Cruzamentos, tensões, possibilidades: textos e imagens sobre o nosso tempo | de Alice Fátima Martins

Insistem, alguns, em denominar os tempos que vivemos de pós-modernos. Resistem, outros, reafirmando-os parte contínua da modernidade, potencializadas suas contradições e seus projetos orientadores. Há, ainda, aqueles que questionam a própria ideia de modernidade – por consequência, a de pós-modernidade – denunciando sua natureza autorreferencial. Para esses, a noção de modernidadetraz, implícita, a certeza de que teríamos atingido o ápice da civilização humana: antes de nós só haveria atraso, depois de nós, nenhum avanço mais seria possível. Entre tantos, num texto escrito em 1988, Boaventura de Souza Santos já chamava a atenção para o fato de que

vivemos num tempo atônito que ao debruçar-se sobre si próprio descobre que os seus pés são um cruzamento de sombras, sombras que vêm do passado que ora pensamos já não sermos, ora pensamos não termos ainda deixado de ser, sombras que vêm do futuro que ora pensamos já sermos, ora pensamos nunca virmos a ser (1988).

Desde então, temos testemunhado o aprofundamento de encruzilhadas e labirintos em que se embaralham o novo e o velho, passado e futuro, risco e tradição, sombras e luzes…

Esse foi o sentido que orientou os convites feitos aos autores cujos textos integram o corpo deste número da Revista Z Cultural, na tentativa de montar um modesto painel em que alguns temas se entrecruzam, tomando como pontos de partida questões, perguntas, ocupações, dúvidas, inquietações correntes, contemporâneas. Memórias do já vivido, indagações sobre o porvir, reflexões sobre movimentos, potencialidades, virtualidades.

Os artigos estão organizados em dois grandes conjuntos que, embora portadores de tonalidades distintas, estabelecem necessários diálogos entre si. O abre-alasdo primeiro conjunto, assinado por J. Bamberg e escrito em prosa-poemática, articula memórias do sertão brasileiro, tomando a metáfora do muro como (des)limite, referência, marcação, projeção. Com linguagem não tão poética, mais técnica, Brasilmar Ferreira Nunes aborda alguns aspectos do desenvolvimento urbano do eixo formado pelas cidades Brasília, Anápolis e Goiânia, na região central brasileira, apontando dados que podem orientar políticas públicas no tocante à cultura regional, nas artes em geral, nas questões patrimoniais, midiáticas, e outras atividades que integrem as assim nomeadas indústrias criativas. No artigo que se segue, Edna Goya esboça caminhos históricos da gravura em território goiano: modalidade de impressão incorporada às técnicas e fazeres artísticos, no contexto das artes visuais, que acumula saberes seculares, vindo atravessar o batente do século XXI como campo de expressão pleno de vigor e capacidade de incorporar novas informações, perguntas, possibilidades. Abrigando, inclusive, quantas inquietações caras às manifestações contemporâneas da arte. Algumas das quais a também gravadora e artista plástica Manoela Afonso compartilha no artigo que assina, ao indagar sobre possibilidades de deslocamentos da experiência artística e estética desde o objeto para o ato relacional entre as pessoas que compartilham a própria experiência.

O segundo conjunto inicia-se com a provocação de Noeli Batista dos Santos, ao propor a metaforametria como procedimento avaliativo para o estudo do campo de produção de metáforas visuais por meio da sensibilização do olhar, num contexto em que as pessoas submetem-se, como funcionários, às programações dos aparelhos produtores de imagens. Avança sobre a temática das tecnologias da imagem, e suas relações com a arte, o artigo assinado por Cleomar Rocha, que traz à discussão a noção de ciberespaço, à luz de questões relativas à cultura contemporânea. Não menos contemporânea é a condição de supervisibilidade a que todos se encontram submetidos, seres de toda natureza, inclusive osvampiros. Esses são as personagens-tema do conjunto de reflexões trazido por Laura Coutinho e Adriana Moellmann, que têm no cinema o foco de suas indagações. A natureza humana em metamorfose é assunto a ocupar também a atenção de Alexandre Quaresma, cujo artigo trata dos deslumbramentos e incertezas decorrentes das possibilidades bionanotecnocientíficas, e algumas repercussões de âmbito sociocultural. Fecha a revista a análise proposta por Eduardo de Araújo Teixeira sobre a obra literária Nós que adoramos um documentário, de Ana Rüsche, em que questões como memória, autobiografia e ficção, presente e futuro se entrecruzam, na reinvenção de paisagens subjetivas e do vivido.

Agradeço a cada um dos autores por disponibilizar seus trabalhos, integrando este conjunto de diálogos que, esperamos, contribua, se não para compreendermos um pouco mais das sombras de nossos tempos, ao menos para nos impulsionar a avançarmos em nossas buscas, sobretudo na vontade de prosseguir perguntando, mais que respondendo, a respeito de tudo quanto não saibamos, de tudo quanto ignoremos. E é tanto! E é sempre muito mais do que imaginamos!

Agradeço, também, à Heloísa Buarque de Hollanda, pelo convite para organizar este número, o que oportunizou, afinal, encontrar pessoas queridas, tecer possibilidades a partir de suas produções, disponibilidades e motivações. Encontros no labirinto. Textos e imagens sobre o nosso tempo.

Boas leituras!

 

 

Referência

SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna. Estudos Avançados, São Paulo, v. 2, n.2, Aug. 1988. Disp. em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141988000200007&lng=en&nrm=iso>.
Acesso em 13 nov. 2010. DOI: 10.1590/S0103-40141988000200007.

 

* Professora adjunta VI na Faculdade de Artes Visuais da UFG, professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual. Doutora em Sociologia. Desenvolveu projeto de pesquisa de pós-doutoramento no Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ no período de 2009 a 2010, com bolsa da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro.

 

No Muro | de J. Bamberg


Gyn-Go/BsB-Df Abril/outono 2007
p/ Alice Fátima Martins, Manoela Afonso,
Don José Alvarez
e os meus brabos,
todos, sertanejos, antepassados.

 


Verso 1

No Sertão do Razo, onde nascí, diz-se que aquêle que atravessa as suas terras brutas, em verdade, navega, na sua imensidão sêca, no seu mar entreliçado de caatinga e de calor escaldante. Assim sendo, sou um navegante diferente, pois que, montado num burrão bem reiúno, repente, investido dos meus paramentos, das minhas esporas-4-Potosí, do meu manguá-de-rêlho, peiteira, gibão, luvas e chapéu de barrigueira de suçuapára, perneiras da costaneira do mesmo bicho e tudo o mais que nos componha, abaixo de Deus, dos carcará e dos urubus. Nos seguindo, em sombra, o meu Rizo, cachorro boca-prêta, rajado-caatingueiro-do-rabo-fino. Onde vou, ele, lá… Sou o encourado que por lá trafega os seus recônditos mais inextricáveis à toando a boiada inconsútil em meu tropel. E isso, desde muito antes de até haver nascido, pois que tocou-me vir ao mundo,qual os meus,todos, bem no meio dessa terra ressequida, debaixo de um pé-de-umbuzeiro de frondão bem protetor, refrescador de quase todas as misérias circundantes e ameaçadoras de sempre, logo ao fêcho de um dia de começo de outono, o primeiro com chuvada boa e morna, depois de fechado o sétimo ano de estio por lá.

A menina que me pariu, minha mãe, já assustada, comigo no seu colo a esturricar-lhe os peitos, sedento, puxando-lhe as suas águas no colostro, buscava forças para a nossa travessia em seguida e em riba de um carro-de-bois, em junta traquejada, até o pé do muro que restou de velho sobradão largado lá no meio do tempo, onde nos arranchamos a contra-vento, com todos os petrêchos, animais de monta e carga, agregados, parentalha, e isso, escarreiradamente, depois do meu anúncio, em chôro troado, de que viera a êste mundo para decifrá-lo! E assim, cheguei, chegamos e para isso aquí estamos, todos, em vida de decifrações contínuas, eternas. Riposto velhas sinas. E aqui, hoje,já um velho encourado, curtido nos sóis dos dias, conto-lhes dos “por quê”…

 

Verso 2

Ter um muro como referência,nesses ermos,é destino, Estrêla-de-Belém a ser perseguida.É como marcar a ferro em brasa a saga de ida em frente, até passarmos as horas das formulações, questionamentos e outras instruções de como re-fincá-lo em um ponto adiante na re-invenção do tempo por todos nós, navegantes. Pois, se êle é eterno, e, o é, essa fatia à qual renominamos de, agora, hoje, amanhã, realidade, seria tão sòmente mero recorte, marcação de passagem, afirmação do nosso nome assentado na sua face de pedra e cal, no muro do tempo, do lado que o sol nasce, e êle, o muro preconcebido, está lá desde sempre, qual fragmento do todo, como um arco é uma fração do círculo. Assim, êsse muro/recorte nos precede e se assenta, abrigo primeiro, detalhe da montanha e da caverna que nêle há, brique-a-brique da muralha ciclópica que, ilusòriamente, nos defenderia do , outro, do inimigo, em tempos muitíssimo para trás, antanhos.

