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O museu em três dimensões | de Viktor Chagas

Pensar o museu como ferramenta de comunicação social é ir além do aprisionamento formal dos meios impressos, digitais e de radiodifusão. E, nesse sentido, ir além do aprisionamento formal do museu como ambiente físico predial, sujeito a limitações de espaço e dinâmicas. O museu é um instrumento de comunicação por excelência, capaz de integrar a comunidade em torno de si e dar vazão a um processo de participação cidadã , através de sua reconstrução engajada do passado .

Dessa forma, tanto quanto com a televisão e o cinema, inserir o museu em uma categoria que permita a sua identificação como meio de comunicação, é trabalhá-lo nos moldes de uma orientação multimídia, dada a intensidade de representações sinestésicas memoriais. No espaço museal, a experiência sensorial de vivenciação e “decodificação” – uma evidente aproximação no sentido de que se opera um deslocamento no tempo e no espaço (meios também de transporte, portanto) – se fundamentam no contato entre o visitante e o acervo. Critério evidente para a construção da associação do museu como ferramenta de comunicação, a proximidade entre a conceituação de tecnologias da informação e da comunicação – trabalhadas especialmente pela chamada Escola de Toronto em meados do século passado – e a de tecnologias da memória – cuja maior inspiração, poderia-se dizer, está alicerçada na sólida Escola dos Anais – permite que compreendamos o museu como híbrido de ambas as categorias.

Myrian Sepúlveda dos Santos, em tese fundamental para os estudos contemporâneos acerca da museologia , descreve dois gêneros de museus, o museu-objeto e o museu-texto, demonstrando especialmente a complexidade deste último no cumprimento da transmissão de uma narrativa museal. O museu-texto, ela indica, conta uma história (jamais uma História). Esta passagem se coaduna com o raciocínio de Richard Wurman, arquiteto da informação americano, que define em belas palavras o processo comunicacional. Para Wurman, “comunicar é lembrar como era quando não se sabia” .

Num museu, durante o percurso da exposição, o visitante é não “instruído”, mas “informado”. Como no rádio – pela condição privilegiada de caráter popular e abrangente –, sua reação imediata é buscar pelo seu lugar na representação do teatro da memória. Assim, seja pelo caráter cívico ou pelo seu foco nos aspectos comunitários, o laço que o museu, sobretudo o museu histórico – que discute ao extremo a patrimonialização do objeto e do discurso museal –, estabelece é o mesmo vínculo através de valores comuns que inspiram os meios de comunicação. Tal vínculo, de acordo com a conhecida descrição de Benedict Anderson , é sem dúvida capaz de conformar uma “comunidade imaginada”, claramente afeita ao trabalho de memória executado pelos técnicos museais.

Pensar o museu como ferramenta de comunicação social é, para além de imaginá-lo como mídia tradicional, aliar sua dinâmica à discussão recente que se tem travado no âmbito estrito do jornalismo, no que tange ao debate político em torno da imagem conceitual do jornalismo público . O museu, assim, coloca a comunidade – seja em que sentido for que estivermos tratando de uma comunidade – no centro do movimento de construção do conhecimento, numa perspectiva que desmitifica seu papel como “lugar de guardar coisas velhas” ao mesmo tempo em que o deselitiza. O museu é feito pela própria comunidade e para a própria comunidade. Não à toa, a experiência emblemática de museus comunitários – a saber, o Museu da Maré –, numa favela que congrega dezesseis localidades do Rio de Janeiro, possui um índice espantoso de público se comparado com o de outros museus de grande porte. Capitaneado por uma organização não-governamental formada por moradores e ex-moradores da favela, o Museu da Maré recebe anualmente uma média de 10 mil visitantes, dos quais mais de 60% se descrevem como moradores da área. Levando-se em conta os visitantes de outras favelas e regiões vizinhas, e o importante fato de que o preconceito e a autocensura, muitas vezes, leva o visitante a se declarar como procedente de outro bairro, são aproximadamente 65% a 70% os visitantes que mantém alguma relação direta com a região . Diferentemente de outros gêneros de museu, portanto, o museu comunitário não é um mero atrativo turístico, capaz apenas de potencializar as atividades do setor de serviços. A frequência e o interesse que desperta na própria comunidade em que se instala sugerem que, em muitos casos, o museu é capaz de dinamizar a cultura local, favorecendo a afirmação de práticas e saberes antes marginalizados pelos meios de comunicação de espectro menos intimista.

O museólogo, nesta concepção, é o agente responsável pela expertise local. Ele atua no espaço da intermediação, isto é, é ele próprio o mediador, capaz de formular com precisão a mensagem a ser transmitida. Para isso, precisa estar próximo à comunidade, de alguma maneira pertencer a ela, equivalendo-se, por assim dizer, ao editor do noticiário.

