Tempo de leitura estimado: 33 minutos

A crise dos experimentalismos | de Ronaldo Lima Lins

Je dis qu’il faut être
voyant, se faire voyant.
Arthur Rimbaud a Paul Demeny[1]

 

A mais impressionante de todas as construções da modernidade foi, com certeza, o ímpeto com que a vontade de transformar surgiu no meio de hábitos arraigados por séculos na existência das pessoas. As noções de Tempo e de Espaço (com as conseqüências dos descobrimentos e do desenvolvimento das trocas comerciais) sacudiram as estruturas constituídas e abalaram a psicologia de um mundo que se pretendeu o centro do universo, sob os auspícios de Deus. Os espaços “infinitos” dos territórios americanos tornavam possível, sobretudo, o exercício da imaginação. O que se encontrava ali parecia de um exotismo contestador, de tal modo que, apesar da superioridade européia, da qualidade das armas dos conquistadores em relação aos locais, um padrão moral diferente tinha de crescer e se impor. Havia, também, na experiência, uma concepção de espaço e uma subseqüente idéia de liberdade dela advinda, fazendo explodir os marcos do poder e dos laços de servidão. É curioso notar que, se a escravidão se constituiu como uma invenção do Renascimento, marcando a hegemonia dos interesses econômicos sobre os sociais, a idéia de liberdade não deixou, por isso, de se basear, ao contrário, no convite tentador das formas de vida e relacionamento com o território, característicos das populações americanas. Os europeus, ao chegar, não pretendiam anunciar, nem para si mesmos, inovações. A tecnologia marítima avançara o suficiente para ampliar a rede de comunicações e propagar fantasias de poder. Tratava-se, no entanto, de algo incipiente, tão embrionário que Espanha e Portugal, com força para dividir o planeta entre ambos, caíram aos poucos, com a passagem do tempo, para um plano secundário no jogo internacional, sufocados pela Inglaterra e pela França. Ou seja, o poder que lhes foi outorgado pelas grandes descobertas, não só não derrubou as oligarquias locais, como ajudou a sufocar os projetos filosóficos que pretendiam caminhar em direção a uma sociedade melhor. É este, na verdade, mais um paradoxo da modernidade ocidental. Quando levantou o desejo de liberdade sobre os gemidos e o sofrimento dos escravos; e quando mergulhou na aventura do infinito sob as amarras dos privilégios da nobreza – os vetores que trabalharam no sentido da vida (para usar uma expressão de Michelet) não perderam o fôlego por causa das contradições. Delas fizeram, de fato, os nutrientes que alimentaram e de certa maneira alimentam ainda a nossa vontade de emancipação.

O paradoxo é, assim, um combustível no motor que roda e avança cada vez com mais coragem, deixando para trás um rastro de lutas e decepções, mas é, igualmente, o fundamento de um universo que quase nada guarda de semelhança com o antigo. O espaço fechado do ambiente europeu se contrapôs às imensidões territoriais americanas e se colocou em proporção com as limitações morais dos costumes na metrópole e a aspiração de romper com elas. Não admira que tenhamos desenvolvido, ao mesmo tempo, nos últimos séculos, um gosto pela dialética como modelo de pensamento e de exame da verdade. Claro que se pode dizer que, no contraponto entre o nascimento e a morte, a juventude e a velhice, o claro e o escuro, o dia e a noite, o inverno e o verão, a trajetória da humanidade realiza desde sempre o seu percurso. Mas se pode afirmar que, na tradição judaico-cristã, na qual tudo se iniciava na discussão sobre a imortalidade, a regra da sucessão e do progresso se consolidou a tal ponto que reduziu ou eliminou a nossa capacidade de nos observar a partir de outros enfoques.

A observação pessoal era aquilo que deveria orientar os fluxos da mente. Para que houvesse semelhante tipo de observação, o olhar que dirigimos em nossa direção, como se assim nos orientássemos melhor, caiu em segundo plano em função de sistemas de poder tão fortes que conseguiram substituir o próximo pelo distante. Curiosamente, é depois do século XVIII, com a descoberta da intimidade e da introspecção, que conseguimos inverter os mapas dos nossos juízos. Antes, a angústia concentrada na hipótese de derrotar a morte, por via de Deus, sufocou qualquer possibilidade de nos deter nos comportamentos humanos ou naturais e deles extrair modelos. Os séculos XVIII e XIX concederam uma ênfase extraordinária à atenção dada ao que somos e ao que queremos ser, com desdobramentos no terreno da arte e seus reflexos na psicologia. Tudo, literalmente tudo, servia para que examinássemos atitudes e pensamentos, com vistas, em seguida, à crítica da sociedade e da política.