 

Verso 3

Um muro é, na verdade, o não-limite-falso-determinado, assinalado, a nos provocar falas internas diante das suas miragens fronteiriças: “…Me ultrapasse. Vença-me e vá-se embora! Vença o mundo e êle será seu, a seu tempo…” . Sendo êle próprio a sua mesma marca revelada à sua própria sombra, na vala que nos separa em antes-e-depois da sua, nossa, construção, anunciando-se em nós, nêle mesmo, em suas lascas de pedra-de-lajêdo amontoadas, fincando o marco do outro lado onde estão os nossos ,e os outros, os inimigos e seus corpos formando o rebôco que forra a outra face desconhecida dêsse mesmo linde, mas, que vemos mui raramente, apenas quando passamos a sua linha de lado, sua claridade ou sombra, luz ou escuridão, o agora ou o desconhecido, nós ou êles, ess’outros, do lado de lá do muro sobreerguido a cada dia das nossas vidas em constante de construção e desconstrução, estampando nossa toda estupidez, nossa insanía, sanha de sangue, o des-limite, o nem ser, a pior forma de validamento do dispensável. É, esse muro, feito da compostagem dos corpos dêsses nossos ,outros, apesar, de, quando em vez, da consciência auto-crítica e sua boa paga em moeda de quase possível, em perenidades de boa Paz.

 

Verso 4

O muro é o arrimo para a miríade de vidas que o constrói, seja para os musgos nas entre-lascas das pedras ou na água barrenta fervilhante de micro-organismos a dar unto à sua massa de rejunte. Sêco, ao sol, parece ôlho de môsca, um pedaço grande de mica laminulada, um broche inteiro de macassita rebrilhante ou um painel de espaços para as mais variadas inscrições, a sangue pisado, a piche, spray, raio laser, sei lá mais o que. Fulano esgravatou-lhe uma rosácea, muito depois do índio ancestre riscar de urucum e sangue vivo a sua vitória contra um mapinguarí improvável. Beltrano fixou em vermêlho-e-prêto as mais terríveis imprecações sôbre si mesmo e sua amada impossível. Sicrano escrachou a todos com palavrões e desenhos de extra-terrestres. E, uma velha senhora, em idiolêto só seu, mas, plenamente compreensível aos seus pares, lascou: ” – têùn càuvãu pafôgu béinbõ 200 alátra” … U’a moça da cidade, veio, fotografou, filmou tudo e perguntou de tudo a todos, e se foi, como um risco feito no muro, de ponta a ponta, em linha irregular a perpassar todas as demais formas e micro-vidas alí postadas… Nêle foi afixado o édito da derrocada de Babel, a fala do, meu, em suas ruínas quanto à dôida afirmação do ,nosso ,e que antes a empilhara em tôrre que buscava os céus do não-futuro, do jeito que se havia, em negação fragílima do imprecatável. Destruída, sobrou-lhe o radier e coisa de metro-e-quase-dois, da sua base original e todo o mais, devidamente calcinados pelo Fogo do Castigo.O muro atávico esboroou-se e o que hoje existe o faz sôbre outros muito antigos muros afundados em raconte de estórias que, repetidas, viraram história: “…Veridiano-benze-quem e seu bravo cachorro ‘Vence-demanda’ morreram fuzilados, igualmente aos seus avós, encostados bem alí, no paredão de pedras, por conta de uma eleição apoiada do lado errado do muro!…”. É o que se diz, lendo-se a sentença da sua condenação real. Aliás, não interessa o contexto se a referência é tão sólida e marcada das cicatrizes do ricochête das balas “7.62-ponta-de-cruz”. O muro ficou e êle, o Veridianão falado, hoje, é um fantasmão, mais o seu cão-alma, correndo pelos bêcos estreitos nas madrugadas sem lua, na Vila de Santantõi de Lisbôna, distrito do Krenguenhén, no Sertão-de-Deus-o-tenha, sussurrando: “-… LIBERDADE!… LIBERDADE!…” O muro, lá, impassível, com as suas espinhas na cara a contra-sol.

Já o meu cachorro Rizo não pode avistar um muro. É só chegar, cheirar e afirmar os limites com a tinta breve do seu mijo ardido, em colocação “ad nauseam” do seu todo poder de bicho-macho. A cada vez que alguém passa, êle avisa em seu latido que aquém do limite tem ,outros,estranhos e que isso não é o certo e que carece de providências e consêrtos, fazendo alarido apoiado na cachorrada moradora de outros cantos de muro, em côro de infeliz concêrto…

Um muro, se mal entendido também poder ser um cêrco asfixiando-nos na fronteira nervosa e medrosa da xenofobia do intra-muros, no mêdo do outro, nos mêdos em régua-torta de perdição da noção básica da razão mínima. Havemos que vencer os mêdos, haveremos que pular os muros, venceremos em vira-mundo, trocando de caminhos, varejando as outras trilhas das verêdas e dos paços, buscando-se as passagens que nos levem à boa água, ao melhor destino, certamente, isso tudo, extra-muros, pois o Sertão, nosso, interior, quer a água da alegria, não se cabendo lindeiro, pois êle mesmo se quer avançar em busca de outros chãos mais úmidos que ofereçam fermento de mais e mais vida em abençoada abundância.

 

Verso 5

Afinal, a gente não nasce para o que esteja marcado na parede singela do muro da vida que recebemos para transformá-la. A vida se quer nisso, nessa mudança a toda hora, por isso, não se cabendo no tempo que a sombra do muro marca. A vida é sempre mais e mais e mais, muito além dos limites, além do horizonte longínquo, do traço das elipses, muitíssimo para lá das zonas mais densas e escuras do cosmo onde nascem as nebulosas com todas as constelações que nem sabemos porquê…

Ela, a Vida, não cabe no muro do universo e vive e revive, sim, no infinito, pousada numa dobra da Mão de Deus, bem p’rá lá de quaisquer muros e nos oferecendo o convite em desafio eterno e simples: “Vem!…” .

 

 

1. Versão condensada.
2. O autor prefere o uso de estilo, em prosa-poemática, como meio de preservação de falares ancestres da nossa língua, ainda falada e assim escrita, no sertão…

 

 

* J Bamberg é sertanejo, baiano, professor pesquisador, humanista.

 

A aglomeração Goiânia-Anápolis-Brasilia: notas de pesquisa e sugestões de políticas | de Brasilmar Ferreira Nunes

Apresentação

Procuramos no presente artigo refletir sobre as características do macro-eixo Goiânia/Anápolis/Brasilia que se constitui hoje no principal pólo urbano do Centro-Oeste brasileiro com potencial de se transformar numa área de irradiação de padrões sociais modernizantes. Esse macro-eixo que agrega nossa capital política, uma capital estadual e uma das principais cidades de porte médio da região detém vantagens locacionais ímpares e está se transformando no principal pólo urbano da Região dando sinais de fortalecimento de uma sociedade moderna no Planalto Central do país.

Breve diagnóstico do Centro-oeste brasileiro
A Região Centro-Oeste é composta por 3 Estados (Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul) e o Distrito Federal ; segundo o censo demográfico do IBGE de 2010 conta com uma população total de 14050340 habitantes. Desde a época colonial tratou-se de Região periférica na economia e sociedade brasileira; passa, porém, na Segunda metade do século XX, por rápidos processos modernizantes na sua estrutura econômica, social e política. Particularmente, a partir da transferência da capital federal para Brasília, quando então foi implantada a rede de transporte e comunicação interligando o Centro-oeste com o restante do país, é que se pode considerar que frentes modernas de ocupação impactaram vigorosamente sua malha urbana.

De fato, a nova capital federal se insere numa lógica em curso de generalização de relações capitalistas para o conjunto do território brasileiro que havia se iniciado a partir dos anos 30 com a implementação das políticas nacionais de colonização, integração e interiorização da economia sob a égide do Estado. Sua localização no Centro-oeste reconfigura a lógica regional, na medida em que consolida um processo de mudanças na distribuição territorial da população regional, processo este que já havia se iniciado na primeira metade do século XX com a construção de Goiânia (NUNES, 2004).

As duas cidades hoje, junto com Anápolis, consolidam um eixo urbano dinâmico e elevado poder de polarização da rede urbana regional. A população ai residente se aproximava dos 3.600.000 habitantes (IBGE, 2000), o que aproximadamente corresponderia a 31% do total regional, indicando um elevado grau de concentração espacial da população. Estudos do IPEA (1999) mostram que o poder de influência deste eixo se estende por todo o Centro-oeste, parte de Minas Gerais, Bahia e São Paulo alcançando as bordas sul da Região amazônica.

O suporte dado pelo setor público foi fundamental tanto para a ocupação como para a transformação produtiva recente do Centro-oeste, com investimentos em infra-estrutura de transportes, energia, armazenagem. Políticas levadas a cabo por diferentes governos subsidiando créditos rurais e preços mínimos, bem como os programas de colonização, de incentivo à pecuária, e principalmente o programa de incentivo às frentes comerciais (POLOCENTRO) fizeram do Centro-oeste, exemplo típico de região de fronteira que se consolida como área de moderna produção agro-industrial.

Ainda segundo o IPEA constatamos que o crescimento mais expressivo se deu nas décadas de 70 e 80 do século passado. Os anos 70 foram marcados basicamente pela agroindustrialização regional, tecnificação das lavouras e da pecuária. A partir daquela década se implantam pequenos grupos empresariais locais e regionais, com suporte de capital acumulado no setor comercial, sendo favorecida pelos incentivos fiscais. De fato, “as ações combinadas do Estado e do capital privado transformaram a realidade econômica e social do Centro-oeste, redefinindo a dinâmica demográfica, modificando o perfil do trabalho e do emprego, criando importantes complexos de armazenagem e submetendo a pesquisa e a extensão rural aos interesses dos grandes capitais. Estas transformações possibilitaram a expansão intra-regional do comércio, estabelecendo as condições regionais para a integração aos mercados nacional e internacional. Hoje é um espaço do agrobusiness de amplitude nacional e mesmo internacional”.(IPEA, 1999,159).

Das reflexões anteriores podemos nos deter em alguns aspectos que nos permitirão avançar em nosso objetivo. De um lado, a inserção da Região na lógica da acumulação mundial; de outro as possibilidades de considerar o espaço das cidades regionais como estratégicos nos processos em curso de mudança. A partir dessas duas dimensões escolhidas poderemos traçar algumas perspectivas de análise da realidade regional e seus potenciais.