No modelo clássico do processo comunicativo tradicional, concebido em forma de circuito (emissor—mensagem—receptor), e que muito tem sido criticado por diversos autores , pela sua linearidade e a ênfase no nível da troca de mensagens, o visitante do museu seria mero destinatário da mensagem, e a ele caberia processar a concepção museográfica como discurso . Só isto já seria o suficiente para o argumento que tenta trazer o museu para a categoria de ferramenta de comunicação. No entanto, nos parece que o visitante ele próprio negocia a realidade, tornando-se sujeito histórico, a partir da busca e realização de seu papel no cenário político e cultural que o contexto do museu lhe oferece. Sem muita surpresa, nesse sentido, na mesma pesquisa acerca dos livros de visitas e de depoimentos do Museu da Maré , são algo comoventes as manifestações de moradores que reconhecem seus parentes nas fotos ou que reivindicam a doação de um objeto particular à coleção do museu. Experiências deste gênero permitem compreender o objetivo do espaço museal não apenas como de um estático lugar de memória, mas como de uma ferramenta dinâmica de apropriação cultural e ressignificação de valores. O museu comunica, porque inscreve, escreve e transmite uma mensagem, que é lida, reescrita e reinterpretada. Mutatis mutandis. Sua apresentação não é jamais meramente pedagógica, no sentido de uma instrução verticalizada sobre um determinado tema, mas trabalhada colaborativamente, segundo um esquema de participação cidadã, que envolve mobilização em três etapas distintas no âmbito da comunidade, isto é, produção, planejamento e gestão do conhecimento. Por constituir-se como vetor de memória, o museu é e deve seguir sendo território de negociações, conversações e debate nas esferas política, social e cultural.

Ao trabalhar em conjunto com outros meios de comunicação, como jornaizinhos de bairro, rádios comunitárias, blogs, o museu incorpora a linguagem comunicativa tradicionalmente legada a estas ferramentas e amplia seu alcance. Sobre esse aspecto, é exemplar citarmos mais uma vez o caso do Museu da Maré pelo que ele nos concebe de paradigmático. Em seu bom trânsito com outros projetos paralelos e na constituição particular da ação do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (o Ceasm), valorizando as tecnologias da informação, o Museu da Maré ocupa ainda uma das páginas mais lidas do principal jornal local, talvez o exemplo mais bem sucedido de comunicação comunitária do país, com mais de dez anos de existência ininterrupta, o jornal O Cidadão. A coluna produzida e editada pela Rede Memória, a mesma que coordena as atividades do museu, e que é, em si, um dos braços de atuação do Ceasm, traz a cada edição um texto que valoriza a cultura e a memória da região, desnaturalizando o museu e traduzindo-o como “obra aberta”. A mesma obra aberta que permite que crianças levem e tragam objetos da exposição: são carrinhos que somem e reaparecem nas maquetes, são utensílios de cozinha que ocupam e desocupam o cenário estilizado de uma palafita no centro do galpão em que se localiza o museu. O objeto museal, por este ponto de vista, não é sacralizado, senão fetichizado, transformado autenticamente em suvenir. Da mesma forma que os moradores trazem, eles levam, completando um ciclo que, de certo modo, está representado na própria expografia.

Mas é preciso esclarecer que, ao me referir ao museu, em nada tenho solidificada a imagem do edifício-museu. Em princípio, é importante trabalharmos com a ideia de uma instituição museal, que, portanto, extrapola o sentido de um prédio. Basta lembrar que a noção de “comunidade” evoca ainda, no imaginário contemporâneo, os agrupamentos sociais nos diversos ambientes da chamada web 2.0 e suas redes colaborativas.

Não de outra maneira, tenho recebido com entusiasmo as experimentações de natureza cibernética no campo dos assim chamados webmuseus. Sem maiores resistências, a instituição museal é plenamente apta a oferecer dinâmicas de interação e participação online aos mais diferentes grupos. O contato com o objeto patrimonial virtualizado, a visita emulada em ambiente tridimensional, a visita guiada por aplicações de mensagens de texto através de celular, a rede social que congrega personagens históricos e os coloca em contato direto com o avatar do visitante; todas estas são extensões possíveis sobre as quais se pode intervir. Todas estas são extensões da instituição museu, ou, se preferirem, extensões de nós mesmos, a partir da consagrada ótica mcluhaniana.

