Ano XVII 01
1º semestre de 2022
dossiê
Tempo de leitura estimado: 14 minutos

MÁQUINA DE AMAR EM RUÍNAS, OU PARA VIVER UM GRANDE AMOR

Imagem 1: Marcel Gautherot, Alfredo Ceschiatti, 1956 (Coleção IMS).
Imagem 1: Marcel Gautherot, Alfredo Ceschiatti, 1956 (Coleção IMS).

Apoiamos as mãos na pedra e, como num lance, pulamos o muro. Sem acreditar que já estávamos do outro lado, abaixamos sutilmente pra perceber alguma diferença entre os mundos. O medo quando chega no limite vira bicho. A sensação de morte que o medo causa petrifica os corpos, emudece os sujeitos, os transforma em objetos, em estátuas, mas no medo também há respiro. Parece que a pele afina, os órgãos internos despertam e o corpo fica mais sensível à adrenalina. Do outro lado do muro, a casa produzia um fascínio curioso. Ao redor e mesmo dentro da casa, era presente uma série de esculturas femininas de granito e bronze. As esculturas figurativas, combinadas com o abstracionismo da casa, pareciam habitar em certo silêncio. Alguém poderia dizer que era a própria maldição de Perseu contra a Medusa, mas talvez fosse algo totalmente diferente. Próxima à pedra que fundia a arquitetura a sua geologia local, descansavam algumas esculturas: duas vassouras e um barril de lixo, um torso de mulher e uma mulher recostada; uma sem os braços, outra sem pernas e um leve véu esculpido na nudez do tronco. Fomos dançando ao redor destes objetos cindidos, nos relacionando com cada curva enquanto eu filmava em movimento. Estar ali trazia uma sensação de profanação de algo, mesmo que silenciosamente, mesmo que longe das vistas. Nina se movimentava milimetricamente, devagar e no silêncio espelhando seus movimentos aos da escultura, dando continuidade ao que fora interrompido ou petrificado. Assim como o branco da arquitetura, o branco das vestes aos poucos era sujado com os musgos e liquens que habitavam há anos aquelas curvas. Dançar com as estátuas era libertador, parecia que dava vida àqueles seres forçosamente inanimados, evocando uma outra presença de corpo.

*

Imagem 2: Marcel Gautherot, Esculturas de Alfredo Ceschiatti, 1956 (Coleção IMS).
Imagem 2: Marcel Gautherot, Esculturas de Alfredo Ceschiatti, 1956 (Coleção IMS).

A casa patriarcal

Projetada pelo arquiteto Oscar Niemeyer nos anos 1950 e construída entre 1951 e 1953 no Rio de Janeiro, quando a cidade ainda era a capital do Brasil – entre 1763 e 1960 –, a Casa das Canoas foi a residência do arquiteto por seis anos com a sua filha Anna Maria e a mulher Annita, antes de ir para Brasília acompanhar a construção da nova capital do país. Uma pesquisa preliminar da casa se manifesta por uma série de características que deram nome e reconhecimento internacional ao autor: sensualidade e erotismo materializados pela beleza das formas curvas e orgânicas da mulher, bem como da paisagem natural do Rio de Janeiro.

A relação entre musas amorosas e natureza não é fortuita. A natureza foi, ao longo de séculos, continuamente associada ao corpo virginal feminino doador do amor.  A representação da mulher, por exemplo, na pintura de paisagem na França do século XIX uniu os conceitos de natureza, mulher, maternidade e o feminino “natural”. No romantismo brasileiro de influência europeia, a pintura A Carioca (1882), do artista Pedro Américo (Paraíba, 1843-1905), discípulo do pintor francês Dominique Ingres, é um exemplo possível. A relação entre a mulher pura, de pele alva e lustrosa, o vasilhame escorrendo água, a sensualidade e mesmo a sexualidade mascarada, evocam a construção da feminilidade moral associada à natureza igualmente pura e fértil. A representação através da horizontalidade dos corpos de arquitetura, natureza e mulher nos croquis de Niemeyer reforça esse paradigma.

Imagem 3: Croquis de Oscar Niemeyer.
Imagem 3: Croquis de Oscar Niemeyer.

