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Desentranhando Luis Olavo Fontes – Entrevista, por Masé Lemos

Entrevistar o poeta Luis Olavo Fontes foi uma experiência muito agradável. O “Lui”, como ele é conhecido pelos amigos, domina a arte da boa conversa. Com o seu jeito carioca e sem nenhum pedantismo, ele foi capaz de refazer o seu “retrato de época”, ou seja, da chamada poesia marginal da qual participou ativamente. Essa entrevista foi gravada, transcrita e depois revisada e editada. Ela é uma tentativa de preencher a lacuna do livro de Carlos Alberto Messeder Pereira, pois o Lui, na época, estava literalmente viajando.

Masé Lemos: Você participou nos anos 1970 do movimento chamado “poesia marginal” e em recente minibiografia que você escreveu diz que você seria “um poeta marginal dentro dos marginais ou que teria sido marginalizado nos anos 70 e esse teria sido o seu fim”. Poderia falar um pouco sobre isso?

Lui: Há dois assuntos na sua pergunta. Primeiramente, em relação a mim, ocorreu que em 1976 eu saí do Brasil e só retornei em 79. A poesia marginal estava no auge quando parti. Eu acabara de lançar um livro Papéis de Viagem, que era como eu estava me sentindo: tirando os papéis de viagem para partir. Para mim foram apenas três anos – 74/75/76 – participando do movimento de poesia marginal. Mas, foram três anos muito intensos em que fiz três livros, fundei com o Cacaso a coleção “Vida de Artista”, participei de antologias e fiz muitos trabalhos em jornais e revistas da época. Aconteceu que a melhor e mais completa pesquisa sobre a “poesia marginal”, o livro Retrato de Época de Carlos Alberto Pereira, foi feito em 1977 quando eu não me encontrava no Brasil. Ele entrevistou todo mundo menos eu. Fiquei de fora – marginalizado dentro dos marginais
Além disso, havia contra a poesia marginal um preconceito muito grande, a começar pelo nome. Na verdade, não sei quem deu esse nome, mas não fomos nós. Marginal ali ninguém era. O que havia é que nossos livrinhos eram marginais ao circuito editorial. Com isso, nos livrávamos da censura dos militares, muito rígida na época – censuravam tudo e todo mundo – e também de todos os intermediários – livrarias, distribuidores, editores. Vendíamos diretamente do autor para o leitor. Agora, marginal é uma palavra muito vasta, dá margem a muitos significados pejorativos que a alguns agrada, a outros não.

ML: Essa marginalidade não era também uma forma de resistência a esse sistema editorial? Não só politicamente contra a censura, mas também uma maneira de furar esse, digamos assim, sistema capitalista?
L: Claro que sim. Até porque éramos muito jovens e não conseguiríamos entrar no sistema editorial, ainda mais publicando poesia, algo difícil até hoje. Qualquer jovem que queira publicar poesia vai sofrer a mesma coisa que nós sofremos naquela época. É como você disse: as editoras são empresas capitalistas, feitas com o intuito de gerar lucro. E poesia não dá lucro… Aí vem aquelas frases: poesia está fora do mercado, não dá dinheiro etc. Então era sim uma maneira de furar esse mercado editorial e tentar criar um outro circuito: vender em bares, na praia, no teatro, na rua, no mundo.

ML: A poesia de vocês tem muito do Modernismo…
L: Com certeza. Literariamente falando, nossa maior influência era o Modernismo. O Brasil mudara muito de 68 a 73. Houve a revolução sexual, a televisão a cores com satélite para todo o país. Nós queríamos descobrir esse novo Brasil que estava nascendo. Daí talvez a ligação com os modernistas. As maiores influências eram Manuel Bandeira (de Libertinagem em diante), Oswald de Andrade, Drummond de Alguma Poesia, Murilo Mendes do Poemas, enfim, aquela fase modernista inicial dos anos 1930. Quase me esqueço: Mário de Andrade a gente também lia muito. A outra grande influência vinha da música: Tropicália, samba e rock’n roll. Bob Dylan, John Lennon, Jimi Hendrix, Caetano, Chico Buarque – esses eram os nossos gurus. Eu, particularmente, adorava João Gilberto e o Jim Morrison dos Doors.