Globalização, Região e Cidades

A globalização dos mercados e da cultura no mundo moderno pode ser entendida como um processo histórico que, graças ao enorme progresso nos meios de comunicação e nas estruturas produtivas, redefiniram de forma radical a relação tempo e espaço. Assim é que nos dias atuais não se coloca mais em questão o fato de que se trata de um processo que se impõe ao mundo todo, independentemente dos níveis de desenvolvimento e da política seguida por cada país considerado isoladamente. O fenômeno traz inúmeras implicações econômicas, sociais e culturais, mas podemos considerar quase que como resultado “mecânico” desse processo a ocorrência de uma elevada concentração da riqueza gerada internacionalmente e um agudo processo de exclusão social que assume formas diferenciadas segundo contextos socioculturais específicos. Esse é um fenômeno que se observa a nível geral e a na dimensão interna das economias nacionais.

Interessa-nos todavia aqui o fenômeno urbano e não o macro-regional. Nossa hipótese é de que nessa escala urbana podemos perceber processos em pequena escala relativa que nos apontam movimentos em curso nos diferentes sub-territórios do país, decorrentes de dinâmicas “locais” que são relativamente escamoteadas quando utilizamos escalas territoriais mais amplas. Portanto, a escala urbana nos permite analisar fenômenos sócio-econômicos a partir de um duplo movimento: por um lado, no nível global, o ganho de importância do papel das cidades na formação das redes mundiais de articulação dos interesses macro sistêmicos, e, por outro, no nível sub-regional, o impacto da formação de aglomerados relativamente importantes que, no geral, vêm de par com o esvaziamento populacional do campo.

De fato, o fenômeno urbano hoje é estratégico a tal ponto que, apoiada por agências de desenvolvimento internacionais (BID, BIRD, etc) a política urbana adquire primazia nas políticas públicas, com programas e projetos envolvendo vultosos recursos financeiros e técnicos para a oferta de serviços coletivos (saúde, saneamento, transporte, habitação, etc) envolvendo vultosos recursos financeiros e técnicos. As anteriores políticas de desenvolvimento regional hoje são substituídas por ações estratégicas nas cidades que absorvem vultosos volumes em investimentos públicos e privados. Essa alteração estrutural na escala das prioridades de políticas e a prioridade dada às políticas urbanas fazem das políticas setoriais urbanas um “grande negócio” e a cidade passa a ser enxergada como um modelo calcado em princípios econômicos apoiada pelo tripé – desregulamentação, privatização e lugar de mercado. Nesse contexto, o espaço urbano é visto como uma parte do mercado global, conformando a chamada cidade estratégica. Os aglomerados urbanos de porte atuam como empresas, agindo no mercado global e nacional mediante estratégias competitivas para atração de investimentos a partir da noção de produtividade urbana (World Bank, 1991; 2000).

Com base em tais elementos gerais, nossa hipótese é de que está em curso no macro-eixo Goiânia/Anápolis/Brasília a formação de um núcleo moderno que altera a lógica regional não apenas econômica, mas também social e cultural num movimento contraditório entre o velho e o novo que se anuncia. Esse processo se manifesta de forma desigual reproduzindo fenômenos “arcaicos” na medida em que dimensões “modernas” se implantam, ou seja, apesar dos avanços que possam ser identificados, se reproduz aqui desigualdades seculares. Temos então o fenômeno da heterogeneidade estrutural que caracteriza as sociedades atuais, fenômeno este que se constata também nessa sub-região.

A presença de infra-estrutura adequada: aeroportos internacionais, modernos sistemas de comunicação, equipamentos de turismo, hotéis, consultorias internacionais, centros de convenções, museus, universidades, etc. garantem o fluxo de pessoas, serviços e mercadorias, constituindo um mercado de consumo de massa e também especializado com elevado nível de segmentação com padrões de alta sofisticação, sobretudo pela presença do setor público que emprega com salários estáveis e relativamente elevados. Por outro lado, constituem os pontos especiais de entrada no Centro-Oeste de novos produtos e novas tecnologias geradas mundialmente. Isso faz desse macro-eixo um núcleo de absorção e de difusão de novas relações sociais, políticas e de novos padrões de crescimento, exercendo papel estratégico nas mudanças culturais, entendidas no seu sentido amplo.

Entretanto, o ganho de importância desse macro eixo urbano não está significando alteração na participação relativa da Região na geração da riqueza nacional. Vejamos isso mais de perto. Considerando dois extremos – 1995 e 2008, estudo do IPEA nos aponta que a participação de cada Unidade da Federação no PIB brasileiro, variou muito pouco no período. Em outras palavras, aqueles Estados que em 1995 apresentavam a maior participação no PIB são os mesmos de 2008, bem como os quatro com menor participação; as variações foram mínimas, destacando-se apenas o DF que caiu duas posições (4,3 para 3,9%); São Paulo e Rio de Janeiro são ainda os principais geradores de riqueza nacional mesmo se perdem alguns pontos percentuais no ranking. Goiás passa de 2,0 a 2,5%; Mato Grosso de 1,0 a 1,7% e Mato Grosso do Sul de 0,9 a 1,1% no período (Fonte: Ipea a partir de dados do IBGE 2010). Os dados nos mostram portanto que houve uma desconcentração da atividade econômica, mas ela foi incapaz de mudar substancialmente o perfil regional brasileiro, sugerindo que a distribuição da atividade econômica no território nacional advém de mecanismos econômicos que garantem a estabilidade do sistema, ao menos no curto período aqui examinado.

Entretanto, tais indicadores nos apontam para outras dimensões do processo econômico regional, ou seja, mostram uma realidade que análises muito apressadas tendem a argumentar exatamente o contrário. Temos sim, um núcleo urbano de porte e importância com o eixo Goiânia –Anápolis – Brasília desempenhando papel estratégico, se bem que em escala subordinada aos padrões de crescimento e desenvolvimento ditados pela duas metrópoles nacionais. Voltaremos a esse ponto na seqüência, mas estamos pressupondo que esta subordinação não implica dependência absoluta da dinâmica regional àquela de São Paulo/Rio de Janeiro. Há um grau de interdependência e de autonomia relativa, sobretudo se pensarmos na dinâmica dos agro-negócios do Centro-oeste, fator estratégico de suporte à economia brasileira. Sem considerarmos, evidentemente, o fato de que Brasília sendo sede do governo federal dá ao Centro-oeste um peso político ímpar no cenário nacional.

Interessa-nos na perspectiva sociológica identificar na área as formas segundo as quais determinadas maneiras de pensar, agir e sentir que poderiam ser consideradas universais, se considerarmos que estamos tratando de uma região inserida nos mercados globais. Particularmente tentaremos decodificar as formas e os impactos de entrada de relações sociais ditadas por parâmetros globais de produção e consumo que, de forma desigual e combinada vão ocupando espaços físicos e mentais numa Região que guarda ainda resquícios de um “Brasil profundo”. O importante é saber como tais modelos de relações concorrem para a transformação das formas de sociabilidade e de solidariedade entre grupos e indivíduos numa Região até recentemente escamoteada dos grandes processos sociais em curso na sociedade brasileira. Para tanto, iremos priorizar aspectos da dimensão urbana do processo de mudança social.

Perspectivas da gestão urbana

O dinâmico agro-negócio que se consolidou na região nessas últimas décadas, expandindo a fronteira agrícola permitiu ao Centro-Oeste e aos seus principais pólos urbanos uma posição entre as regiões dinâmicas do país, mesmo se ainda bem afastadas em importância de SP e RJ. Mantendo-nos nessa perspectiva do “pensar, agir e sentir” e analisando as três cidades vemos que desempenham papéis complementares na economia e na cultura num sentido mais amplo. Goiânia uma cidade planejada nos anos 30 e Brasília nos anos 50 do século XX se transformaram em pólos econômicos rapidamente. Cada qual com sua vocação, mesmo se ambas sejam sedes de poderes públicos. Anápolis, entre as duas se beneficia dessa localização privilegiada e vai se firmando como pólo industrial regional. É evidente que o DF passa nesse seu curto período de existência a cumprir funções que vão além de centro político administrativo nacional. Contudo, continua ainda sendo altamente dependente do setor público na composição do seu PIB, que é ali quase o triplo da média nacional. Goiânia embora com um setor público também significativo, diversifica suas funções sobretudo terciária e de prestação de serviços. A título de ilustração lembremos que enquanto a densidade demográfica do Centro-oeste para 2010 é de 8,7 hab/km2, a densidade demográfica do DF é de 442,82 hab/km2 e da Região Metropolitana de Goiânia é de 513,71 hab/km2.

Essas observações nos mostram que a Região Centro-Oeste reproduz na sua rede urbana fenômeno similar ao que se observa nas demais regiões do país, qual seja, a concentração das funções urbanas em alguns poucos centros importantes e uma numerosa e extensa rede de pequenas cidades que, para o Centro-Oeste são fundamentalmente pontos de apoio logístico às atividades agro-pecuárias. Somos um país continental e poderíamos imaginar que essa concentração urbana estivesse refletindo desequilíbrio nos padrões de desenvolvimento regional e urbano. Entretanto, estudos vêm mostrando que a aglomeração/concentração de população e atividades está na lógica de desenvolvimento de sociedades de mercado. Mais ainda, sabe-se que economias muito pobres são espacialmente bem distribuídas, se não bastasse o fato de que nelas o excedente econômico que poderia ser concentrado é de pequeno vulto, não havendo, portanto o que concentrar (Williamson, 1965).

