechada, mas tem seu sentido completado na relação com o público, que a interpreta e reconstrói em sua própria percepção. Nos processos de interpretação de narrativas, sejam imagéticas, literárias ou cinematográficas, entram em cena tanto os referenciais subjetivos, individuais, quanto os coletivos, culturais. Indivíduo e coletivo são, afinal, duas dimensões imbricadas e indissociáveis nas dinâmicas do tecido social. No tocante ao trabalho desses cinéfilos e fazedores de filme a contrapelo, mais do que meramente interpretar essas narrativas, reconstruindo-as no próprio imaginário, de fato in-corporam, antropofagicamente, os signos das histórias contadas pelos outros, os heróis dos outros, em histórias autorais e ambientes regidos por sua soberania, que dizem de seu tempo, de suas relações, de sua própria inserção no mundo. De seus pertencimentos.

* Alice Fátima Martins é professora do Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual, na Faculdade de Artes Visuais da UFG, com pesquisa de pós-doutorado desenvolvida no Programa Avançado em Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ), financiada pela FAPERJ.

 

NOTAS

1 No cinema, não há consenso em relação à classificação de filmes como trash. Em geral, são assim referidos os filmes de baixo custo, “mal realizados”, em sua maioria, caricaturas de filmes de horror ou de ação.

2 Embora no filme Tortura selvagem: a grade os antagonistas do herói refiram-se, algumas vezes, à sua personagem, em pleno enredo, como o Kojak, em função da cabeça raspada.

3 Alguns títulos dentre os filmes realizados por sr. Manoel Loreno: A vingança de Loreno, O gatilho mais rápido do Oeste, A revolta de Loreno, Loreno volta para matar, O sonho de Loreno, Natal sangrento, Karatê, Golpe fatal, A vingança do apaixonado, O amor proibido, O homem feliz, A gripe do frango, O homem sem lei, O rico pobre.

4 A escrita do nome do cinema não está unificada nos documentos, camisetas, folders, etc. Considerando o cinema homenageado pelo sr. José Zagati, o antigo Cine Tupy, e a maior parte do material de divulgação veiculado, neste artigo é adotada a grafia Mini Cine Tupy, apesar de, na porta da Kombi, constar Mini Cine Tupi.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica. 1ª publicação em 1928. São Paulo: Globo, 1995. 2ª Ed. Disponível em http://www.puc-campinas.edu.br/centros/clc/Acesso em 23 de fev. de 2008.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, volume 1: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

BRASIL, Ministério da Cultura. Economia e política cultural: acesso, emprego e financiamento. Coleção Cadernos de Políticas Culturais, volume 3. Brasília: Ministério da Cultura, 2007.

BRAZZA, Afonso. Depoimento. Entrevistador: Jô Soares. Transcrição: Alice Fátima Martins. Entrevista concedida ao Programa do Jô. Rio de Janeiro: Rede Globo de Televisão, 2002. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=qDyZqlxdrEM&feature=related. Acesso em 22 de fev. de 2008.

MORIN, Edgar. A indústria cultural. In FORACHI, M. A. e MARTINS, J. S. (1999) Sociologia e sociedade: leituras de introdução à sociologia. Rio de Janeiro/São Paulo: Livros Técnicos e Científicos, 1999.

LORENO, seu Manoel. Depoimento. Entrevistadores: Alice Fátima Martins e Jairo R. P. Bamberg. Arquivo digital formato MP3. Transcrição: Alice Fátima Martins. Entrevista concedida ao Projeto de pesquisa catadores de lixo da indústria cultural. Rio de Janeiro: PACC/FCC/UFRJ/FAPERJ, 2009.

STAM, Robert & SHOHAT, Ella. Teoria do cinema e espectatorialidade na era dos “pós”. In RAMOS, Fernão Pessoa. Teoria contemporânea do cinema, volume 1: pós-estruturalismo e filosofia analítica. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2005.

ZAGATI, José. Depoimento. Entrevistadores: Alice Fátima Martins e Jairo R. P. Bamberg. Arquivo digital formato vídeo. Transcrição: Alice Fátima Martins. Entrevista concedida ao Projeto de pesquisa catadores de lixo da indústria cultural. Rio de Janeiro: PACC/FCC/UFRJ/FAPERJ, 2009.

REFERÊNCIA FILMOGRÁFICA

O HOMEM SEM LEI. Seu Manoel Loreno. DVD. Brasil, 2003.

TORTURA SELVAGEM: A GRADE. Afonso Brazza. Película. Brasil. 2000. Disponível em http://video.google.com/videoplay?docid Acesso em 17 de janeiro de 2008.