ML: E qual relação de vocês com os concretos?
L: Não havia relação… A relação com os concretos me faz lembrar o Cacaso. Cacaso era cheio de frases de efeito, um mestre das respostas rápidas. Uma vez ele disse: “o concretismo é o AI-5 na poesia.” Os paulistas ficaram furiosos. Nós vivíamos o AI-5 naquela época, era o auge dos anos de chumbo da ditadura militar, o governo do General Médici. Cacaso queria fazer não uma poesia engajada tradicional, mas uma poesia de denúncia dos crimes da ditadura, dos horrores da tortura, da violência, do autoritarismo. Mesmo porque havia censura e ninguém sabia o que estava realmente ocorrendo. Cacaso não se conformava com o fato dos concretos terem abolido o discurso literário – com a velha desculpa pernóstica de que “tudo já foi escrito.” Ele dizia, com alguma razão, que a poesia concreta só contribuía para uma maior alienação da poesia brasileira. Fatos terríveis estavam acontecendo e a poesia concreta estava fazendo “Coca-Cola”, “Luxo é Lixo” – poemas alienados que mais pareciam “slogans” publicitários. Ele propunha que a poesia voltasse a ter um discurso, que fosse mais reflexiva, que se aproximasse mais da realidade, e o concretismo realmente estava em outra onda, algo mais “clean”, mais estético – o formalismo em estado puro – que os aproximava mais das artes plásticas do que da literatura.

ML: O que é interessante é que desde os concretos era comum relacionar a poesia artesanal ao individualismo, mas na poesia dita marginal essa ideia de artesanato está muito mais ligada ao coletivo.
L: É verdade. Em termos de produção, eram sempre criações coletivas. É o caso do Almanaque Biotônico Vitalidade, cujo primeiro número foi um exemplo disso. Poetas, pintores, fotógrafos, “designers”, se reuniram e o resultado foi ótimo. O mesmo ocorreu nos primeiros livros da coleção “Vida de Artista”, que foram feitos coletivamente, um monte de gente junta, na fazenda do meu avô. Já com relação à produção poética, acho que as individualidades predominam e são bem definidas. Não concordo com pessoas que rotulam “poesia marginal” como uma coisa una, todos escrevendo parecido. Acho que individualmente éramos muito diferentes e isso se refletia em nossa poesia. A poesia da Ana Cristina é totalmente diferente da do Chacal. A poesia do Chico Alvim é muito diferente da do Cacaso. E todos são considerados poetas marginais.

ML: Como foi dito, no livro Retrato de Época: poesia marginal de Carlos Alberto Pereira, há várias entrevistas com os componentes da “Vida de Artista”, mas você não foi entrevistado. Por onde você estava viajando na época?
Lui: Estava fazendo a grande viagem da minha vida, uma viagem de volta ao mundo. Era um sonho antigo de conhecer o Oriente, a Índia, a China… Nos meus planos iniciais, era uma viagem que iria durar entre 3 e 6 meses, mas acabou durando 2 anos. A ideia era seguir a rota de Marco Polo, de Veneza a Pequim pela Estrada da Seda e voltar pela Ásia do Sul – exatamente como foi a viagem de volta de Marco Polo. Mas, o Sikiang (oeste da China) estava fechado para estrangeiros, então fui primeiro pra Índia e sudeste asiático e terminei na China. Voltei pelo Pacífico, parando em algumas ilhas, até chegar no Chile. A viagem foi bacana porque foi feita toda por terra, só peguei dois aviões: um na ida, Rio-Roma, e outro na volta (com escalas), Bali-Santiago do Chile. Foi a volta ao mundo em 700 dias.