Parece-me que o museu é capaz de cumprir ao menos duas funções sociais: a primeira, internamente, num esforço por convergir, ou seja, tornar-se uma instância de identificação da comunidade, através das lembranças e relembranças de um passado comum; e a segunda, exercida externamente, como um bem-entendido divergir polemizador, em que o questionamento e a polêmica gerados em torno de si – como é o caso, por exemplo, da experiência do Museu da Maré como “primeiro museu em favela” – repercutem nos meios de comunicação tradicionais e se aliam à proposta natural de um trabalho de memória na compreensão ressignificada do lugar que ocupa a comunidade no imaginário noticioso da mídia impressa, digital e radiodifundida. O museu, portanto, ainda que feito por e para a comunidade, extravasa as suas fronteiras geográficas e se constitui como referência local para a cultura da região. Se hoje há placas que indicam o caminho para o Museu da Maré a partir da Linha Vermelha, uma das vias mais importantes da cidade do Rio de Janeiro, é sinal de que o museu informa e referencia, inclusive geograficamente, a favela. É sinal de que ele comunica e aponta caminhos. E, sobretudo, é uma indicação clara de que o museu adiciona nuances e valores à realidade combalida das comunidades.

Com estes pressupostos em mente, quero crer que há outras hipóteses a considerar no panorama estratégico da contemporaneidade. Hipóteses que atribuem um sentido lato à ideia de comunicação, mas que perpassam os meios tradicionais, ampliando seu alcance e otimizando a comunicação em esfera hiperlocal, justamente aquela que não é contemplada pelas complexas estruturas midiáticas de cobertura globalizada e globalizante.

De alguma maneira, o museu é capaz de penetrar na comunidade – seja a comunidade uma representação da “favela” ou de “nichos de consumidores eletrônicos” –, atravessando a barreira dos estereótipos e atingindo sobremaneira o cotidiano íntimo daqueles que se constituirão em seus visitantes. Mas é preciso ter consciência de que o museu é visitado, mas é também revisitado. Ele não exerce sobre os visitantes a mesma influência dita avassaladora pelos clássicos frankfurtianos, senão oferece novos horizontes a serem descortinados. Está longe, portanto, de ser mídia de massa e, justamente por isso, meu apelo para a categoria social dos museus comunitários e experiências hiperlocais de comunicação.

Olhar para o passado através de um museu não é o mesmo que olhar um museu como lugar de velharias e cacarecos. Os estudiosos do campo da Comunicação – mas não apenas eles, também, eu poderia dizer, os estudiosos do campo da Memória – têm trabalhado pouco as interfaces de contato entre seus objetos e tecnologias sacralizados. A introdução de um universo novo e vasto como o das novas TICs termina por ofuscar o potencial de mudança social de outras tecnologias muito mais presentes e afirmadas em nosso cotidiano. É um erro correspondente ao etnocentrismo para o etnógrafo ou ao anacronismo para o historiador a circunscrição dos objetos da Comunicação àqueles que se relacionam apenas com a imprensa. Da mesma maneira, é infantilizada e infantilizadora a tentativa de traduzir, por exemplo, um webmuseu em um espaço tridimensionalizado, disposto em galerias e objetos vetorializados e virtualizados. Nesse sentido, ainda que belíssima, a experiência do Museo Virtual de Artes do Uruguai <http://muva.elpais.com.uy/> é, sem dúvida, conservadora. Por outro lado, ainda que careça de um aprofundamento conceitual mais denso em sua estrutura de navegação, o Museu da Pessoa <http://www.museudapessoa.net/> segue pelo extremo oposto, caracterizando-se por uma iniciativa digna de análise cuidadosa. O museu não é prédio, o museu é texto. Esta compreensão pode ser inovadora, se proporciona o desapego de categorias tradicionais de nosso pensamento.

Pensar o museu como ferramenta de comunicação é lembrar da escrita como primeira revolução tecnológica da memória , revolução, em todas as medidas, engendrada por uma tecnologia da comunicação. Desde Michael Pollak , não há dúvida de que a memória, mesmo silenciada, comunica. A provocação que lanço aqui, contudo, quer ultrapassar a inércia do silêncio, e transformar um ambiente propício para a contemplação do discurso histórico em espaço de deliberação e debate sobre as práticas culturais locais. Sobre a revolução das mídias digitais, esta que é uma das mais antigas formas de comunicação – o museu – talvez seja a grande novidade.

*Viktor Chagas é escritor, jornalista, e professor do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da UFF. Mestre e doutorando em História, Política e Bens Culturais pelo Cpdoc/FGV, desde 2006 integra a equipe de moderação do projeto Overmundo <http://www.overmundo.com.br>, ocupando atualmente a Coordenação Editorial e de Projetos de Comunicação do Instituto Overmundo.