editorial
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ESCRITAS DA INTIMIDADE

Esta edição da Revista Z Cultural reúne explorações da escrita da intimidade durante o isolamento social determinado pelo surgimento da Covid-19. Frente ao desafio de criar uma nova sociabilidade, emerge uma vigorosa produção de cartas, diários, ensaios pessoas, poemas e ficções de fundo autobiográfico. Esse tema urgente teve enorme acolhida entre pesquisadores e autores, que enviaram dezenas de propostas de diversos gêneros. O resultado é esta edição, a terceira da revista em 2020.

Devido à variedade dos textos – que iam desde pequenos poemas a contos e ensaios longos –, decidimos reunir os mais curtos em duas seções, “Prosas da intimidade durante a pandemia” e “Poemas da intimidade durante a pandemia”, que abrem o dossiê sobre as escritas da intimidade durante a pandemia. Chama a atenção o caráter eminentemente político das contribuições e a variedade de instrumentos empregados pelos autores, num hibridismo entre prosa e poesia, ensaio e escrita íntima.

Publicamos, ainda, a tradução de um artigo do professor e crítico argentino Reinaldo Laddaga, que usa um passeio por Coney Island para refletir sobre a relação entre a cidade e seus habitantes, marcada, naquele momento, pela observação das altas taxas de infecção pela Covid-19 entre a população étnica e etária. Também neste número, publicamos dois artigos – “Passagens na pandemia” e “Correio clariceano” – de autoria múltipla, que propõem, por meio da troca de mensagens, uma forma de comunidade em meio ao isolamento. No texto seguinte, “O diário como gênero intranquilo”, Vera Lins reflete sobre a escrita íntima e a proximidade entre diário e ensaio, e, em “Registro 1: Dois de abril de dois mil e vinte”, o isolamento faz Estela Rosa rememorar caminhadas e viagens.

O dossiê termina com dois artigos que discutem a relação entre pandemia e aspectos da vida social: Adriana Madeira fala da relação entre a clausura e a violência contra mulheres e Davi Marques Camargo de Mello apresenta estratégias de produção audiovisual durante a quarentena.

Na seção de artigos de temática livre, publicamos a tradução de um relato de Iman M’Fah-Traoré, direto de Nova York, olhando de dentro o coro das vozes que compõem as manifestações do movimento “Black Lives Matter” nos Estados Unidos; e um ensaio em que Auana Diniz faz uma espécie de antropologia do olhar a partir de uma obra de Marcelo Cidade exposta no MASP. Ieda Magri, em “Uma exposição, performance”, transforma um retorno à cidade natal, onde ocorre o ritual de abate de um boi, em um instrumento para investigar as memórias, as relações interpessoais e os limites entre ser humano e animal. Em “Ensaio sobre Pagu: o romance em movimento”, Adriana Armony conta como a pesquisa para um trabalho ensaístico sobre a vida de Patrícia Galvão (artista modernista múltipla, autora de Parque industrial) acabou se transformando em um trabalho romanesco, uma “escrita multifacetada, exploratória, multigênero”.

A revista traz ainda duas homenagens a Sérgio Sant’Anna, escritor que morreu em 10 de maio deste ano em decorrência da Covid-19. Em “A literatura não vem do nada”, Sérgio de Sá comenta a permanência da obra e da figura do autor de Um romance de geração. E, em entrevista feita especialmente para a revista, André Sant’Anna, filho do escritor, revê a relação literária e afetiva com o pai.

Este número inaugura uma nova seção, “Vale a pena ler de novo”. Com curadoria de Heloisa Buarque de Hollanda, recuperamos textos já publicados, mas que dialogam com o momento presente. O primeiro é “Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita”, de Conceição Evaristo, que Heloisa descreve como “arma poderosa (…) para nos acordar para a História”.

Servindo de capa e de inspiração para a pesquisa no nosso sumário, a carta de Marguerite Duras ao marido Roberto Antelme quando sabe de sua libertação, em maio de 1945.

Desejamos que esta edição, atravessada pela ideia de que a escrita e a leitura são modos de convívio, mesmo à distância, e de cuidado de si e do outro, sirva também como lugar de aproximação e cruzamento de subjetividades em meio à pandemia.

Revista Z Cultural