Uma das maiores e mais instigantes manifestações do experimentalismo moderno na literatura quem o fez foi talvez Jorge Luís Borges. Claro que o mesmo surgiu na crista de uma onda que se iniciara muito tempo antes, com ápices nas criações de Joyce, Proust e Kafka. Alguns dos contos do escritor argentino podem, no entanto, fornecer um parâmetro desconcertante sobre o fenômeno da autopercepção e das surpresas que provoca, enquanto, por outro lado, como fenômeno mais impressionante, lemos seus escritos com um misto de naturalidade e espanto. A história sobre o inventor do Quixote é uma. Na do herói e do traidor, a diversificação das possibilidades de uma única personalidade contém uma realidade que depende, para chegar ao leitor, de um tipo de experiência que a humanidade nem sempre teve. Ao organizar uma investigação no interior do grupo de revolucionários irlandeses, à procura do traidor, o herói se aproxima cada vez mais de si mesmo, até perceber que caíra na sua armadilha, descobrindo-se vítima daquilo de que se imaginava algoz, quando pedia punições radicais. Mas como um herói pode ser, ao mesmo tempo, traidor? Para tanto, cumpre que a personalidade individual se comporte dentro de um prisma de realidade no meio de uma multiplicidade de primas de realidade na qual se integra. Criticar-se e destruir-se representaria uma antinomia presente na atualidade? Para que possamos alcançá-la, é preciso que a vejamos em torno, no universo dos nossos pequenos problemas, enquanto, numa concorrência generalizada, enveredamos pela arte de sobreviver e de ganhar o pão de cada dia. Um caso literário de natureza similar é o do personagem Hermann Carlovitch, de Vladimir Nabokov. Aqui, um cidadão pacato, proprietário de um comércio de chocolates, aparentemente bem sucedido, não obstante as dificuldades que atravessa, tropeça, certo dia, enquanto passeava num parque da cidade de Praga, num indivíduo deitado na grama. Aproxima-se para examinar melhor. Um chapéu lhe encobre a fisionomia. A cena guarda uma atmosfera de mistério. Hermann Carlovitch dá a impressão de buscar um roteiro previamente traçado quando levanta ligeiramente o chapéu e descortina o rosto do outro. Isto porque enxerga nele um duplo, um sósia perfeito, como se localizasse, saído do nada, um irmão gêmeo. A descoberta não lhe abandona a mente.

O que o romancista pretende insinuar, envolvendo um sistema de igualdade entre estranhos, tem a ver, como metáfora, com uma aventura do seu país e da sua época. Desde a revolução francesa, fala-se em igualdade, lema que se transformou numa hipótese das experiências socialistas do século XX. O debate, só por isso, se revela válido, ainda que se constitua numa crítica de direita quanto ao que se passava na União Soviética. Note-se que o exercício da experiência não se coloca apenas do ponto de vista formal. A partir do século XIX, tudo entra na linha das nossas possibilidades de contestação: o possível e o impossível. O que um pouco antes soaria como falso, inverossímil e, por conseguinte, posto de lado no quadro do tipo de realismo que se procurava, insere-se sem dificuldade entre os materiais literários como representação do que concebemos como real. Nabokov desmonta o princípio da semelhança, reduzindo-a a uma impressão do personagem, a uma ilusão, tão perfeita na sua fantasia, que engana.

Ele decide se valer do “duplo” para um plano de assassinato e uma apropriação do seguro com o qual sairia de uma crise financeira. O problema é que, na vida real, existem pessoas parecidas: idênticas, nunca. O que, no seu devaneio, se mostrava evidente, não se confirmava para os demais. O corpo da vítima, vestido com as suas roupas, não enganou a ninguém. A polícia e os amigos perceberam a fraude, sem compreender certos detalhes, entre os quais a preocupação do criminoso em preparar e vestir o morto.

O romance não se esgota no esquema simples do ‘crime e castigo’, apesar das analogias com Dostoiévski. É de uma concepção sofisticada quanto ao aspecto narrativo. Examinando-o, Sartre, para contrariedade do autor de Lolita, interpreta o distanciamento do autor e suas interrupções e conversas com o leitor, como uma espécie de imperícia, como se, ao contrário de seu ancestral russo, que acreditava nos personagens, o último descresse dos seus. Destaca, mesmo assim, o que denomina de “inferno dos raciocínios”, a trama sedutora e perigosa com que caímos, às vezes, nas possibilidades do nosso pensamento, sem nos conscientizar de que eles, também, muitas vezes, não passam de ilusão.