Cabe ainda lembrar que a decisão locacional de atividades produtivas numa lógica de mercado está sempre priorizando os ganhos da decisão. No nível de uma empresa individualmente há, portanto maiores possibilidades de implantação nas áreas onde o cálculo econômico é mais benéfico. Isso é que leva à localização prioritária em aglomerações urbanas (infra-estrutura, força de trabalho, serviços, mercado de consumo, etc) justamente onde as economias de aglomeração e de urbanização se manifestam. Explica-se portanto, a concentração das atividades econômicas e pessoas em cidades, e mais ainda, maiores cidades detêm maiores poderes de atração de empresas e indivíduos1 .

Portanto, deixemos de lado análises que atribuem ao Estado ou às empresas uma perspectiva expressa de priorizar certas localidades em detrimento de outras nas suas decisões, numa pretensa conspiração. Cabe, isso sim, decodificar a lógica do lugar e se dar conta dos limites e potencialidades de uma estratégia de desconcentração ou concentração. Se quisermos avançar um pouco mais nas ponderações, podemos argumentar que políticas sociais bem estruturadas podem gerar maior bem-estar do que um avanço percentual de um estado na participação do PIB nacional. O que talvez valesse a pena insistir é que historicamente no caso brasileiro a concentração da atividades econômica teve sua fase aguda nos anos 1970 e a dispersão vem se dando em ritmo lento, conforme estudo do IPEA acima referido. O Centro-oeste alterou pouco a sua participação no PIB nacional, porém não restam dúvidas de que a qualidade de vida na Região vem apontando para ganhos expressivos, seja nas suas maiores aglomerações seja nas demais2 .

Todo este debate resumido acima mostra a importância da cidade nos processos de mudança social. No caso brasileiro, a chegada ao poder federal de novas forças políticas vem trazendo algumas alterações nas estratégias governamentais de gestão das cidades e do território. Lembremos que em 10/07/2001 foi sancionada a Lei n. 10.257, o chamado “Estatuto das Cidades” que estabelece diretrizes gerais da política urbana. O atual governo criou o Ministério das Cidades com objetivo principal o de reordenar as formas de ação estatal nas cidades, até então diluídas em Ministérios setoriais sem articulações claras e precisas entre as diferentes ações. Estão, portanto, dadas as condições institucionais de formular, implantar e gerir uma nova política urbana para o país.

Política urbana como elemento de mudança social

Seria oportuno sintetizar os princípios básicos que norteiam o processo em curso de formulação desta política urbana. Assim é que o compromisso do governo é o de garantir o processo de modernização da sociedade, gerar empregos e riqueza e estabelecer a justiça social. Isto implica que as ações governamentais devem se inserir na lógica de tais princípios e nas cidades brasileiras ocorrem problemas fundamentais a enfrentar: baixa taxa de investimento em infra-estrutura urbana nos últimos anos, a precariedade e ilegalidade do habitat das maiorias e a segregação sócio-espacial é o reflexo de políticas que até então priorizaram investimentos que atendessem as necessidades do capital e consumo das camadas privilegiadas da população. A concentração da renda, a diminuição dos investimentos em políticas sociais e a privatização dos serviços públicos só vieram agravar esta situação. O resultado é a imensa carência de habitação e de serviços como educação, saneamento, saúde, transportes, creches, abastecimento nas áreas populares das cidades. Há nas nossas cidades um déficit fantástico na oferta de serviços coletivos tanto em quantidade como em qualidade. As ações de governo para suplantar essa situação de desigualdade estrutural vêm se dando de maneira peculiar: programas como “Bolsa-família”, “Minha Casa Minha Vida”, estratégias de ampliação das matriculas no ensino superior, entre outros, alterando a distribuição da riqueza nacional de forma a diminuir o gap entre os mais pobres e os mais ricos.

Este diagnóstico, geral para o Brasil, se aplica também ao Centro-oeste. Dentro as duas lógicas centrais de reprodução da sociedade regional (agrobusiness e serviços) a região urbana Goiânia-Anápolis-Brasília se consolida como área e prestação de serviços tanto especializados quanto de apoio às atividades econômicas. Esta área é a responsável também pela articulação do Centro Oeste com o restante do país e com o mercado internacional. Razões desta natureza dão a este espaço um papel estratégico nos processos regionais de mudança. Portanto, potencialmente a área pode corresponder positivamente aos investimentos que porventura nela venham ser efetuados. Veremos isso ao longo do texto.

Se retomarmos as reflexões anteriores sobre o lugar da cidade na atual etapa da globalização e se levarmos em conta que o Centro-Oeste goza de algumas características na dinâmica da acumulação no país sustentamos a hipótese de que a gestão urbana regional deverá considerar a rede de cidades pré-existente e utilizar o potencial da área como fator de mudança, sobretudo para ultrapassar os níveis de desigualdade social e econômica que aí se apresentam. Particularmente deverá consolidar a polarização do eixo Goiânia-Anápolis-Brasília. No nosso entender está aí um ponto de sustentação das possibilidades de modernização da sociedade regional. Cabe insistir que num primeiro momento, a idéia de modernização da sociedade regional se vincula à ampliação das interações sociais calcadas na relação monetária, rompendo com formas usuais em sociedades agrárias como foi o Centro-Oeste até meados dos anos 1970. Além disso, consideramos aqui a tese segundo a qual a densidade populacional é um fator de mudança na medida em que a proximidade gera maiores estímulos à divisão social do trabalho, maior densidade política e mais autonomia entre os diferentes interesses. Ao mesmo tempo, a densificação populacional leva à tendência à generalização da moeda como instrumento real e simbólico na estruturação dos vínculos sociais. Vejamos os argumentos, retomando Durkheim da “Divisão do trabalho social” (1960).

Segundo seus argumentos, o progresso na divisão do trabalho induz transformações radicais nas sociedades: o seu processo cada vez mais intenso provocou a passagem da sociedade tradicional (solidariedade mecânica) para as sociedades complexas (solidariedade orgânica). O interessante é procurar nos argumentos utilizados as causas dessa passagem. Vemos que Durkheim dá um peso fundamental ao fator demográfico: em sociedades com poucos habitantes e dispersos em vastos territórios haveria a possibilidade de uma existência autônoma; famílias e grupos não se destroem economicamente podendo contar com recursos relativamente abundantes utilizando técnicas comuns. Entretanto, quando a população cresce e, ao mesmo tempo, se torna mais densa, a sobrevivência do grupo não é possível a não ser sob a condição de operar uma divisão de tarefas, de desenvolver a especialização e a complementaridade de funções. Nesta observação, Durkheim tira a seguinte proposição geral: “A divisão do trabalho varia em razão direta do volume da densidade das sociedades, e se ela progride de uma maneira continua ao longo do desenvolvimento social, é porque as sociedades se tornam regularmente mais densas e mais ainda volumosas”.(idem)

É ainda oportuno chamar a atenção para o peso estratégico que Durkheim dá às conseqüências do crescimento demográfico. Para ele os efeitos do aumento populacional são ainda mais importantes, ultrapassando os impactos sobre a divisão do trabalho. De fato, a densidade demográfica provoca o que Durkheim chamou de densidade moral. Os homens estando mais próximos, suas relações se multiplicam, se diversificam se intensificam; resulta daí um “estimulo geral”, uma maior criatividade e então uma elevação do nível de civilização desta sociedade. A conclusão de Durkheim é então a seguinte: “Na medida em que determinamos a causa principal do progresso da divisão do trabalho, nós determinamos também o fator essencial do que chamamos civilização… No momento em que o numero de indivíduos entre os quais as relações sociais são estabelecidas é mais considerável, eles não podem se manter a não ser que se especializem cada vez mais, se supercapacitando; deste estimulo geral resulta, inevitavelmente, um maior grau de cultura. Mais numerosos são os indivíduos mais eles exercem de perto sua ação uns sobre os outros, mais eles reagem com força e rapidez, mais consequentemente a vida social é intensa. Ora é esta intensificação que constitui a civilização”.(idem).

Dados da PNAD para 2001 nos mostram que, em termos nacionais, a Região Centro-oeste é a menos habitada do país, inferior mesmo a Região Norte. Conta pelos dados do IBGE de 2010 com 14050340 habitantes, o que corresponde a 7,36 % da população total do país (190732694 habitantes). Apesar da baixa densidade demográfica (8,74 hab/km2, enquanto que para o Brasil é de 22,4 hab/km2) sua população está urbanizada por taxas bastante elevadas: 88,82 % de seus habitantes moram em cidades de acordo com os critérios oficiais. Esta elevada proporção de habitantes urbanos é, inclusive, superior à média observada para o Brasil (84,35%).

Os dados da PNAD de 2000 apontam ainda que uma parcela importante desta população (49,2 % de homens e 50,8% de mulheres) está na faixa etária de 0-9 anos (16%); aqueles que podem ser enquadrados na terceira idade (acima de 60 anos) contribuem com 9,5% do total. A maior concentração de população por faixa etária está entre 20 – 39 anos (34%); entre 40-59 anos (22,6%); entre 10-19 anos (18%).., Este spectrum populacional por si só indica as prioridades de políticas sociais (educação de base por um lado e apoio à terceira idade, por outro) e de política de emprego para a PEA regional. De fato, a dinâmica demográfica do Centro-Oeste segue as tendências gerais para o Brasil apontando para a efetiva inserção da Região na lógica geral da sociedade brasileira. Estamos longe do tratamento periférico dado à área antes de sua modernização produtiva, particularmente em suas atividades agro-pecuárias.

A população regional detém um elevado grau de analfabetos : dados para 2008/2009 apontam 7,57% da população com 10 anos ou mais de idade não sabem ler nem escrever. Os dados do IBGE para 2000 apontavam que 11,02% dos alfabetizados contam com 4 anos de estudos e 11,10% com 11 anos de estudos, no eixo urbano em análise, dois dos maiores índices de freqüência à escola encontrado na Região. Aliás, esta é a maior quantidade de anos de escola observada também para o Brasil no seu conjunto. Há, portanto um elevado grau de pessoas com o primeiro e o segundo graus completos, enquanto que a presença no ensino universitário chega a ser irrisória: menos de 1% da população possui mais de 12 anos de escolaridade.