ML: Antes da viagem, você foi aluno da Faculdade de Letras da PUC-RIo.
L: É verdade. O Cacaso e a Ana Cristina foram muito importantes nesse processo. Em 1973, eu estava terminando o curso de Economia na PUC – que cursara por pressões familiares – quando houve um evento poético na faculdade: a “Expoesia”. Puseram um monte de quadros de cortiça no pilotis da PUC, que é uma área imensa, e você podia ir lá e pregar com tachinhas um poema seu. Era uma coisa livre, aberta a todos – então, fui lá e coloquei um poema meu. Ocorreu que o Cacaso e a Heloísa Buarque escreveram em conjunto um artigo para a revista Argumento – uma revista importante na época, era do Fernando Gasparian, que também tinha o jornal Opinião – dizendo que havia um novo movimento de poesia feito pelos jovens. Para exemplificar, publicaram uns 4 poemas expostos na Expoesia, entre os quais estava o meu “Homenagem à Yoko Ono”. Eu me surpreendi porque até então não conhecia nenhum desses jovens poetas, não conhecia o Cacaso, não conhecia a Heloísa, ainda estava estudando Economia. Por outro lado, sempre fui muito ligado à literatura, porque o meu avô por parte de pai era o Amando Fontes, romancista com alguma fama nos anos 30, 40 do século passado, quando ganhou prêmios com seu romance Os Corumbas. Sempre escrevi, desde garoto, mas era algo solitário e meio secreto, não mostrava pra ninguém. Nunca havia exposto em público um poema meu até que nessa “Expoesia” tudo aconteceu. O Cacaso escreveu esse artigo com a Helô e quis me conhecer. Logo conheci a Ana Cristina e comecei a me interessar em, quem sabe, cursar Letras na PUC. Foi assim que terminei Economia em 73 e entrei para Letras em 74.

ML: E aí você foi cursar Literatura em 74. Conte como foi que surgiu a coleção “Vida de Artista”.
L: Foi um tempo muito bom. O Cacaso logo se tornou meu amigo e fez um curso sobre a poesia da gente – que ainda não se chamava marginal. A Ana Cristina, que era minha namorada, era também minha monitora num curso que eu fazia com a Cecília Londres. Houve uma espécie de simbiose entre as pessoas, todas ficaram muito amigas. O Chacal, que fazia o curso do Cacaso de ouvinte, começou a namorar minha irmã Debinha. Ele fez um poema lindo pra ela que está no América, dedicado “à Deborah”. O Cacaso começou a namorar outra irmã minha, a Kaki, que também estudava literatura na PUC. Nesse curso, ele começou a publicar os poemas da gente no mimeógrafo da PUC e a ideia de fazer livros assim já estava acontecendo – o Charles e o Chacal já haviam feito seus primeiros livros dessa maneira. Foi então que surgiu o Toledo, um amigo do Cacaso que tinha um mimeógrafo moderno na sua firma de arquitetura e deixou que nós fizéssemos nossos livros lá. Eu estava com meu primeiro livro, Prato Feito, pronto e o Cacaso convidou: “Vamos fazer no mimeógrafo do Toledo.”
Prato Feito tinha fotos da Bita Carneiro, que tinha sido namorada do poeta João Carlos Pádua e era irmã do Geraldinho Carneiro, também poeta – ambos alunos de Letras da PUC. A ideia do Cacaso, nosso professor, era fazer uma coleção em que cada livro vendido pagasse a produção do seguinte. Uma espécie de cooperativa literária. O dinheiro da venda do livro não iria para o autor, mas para a produção do próximo livro. Assim, o Prato Feito financiou a publicação do Segunda Classe, o segundo livro da “Vida de Artista”.

ML: E como eram os famosos encontros na fazenda do Lui?
L: Esses encontros foram muito citados no Retrato de Época, mas a fazenda não era o único ponto de encontro da gente. No Rio, havia a casa do Cacaso – um apartamento enorme na avenida Atlântica – e o casarão da Lagoa, onde morávamos eu e meus irmãos. Éramos sete irmãos, a casa era bem grande e vivia cheia de gente. Isso era no tempo em que havia casarões na Lagoa… Os meus dois primeiros livros, Prato Feito e Segunda Classe, foram lançados lá. O que aconteceu foi que no réveillon de 74/75, passamos uma longa temporada na fazenda e foi um tempo muito rico, vários livros foram feitos. Foi uma turma enorme pra lá: poetas, artistas plásticos, músicos, cineastas, um bando de artistas, mas o intuito principal era fazer livros de poesia. E foram feitos pelo menos três livros nessa temporada na fazenda: Segunda Classe, que era meu e do Cacaso, o América do Chacal e o Creme de Lua do Charles. Aliás, o América foi o terceiro livro da “Vida de Artista”, tinha o carimbo da coleção feito pelo Dick e Sérgio Liuzzi – um balãozinho muito bonitinho. Mas, o Chacal estava sendo muito pressionado por amigos da faculdade dele – ele estudava comunicação na ECO, onde também estava o Charles – para participar de outra coleção que eles estavam criando: a “Nuvem Cigana”. Assim, o América foi, nas palavras do próprio Chacal, um livro híbrido; foi tanto da “Vida de Artista” quanto da “Nuvem Cigana”. O Creme de Lua do Charles já saiu pela “Nuvem Cigana”. Aliás, tem um poema nesse livro que foi feito na fazenda: o Charles estava deitado na rede da varanda quando apareceu um bando de maritacas aos berros num vôo rasante. Charles gritou: “Olha a passarinhada!” Fomos todos correndo para a varanda: “Aonde? Aonde?” E o Charles imóvel na rede respondeu: “Passou.” Esse poeminha está no Creme de Lua e tem três linhas: “Olha a passarinhada!/Onde?/Passou…”