No romance, como, aliás, em toda parte, é preciso distinguir um tempo no qual se fabricam os apetrechos e um tempo no qual refletimos sobre os apetrechos fabricados. O Sr. Nabokov é um autor do segundo período; ele se coloca deliberadamente no plano da reflexão; nunca escreve sem se verescrever, como outros se escutam falar, e o que lhe interessa quase exclusivamente, são as sutis decepções de sua consciência reflexiva.[2]

Sartre qualifica a obra como uma narrativa curiosa, de autocrítica e de autocrítica do romance. Não hesita em inscrevê-la no terreno da experimentação. Vivendo no século XX, Nabokov, a despeito de admiração que sente por Dostoiévski, não pode repetir os seus dispositivos formais. É de um tempo onde todos, quase sem exceções, se mostram impelidos pela obsessão com a pesquisa e o desbravamento, o rompimento, quer no conteúdo, quer na expressão. O exemplo dele representa um indicativo a mais na onda da renovação, já que realiza uma crítica de direita, digamos assim, sobre o suposto igualitarismo soviético, enquanto russo exilado. Sem entrar no âmbito da discussão política, refere-se a ela por meio de metáforas – e se posiciona. Não há, no mundo, duas pessoas iguais, afirma, num momento em que, internacionalmente, impressionava a força de um sistema que pretendia acabar com as desigualdades.

Sartre não destaca inovações de substância no romance em pauta. Não encontra no mesmo nada que o faça sobressair do posto de vista dos artifícios do que já se tornara clássico. É como se, por timidez, pretendesse se guardar dos experimentalismos, indo neles até um ponto, sem se exceder. Há qualquer coisa de verdade nos reparos de Sartre. Do nosso ponto de vista, o pouco é mais do que o bastante para enquadrá-lo naquilo que se fez irresistível, dando-se, além de estar em toda parte, como uma linguagem incontornável, ainda que se pretendesse tradicional. Uma outra observação do autor de A náusea se refere ao elemento de desenraizamento, de se situar em lugar nenhum, característico do emigrado, na medida em que este, para o mal e para o bem, leva a vida sem se integrar numa sociedade. Escrevendo numa língua que não era a sua, Nabokov, pairava acima dos seus contemporâneos, o que resultava, aparentemente, na escolha de temas pouco traumáticos, nos quais a crítica se configurava supérflua exatamente como os assuntos dos quais se ocupava. Claro que, no entanto, laços com a origem russa e os modos de vida que carregava na memória, nunca abandonaram o escritor. Despair, na versão inglesa, ou La méprise, na francesa, transmitindo a suposição de que se concentrava em confeitarias, imiscui-se numa das grandes controvérsias da ocasião: a de saber que, enfim, seria possível destrinçar aquilo que, desde a Revolução francesa, nos ocupou, o desafio da desigualdade e do igualitarismo. É assim que a banalidade se eleva à categoria do relevante, embora enganando até um observador arguto e maduro como Sartre. Não agrada a Nabokov o comentário feito por um intelectual respeitável, como o seu contemporâneo francês. Ele não ignora, que, por baixo da face inócua do enredo que elaborou, esconde-se uma outra, esperta, cheia de malícia, com a qual, protegendo-se, ataca. A seu ver, Despair trazia a público menos perfil ‘russo branco’ do que as demais novelas que escrevera, algo que, em princípio, não irritaria a oposição esquerdista. Isso não impediu, acrescenta ele, que um “comunista” (J.P. Sartre), redigisse um artigo “notavelmente tolo” sobre a versão francesa La méprise, segundo o qual ‘o autor e seu principal personagem são vítimas da guerra e da emigração’[3].

As ambigüidades notadas pelo filósofo francês, não assumidas pelo autor, correspondem, com efeito, a encruzilhadas nas quais se achava enquanto cidadão, fisicamente situado entre dois mundos, o socialista e o capitalista, o ocidente e o oriente, com propostas a um só tempo na contramão do velho e do novo. O exercício de rompimento, por mais que quisessem lhe fazer frente, ameaçava estender-se pelas áreas além da política e da economia. As atitudes revolucionárias, surpreendentes no século XVIII, fazendo-se corriqueiras daí em diante, ajudam a explicar o que se passou na arte, com relevo na literatura e nas expressões escritas. A surpresa, em nossos dias, não se localiza nelas. O que não entendemos ainda é o seu esgotamento ou, na melhor das hipóteses, a perda de fôlego, uma vez que não as alijamos de todo de nossas narrativas.