Como observado também para o restante do Brasil a população negra e parda é menos escolarizada que a branca (14,7% de analfabetos para os primeiros contra 10,21% para os segundos em 2000) . Entretanto, se considerada a partir de 1 ano de escola a participação de negros e pardos é sempre superior à dos brancos até atingir os 10 anos de estudo. A partir daí, ou seja, de 11 a 15 anos de sala de aula, os brancos tomam a dianteira dos negros e pardos, com distâncias cada vez maiores quanto mais se avança na escala de anos de estudo. A diferença se escancara quando olhamos a proporção daqueles com 15 anos ou mais de estudo e constatamos que dos 3,81% do total regional que detém esta posição, 74,27% são brancos e apenas 25,7% são negros e pardos. Pode-se avançar a hipótese de que na medida em que nos extremos inferiores de escolaridade os negros predominam e que nos extremos superiores os brancos predominam, haveria sutis mecanismos de segregação racial na sociedade regional.

Da população total, 54,5% compunham a PEA regional em 2001. Os dados naquele ano nos informam ainda que 1,47% desta PEA está ocupada em atividades agrícolas, o que significa que 98,43% se dedicam a atividades econômicas urbanas. Esta informação já demonstra o elevado grau de participação da economia urbana na geração da renda regional, especialmente na renda salário. Porém, a indústria não é a principal empregadora da força de trabalho regional: se somarmos a “industria de transformação”, “industria de construção” e “outras atividades industriais”, o setor industrial regional absorve apenas 5,5% da PEA. O principal setor empregador na Região é o de “prestação de serviços” responsável por 11% do emprego urbano; o “comércio” emprega 6% da PEA, índice semelhante ao do setor “social”. Temos aqui um típico caso de urbanização sem industrialização denotando uma especifica dinâmica intra-regional de consolidação de cidades, sobretudo se levarmos em conta que o setor agrícola sendo o eixo principal da economia regional emprega parcela restrita da PEA aí residente.

Claro que os dados que tomamos para este breve diagnóstico são parciais, merecendo maior refinamento3. Entretanto, refletem uma perspectiva da sociedade regional útil para avançarmos em nossas reflexões. Assim, em linhas gerais, podemos deduzir que o Centro-oeste é uma macro-região que apesar de sua recente inserção na dinâmica da economia e da sociedade nacional, vive um intenso processo de urbanização, uma inserção moderna na economia agro-exportadora, guardando, porém os resquícios da sociedade brasileira tradicional: desigualdades sociais, culturais e raciais. Em outras palavras, e conforme alguns dos indicadores escolhidos estamos tratando de uma típica região brasileira que, apesar de ainda recente no seu processo modernizante, vem repetindo, as características de outras Regiões mais tradicionais no país.

Cidade e modernidade cultural

Com base nos argumentos apresentados sustentamos a função modernizadora provocada pelo processo de urbanização. A cidade é o lugar da aglomeração de pessoas, onde a especialização do trabalho se faz necessária, obrigando os indivíduos a interagirem de forma contínua, mesmo se esta interação se faça, muitas vezes, de forma impessoal, calcado na lógica monetária(SIMMEL, 1998) Em outras palavras, e no essencial, Durkheim privilegia a interação social como principal fator da civilização e a cidade é o lugar por excelência dessa interação, da intensificação da influencia reciproca das pessoas. Se voltarmos a Durkheim podemos constatar que ele vai ainda mais longe: “Ao mesmo tempo que as sociedades, também os indivíduos se transformam em conseqüência de mudanças que se produzem no número de unidades sociais e de suas relações”. Vale dizer, portanto que, segundo o autor, o crescimento populacional terá então repercussões psíquicas sobre o caráter das pessoas, tanto quanto as conseqüências econômicas e sociais.

No caso particular do eixo Goiânia-Anápolis-Brasília temos uma situação específica: se por um lado, o país, no seu conjunto, vivencia certa estabilização dos índices de crescimento demográfico e do processo de transferência da população rural para a cidade, por outro, este eixo continua exercendo forte poder de atração migratória, oriundas, mais especificamente de áreas circunvizinhas. O crescimento populacional aqui ocorrido a partir dos anos 90 está muito condicionado à própria dinâmica migratória inter-regional e intra-municipal do que aos fluxos provenientes de outras regiões como ocorreu em períodos anteriores. A avaliação do IPEA é de que os reflexos dessa dinâmica na rede urbana regional vai se dar mais no sentido de consolidar as cidades já existentes e pouco influenciará o aparecimento de novos núcleos, pelo menos os que poderiam ser considerados de grande expressão. Certamente os problemas urbanos que ocorrem, e que por ventura virão a ocorrer, deverão estar concentrados, sobretudo nessa área mais densa correspondendo ao eixo Goiânia-Anápolis-Brasília. No geral, esse crescimento demográfico vem se dando de forma descontrolada, decorrência de problemas na origem dos fluxos, com crescimento exponencial de demandas por serviços coletivos nos lugares de destino, porém sem prioridade nas políticas públicas voltadas ao atendimento dessas novas demandas.

Não restam dúvidas de que essa região urbana é hoje zona de destino e não de transição dessas correntes migratórias. A política urbana deverá, portanto, ter como meta prioritária garantir condições condizentes com os padrões atuais de vida, tantos para os que aqui estão como para os que para aqui virão. Necessariamente, a transparência do setor público com controle da sociedade, a descentralização, o planejamento participativo e gestão pública orientada para o cidadão e para as minorias – negros, mulheres, crianças, etc. – apontam para a importância da desprivatização do Estado e a sua colocação a serviço do conjunto dos cidadãos, em especial dos setores socialmente marginalizados.

Gostaríamos, entretanto de insistir em alguns aspectos pouco destacados quando se analisa o espaço urbano do Centro-Oeste, especialmente a área Goiânia-Anápolis-Brasília. Temos que lembrar que nos meios acadêmicos hoje as grandes cidades são analisadas como produtoras e resultantes da intensa integração dos mercados, além de estarem na ponta da revolução tecnológica e da globalização cultural (SASSEN, 1998). No Brasil a rede urbana é polarizada pelas áreas metropolitanas de São Paulo e Rio de Janeiro, estando classificadas na escala do que se conhece como “cidades globais”, articuladas com a rede mundial de cidades. Esse papel estratégico é internamente manifestado pela capacidade que estas duas áreas têm de articular a rede de cidades nacional através de laços produzidos no setor terciário de serviços e no comércio de mercadorias (IPEA, 1999)

Há, portanto hegemonia desses centros sobre a rede urbana nacional que, no entanto detém ainda um grau de autonomia relativa face aos estímulos emanados pelos centros maiores. Particularmente a área que nos interessa tem ainda algumas peculiaridades: são centros político/administrativos e polarizam uma área com forte dinamismo econômico, sobretudo agro-pecuário, com uma rede urbana de baixa densidade. Essas características lhes dá um diferencial pois suas funções principais independem dos estímulos externos. Brasília é capital política e Goiânia capital estadual, com forte poder de polarização (IPEA, 1999): são atividades que necessitam para seu exercício, sobretudo de recursos estatais/orçamentários aos quais têm acesso e controle; Anápolis se beneficia de sua localização privilegiada entre as duas, interligada por modernas vias de comunicação.

Outra qualidade distintiva e que deve ser destacada é o fato de se tratar de cidades novas, planejadas, cujo desenho urbanístico, na medida em que rompe com padrões tradicionais de espaço urbano, atua como indutor de novas modalidades de convivência social, ou de interações sociais. Por outro lado, a presença nas duas cidades de um grupo importante de funcionários públicos com salários estáveis e de alto valor médio produz um espaço de consumo seguro, sem variações negativas, estimulando a incorporações de inovações em diferentes esferas da vida social, via padrões de consumo.

Temos então um cenário peculiar ao contexto no qual este macro-eixo se insere: uma sociedade urbana moderna, forte presença do trabalho assalariado, com elevados índices relativos de renda, um funcionalismo público que conta com a presença importante da mulher nos seus quadros, níveis educacionais que, embora não sejam ideais, está acima da média regional e mesmo nacional, etc. Sem pecarmos pelo exagero pode-se argumentar que temos as bases para a consolidação de uma sociedade moderna, pós-industrial, ou seja, orientada para uma economia na qual o capital de base intelectual se torna cada vez mais hegemônico, fundamentada no indivíduo, em seus recursos intelectuais e na capacidade de formação de redes sociais e na troca de conhecimento (BENDASSOLI, 2000).

Claro que há o reverso da medalha, ou seja, contínuo crescimento demográfico que muitas vezes não é constituído por indivíduos com o perfil de uma sociedade moderna, reproduzindo padrões de vida abaixo ou diferente do que se poderia aceitar nos tempos atuais. Entretanto, isso não compromete o argumento, pois estamos sempre considerando que o processo de generalização do mercado é desigual, e tem uma dinâmica inserida na sua própria lógica que gera efeitos contrários.

O contexto urbano em análise é, portanto lido aqui como um espaço de oportunidades, novas sociabilidades que se contrapõem àquelas de um Brasil profundo e que aos poucos dá ao individuo a condição de anonimato, característica essencial das personalidades urbanas. Se em Brasília tivemos a chegada de uma burocracia urbana metropolitana oriunda do Rio de Janeiro, ou se em Goiânia a condição de modernidade urbanística lhe permitiu inovações nos níveis de sociabilidade é de se pressupor que o migrante que aí chega se vê inserido numa lógica que o leva a abafar os traços de um provincianismo e que o identificaria com a condição anterior de existência, em favor da adoção de modos de vida mais adequados ao novo status. Insistimos que estamos tratando o migrante não como um aventureiro: aventureiros não fazem parte da lógica sistêmica, migrantes são aqueles à procura de inserção nessa lógica. Tanto Goiânia como Brasília, cada qual no seu tempo jogam forte no imaginário social de populações interioranas, sobretudo em razão do forte conteúdo simbólico e cultural que detêm e se espalha pelo território circunvizinho.