ML: A Ana Cristina César na entrevista que deu ao Carlos Alberto Pereira, falando sobre a fazenda do Lui, dizia que tinha toda uma roda de meninas em volta… então, talvez houvesse esse clima narcisista, clube do bolinha, o que você poderia falar sobre isso?
L: É difícil falar sobre isso… São os sentimentos da Ana Cristina… Mas, acho que ela tinha alguma razão – afinal, éramos uns garotões de vinte e poucos anos… Mas aí, acho que tem duas coisas. Primeiro, talvez ela se sentisse meio deslocada porque ela era a única mulher poeta, todos os outros eram homens. Talvez, ela se sentisse meio fora do negócio. Em segundo lugar, é preciso lembrar que no réveillon de 75 Ana Cristina ainda não havia publicado nada. Ela escrevia muito, mas não queria publicar, não se sentia segura. Ela dizia também que não possuía uma quantidade suficiente de poemas para fazer um livro de qualidade, algo com que eu não concordava. Eu dizia a ela: “está cheio de gente muito pior que você publicando livros, por que você não publica?” Mas, ela não publicava nada. Então, devia ser uma situação meio incômoda pra ela: todo mundo fazendo livro e ela não. Mas isso são suposições…
Agora, nesse comentário que ela faz, que havia muitas luluzinhas em volta da gente, como se fossem umas tietezinhas, acho que há um certo exagero dela em dizer isso. Ainda que houvesse um certo machismo dos homens, as meninas que estavam lá eram nossas amigas e namoradas, a maioria delas também artistas. Você quer nomes? No réveillon de 75 na fazenda, em volta da mesa redonda da sala de jantar, estavam a Sandra Werneck – hoje cineasta de renome – , a Bita Carneiro que é uma grande fotógrafa, a Olívia Byington que é ótima cantora (acho que ela namorava o músico Paulo Guimarães na época), Debinha que era atriz, Massoca que é artista plástica e a Kaki que é poeta, mas que também só publicaria mais tarde. Como se vê, as meninas eram todas artistas e não tietes idiotas como ela deixa transparecer na entrevista. Havia também um pessoal da música, ouvia-se e tocava-se muita música. Muitas drogas também. As pessoas tomavam muitas drogas naquele tempo.