Vladimir Nabokov nada pretende com a revolução, prática ou formal. Limita-se a inventar. Concebe um enredo que, entre o leve e o malicioso, tem menos a ver com o gênero policial, ainda que se trate de um crime, do que com alguns problemas conceituais de difícil solução. A conclusão de que não existem dois indivíduos iguais contesta as pretensões a favor do igualitarismo. Contudo, elas não desaparecem. A URSS desabou e o igualitarismo que nos surge, de repente, como desafio, não se reveste mais da ideologia comunista; estende-se pelas veias da sociedade de massa, na economia de consumo, sem alarde, mas com determinação.

Desde que se lançou no plano artístico, o experimentalismo teve a seu favor o ingrediente do escândalo. O gosto consagrado não conseguia absorvê-lo, o que resultava num efeito maior ainda das suas intenções e, portanto, da eficácia cogitada. A inovação acedia luzes que de outro modo permaneceriam apagadas, enquanto comentava perfis ainda não inteiramente percebidos. Como na política, havia em jogo uma dialética de ordem e desordem. Os que temiam a desordem fugiam dela por insegurança, como se um estado de coisas, mesmo injusto, devesse ser protegido em nome do bem geral. O diagnóstico da violência caminhava junto com as alterações do sistema vigente e alimentavam a sensibilidade com visões tenebrosas. O problema é que uma corrente subterrânea irresistível e avassaladora ameaçava o mundo com um ruído surdo, algo que não se nota, a não ser com muita atenção, mas que anuncia reviravoltas que ultrapassam as expectativas da ideologia, conservadora ou não. Quem se posicionava contra a revolução, ansiava pelo lado positivo dos seus benefícios, a liberdade contra as tradições, lamentando o negativo, a quebra no bom tratamento concedido às hierarquias, agora de natureza financeira, buscando consolidar-se. Perdendo fôlego aos poucos quanto ao político e ao social, a revolução, se a considerarmos do ponto de vista conceitual, não se retira de cena, arma e desarma os hábitos cada vez que um produto novo ou uma prática precisa se estabelecer. Transmuta-se em modificação industrial e econômica. Ordem é, assim, uma noção usada sempre em sentido relativo, porque, no absoluto, o mercado a coloca fora de circulação com velocidade, movido por conveniências nem sempre justas ou éticas. Se examinássemos, desde o século XVIII, os tratados de teoria política, não seria difícil assinalar os discursos de advertência, transformando a natureza da liberdade em liberdade do capital e pregando moderação, prudência e cerceamento, se o aparato legal tem de ocupar-se dos movimentos trabalhistas ou sindicais.

O que é o governo, ele próprio, senão o maior crítico da natureza humana? Se os homens fossem anjos, não haveria necessidade de governo; se os homens fossem governados por anjos, não seria preciso nenhum controle exterior ou interior sobre o governo. Quando se faz um governo que deva ser exercido por homens sobre homens, a grande dificuldade é a seguinte: cumpre, em primeiro lugar, pôr o governo em estado de controlar os governados, cumpre, em seguida, obrigá-lo a se controlar a si mesmo. [4]

Antonio Negri vê no comentário, não sem razão, um registro de preocupação com que Madison, um dos pioneiros da democracia americana, esboça uma filosofia de constituição, um texto que funcione como um freio contra o que houve antes, no período da independência e do estabelecimento do Estado. Não se pode fundar nenhuma nação sem que, ao mesmo tempo, não se conte com dispositivos legais que consolidem normas. Esta é a ótica que imprime ao seu discurso. A constituição que surge, não só na situação americana como nas demais, dá por encerrada a experiência inicial, a desordem antes saudável para o projeto de emancipação. Se não se mostrar bastante forte para isso, terá lugar, subseqüentemente, um esforço para modificá-la, limpá-la de suas liberalidades e conferir-lhe uma fisionomia comprometida com as conveniências do capital.