Mas, se a sensualidade das curvas de Niemeyer evocou a mulher como paisagem ao associar corpo e natureza, por outro lado perpetuou uma opressão contra corpos feminizados, confinando-os ao seu sexo e meios reprodutivos. Nesse sentido, o amor é materializado por uma heterossexualidade compulsória, como em “O Poema da Curva”, um dos seus mais conhecidos escritos:

Não é o ângulo reto que me atrai,
Nem a linha reta, dura, inflexível criada pelo homem.
O que me atrai é a curva livre e sensual.
A curva que encontro no curso sinuoso dos nossos rios,
nas nuvens do céu,
no corpo da mulher preferida.
De curvas é feito todo o universo,
O universo curvo de Einstein.
(O. Niemeyer)

No entanto, a enunciação do amor como uma façanha cultural remonta à Antiguidade. Eros, o deus do Amor na cultura grega, foi elogiado por Platão no seu conhecido diálogo O Banquete, escrito em 380 a.C. O Amor foi construído através de diversas narrativas e discutido pelos homens, entre os homens, uma vez que as mulheres eram excluídas dos debates coletivos. As leituras de Eros de Platão podem aprofundar a compreensão de como a modernidade de Niemeyer perpetuou e traduziu seus afetos. Eros, quando encarnado por sua modernidade, assume vestimentas universalizantes e masculinistas desencarnadas de afetos, corpos, gêneros ou sexualidades múltiplas. A arquitetura desempenha um papel fundamental em perpetuar essa divisão sexual em binarismo e tornar o gênero e a sexualidade funções invisíveis dentro do mecanismo construtivo da modernidade.

Dentro do campo da Arquitetura Moderna, em 1917, Le Corbusier publicou seu manifesto Por uma Arquitetura, onde expôs a ideia de uma casa como uma máquina de morar, que teve enorme influência no modernismo brasileiro. Porém, no campo fora do domínio da razão, o tropicalismo sensual moderno atribuído primordialmente à obra de Niemeyer, que encantou seus contemporâneos, evidentemente surge de um ethos epistemológico que abraça a modernidade dentro de um sistema fundamentalmente masculino, mascarado de universal. Ao ser cunhado com o título de herói nacional da arquitetura – característica que acentua, para além do solipsismo através de uma masculinidade egocêntrica, o valor de arquiteto demiurgo –, fica a dúvida sobre a sensualização do modernismo funcionalista, que veio fundamentalmente de uma matriz europeia branca, masculina e patriarcal.

O patriarcado, como lembra Gerda Lerner, é uma criação histórica formada por homens e mulheres em um processo que levou cerca de 2.500 anos para ser concluído, baseado na comercialização da sexualidade feminina e na transformação da mulher em um recurso encantado pelas diferenças de classe, que, segundo ela, se expressa em termos de gênero. As próprias mulheres se tornaram um recurso adquirido pelos homens. A arquitetura não poderia ser indiferente ao sistema sexual vigente, a ponto de podermos chamá-lo de a casa patriarcal moderna.

O papel desse modernismo tropical não contemplou o erotismo patriarcal apontado pela objetificação dos corpos femininos, que se tornou hegemônico em um lugar de construção de uma identidade nacional. Sua construção discursiva, imagética e ideológica pode ser percebida no encontro de mídias a partir da exposição do escultor mineiro Alfredo Ceschiatti, em 1956, na Casa das Canoas.

Imagem 4: Marcel Gautherot, Esculturas de Alfredo Ceschiatti, 1956 (Coleção IMS).
Imagem 4: Marcel Gautherot, Esculturas de Alfredo Ceschiatti, 1956 (Coleção IMS).

A exposição

Realizada em um lugar diferente dos locais habituais de exposição de arte e reunindo as obras de Alfredo Ceschiatti – um artista conhecido pelas esculturas a serem assentadas nos prédios de Niemeyer –, essa exposição tomou o interior e os jardins da Casa das Canoas. A mostra foi publicada na quinta edição da Módulo: Revista de Arquitetura e Artes Visuais do Brasil, da qual Niemeyer foi editor-chefe, para comemorar seus cinco anos, e as fotos expostas na revista foram tiradas por Marcel Gautherot, fotógrafo francês radicado no Brasil que teve papel fundamental na documentação das imagens de uma modernidade nacional. Começando a circular no ano da posse do presidente Juscelino Kubitschek (31 de janeiro de 1956), a exposição e a publicação são arquivos importantes para se considerar o projeto de um corpo moderno e público que contraria a noção da casa como domínio privado.

Imagem 5: Revista Modulo, Ano1956, 5ª Edição – Aniversário da Modulo, Exposição de Alfredo Ceschiatti (páginas 8 e 9) (Coleção da Biblioteca Nacional).
Imagem 5: Revista Modulo, Ano1956, 5ª Edição – Aniversário da Modulo, Exposição de Alfredo Ceschiatti (páginas 8 e 9) (Coleção da Biblioteca Nacional).

 

Imagem 6: Revista Modulo, Ano1956, 5ª Edição – Aniversário da Modulo, Exposição de Alfredo Ceschiatti (páginas 10 e 11) (Coleção da Biblioteca Nacional).
Imagem 6: Revista Modulo, Ano1956, 5ª Edição – Aniversário da Modulo, Exposição de Alfredo Ceschiatti (páginas 10 e 11) (Coleção da Biblioteca Nacional).