O que se defende aqui, portanto é a necessidade de incorporar nas reflexões sobre a dinâmica regional-urbana os fatores de mudança que ela contém fatores esses que valorizam a criatividade e o culto às rupturas e inovação (RAFAEL, 2010). São várias as esferas onde estas inovações se apresentam, mesmo com as resistências usuais: por exemplo, a esfera cultural que hoje está inserida na indústria cultural voltada à produção de bens simbólicos/culturais obedecendo aos princípios da economia de mercado capitalista (uso crescente da máquina, divisão e especialização do trabalho, etc.). O efeito é a mercantilização das tradições culturais do lugar, ou seja, cada vez as práticas culturais tradicionais são produzidas com vistas à troca e ao consumo, via mercado. Há aqui então um nicho de mercado – economia criativa – que abrange além das indústrias criativas, o impacto de seus bens e serviços em outros setores e processos da economia e as conexões que se estabelecem entre eles.

Reis (2008) analisa de maneira ampla como a economia criativa é abordada pelos estudiosos da questão em contextos distintos. Interessa-nos aqui recuperar o lugar da cidade como espaço criativo que é um dos enfoques selecionadas. O autor argumenta que tratá-la como “espaço criativo” permite atrair talentos e investimentos para revitalizar áreas urbanas; promover os clusters criativos, articular a cidade com os pólos criativos mundiais, articulados com a política de turismo e de atração de mão-de-obra criativa e, sobretudo, restauração do tecido socioeconômico urbano baseado nas especificidades locais 4.

Finalmente, se retomarmos os argumentos da rede urbana regional que se caracteriza por uma grande dispersão de pequenos núcleos e considerando que o eixo Goiânia-Anápolis-Brasilia polariza a dinâmica urbana regional naquilo que ela tem de “moderno” teremos então que lembrar que além dos aspectos econômicos e políticos que agregam, tem também dimensões da cultura que se irradia para os demais centros, sobretudo os mais próximos, ampliando um mercado consumidor de bens culturais. As distâncias geográficas de centros como São Paulo, Rio de Janeiro e mesmo Belo Horizonte, aliado a um mercado de consumo de rendas médias elevadas e com padrão mais sofisticado dinamiza a oferta e a comercialização de produtos exclusivos, refletidos nos shopping centers e comercio varejista em geral. Ao mesmo tempo, gera a oferta de bens culturais (museus, galerias, teatros, etc) para atender a essa demanda, favorecendo a ampliação e diversificação do turismo regional que altera a qualidade dos serviços ofertados para esse mercado específico5

Cabe aos estudiosos da realidade regional incorporar em suas reflexões essa dimensão, lembrando que o conceito de indústrias culturais é multidisciplinar, lida com a interface entre economia, cultura e tecnologia, centrada na predominância de produtos e serviços com conteúdo criativo, valor cultural, guiados pelo mercado. Esta esfera é, portanto ampla e variada e o quadro abaixo ilustra as implicações que o tratamento da realidade local a partir dessa dimensão pode compor. Evidente que nos quadros desse texto não é possível discriminar cada uma dessas dimensões, porém serve como indicação para futuros trabalhos.
Inclusive confirma o papel indutor de novos empreendimentos exercido pelas universidades ali situadas, que na medida em que apontam aspectos potencialmente inovadores da região, desperta em seus estudantes o interesse por novos temas de trabalho e pesquisa.

BIBLIOGRAFIA

BENDASSOLI, Pedro F. Indústrias Criativas: Definição, Limites E Possibilidades –Revista de Administração de Empresas – RAE: São Paulo – v. 49 – n.1 – jan./mar. 2009. p. 10-18

IPEA – Caracterizaçào e Tendências da Rede Urbana do Brasil – IPEA/UNICAMP/NESUR/IBGE – Campinas/SP, UNICAMP. IE, 1999 (Coleção Pesquisas, 3)

WORLD BANK – Cities in Transition: World Bank Urban and Local Government Strategy – Washington D.C., 1991

WORLD BANK – Urban Policy and Economic Development: A Agenda for the 1990s – Washington D.C. 1991

SASSEN, Saskia – As Cidades na Economia Mundial – Studio Nobel, São Paulo, 1998

PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilios: 2001 – IBGE – Rio de Janeiro, 2001

NUNES, Brasilmar F.: Brasília: a fantasia corporificada. Edit. Paralelo 15, Brasília, 2004

DURKHEIM, Emille – De la Division du Travail Social – 7ª ed. PUF, Paris, 1960

ROCHER, Guy – Le Changement Social: Introduction à la Sociologie Génerale – Éditions HMH, Paris, 1968

SIMMEL, Georg – O Dinheiro na Cultura Moderna – in Simmel e a Modernidade(Sousa e Oelze orgs.) EDUNB, Brasília, 1998, pag. 23 e segs.

RAFAEL, Ulisses Neves. Cidades e migrações. In “Plural de cidades: novos léxicos urbanos” (Fortuna, C. e Leite, R.P. orgs.). Edições Almedina, Coimbra, 2010

WILLIANSON, O. Economic globalization – firms, market and polices. N.Y. University Press, New York

1ª CONFERÊNCIA NACIONAL DAS CIDADES – Cidade para Todos: Construindo uma Política Democrática e Integrada para as Cidades – Texto Base – Ministério das Cidades, Brasília, 2003

1Óbvio que a concentração excessiva gera o efeito inverso, ou seja, as deseconomias de aglomeração/urbanização (custo da terra, poluição, violência, déficit em serviços, etc) podendo reverter o fenômeno da concentração.

2De forma alguma estamos descartando as desigualdades sociais agudas que o processo vem gerando. Porém queremos insistir que há um segmento importante na área de população de classes de renda média elevada e que isso vem se traduzindo em processos específicos, que se contrapõe às situações de exclusão social. Esse fenômeno tem de ser pautado pelos estudiosos ao risco de alterarmos a realidade.

3Na medida em que não estavam ainda disponível certos dados populacionais mais recente, utilizamos os dados de 2000, que nos servem como aproximação.

4O Creative Economy Report 2008 (UNCTAD, 2008), estudo realizado no âmbito das agências do sistema das Nações Unidas (PNUD, UNESCO, OMPI, ITC) e coordenado pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento – UNCTAD – é a publicação mais detalhada sobre o tema no mundo. Seu argumento principal é que a economia criativa “implica um deslocamento dos modelos convencionais para um modelo multidisciplinar que abarca a interface entre economia, cultura e tecnologia, com foco na predominância dos serviços de conteúdo criativo. Por sua estrutura multidisciplinar, a economia criativa oferece uma opção factível de ser incorporada na estratégia de desenvolvimento de países em vias de desenvolvimento”. (UNCTAD, 2008) (tradução livre): “A economia criativa também aparenta ser uma alternativa factível para os países em vias de desenvolvimento. Em um contexto regido por políticas publicas efetivas, a economia criativa pode gerar vínculos entre as várias faces da economia, tanto em nível macro como micro. Esta conectividade tem um alto potencial para fomentar o desenvolvimento, oferecendo novas oportunidades para que os países em vias de desenvolvimento possam ingressar nas áreas de alto crescimento da economia mundial”.

5Basta lembrar a expansão do turismo em cidades como Pirenópolis, Goiás Velho, Alto Paraíso, ou mesmo, a inserção da música sertaneja nas grandes programações culturais do país movimentando recursos vultosos para se comprovar o que estamos querendo afirmar.

 

 

 

*Professor do Depto de Sociologia da UFF/PPGS, Pesquisador do CNPq e da FAPERJ
O autor agradece ao apoio logístico na coleta de dados de Júlio Cesar Sanchez do Dept. Sociologia da UFF

 

A Origem da Gravura de Arte em Goiás e seus Desdobramentos | de Edna Goya

Introdução

O desenvolvimento das artes plásticas em Goiás, assim como o desenvolvimento da gravura, nasce estimulado pela nova condição do estado, que busca transferir a capital – cidade de Goiás – para Goiânia, como forma de modernizar-se para inserir-se política, social, econômica e culturalmente no cenário nacional.

Desde a decadência da mineração do ouro e das pedras preciosas, quando o estado e a antiga capital entraram em declínio, os amplos setores da produção cogitavam da mudança do eixo político-administrativo da cidade de Goiás para um lugar estrategicamente melhor situado, como forma de promover o desenvolvimento regional e integrar o estado no contexto político, econômico e sociocultural dos centros mais avançados do país.

A transferência da capital, oficializada em 23 de março de 1937, significou não apenas o deslocamento do eixo político-administrativo do estado, mas também uma “estratégia de poder”. (CAMPOS, apud CHAUL, 1988, p. 15). Essa transferência veio propiciar a realização de outros benefícios, entre eles, ao longo dos anos, a constituição de uma nova configuração humana e geográfica nessa parte do território brasileiro e a criação, assim, das precondições ao revigoramento da região, surto de desenvolvimento socioeconômico que embalou o incremento das artes plásticas em Goiás e, no seu bojo, a origem da gravura como manifestação artística autônoma.