Historicamente, a fonte dos experimentalismos se alimenta na primeira reviravolta das noções de Tempo e de Espaço, graças ao aumento populacional da Europa, a disponibilidade de capital e o rompimento dos hábitos da Idade Média. Trata-se de um fenômeno do Renascimento. A sombra das culpas, antes expiada pelos rituais do misticismo, dando lugar ao culto à vida, segundo Michelet, abriu as mentes para a época que se iniciava. Nada houve, é claro, de consciente ou planejado neste empreendimento. Os hábitos é que se alteraram depois das grandes descobertas, com a era de expansão que se iniciava. O historiador acerta quando define o impacto favorável para o resto do continente do contato das tropas de seu país com a realidade cultural italiana, sobre a qual, depois do fim do Império Romano, não se tinha idéia. É do choque das novidades que se estrutura o entendimento, levando-o a aceitar a modificar-se e a tornar-se flexível. Assinale-se a contestação à ordem como uma condição inevitável. Não se pensa o Tempo e o Espaço, depois do século XVI de acordo com as verdades de antes. A própria Igreja, embora a contragosto, se submeterá a filosofias que a colocavam em risco e contra as quais defendeu-se com argumentos e com armas até encontrar uma retórica que compreendia as versões em vigor e as acomodava da melhor maneira. A lenta evolução no sentido da inauguração de uma ordem nova só se evidencia no século XVIII, com o iluminismo e suas ousadias, quando os príncipes dialogam com os burgueses e, juntos, abordam questões da sociedade com irreverência. O que sobrava da influência do Vaticano sobre o poder temporal, apesar de suas ambigüidades, incomodava a monarquia e a empurrava, pelo menos ao nível das idéias, para a experimentação. É o que explica a estranha associação e a troca de argumentos que travou com a burguesia intelectual e, na França, com os fisiocratas. Espremida entre duas épocas, a aristocracia seria a vítima natural das invenções na ciência política. Perderá a cabeça na guilhotina, logo depois, durante a Revolução.

Pode-se dizer que uma inovação de impacto ocorreu com Flaubert, em Mme. Bovary, com a introdução da paisagem realista e seus problemas. A imaginação descia de seu vôo no espaço do imaginário e procurava colocar os pés no chão através de um levantamento de problemas e expectativas. O romantismo, cheio de energia, havia fornecido os elementos da intrepidez e da irreverência, necessários a um empreendimento que, ao lançar-se, não percorreria o caminho de volta. Ao mesmo tempo, contemporâneo de Flaubert, o prefeito Haussmann, demolia e reconstruía Paris, sob os auspícios de Luís Napoleão e do II Império, indiferente ao escândalo, para funcionar como um modelo para o restante do continente e do mundo. Revelava-se impossível assistir ao gigantismo do canteiro de obras na cidade, sem se emocionar com as perdas e acalantar esperanças, como demonstram a prosa e a poesia da ocasião. Não perderemos esta sensação de mistura entre o velho e o novo, renovada, a cada vez, com as experimentações.

A arte mudara. Saindo da esfera celeste para a terrestre, adquirira modelos nos quais antes não se baseava, quando se guiava pelos nortes da beleza e da perfeição. Eram buscas por uma elevação que não condizia com o mundo e que, por isso, funcionavam, para usar uma categoria moderna, como uma fuga para a alienação, quando, sem bases para fixar expectativas, viajamos por cenários de devaneio diante dos quais os problemas parecem distantes, irreais. A luz terrestre abateria esses tipos de fuga. Aí se encontra, aliás, se desejarmos pesquisar as origens do experimentalismo, a grande reviravolta de conteúdo e de forma que teve lugar na expressão. Claro que a arte não perdeu uma nostalgia por uma vida que nunca se atingiu e que continua a orientar, de algum modo, as nossas paixões. Dissabores mundanos animarão não só as criações de Flaubert como também a literatura contemporânea por inteiro.

Se a beleza participou um dia do esforço de retratação e resgate nas aventuras humanas, depois,  quando se alterou o foco de visão, sumiu de perspectiva, não mais compondo, como elemento estrutural, as químicas da forma. Sem ela, a arte se lançou por viagens inesperadas, para atingir regiões recuadas do ser e da natureza. Foi o que permitiu, na cultura, a presença de Sade, hoje com seu lugar assegurado entre os clássicos da modernidade. Permitiu igualmente um inventário, apaixonante ou assustador, de questões absolutamente humanas, antes sufocadas e sem condições de emancipação, mas embutidas no psiquismo entre as suas propriedades.