M: E essa viagem ao São Francisco, que deu como resultado o Segunda Classe, qual era o significado da viagem? Porque você tem uma relação especial com essa noção de viagem…
L: Tenho. E o Cacaso não. O Cacaso era mais quieto, mais sedentário. Ele nasceu em Uberaba e depois se mudou para Barretos. O pai era fazendeiro de gado, tinha terras em vários estados. As maiores fazendas ficavam no Pantanal. Com 11 ou 12 anos, Cacaso se mudou para o Rio, e aquilo foi um choque para ele, menino interiorano na cidade grande. Apesar de estar no Rio há tanto tempo, Cacaso nunca deixou de ser aquele mineirinho calado, observador, esperto.
Já o meu caso era diferente, nasci no Rio e minha família adorava viajar. Minha mãe era a maior incentivadora dessas viagens. Lembro que em 61, Brasília estava quase pronta e meus pais decidiram conhecê-la. Puseram as crianças no carro e lá fomos nós pro planalto central. Meu pai era médico, Dr. Olavo Fontes, mas sua maior paixão eram os discos-voadores. Então íamos para os Estados Unidos, onde meu pai se encontrava com astrônomos e pesquisadores de OVNIS. Passei assim a infância viajando, era uma coisa natural pra mim.
Mas, a primeira grande viagem que fiz foi com meu amigo de infância, Guy Van de Beuque. O pai dele era francês, Jacques Van de Beuque – idealizador do maravilhoso museu Casa do Pontal – e na sua lua-de-mel com a mãe do Guy, nos anos 40, atravessaram a América por terra desde os Estados Unidos à Patagônia. O Guy queria repetir essa viagem (eles tinham slides que nós assistíamos) e me convidou pra ir com ele. Minha namorada tinha terminado comigo, eu estava meio sem rumo, acabei indo. Fomos de mochila – era 1970, eu tinha 18 anos – e nossa viagem tinha duas leis de ouro. Primeira: não pagar transporte. Segunda: não pagar hotel. Isso se devia ao fato de termos pouquíssimo dinheiro – então a viagem virava uma coisa meio aventureira, só viajávamos de carona e nos hospedávamos em igrejas, escolas, universidades ou em casas de pessoas que ofereciam quartos de graça.
Eu e o Guy viajamos assim por toda a Bolívia, Peru, Equador e Colômbia. Nessa viagem aprendi a viajar. Descobri como era fácil viajar com pouco dinheiro e comecei a viajar pelo mundo todo. Viajava também pelo Brasil: fui conhecer Sete Quedas antes que a represa de Itaipu a cobrisse para sempre. E, como todo mundo, me apaixonei pela Bahia.
O movimento poético dos anos 70, seguindo os passos do Modernismo, também tinha esse desejo de conhecer o Brasil. O Charles e o Dick (o designer Rogério Martins) foram de jipe para o Nordeste e passaram por muitas aventuras no sertão. Havia os livros do Oswald viajando com a Tarsila pelo Brasil, os livros do Blaise Cendrars, do Mário de Andrade… Manifesto Antropofágico era a leitura predileta de quase todo mundo: “Tupi or not Tupi: that is the question”. Era preciso conhecer o Brasil.

ML: Mas o Cacaso não se animava…
L: É, o Cacaso era meio parado e nós ficávamos forçando “Vamos viajar, Cacaso?” e levávamos o Cacaso para Rio das Ostras, pra Pirapora… Sim, porque essa viagem pelo rio São Francisco começava em Pirapora (MG) e terminava em Juazeiro (terra de Ivete Sangalo) no sertão da Bahia. O mais interessante eram as barcas que haviam sido importadas do Mississipi e tinham aquelas enormes rodas de madeira na popa. Apesar de lindas, as barcas era altamente antiecológicas, pois seu combustível eram toras de madeira recém-cortadas das matas ciliares do rio. Elas provocavam a maior devastação nas margens do São Francisco. Iam acabar com as barcas, mas não por esse motivo. Uma enorme represa, a de Sobradinho, estava para ser construída, o que iria afetar a navegabilidade do rio. Por isso, resolvemos ir – para conhecer as famosas barcas do São Francisco que iam se acabar.

ML: E era tranquilo viajar com o Cacaso?
L: Era ótimo. Cacaso era cômico, estava sempre fazendo alguma observação engraçada sobre tudo que via. Ele ficou maravilhado com a Bahia, que nós já conhecíamos e ele não. “Nós” éramos eu, minha irmã Massoca e a Bita Carneiro. Parecíamos dois casais, mas não éramos. Acho que foi em outubro de 1974 que fizemos a viagem e eu namorava a Ana Cristina. Já o Cacaso queria namorar a Massoca e não conseguia. Assim fomos os quatro amigos e acabamos nas praias de Salvador comendo acarajés, abarás, carurus e vatapás.

ML: E essa ideia de poesia escrita coletivamente que o Segunda Classe apresentava, sem diferenciação de autoria nos poemas?
L: Os teóricos adoraram na época.

ML: Já havia essa noção de coisa coletiva, de grupo, de “Vida de Artista”, de coleção…
L: Mais ou menos. A gente tentava, mas éramos muito desorganizados. No caso do Segunda Classe, não houve nenhum planejamento, tudo foi acontecendo naturalmente. Quando fizemos a viagem, não foi para escrever um livro. Foi para conhecer o São Francisco.

ML: E como surgiu a ideia do livro?
L: Não surgiu, foi acontecendo naturalmente.