A casa foi dividida em níveis que separam dialeticamente o que é revelado e o que é secreto. Enquanto os espaços compartimentados de intimidade são ocultados pela nova topografia da casa no subsolo, o desenho livre do piso térreo, sustentado pelos espaços de sociabilidade, torna-se palco desse grande cenário construído. Esse espaço torna-se um dispositivo voyeurístico de exposição, tanto de uma feminilidade construída exposta pelas esculturas figurativas, como das formas livres da arquitetura. Dentro disso, há uma tensão entre a exposição de um corpo sensual e nu, na esfera pública, e o controle do corpo, na esfera privada. Isso fica evidente pelos fragmentos registrados e escolhidos para aparecer na Revista Módulo. Acentuando a dominação patriarcal presente na modernidade, a casa se revela na visão de um amor heterossexual não só idealizado como violento, em que o espaço de sociabilidade é dado pela transparência e abstração das formas de uma feminilidade branca e etérea. Dentro disso, a visualidade da casa aponta para uma evidência subjetiva do ponto de vista do arquiteto sob um senso platônico de feminilidade e amor.

Planta baixa do nível superior, mostrando o chão livre do térreo, reprodução de 1985.
Planta baixa do nível superior, mostrando o chão livre do térreo, reprodução de 1985.
Planta baixa do nível inferior, mostrando o chão invisível do subsolo, reprodução de 1985.
Planta baixa do nível inferior, mostrando o chão invisível do subsolo, reprodução de 1985.

Portanto, não é só a arquitetura que tem um papel de sedução por meio de um mito importado de feminilidade, mas também as esculturas. Nessa edição da revista, foram sete esculturas em destaque: Acrobatas, Liliane, Banhista, Galo, Peixe, As Três Graças e Torso de Mulher. Críticos brasileiros contemporâneos podem ter apontado a importância dos nus femininos, seus “corpos voluptuosos e sexualizados” (Guerra, 2016), sua função de adorno, a mulher e sua função única de agradar aos universos masculinos ou mesmo o pacto entre homens, que tinha nas esculturas femininas um acordo comercial. Nesse sentido, a cultura do fetiche oferece um paralelo com a cultura da mercadoria presente entre os séculos XIX e XX. Repensando o uso fetichista do corpo feminino como operação formal na arquitetura, é imprescindível repensar os parâmetros culturais entre o feminino como corpo natural e como mercadoria, principalmente porque a arquitetura em um contexto capitalista a torna marca registrada de uma cultura, um corpo publicitário. Isso é especialmente importante quando Niemeyer conta em seus livros de memórias que foi convidado por Juscelino para construir Brasília no pós-festa da exposição de Ceschiatti. Com isso, poderíamos pensar que, num contexto político importante, que levaria à construção da nova capital, Brasília, a casa funcionou como um dispositivo de sedução, ou mesmo um mecanismo de sedução política.

Imagem 7: Marcel Gautherot, Esculturas de Alfredo Ceschiatti, As Três Graças, 1956 (Coleção IMS).
Imagem 7: Marcel Gautherot, Esculturas de Alfredo Ceschiatti, As Três Graças, 1956 (Coleção IMS).

 

Imagem 8: Marcel Gautherot, Esculturas de Alfredo Ceschiatti, Banhista, 1956 (Coleção IMS).
Imagem 8: Marcel Gautherot, Esculturas de Alfredo Ceschiatti, Banhista, 1956 (Coleção IMS).

 

Imagem 9: Marcel Gautherot, Esculturas de Alfredo Ceschiatti, Mulher Reclinada, 1956 (Coleção IMS).
Imagem 9: Marcel Gautherot, Esculturas de Alfredo Ceschiatti, Mulher Reclinada, 1956 (Coleção IMS).

 

Imagem 10: Marcel Gautherot, Esculturas de Alfredo Ceschiatti, O Abraço, 1956 (Coleção IMS).
Imagem 10: Marcel Gautherot, Esculturas de Alfredo Ceschiatti, O Abraço, 1956 (Coleção IMS).

Como Judith Butler já apontou, para além de ser culturalmente construído ou de ser um dado natural, o gênero é uma performance social. Para ela, “a distinção sexo/gênero sugere uma descontinuidade radical entre corpos sexuados e gêneros culturalmente construídos”, significando que,

quando o status construído do gênero é teorizado como radicalmente independente do sexo, o gênero se torna um artifício fluido livre, com a consequência que o homem e o masculino podem tão facilmente significar um corpo feminino ou um masculino, e a mulher e o feminino um corpo masculino tão facilmente quando um feminino (Butler, 1990, p.6).