O termo “estética”, no campo das idéias no século XVIII e inexistente entre gregos, não entra em cena por acaso. Pressões de ordem conjuntural, num tempo permeável às inovações, justificam o seu aparecimento. Era preciso uma palavra que designasse um lado da atividade humana cuja urgência se faria premente, até se incluir na lista de prioridades sociais, entre as ocupações do Estado, com verbas específicas para ela. Isto para não mencionar, em função do prestígio adquirido, o uso de padrões, dela provenientes, infiltrando-se em decisões administrativas, entre as obras de prefeituras, na ânsia de emprestar à fisionomia das cidades um perfil que de alguma forma remeta a projeções do imaginário. Hoje, sentimos como um patrimônio do passado – e apreciamos – no mobiliário urbano, o que ficou de semelhante esforço, enquanto, ao contrário, o gosto vai se abastardando e as ruas e praças se enchem de falsos produtos de falsos artistas, selecionados nem sempre por critérios válidos. Os transeuntes se habituam a tais presenças e não imaginam o que aconteceu para que chegassem ali. Não lhes dão valor. Os costumes esvaziaram, muitas vezes, as fontes de escândalo, como ocorreu com a Torre Eiffel, feita para ser desmontada e transformada, apesar da sua pouca idade, num dos símbolos de Paris, imitada até a vulgaridade pelos gadgets turísticos e reproduzidas aqui ou ali como lugar comum das prefeituras marcadas pela banalidade. O mesmo acontece com a Estátua da Liberdade, espalhada pelas cidades norte-americanas e fora do país, por meio de réplicas que a desfiguram e inflacionam, desvalorizando-o, o sentido que a inspirou. A repetição atinge as dimensões do choque e diminui a eficácia do experimentalismo.

É interessante registrar que a contradição de antes (a beleza do ideal contraposta à feiúra do real), permanece agora, só que de outra maneira, já que estamos numa situação em que impera o laico e o vulgar. O que se sustenta é o uso de um conceito, como se este, por si só, bastasse para substituir o que os sentidos provam e determinam. É o conceito que se impõe quando as administrações, atrás de votos, reconstroem as calçadas e as enfeitam com um gosto duvidoso, motivado mais pelo retorno da remuneração e da vaidade da assinatura do que pelo compromisso pelo refinamento ou pela beleza. Não há, em tais manifestações, o dedo do experimentalismo. Ele ainda possui uma carga de irreverência que desestimula as escolhas fáceis.

Um fenômeno que chama a atenção de Sartre na análise rápida (excessivamente rápida) que faz do livro de Nabokov desdobra-se num diagnóstico acertado. Ele compara o romancista com Dostoievski e comenta a sua incapacidade em ser apenas narrador. Não está nas suas mãos contar uma história. Precisa mais do que isso para sentir-se escritor. Daí o motivo pelo qual “brinca” com o leitor como se fosse superior àquilo que escreve. Não possui a espontaneidade de seus antecessores. Para demonstrar que acumulou cultura, diz Sartre, com ferocidade, informa que, entre 1914 e 1919, leu exatamente mil e dezoito livros.

Mas vejo ainda uma outra semelhança entre o autor e seu personagem: todos os dois são vítimas da guerra e da imigração. Certamente não faltam a Dostoievski hoje descendentes esbaforidos e cínicos, mais inteligentes do que o seu ancestral. [5]

A ironia sugere uma tendência da época: a de semelhanças que introduzem dessemelhanças; as citações que, na referência, já se transmutam em manifestações literárias diversas do modelo.

Nabokov não está isolado no ateliê das invenções, embora, quando as exibiu, não houvesse ainda bagagem suficiente da experiência para torná-la aceitável ou natural. E por isso, também, soam, num primeiro instante, mais como “brincadeira” do que como um jogo literário sério. De fato, ao fazê-lo, ele se destaca e se põe fora do contexto narrativo, como se estivesse acima dele, o que dá a sugestão de corpo estranho, de peixe fora d’água, similar como aventura humana à do indivíduo forçado a sair de seu país e incapaz de verdadeiramente entrar num outro. O deslocamento pessoal, para a vítima do mesmo, traz a sensação de não ter cidadania e este handicap comporta duas faces, uma positiva e uma negativa; a primeira, porque, sem direitos, esvaziam-se os deveres; e a segunda, porque, sem direitos, não há, é claro, solidariedade, amparo social, proteção. Ao examiná-lo como fruto da imigração, Sartre entende a trajetória do romancista e a define com sabedoria, esquecendo-se, por outro lado, de que se tratava, não de uma anomalia isolada, mas de uma característica a ser compreendida a partir de parâmetros próprios. A “displaced person”, como comenta Otto Maria Carpeaux num artigo brilhante, é uma figura que se espalha pelo planeta sobretudo depois da expansão do nazismo e da II Guerra. É antecipada por Franz Kafka, em O Castelo, com o personagem que insiste em obter direito de permanência na cidade onde chega, regida por senhores tirânicos, e só o consegue quando se acha na hora da agonia. Aliás, a intensidade dos tumultos no decorrer do século passado, com enormes deslocamentos migratórios, estimulou a estética no caminho das rupturas, impedindo que os costumes se estabilizassem e se apresentassem como padrões. O deslocamento voluntário ou forçado quebra as ossaturas da mente e alarga, de algum modo, a inteligência. Obrigado a agir e a corresponder às dificuldades que surgem, o pensamento se desdobra e aceita trabalhar com associações que antes, na contracorrente da prática, não tinham lugar. Sabe-se que os emigrantes, fechados a infrações morais em sua terra, flexibilizam as opiniões em contato com os povos nos quais se acomodam, reajustando-se aos comportamentos abandonados quando de volta no país natal. O choque cultural se traduz, também, em avanço, apesar dos problemas que cria no cotidiano da existência.