ML: Vocês foram escrevendo lá mesmo?
L: Sim, mas separadamente. Eu escrevia meus poemas, Cacaso escrevia os dele. Às vezes mostrávamos alguma coisa que havíamos acabado de fazer um para o outro. A viagem foi indo, a gente foi escrevendo sem compromisso de estar preparando um livro. Foi só depois, quando fomos para a fazenda no fim do ano que eu mostrei pro pessoal: “olha só os poemas que fiz lá.” O Cacaso tirou uma pasta da bolsa baiana recém-adquirida no Mercado Modelo e disse: “Eu fiz esses todos lá”. A Bita chegou e mostrou: “olha, eu tirei essas fotos.” E a Massoca: “ah, eu fiz esses desenhos.” Nós estávamos no mesão redondo da fazenda onde tudo acontecia: fazia-se livros, tocava-se música, conversava-se muito e a certa altura o Cacaso se vira e diz: “Com esse material aqui dá pra se fazer um livro. Vamos fazer um livro?” E assim foi. No meio do processo é que surgiu a ideia de não dizer de quem eram os poemas, acabar com esse conceito autoral.

ML: Uma espécie de morte do autor…
L: Pois é. Mas, havia uma coisa curiosa acontecendo: os nossos poemas tinham ficado muito parecidos. Um dia dissemos, meio de brincadeira, que se tirássemos a autoria dos poemas, ninguém saberia dizer qual era de um, qual era de outro. Na verdade, um influenciava o outro, as coisas que líamos eram as mesmas, as paisagens deslumbrantes eram as mesmas para os dois.

ML: Era a mesma viagem…
L: Era a mesma viagem e realmente os poemas ficaram muito parecidos. Era difícil distinguir o que era de um, o que era do outro.

ML: Recentemente você voltou a ter problemas com a autoria dos poemas deste livro – conte o que houve.
L: Chega a ser irônico. Ficamos esse tempo todo sem dizer de quem eram os poemas e quando isso foi revelado – saiu tudo errado! Três poemas meus foram dados para o Cacaso. São eles: “Mudando o Estado”, “Constatando” e “Diário”. O pior foi ter lido num ensaio crítico recente da pesquisadora Luciana di Leone que escrevendo sobre o Segunda Classe apontou diferenças cruciais entre a minha poesia e a do Cacaso. Para demonstrar isso ela cita dois poemas do Cacaso – que são meus! Quer dizer, com isso ela conseguiu comprovar que eu sou completamente diferente de mim mesmo.

ML: Mas ela partiu de um material que estava errado.
L: É verdade, ela não teve culpa. O erro está no livro das obras completas do Cacaso, o Lero-Lero, editado pela Cosac Naify e 7Letras. Vou mandar uma carta para eles, para ver se eles corrigem isso nas próximas edições. Afinal, já existem estudos literários dizendo que os meus poemas são de outro!

ML: Seria melhor que deixassem como antes – sem autoria. Deixar os dois misturados coletivamente.
L: Realmente, teria sido melhor. Foi o Pedro, filho do Cacaso, que me pediu para que assinalasse no Segunda Classe os poemas do pai que havia morrido. Mandei para ele uma lista com os poemas do Cacaso no livro. E mesmo assim saiu errado.

ML: Ana Cristina César tem um poema, Vigília 2, “desentranhado do poema Vigília de Luis Olavo Fontes”. Como foi isso?
L: Ana fez esse poema lá em casa, na minha mesa. Fizemos uma tentativa de morar juntos que não deu certo, éramos muito jovens (22 anos) e muito dependentes de nossos pais. Aluguei um apartamento em Santa Teresa e saí de casa. Mas, comíamos na casa dos pais, falávamos no telefone (não tinha telefone no apê), enfim, era uma vida meio dividida. Mas em Santa Teresa, líamos, escrevíamos e namorávamos muito. Vários poemas da Ana foram feitos lá em casa – por exemplo, os dois que ela publicou na revista Malasartes de setembro de 1975. Um deles foi o “Vigília 2”, que eu considero um dos melhores poemas da obra dela. Aliás, foi a Luciana di Leone quem percebeu que no livro póstumo, Inéditos e Dispersos, organizado por Armando Freitas Filho, o poema foi publicado sem a epígrafe – “desentranhado do poema Vigília…”. Ou seja, o Armando cortou a epígrafe. Acho que ele não gosta muito de mim… O título do poema fica sem sentido – por que Vigília 2? Onde está o Vigília 1?