Oscar Sabino Júnior (Goiânia Global, p. 111), escritor e crítico goiano, considera que as tentativas culturais antes da nova capital estavam presas a um “saudosismo romântico”, que aboliam as possibilidades de originalidade e espontaneidade, isto porque estavam presas às técnicas e ao receituário tradicional, que marcaram movimentos e tendências anteriores. Os chamados “artistas”, segundo o autor, contentavam-se em alimentar o neorromantismo, acomodados às formas rígidas do passado.

A cultura e as artes, antes voltadas para as festividades religiosas, para a literatura e para as manifestações populares, foram adquirindo uma nova conotação. Se as artes plásticas, até então, foram marcadas pela participação isolada de José Joaquim da Veiga Valle (1806-1874), com a arte em estilo Barroco, considerada por Angotti “singular pelos aspectos formais e históricos, com imagens eruditas e aparentemente anacrônicas”, (SALGUEIRO, 1983, p. 25) e pela expressão, denominada pela critica local de neorromântica tardia, ou primitiva, mas que tende para o realismo, evidenciado na obra de Octo Outorino Marques (1915-1988)1, e de outros artistas, como Goiandira do Couto (1915), e Antônio Henrique Péclat (1913-1988), de tendência Clássica, ambos da cidade de Goiás, começaram a se modificar ao se sustentar paradigmas modernos. Esses artistas formam, na nova capital, a Sociedade PRÓ-ARTE de GOIÁS, responsável pelos primeiros movimentos artísticos na nova capital, fundada em 22 de outubro de 1945, e com as primeiras “escolinhas” (GOYA, p. 54) de arte, sendo que uma delas, pensada por Luis Augusto do Carmo Curado, em 1949/50, para atender o público infantil, dera origem ao ensino superior de arte. O projeto da escola é ampliado para agregar-se como faculdade à Universidade de Goiás, hoje Universidade Católica de Goiás/PUC, dando origem à primeira escola de ensino superior de arte – a Escola Goiana de Belas Artes (EGBA) 2.

Ainda, em 1945, começou a formar-se nessa associação uma consciência da necessidade de abertura também para as Letras e para as Artes, de forma a permitir certa autonomia tanto à literatura quanto às artes plásticas.

Também em 1945, forma-se outro grupo, chamado “Geração 45”, voltado para a literatura e composto por vários nomes dentre os quais, destacam-se José Décio Filho, José Godoy Garcia, Domingos Félix de Sousa, João Acióli e Bernardo Élis. Esse grupo marca o início do modernismo na literatura em Goiás, ao romper com a rotina acadêmica do passado, de tendência nacionalista.

Numa fase intermediária, surge o grupo “Os Quinze”, nascido sob o signo da competitividade. Era composto por dez membros, dentre os quais se destacava Jesus de Barros Boquady. Na época, era o único que denunciava tendência vanguardista (concretista).

Como fruto da efervescência da nova cidade e da necessidade de mudança é fundada, em 1952, a Escola Goiana de Belas Artes (EGBA), responsável pela introdução e institucionalização do ensino da gravura em Goiás. Em 1960, um grupo dissidente dessa escola funda o Instituto de Belas Artes de Goiás (IBAG), que, por ser gratuito, leva ao desaparecimento da primeira escola. Embora a EGBA tenha sido fundada em 1952, sua inauguração somente ocorreu no ano seguinte com o seu funcionamento autorizado a partir de maio, pelo Decreto n.º 32.258, de 23 de maio de 1953. Em sua inauguração, em 30 de março, fez-se uma grande exposição, aberta ao público, com a participação dos docentes, que objetivavam mostrar à sociedade goiana sua produção artística e cultural. À ocasião, o pintor Jordão de Oliveira, professor da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), apresentou um levantamento panorâmico da arte brasileira, falando sobre seus movimentos e tendências. Situou a produção artística goiana nesse contexto e teceu comentários sobre a obra de Frei Nazareno Confaloni, Gustav Ritter e Luiz Curado, dentre outros nomes das artes em Goiás.

Em 1954, Goiânia sofre o maior impacto cultural de sua curta história, com a realização do I Congresso Brasileiro de Intelectuais, aberto com a Exposição Nacional de Artes Plásticas. Visando romper o isolamento cultural da nova capital, Xavier Júnior, escritor e presidente da Academia Goiana de Letras, apoiado pela Associação Brasileira de Escritores, promove, em 20 e 21 de fevereiro, esse evento, que marcou os novos rumos da cultura e das artes em Goiás. O Congresso Brasileiro de Intelectuais, sediado pela EGBA evidencia-se como marco referencial e deflagrador do pensamento moderno nas artes plásticas em Goiás.

O congresso aconteceu graças a um esforço coletivo que incluiu professores e alunos da EGBA, dispostos a convidar artistas plásticos de todo o Brasil para participarem da exposição. Contou com representantes de várias áreas de conhecimento do cenário nacional e internacional, destacando-se o poeta e escritor Pablo Neruda, além de Lôio Pérsio (pintor), Jorge Amado (escritor), Mário Schemberg (cientista), José Reis Júnior (crítico), Mário Barata (escritor), Orígenes Lessa (romancista), Lima Barreto (cineasta), Inimá de Paula (pintor), Cláudio Corrêa e Castro (ator), Orlando Teruz (pintor), Mário Zanine (escritor), Jordão de Oliveira (pintor e professor), Sérgio Miliet (pintor), Aloísio Sayol de Sá Peixoto (colecionador e animador de arte, de Goiás) e Bruno Giorgi (escultor). Nesse evento, grandes nomes da gravura nacional compareceram a Goiânia, como Carlos Oswald, Carlos Scliar, João Quaglia, Glênio Bianchetti, Marcelo Grassmann, Mário Gruber, Rebolo Gonçalves (pintor e gravador), Osvaldo Goeldi, Renina Katz, Gilvan Samico, Glauco Rodrigues, Vasco Prado, Danúbio Gonçalves, Plínio César Bernhard, Edgar Koetz, Darel Valença Lins, Alfredo Volpi e Mestre Vitalino (gravador popular).

O evento inaugura, em Goiânia, o campo da cultura e das artes plásticas, de tendência moderna, fazendo com que o Centro-Oeste, pelo menos no campo artístico-cultural, passe a ser considerado no cenário nacional, ao promover e eleger temas de grande significação, demonstrando uma enorme preocupação com os rumos da cultura, não só goiana, mas brasileira, ao discutir a defesa da cultura, da indústria editorial e gráfica, o estímulo ao comércio de livros e publicações periódicas, a defesa da literatura infanto-juvenil, além de encaminhamentos para a extinção do analfabetismo, gratuidade e democratização do ensino, dotação orçamentária para fins culturais, estímulo à pesquisa científica, desenvolvimento das ciências aplicadas, liberdade de criação e de escrita, liberdade de associação cultural e profissional, melhoria das condições de vida e do trabalho intelectual, intensificação dos intercâmbios culturais e das relações culturais com os demais povos de forma recíproca.

A “Exposição Nacional de Artes Plásticas”, realizada durante o congresso, legitima definitivamente o contato da sociedade goiana com os ideais modernistas fortemente presentes na arte brasileira, dos anos 20 aos finais dos anos 50, que na gravura se destaca pelo expressionismo figurativo especialmente o praticado pelo Clube de Gravura do Sul liderado por Carlos Scliar. O evento atingiu tal dimensão que lançou Goiás além das fronteiras, incitando muitos comentários, entre eles, o de Bernardo Kordon, (escritor Argentino), em um artigo sobre arte popular karajá, publicado na revista Continente de Buenos Aires e transcrito na revista goiano Renovação (1954, p. 24) Ele afirma:

En el corazón Verde del Brasil rodaban los autos últimos modelos sobre las avenidas asfaltadas. Pero en compensación, dias después pudimos asomarmos a la infancia de la humanidad. Em Goiânia tomamos contacto com el arte de los karajás. Esta experiencia miracullosa se la debemos a la hospitalaria capital del desierto, a la Escuela Goiana de Belas Artes que dirige Luiz Curado e sus professores y artistas Henning Gustav e Fray Nazareno Confaloni.

Em outro comentário feito pelo brasileiro Mário Barata, no Diário de Notícias de Porto Alegre – RS e transcrito nesse mesmo número da Revista Renovação o escritor dizia que “Naquela Capital do Brasil Central, começa a produzir resultados um dos esforços mais simpáticos e estimulantes de todo o País” (LACERDA, 1955, p. 24). O Congresso mereceu também o seguinte comentário da Revista Horizonte, do Clube de Gravura de Porto Alegre, transcrito nessa mesma revista:

uma das grandes virtudes da exposição de Goiânia e não das menores –, foi precisamente de dar uma visão bastante clara do esforço que fazem grandes artistas no nosso país no sentido de fazer uma arte hoje utilizando valores de nossa herança cultural, principalmente popular.

Em torno das artes, uniram-se aqui pessoas das várias tendências, vindas de diferentes realidades socioculturais e artísticas, e de outros países. Para situar as artes de Goiás no cenário nacional, particularmente a gravura, é importante ressaltar que, ao mesmo tempo em que aqui brotavam as primeiras experiências artísticas modernas, em vários estados brasileiros vivia-se a plena efervescência. Todavia, outro acontecimento importante deve ser levado em consideração: a construção de Brasília e a mudança da capital federal para o Brasil central ocasionam a migração de um grande número de pessoas em busca de prosperidade e de lucro propiciado pela expansão do comércio, o que representou um grande estímulo ao desenvolvimento sociocultural de Goiás, contribuindo para a quebra definitiva do distanciamento de Goiás dos estados mais avançados do país.

O desenvolvimento das artes em Goiás, inclusive da gravura, visa a definição do perfil sociocultural da nova sociedade. Em virtude disso, as artes, na nova capital, nasceram ligadas a instituições como a EGBA, marco institucional do ensino superior de Arte em Goiás, articulada por Luiz Augusto do Carmo Curado, incorporada, como já mencionado, à Universidade de Goiás (hoje PUC) e pelo IBAG, segunda escola de arte de Goiás, ligado inicialmente ao Estado, e que veio posteriormente pertencer à Universidade Federal de Goiás (UFG), atual Faculdade de Artes Visuais.