Quando Nabokov escreveu Despair, o Ulisses, de Joyce, já havia causado impacto. Conta-se que o autor irlandês elaborava ainda o seu romance e a notícia que se espalhava pela Europa era de que tinha em gestação uma obra extraordinária, algo que revolucionaria a narrativa e a mudaria para sempre. Lado a lado, os dois adotam posturas políticas opostas, ainda que não possamos atribuir a Nabokov o qualificativo de radical. Os horizontes de um e de outro (com o potencial crítico que possuem) é que se orientam em sentidos opostos. As diferenças não opõem os artistas no plano da forma literária, apesar das ousadias de um e das irreverências prudentes do outro. É como se ninguém pudesse escapar das seduções da tendência e cedessem aos apelos em seu nome. As guerras teriam uma participação importante nas irrupções do experimentalismo. Lembremos que o mundo virou de cabeça para baixo depois dos surtos de beligerância extensivos, como foram os de Napoleão e daqueles que os seguiram no decorrer do século XIX, para não falar das repercussões internas com o uso de barricadas urbanas contra o poder central. No século XX, não se escapou delas. Elas cresceram e se tornaram perigosas, ameaçando, com armas cada vez mais destrutivas, a humanidade por inteiro. Os processos de experimentação teriam, talvez, a ver com a instabilidade, refluindo quando, historicamente, a estabilidade se fizesse hegemônica. Embora o capitalismo gere constantes modificações nos hábitos e no cenário das cidades, com mercadorias introduzidas de tempos em tempos, e embora seja da natureza das suas ambições impor transformações, não é sempre, no entanto, que interessa aos grupos financeiros o uso da violência. É um motivo suficiente para que os conflitos se circunscrevam como última tentativa de regular cobiças, uma vez esgotadas as demais formas de pressão. E a violência, não há dúvida, está por trás do experimentalismo. Para reproduzir atitudes ou para contestá-las, constitui um meio de expor misérias de outro modo cuidadosamente ocultas. Como um vulcão que entra em atividade depois de um século, tensões guardadas podem explodir. Têm maneiras de avisar, através de sinais exteriores que falam sobre angústias e dificuldades.

A violência habitua. Os saltos de violência é que escandalizam, com o avanço da crueldade em suas manifestações inéditas. Idêntico fenômeno se passa com as experimentações formais de início rejeitadas pelo gosto dominante e, aos poucos, aceitas, até que um corte maior, um rompimento inesperado, refaça a surpresa. Já se notou que ambas as aventuras – a da violência e a do experimentalismo – não se esgotam. Onde pareceu haver chegado a paz, recomeça a guerra; onde se imaginou a exaustão, emergem as proporções da fúria e de sua capacidade de se superar.

Benjamin relaciona a violência aos padrões morais porque não deixa de perceber a íntima ligação entre a primeira e a constituição do direito. Toda crítica à violência, diz ele, implica uma visão de mundo. Há situações em que os costumes a admitem, abrindo brechas naquilo que antes não se entendia como possível. Durante a Revolução e por causa dela, interpretou-se a existência de um Direito primeiro, Natural, que explicitaria os movimentos humanos e suas aspirações. Infrações às suas normas provocaram quebras nos sistemas de obediência que, então, trariam justificativas para ações que ferissem os costumes. Mover-se, comer, beber, uma casa para morar, seriam da ordem de uma prerrogativa Natural. Desde que tais experiências se fizeram presentes na modernidade, difundiu-se a concepção segundo a qual Estado nenhum ficaria acima de um conjunto básico de aspirações, sujeito a abalos quando as ignorasse. Embora a ordem jamais devesse ser derrubada, de acordo com Kant, ele mesmo admitiu que, caso isto ocorresse, uma nova ordem, substituta, tivesse que ser obedecida e defendida. No âmbito da violência, haveria, no caso, uma área absolutamente vinculada às necessidades básicas da humanidade, separando-se violência legítima das ilegítimas. Um caminho perigoso seguiu por aí, através do exame dos fins, com crimes nunca de fato resgatados. Benjamin acrescenta ainda que objetivos discutíveis determinaram a inserção de medidas de Estado como o serviço militar obrigatório e a força policial, generalizados entre as ações que se inscrevem na moral. Dentro de semelhante quadro, tentou-se, depois da Revolução Francesa, acrescentar às constituições os chamados Direitos do Homem, documento que estabeleceria limites aos sistemas de agressão, repressão e violência contra a cidadania.