ML: Alguns poetas da geração de vocês morreram jovens… Queria perguntar sobre essas mortes que de certa maneira santificaram alguns poetas.
L: Santificaram uns e outros não, né? Lá no Nordeste, o povo gosta de dizer durante o velório de um pecador: “agora que morreu, vai virar santo.” Mas, tem também os que morrem e ninguém lembra mais. Um dos poetas fundadores da “Nuvem Cigana”, o Guilherme Mandaro, morava a três prédios da Ana Cristina na mesma rua Tonelero e também se jogou pela janela, uns dois anos antes dela, e hoje ninguém fala dele, é uma pessoa totalmente esquecida. Era ótimo poeta, mas só fez dois livros: Hotel de Deus e Trem da Noite. Tinha militância política e apareceu no livro do Gabeira “O que é isso companheiro” com o codinome de Bom Secundarista. Ele era do Pedro II no tempo da guerrilha urbana. No início dos anos 70, Guilherme era professor de História e foi dele a ideia de usar os mimeógrafos das escolas onde dava aula para publicar poesia. Foi ele quem permitiu ao Charles e ao Chacal fazerem seus primeiros livros em mimeógrafos. A ideia foi dele, do Guilherme Mandaro. E quase ninguém sabe disso. Já outros, como você disse, foram beatificados: Leminsky, até mesmo o Cacaso; e a Ana Cristina é a santa maior.

ML: Torquato…
L: Torquato, pois é, também conheci o Torquato. Foi numa filmagem em Super 8 do Ivan Cardoso, “Nosferatu no Brasil”. Torquato era o ator principal, o Nosferatu. Tinha uma cena antológica: Torquato (Nosferatu) de sunga e capa negra à sombra de um coqueiro, com os caninos pontiagudos à mostra, tomava coco gelado no canudinho enquanto fiscalizava os pescoços femininos na areia da praia.

ML: Em 2007 você publicou três livros – Colar de Coral, Linha de Fogo e Livro do Príncipe. Excesso de inspiração?
L: Nada disso. Excesso de preguiça para publicar. O Livro do Príncipe é antiquíssimo, foi escrito em 1975 no apê de Santa Teresa, tempo em que estudava Letras na PUC. Ficou na gaveta mais de 30 anos. O Colar de Coral é meu livro de poesias inéditas abrangendo um período de tempo que vai de 1982 a 2002. Eu não fazia um livro de poesias inéditas desde 1987, quando lancei o Tupis, Rubis e Abacaxis.

ML: Bem modernista o título, né?
L: Na verdade é um verso do Mário de Andrade, num poema em que exaltava as riquezas e maravilhas do Brasil: “Abacate, cambucá e tangerina/Tupis, rubis e abacaxis!” Algo assim, não lembro bem.

ML: Faltou falar de um livro…
L: Ah, sim… O Linha de Fogo é um livro pequenino, no formato de uma caderneta, que por isso cabe no bolso de uma calça jeans ou na bolsa das mulheres. São 150 poemas curtinhos ou poemetos – que hoje chamam poema-minuto – 50% dos quais inéditos. É outra característica da poesia dos anos 70 inspirada no Modernismo. Drummond, Oswald de Andrade, Murilo Mendes e até Bandeira – todos faziam o chamado poema-minuto de quando em vez. Nossa geração seguiu essa tradição.

