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Da coletividade ao convívio: fazer, estar e ser juntos | de Manoela dos Anjos Afonso

(…) a arte pode ser um lugar de produção de uma sociabilidade específica, gerar um terreno fértil de experiências sociais preservado da uniformização de comportamentos (…).” (TRAQUINO, 2010, p. 110).

Quando fui convidada a escrever um ensaio para esta revista, pensei que poderia ser uma ótima oportunidade para reunir breves relatos sobre três experiências artísticas significativas convividas na cidade de Goiânia entre os anos de 2006 e 2010: Le Mur, Grupo Teia e Arquigravura. Ao refletir sobre o que já realizamos, percebi que o “convívio” vem adquirindo uma importância considerável em nossas propostas, as quais usualmente se iniciam a partir de um grupo (móvel) de pessoas que procuram fazer algo coletivamente e que, em diferentes graus e combinações, podem ter o relacionamento entre si fortalecido pelo “fazer juntos”.

O “fazer juntos” provoca o “estar juntos”: atualmente continuamos a nos lançar a tais convivências com o objetivo de realizarmos projetos artísticos não só coletivos, mas também relacionais. Temos percebido uma urgência nesse sentido, além de constatarmos o desejo de buscarmos mais que uma reunião de indivíduos ativos em função da realização de projetos artísticos coletivos: almejamos um convívio efetivo capaz de, a partir das negociações das nossas individualidades, potencializar o “ser juntos”. Ou seja, que possamos ir além do fazer ou do estar e convocar mais pessoas à experiência conjunta da produção artística, pois o exercício poético é uma das formas pelas quais podemos dar espaço, tempo e lugar ao verbo ser. Não seria esse um dos meios de esburacarmos – com muitos pequenos orifícios – os microssistemas dos quais fazemos parte? Há que se deixar a luz entrar por esses buracos: nossos interesses têm sido dirigidos às relações humanas estabelecidas por meio de operações e arranjos poéticos. Desejamos que cada pessoa – artista ou não – possa escolher fazer, estar e/ou ser conosco durante propostas artísticas, inclusive propondo também.

Para mim, em particular, reconheço que este é um grande desafio, pois é mais cômodo – porém menos excitante – elaborar e executar projetos artísticos individuais e/ou autorais. A questão é que não podemos ignorar o fato de que, num contexto contemporâneo, lidamos mais com a polifonia do que com os monólogos poéticos. E ao citar aqui a polifonia, não me refiro à comunicação aberta das obras ou à diversidade das linguagens nas artes visuais, mas sim à multiplicidade de vozes, proposições, experiências e existências cada vez mais presentes nos processos e objetivos de algumas proposições artísticas contemporâneas. É claro que – e felizmente – continuaremos lidando sempre com nossas questões poéticas individuais. O convívio não é uma regra, mas sim um convite a ser aceito para que transitemos do privado ao público, do “meu” ao “nosso”, da parte ao todo, e vice-versa, exercendo nossas capacidades individuais e coletivas, compartilhando-as, transformando-as para transformar e sermos transformados. Esse é um processo dinâmico e colaborativo de aprendizagem, pesquisa e produção de conhecimento. E o melhor: conhecimento de muitas ordens, inclusive sensível. Isso se faz necessário, sobretudo num mundo tão individualizado e individualizante (apesar das redes).

O que me fez desejar, verdadeiramente, conviver com o outro durante alguns processos de elaboração e produção artística foi o exercício da docência. Provocar um grupo à reflexão e à produção poética passou a ocupar mais espaço e importância do que a necessidade de dar corpo matérico a uma produção artística individual a ser inserida no sistema das artes. Ao exercer a docência, no meu caso na universidade, que é uma instituição que tem – ou deveria ter – um compromisso direto com a sociedade, não poderia deixar de convidar, convocar, provocar cada vez mais pessoas à criação e à transformação, por mínimas que fossem. Não poderia deixar de ao menos tentar. Vejo na arte contemporânea uma possibilidade de inaugurar, junto com outras pessoas, lugares móveis para esse convívio poético e transformador. E transformação aqui não diz respeito a mudanças fenomenais no mundo ou na sociedade… sejamos honestos! Penso que as microtransformações são muito importantes, pois têm tempo para se fortalecerem e instaurarem lentamente um movimento sutil de atribuição de sentidos ao mundo, desencadeando noções de pertencimento nesses sujeitos ativos/ativados. Configuram-se, assim, as revoluções silenciosas. Experiência, memória e identidade dão substância e concretude a esses lugares móveis, construídos poética, estética e criticamente, onde podemos “ser juntos” e, consequentemente, fazermosestarmos com mais qualidade. O “fazer só” e o “fazer juntos” são importantes, pois um alimenta o outro e ambos constituem lugares diferenciados na produção artística. Ao olhar para o que já foi realizado entre 2006 e 2010, posso dizer que o “fazer juntos” nos levou a muito mais do que ao “executar juntos”, pois muitas das pessoas convocadas à participação nesses projetos se envolveram, propuseram, escolheram, realizaram, opinaram, refletiram sobre suas contribuições e continuam agindo, juntas ou não.