É possível um modo de vida desprovido de violência?

Esta pergunta se ergueu e se impôs como fruto do acirramento dos conflitos e dos exageros do século XX. Não era um tema novo. O cristianismo a colocou, quando pregou o perdão e defendeu o lema da fraternidade. Foi uma mensagem que se restringiu à religião e mesmo dentro dela se transformou em pregação teórica. A verdade é que a narrativa conta uma história que não se liberou da violência, obcecando as mentes. A análise do discurso literário revelará a intensidade de uma contestação aos projetos de violação a sentidos (sociais ou não) da existência, a partir do fracasso das utopias em suas diversas dimensões.

Note-se que a violência representa um foco de repressão – e é contra ela que, por outro lado, se desencadeia. Como romper com o círculo vicioso? De que modo se dissolve na arte uma contestação conscientizadora? Não é pergunta para respostas simples, mas tem a ver com muito do que se viveu no século XX.

Voltemos a Rimbaud:

Le Poete se fait voyant par un long, immense et raisonné dérèglement de tous les sens. Toutes les formes d’amour, de souffrance, de folie; il cherche lui-même, il épuise en lui tous les poisons, pour n’en garder que les quintessences. Ineffable torture où il a besoin de toute la foi, de toute la force surhumaine, où il devient entre tous le grand malade, le grand criminel, le grand maudit, – et le suprême Savant ! – Car il arrive à l’inconnu!. [6]

*Ronaldo Lima Lins é Professor Titular e Diretor da Faculdade de Letras da UFRJ. Entre os seus ensaios incluem-se A indiferença pós-moderna (Editora da UFRJ, 2006); O felino predador, ensaio sobre o livro maldito da verdade, Editora da UFRJ (2002) e Nossa amiga feroz, breve história da ‘felicidade’ na expressão contemporânea (Ed. Rocco, 1993). Publicou também livros de ficção, como, A lâmina do espelho (Ed. Francisco Alves, 1983) e Material de aluvião (Ed. Regra do Jogo, 1975). Pela Record, lançou Jardim Brasil: conto (1997) e é autor de uma peça de teatro:Jacques e a revolução, como o criado aprendeu as lições de Diderot.

NOTAS


[1] Rimbaud, Arthur. Rimbaud, Cros, Corbière, Lautréamont. In: Oeuvres Poétiques Complètes. Paris : Robert Laffont/Bouquins, 1992, pág. 186. « Digo que é preciso ser visionário, fazer-se visionário”.Versão nossa.

[2] Sartre, Jean-Paul. ²Vladimir Nabokov: La méprise². In: Critiques littéraires (Situations, I). Paris: Gallimard/Folio, 2000, pág. 54. Versão nossa.

[3]Nabokov, Vladimir. “Foreword”. In: Despair. New York: Vintage, 1989, pág. XIII. O livro foi escrito em russo, em Berlim, e publicado em fascículos numa revista de emigrados que existia em Paris, em 1934, saindo em livro, dois anos depois, pela Editora Petrópolis, também de emigrados, com o título de Otchayanie. No final de 1937, em versão do próprio autor, apareceu com o selo de uma casa londrina, a John Long LTDA, com o título da atual versão inglesa.

[4]Cf. « Le federaliste » . In : Negri, Antonio. Le pouvoir constituant, essai sur les alternatives de la modernité. Trad. Étienne Balibar e François Matheron. Paris : Puf, 1997, pág. 224. A citação é de Madison. Versão nossa.

[5]Sartre, Jean-Paul. Idem, pág. 56.

[6] Rimbaud, Arthur. Oeuvres Poétique Complètes. Paris : Robert Laffont/Bouquins, 1992, pág. 186. “O poeta se faz visionário através de um longo, imenso e raciocinado desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele busca a si mesmo, ele esgota em si mesmo todos os venenos, para só deles guardar as quintessências. Inefável tortura na qual tem necessidade de toda a fé, de toda a força sobre-humana, na qual ele se torna entre todos o grande doente, o grande criminoso, o grande maldito, –  e o supremo Sábio! – Pois chega ao desconhecido”. Versão nossa.