ML: Você não disse como terminou a Coleção Vida de Artista… Quais os livros publicados?
L: A “Vida de Artista” começou a ficar famosa em 1975. Pessoas desconhecidas nos mandavam livros de todo o Brasil para que as publicássemos. Tivemos de fazer uma triagem, uma seleção. Acredito que a ideia inicial do Cacaso era compor um conselho editorial comigo, Ana Cristina, João Carlos Pádua, Charles e Chacal – a turma que passara a temporada na fazenda. Mas, Charles e Chacal logo abandonaram o barco e foram para a Nuvem Cigana. João Carlos e Ana Cristina tiraram o corpo fora, como era de praxe, não queriam se envolver. Sobramos então eu e o Cacaso para tocar a “Vida de Artista”. Publicamos um poeta de Brasília, Eudoro Augusto, que não conhecíamos, mas que nos enviou um bom livro, A Vida Alheia. Publicamos também Carlos Felipe Saldanha, também conhecido como Zuca Sardana, um diplomata amigo do Chico Alvim que fazia livros em mimeógrafos desde os anos 1960, muito antes da nossa geração ter essa ideia. O livro dele chamava-se Aqueles Papéis. Cacaso publicou o Beijo na Boca, seu livro de poemas líricos, com capa da minha irmã Massoca. Acredito que, finalmente, depois de toda essa paquera, ele tenha conseguido namorar ela.
Em 1976, o projeto do Cacaso para a “Vida de Artista” começou a caducar. A antologia da Heloísa Buarque fizera um enorme sucesso, nossa poesia se espalhara pelo Brasil. Já havia editoras interessadas em publicar os “marginais”. A Vida de Artista foi se esvaziando naturalmente. Os namoros acabaram, outros começaram, as pessoas se distanciaram. Como dizia Murilo Mendes: “a vida separa muito mais do que a morte”. Ainda fizemos dois livros que podem ser considerados da coleção “Vida de Artista”: o meu Papéis de Viagem (1976) e o Na Corda Bamba (1977) do Cacaso. O carimbo da “Vida de Artista” – todos os livros eram carimbados manualmente na capa – ainda está lá em casa, guardado com carinho.

ML: E a poesia contemporânea, você tem acompanhado?
L: Até tenho, na medida do possível. Acho que a poesia contemporânea está muito tribalizada. Cada tribo tem sua poesia. Como no tempo dos índios, algumas tribos guerreiam entre si. Outras, sentindo-se superiores às demais, ignoram-nas. Essas últimas cultivam a fantasia de que só eles conhecem e produzem a verdadeira poesia. Parecem não se aperceber que a poesia é como o vento – sopra onde quer. Há inúmeras maneiras de se fazer boa poesia – basta ler poetas como Fernando Pessoa, Maiakovski, Baudelaire, e ver como são maravilhosos, ainda que suas poesias sejam construídas de modo bastante distinto.

ML: Algum poeta lhe agradou ultimamente?
L: Sim, gostei muito do livro Rilke Shake da Angélica Freitas. É uma poesia bem-humorada, a começar pelo título. Está faltando um pouco de humor na poesia: tá todo mundo muito sério… Também gostei dos poemas daquele menino que morreu, Leonardo Martinelli; entrei no site dele e ele era um bom poeta. Fiquei com pena, um poeta tão jovem e tão talentoso…

ML: Você lançou um livro de prosa em 2009?
L: Lancei Novelas de Guerra. Livros de contos e novelas. Sou um contista bissexto, mas fazia 16 anos que não publicava nada desde Ócio do Oficio de 1993. Já estava na hora de publicar outro. Estou até espantado com a boa repercussão do livro, tenho recebido inúmeros e-mails com elogios, algo que não ocorre quando publico poesia…
Novelas de Guerra era na verdade dois livros: um de novelas e outro de contos. Pensei a principio em editá-los separadamente, mas a Heloisa Buarque de Holanda, que é a minha editora, me convenceu a uni-los num só volume. Três contos são de 1973 [eu tinha 21 anos] e não entraram no Ócio do Oficio nem me lembro mais por quê. Mas, a maioria é recente, do século XXI, ainda que haja dois ou três dos anos 1990. Apenas um deles, “Separação”, não é inédito, pois já havia sido publicado numa coletânea de contos editada pela Francisco Alves. A maioria das histórias é de aventuras em vários lugares do mundo – minhas viagens tiveram alguma influência nisto. São fáceis de ler e têm boa dose de humor, acho que é por isso que têm agradado tanto às pessoas.

ML: E os planos para 2010?
L: Estou terminando uma biografia do meu avô, o dono da fazenda onde fazíamos os livros de poesia, Severino Pereira da Silva. É um livro feito por encomenda da família. Mas, a história dele é tão incrível que pode até dar samba. A ideia seria lançá-lo em dezembro de 2010.

Masé Lemos é professora de Teoria da Literatura na UERJ. Em 2007, publicou Redor pela 7Letras. maselemos@me.com