Ainda temos muito a avançar: continuamos em processo lento, em formato de grupo aberto, laboratoriando agora propostas artísticas de caráter relacional. Alguns de nós vivenciamos, inclusive, um prazeroso desdobramento desse convívio: a amizade. Talvez esse seja o caminho natural para os que escolhem “ser juntos”, em qualquer campo ou atividade.

 

Le Mur

Figura 1. Armando Coelho. Intervention 1, novembro de 2006. Foto: Amina Mazouza.

 

Figura 2. Edivaldo Junior (sobre o trabalho de Armando Coelho). Intervention 2, março de 2007. Autorias sobrepostas e em (des)agregação. Foto: Amina Mazouza.
Figura 3. Reijane Cunha (sobre o trabalho de Armando Coelho). Intervention 2, março de 2007. Autorias sobrepostas e em (des)agregação. Foto: Amina Mazouza.
Figura 4. Grupo Teia na Intervention 3 – tramas sobre os trabalhos de todos os artistas participantes das edições anteriores de Intervention. Autorias sobrepostas e em (des)agregação. Foto: arquivo pessoal.
Figura 4. Grupo Teia na Intervention 3 – tramas sobre os trabalhos de todos os artistas participantes das edições anteriores de Intervention. Autorias sobrepostas e em (des)agregação. Foto: arquivo pessoal.

O muro convida à ação e provoca reação. Todo aquele que age, reage à inércia e conquista a capacidade de interferir na pequena realidade que o cerca. Aquele que interfere no seu microuniverso é como a pedra lançada na lagoa: movimenta a água parada. Que o muro possa desestabilizar, plantar dúvidas e inquietações sempre. Que ele seja uma porta, uma passagem-conexão para a autonomia da ação. (Afonso, 2007. Texto escrito para a Intervention 2, publicado no fanzine Le Mur # 02).

Le Mur (O Muro) foi um projeto composto por quatro números de um fanzine, três edições de uma intervenção artística realizada no muro externo da Aliança Francesa de Goiânia, um blog (http://www.lemurbr.blogspot.com) e uma exposição chamada “Pátria que o pariu!”. O projeto, que teve início em 2006 e foi encerrado em 2008, foi idealizado em conjunto e teve a participação de vários artistas de Goiânia e de outras localidades.

O fanzine foi um veículo de informação e de livre pensamento, ligado às ações realizadas no muro, mas também com contribuições externas e relativas a outros muros. Como meio independente de comunicação, as contribuições tinham naturezas diversas e todos aqueles que quisessem escrever sobre arte e cultura, mostrar suas imagens, expor o seu pensamento puderam ter seus trabalhos publicados. Com uma tiragem de 150 exemplares por número, os zines foram distribuídos gratuitamente. A divulgação e as chamadas para as contribuições foram feitas pela internet.

A intervenção, chamada Intervention, surgiu da vontade da direção da Aliança Francesa (AF) de Goiânia daquele período, de fomentar a produção artística local e de colocá-la em intercâmbio com grupos de artistas franceses. Sugerimos o uso do muro lateral da sede da AF, até então inutilizado e esquecido. Essa ideia surgiu de uma breve pesquisa sobre movimentos de squat art, que se propõem a ocupar construções fechadas e abandonadas. No caso das três edições de Intervention(Figuras 1, 2, 3 e 4), a proposta geral feita aos participantes era a de ocupar um espaço no muro a partir do que já havia sido feito nele por outra pessoa. Sendo assim, a cada nova Intervention, o trabalho já existente deveria ser incorporado à nova proposta, configurando diversas camadas de subjetividades ali adensadas e coexistentes.

Grupo TEIA

Mãos amarram, soltam, enlaçam, contam, cortam, refazem,
tecendo (in)tensões,
com fios que prendem, sufocam, ligam, soltam, seguem
Perdem-se
Tecidos, redes, conluios…
Frágeis teias, tramas impermanentes
… sobre o reboco solto do muro …
(Kalissa Nawá – Gyn, 21 de agosto de 2007)

O Grupo TEIA (Figura 4) teve início durante a Intervention 3 – Tramas no Muro, do projeto Le Mur, que foi uma intervenção-oficina orientada por Kalissa Nawá, em setembro de 2007. O objetivo do grupo é realizar intervenções coletivas que apresentem ações e conceitos ligados ao ato de tecer. O grupo não possui formação fixa: ele é aberto àqueles que queiram propor ou participar dasIntervenções Tramadas. Em novembro de 2007 o Grupo TEIA propôs uma ação nos jardins internos da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (FAV/UFG), o que resultou numa instalação coletiva tramada com diversos materiais, inclusive peças de roupas e acessórios. Essa instalação adquiriu um caráter work in progress, pois pequenas contribuições continuaram aparecendo durante o período em que a estrutura esteve montada. Algumas intervenções foram feitas anonimamente, mas outras foram comunicadas por email (Figuras 5 e 6).