Nesse sentido, vale considerar: como imagens de sedução, historicamente atribuídas à feminilidade, foram usadas nos novos designs da modernidade e permeadas nos circuitos ativos de poder, dominados por homens? Como a arquitetura constrói a categoria de sexo? Como ela performa um corpo com gênero, e quais são os seus impactos no contexto de construir uma identidade nacional? Como essas questões participam no tipo de prazer oferecido quando se olha para a casa, e como elas anunciam fantasias através do poder?

Imagem 11: Croqui da Casa das Canoas de Oscar Niemeyer mostrando o ponto de vista “humano”, 1950
Imagem 11: Croqui da Casa das Canoas de Oscar Niemeyer mostrando o ponto de vista “humano”, 1950

Muito se sabe de Niemeyer construir a sua persona através de anedotas da juventude, sua participação no “Clube dos Cafajestes”, suas experiências sexuais na Lapa, o encontro com as mulheres nas quartas-feiras à noite, as piadas no escritório que dividia com Jorge, Reidy e Hélio na Nilo Peçanha, onde, como ele conta nos seus livros de memória, juntava amigos como Vinicius de Moraes, Carlos Leão, Echenique, Luiz Jardim, Eça, Duprat e Cavalcanti.

Vale lembrar que, no cenário artístico da época, a Bossa Nova era um gênero musical que crescia praticamente no mesmo espaço-tempo da casa – um Rio de Janeiro de 1956. As palavras tão sonoras de “Para viver um grande amor”, de Vinicius de Moraes, expõem os limites desse idealismo:

Para viver um grande amor
Primeiro é preciso sagrar-se cavalheiro
E ser de sua dama por inteiro
Seja lá como for
Há que fazer do corpo uma morada
Onde clausure-se a mulher amada
E postar-se de fora com uma espada
Para viver um grande amor.
(Vinicius de Moraes)

Não muito diferente da canção de amor de Vinicius de Moraes, Niemeyer construiu para si uma máquina de amor. O ser luxurioso e imaginativo, como ele mesmo diz, conduziu-o aos caminhos do “sexo, da invenção arquitetônica e da fantasia” (Niemeyer, 1990, p. 43). O que parece é que a sua dupla persona permite que ele seja o playboy na arquitetura, mesmo que tenha construído uma casa de família para si. O espaço do playboy moderno é o espaço do masculino erótico, do sensual, permissivo e público e posiciona – cenicamente – a vida familiar heteronormativa e patriarcal. Ao construir um aparato erótico, do sentido masculino, materializado na objetificação de um corpo, a arquitetura torna-se a mulher platônica construída para si.

No mito de Dafne e Apolo, é transformando-se em uma floresta que Dafne consegue enganar o inimigo de um abuso. A floresta aqui também atua como uma defesa, um escudo pelo simulacro, pelo próprio caos que ela representa. Esse também pode ser um caminho onde reside a erosão de uma espécie de cultura heteronormativa. A categoria de mulher, ao contrário de um retorno a uma origem, a um ornamento ou a um estado petrificado, é uma multidão performativa contra suas violentas objetificações e afetos, em busca das ainda invisíveis outras formas de amar.

Imagem 12: Marcel Gautherot, Escultura de Alfredo Ceschiatti, Torso de Mulher, 1956 (Coleção IMS).
Imagem 12: Marcel Gautherot, Escultura de Alfredo Ceschiatti, Torso de Mulher, 1956 (Coleção IMS).

* Mariana Meneguetti é arquiteta interdisciplinar, mestre em Teoria e História de Arquitetura (PUC-Rio) e cofundadora do grupo de arquitetura Entre (Rio de Janeiro). É coautora das publicações 8 Reações para o depois (2019) e Entre: Entrevistas com Arquitetos (2013) e em 2018 colaborou com o Pavilhão do Brasil na 16ª Bienal de Veneza na exposição Muros de Ar. Atua no campo interdisciplinar da arquitetura entre a pesquisa e o projeto.

 

Referências

BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the subversion of identity. Nova York: Routledge, 1990.

GUERRA, Abilio. Arquitetura e natureza. São Paulo: Brasil 01, 2016.

LERNER, Gerda. The Creation of Patriarchy. Nova York: Oxford University Press, 1986.

NIEMEYER, Oscar. As curvas do tempo: Memórias. 7ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2000.

NIEMEYER, Oscar. “Playboy entrevista Oscar Niemeyer”. Entrevista com Zuenir Ventura. Playboy, São Paulo, número 185, p. 39-58, novembro de 1990.