Figura 5. Raquel Rocha no momento em que somava a sua trama às tramas do projeto. Novembro, 2007. Fotografia de Roberto Scot. “(...) o título que escolhi é: "Eterno tricô". Explico: Iniciei este tricô há vários anos (vários mesmo), de vez em quando tricotava mais um pouco e largava. Queria fazer uma blusa de frio para o meu Pai. Ele jamais irá usá-la. Mas, sei que onde quer que o meu pai esteja agora, ele está torcendo por mim. Eu sempre me perguntava por que não o terminei antes. Quando li o seu e-mail, na parte da intervenção, lembrei logo desse tricô e pensei "é, tudo tem sua hora... mas chega de procrastinação! Basta! Está na hora de fazer parte de algo muito mais valoroso e digno, do que a autopiedade! Então, só posso agradecer-lhe, de coração, a oportunidade!!!” (trecho do texto enviado por email por Raquel Rocha).
Figura 6. Contribuição de Alice Gomes com elementos vivos para a trama. Uma trama para ser cuidada todos os dias. Fotografia de Alice Gomes.
Figura 7: Proposta do artista Ronan Gonçalves para o projeto Intervenções Tramadas. Ronan realizou tramas nas pessoas: “(...) utilizo material humano e o transformo em personagens amarrados com materiais inusitados dotados de diversidade de texturas e cores. A finalidade é destacar tais corpos e devolver-lhes a visibilidade dentro dos espaços urbanos.” (trecho do texto do artista enviado para o projeto). Fotografia: arquivo pessoal.

Arquigravura

O grupo ARQUIGRAVURA foi formado em 2009. É um coletivo com foco em ações artísticas contemporâneas e colaborativas que envolvam as artes gráficas. Funciona como um laboratório de aprendizagem e troca de conhecimentos artísticos – teóricos e práticos – ligados a temas que envolvam a cultura urbano-rural do estado de Goiás. O grupo faz parte do projeto de pesquisa “A prática relacional nas artes visuais: comunicação, interação, convívio e proximidade como elementos constitutivos de processos artísticos contemporâneos” (SAP/UFG). Alunos, ex-alunos e professores ligados – ou não – às artes visuais compõem organicamente o grupo. O Arquigravura já participou de alguns projetos coletivos: intervenção urbana na cidade de Resende/RJ (Figura 8), produção coletiva em estêncil para a Feira Tecnotêxtil/2010 e para o Espaço das Profissões da UFG (Figura 9) e, agora, vem discutindo e elaborando propostas com um caráter relacional mais aprofundando. O projeto PEQUI-NIQUE (Figura 10) consiste na elaboração de um piquenique com alimentos feitos com pequi (fruto típico do cerrado e da culinária goiana). Para tanto estamos produzindo uma grande toalha e cartazes-convocatória impressos à mão. Os participantes, convidados e/ou convocados para este PEQUI-NIQUE deverão obedecer a uma única regra: para comer é preciso pedir que outra pessoa o alimente. O que está em jogo nesta ação são as possibilidades de relação surgidas durante os eventos “cuidar” e “ser cuidado”.

Figura 8. Grupo apresentando a produção feita para o projeto de intervenção urbana “Xilogravura mudando uma cidade”, proposta do artista Tiago Gomes, em Resende/RJ.

 

Figura 9. Grupo produzindo coletivamente para participação na Feira Tecnotêxtil 2010.
Figura 10. Reunião do grupo para elaboração do projeto PEQUI-NIQUE. Parque Flamboyant, junho de 2010. Teste de cor do tecido sobre o gramado.

 

 

Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Cahapecó/SC: Argos, 2009.

BLIXEN, Karen. Anedotas do destino. 3ª ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins, 2009.

BRETT, Guy. Brasil experimental: arte/vida, proposições e paradoxos. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2005.

CANÇADO, Wellington; MARQUEZ, Renata; CAMPOS, Alexandre; TEIXEIRA, Carlos M. Espaços colaterais. Belo Horizonte: ICC, 2008.

HENDRICKS, Jon. O que é Fluxus? O que não é! O porquê. Rio de Janeiro: CCBB, 2002.

PANKOW, Gisela. O homem e seu espaço vivido: análises literárias. Campinas: Papirus, 1988.

TRAQUINO, Marta. A construção do lugar pela arte contemporânea.Portugal: Húmus, 2010.

 

 

*Manoela dos Anjos Afonso é artista visual. Mestre em Cultura Visual pela Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás – FAV/UFG (2008), na linha de pesquisa ‘Poéticas Visuais e Processos de Criação’. Professora Assistente da FAV/UFG com atuação nas disciplinas práticas ligadas às poéticas visuais.