 

A gravura na EGBA
A EGBA abre seus cursos em 1954, e a gravura tem dois importantes fundadores: Luis Curado que aprende gravura no Colégio Jesuíta Anchieta, em Friburgo e D. J. Oliveira que fez parte da Casa Santa Helena (SP), no período de 1949-1956. Curado funda, através do currículo da escola, o ensino de xilografia, da gravura em gesso e da serigrafia.

D. J. Oliveira evidencia-se como o segundo fundador da gravura goiana. Pratica a xilografia e começa a ensinar o método de gravação em madeira na EGBA, em 1961, e inicia, nessa escola, em 1967, com Grace Maria de Freitas os primeiros experimentos de gravação em metal, em chapa de latão, embora sua produção em gravura seja realizada em chapa de ferro, nas técnicas de água-tinta, água-forte, água-tinta de açúcar e ponta seca.

Estimulado pelos Professores Frei Nazareno Confaloni e Luiz Curado, pela desenvoltura de seu desenho figurativo D. J. Oliveira não só se sente motivado a fazer gravura, mas funda, em 1971, na EGBA, o ateliê de gravura em metal. A prensa desse ateliê configura-se como a segunda prensa 3para gravura em metal, no Brasil, é feita pela Casa Topal, de São Paulo e foi comprada sob a orientação de Marcelo Grassmann. Essa sala recebe o nome de “Sala Maria de Castro”, em homenagem ao incentivo recebido dessa professora, quando diretora da EGBA.

D. J. Oliveira permaneceu ligado ao ensino, na EGBA, durante 11 anos (de 1961 a 1972). Ao abandonar a escola, no mesmo ano, manda construir em Goiânia sua própria prensa, fabricada com base em um modelo francês, visto pelo artista em um ateliê da cidade de Madrid (Espanha). A prensa de D. J. Oliveira é a terceira de Goiás porque Vanda Pinheiro já havia montado seu ateliê de gravura em metal. D. J. Oliveira deu, pela vasta produção, impulso à gravura no estado, ao dedicar grande parte de sua obra a essa linguagem.

Frei Nazareno Confaloni aprendeu a gravar em madeira com Luiz Curado, fez incursões pela gravura, usando a técnica de xilografia ao fio e realizou as primeiras experiências em monotipias, utilizando o processo positivo e negativo. Às vezes, usava ácidos para criar texturas em pedra, a fim de proporcionar relevos e efeitos de profundidade nas monotipias. O processo era bastante rudimentar, tanto para gravar a matriz quanto para imprimir, e as gravuras, obtidas mediante ensaio e erro, até alcançar o resultado desejado. Nessas condições, a evolução da gravura goiana, tanto do ponto de vista técnico quanto estilístico, acontece de forma lenta.
Na EGBA, as disciplinas Gravura e Fotografia, são requisitos para o Curso de Desenho Aplicado, que tem duração de cinco anos. Essas disciplinas eram ministradas por Curado que aprendera no Colégio Jesuíta Anchieta, em Friburgo, cidade fluminense, onde vive alguns anos de sua vida, dedicando-se aos estudos religiosos. Nas horas vagas, dedicava-se às artes plásticas, à música, ao desenho, encadernação, ao teatro e à tipografia, que começara a aprender com seu pai em sua oficina, em Pirenópolis, quando ainda criança. Essas disciplinas eram oferecidas aos alunos da EGBA a partir da segunda série, estendendo-se até a terceira, enquanto que na ENBA, eram ministradas como cursos avulsos (COSTA, 1955, p. 9). Dada a flexibilidade do currículo, a disciplina Gravura era acessível a qualquer aluno de qualquer curso e série.

Na EGBA a técnica da xilografia é quase que substituída no começo de 1971 pela calcografia, usando-se latão e o ferro como suporte de gravação. D.J. Oliveira, que ensinava essa técnica, estruturou, com uma prensa, o primeiro ateliê de gravura em metal na EGBA. Os gravadores egressos da EGBA são: Isa Costa, que faz xilografia e se especializa no México, em calcografia e Ana Maria Pacheco, escultora que se especializa em gravura em metal na Inglaterra com sua produção centrada no cobre.

 

A Gravura no Instituto de Artes da UFG
Em 1967 é fundado o Instituto de Belas Artes de Goiás4 (IBAG), incorporado à UFG, com o nome de Instituto de Artes (IA/UFG), atual Faculdade de Artes Visuais, escola que marca o desenvolvimento das artes visuais e da gravura goianas.

No IBAG (IA/UFG) o ensino de gravura fica a cargo de Cléber Gouvêa. Como pintor, faz cursos de xilografia, com Misabel Pedrosa, e litografia, na Imprensa Oficial de Minas Gerais. Posteriormente, faz um estágio na Fundação Álvares Penteado, em São Paulo, com Marcelo Grassmann e Iara Tupinambá, artista mineira com quem aprende xilografia.

No entanto, por falta de condições físicas e materiais para a prática da disciplina, Cleber Gouvêa, contratado para ocupar a cadeira de gravura, passa a ensinar pintura e desenho e, simultaneamente, implementa o ateliê de gravura, estruturado inicialmente com duas prensas: uma para a xilografia, feita por um artesão goiano, e outra para litografia. A propósito, os primeiros contatos da sociedade goiana com a gravura em metal (calcografia), segundo Heleno Godói de Sousa, se deram com uma exposição de Isa Costa, realizada em 1968, na sede da Caixa Econômica Federal, situada à Rua 2, no Centro de Goiânia.

No IBAG, Cleber ensinou vários processos de gravura: xilografia e introduz a litografia, em 1968, processo ainda não conhecido em Goiás. Faz experimentos em calcografia em chapa de ferro (1969), tendo, entre seus alunos, Heleno Godói de Sousa.

Na Instituição federalizada, gravura e Cleber Gouvêa, não são sinônimos apenas de sucesso. Ambos enfrentam, assim como na EGBA, momentos de grandes dificuldades. Cleber Gouvêa, como Luiz Curado e D. J. Oliveira, isolados dos grandes centros, não tinham acesso a materiais adequados à prática da gravura.
É importante ressaltar que o desenvolvimento da gravura como linguagem se fortalece a partir de sua introdução na instituição federalizada – no Instituto de Artes (IA) da UFG – através da Habilitação em Gravura do Curso de Artes Plásticas. Cleber, que embora não grave em Goiás, faz experimentos na técnica de gravação em ferro e cobre e fez escola, com vários seguidores nessa técnica, e introduz a litografia em Goiás.

Quanto ao artista plástico e professor Cleber Gouvêa, é preciso dizer ainda que ele não só foi responsável pela implementação do ateliê de gravura e pela introdução da litografia no Instituto de Artes da UFG, em Goiás, mas também, assim como D. J. Oliveira foi mentor e incentivador de uma boa parte dos gravadores goianos, impulsionando o desenvolvimento da gravura por meio de seus alunos e de seu discípulo José César Teatini de Souza Clímaco, que além de ser um dos mais atuantes gravadores goianos da atualidade, juntamente com Heliana de Almeida Leivas, também é professor de gravura da Faculdade de Artes Visuais da UFG.

José César, aluno de Cleber Gouvêa e frequentador do ateliê de D. J. Oliveira, se torna o responsável pela “germinação” do que se poderia denominar de terceira geração de artistas gravadores de Goiás. No IBAG o ensino de gravura está relacionado aos professores Cleber Gouvêa, José César Teatini de Sousa Climco, Heliana Almeida Leivas, Selma Rodrigues Parreira e Edna Goya. Todavia, a introdução dos métodos e técnicas de impressão, nessa escola, se deve aos dois primeiros.

No IBAG, assim como na EGBA, o método de ensino artístico, bem como a estrutura curricular dos cursos de artes, sofre influência direta da ENBA, com base em modelos para serem reproduzidos. São assimilados por Luis Curado, adaptados e introduzidos em Goiás através da EGBA. A prática de ensino sustentada em modelo é posteriormente levada para o IBAG, pelo fundador da escola, professor Antônio Henrique Péclat, ex-professor da EGBA e que também aprimora seus estudos de arte na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro de 1941 a 1944.

 

A Gravura e as duas escolas goianas de Arte
Mesmo a gravura, na EGBA e no IBAG, tendo sido praticada com dificuldades de acesso aos materiais mais sofisticados e pela distância dos “grandes centros”, conseguiu desenvolver-se e seduzir uma geração de gravadores que, graças aos ensinamentos dos fundadores, tornou-se destaque, em Goiás e no Brasil, ao formar significativa quantidade de artistas. Entre os que mais se destacaram na EGBA conta-se com as alunas Isa Costa e Ana Maria Pacheco, com sua produção centrada no cobre.

No IBAG, a gravura adquire maior visibilidade ao ser praticada por vários artistas, a exemplo de Zofia Ligesa Stamirowska (1903-1979), com a xilografia, litografia e metal, Heleno de Sousa Godói (figura 10); Reinaldo Barbalho (xilografia); Maria Heliana Almeida Leivas (xilografia e Collagraph); Maria Eugênia Curado (calcografia em cobre); de Dinéia Dutra (calcografia em ferro); Selma Rodrigues Parreira (calcografia em cobre) e José César Teatine de Sousa Clímaco (xilografia, calcografia em cobre, litografia, plastigrafira e serigrafia).

Com José César inicia-se o que se poderia denominar de terceira geração de gravadores de Goiás, com os artistas Liosmar Martins (xilografia, litografia ecollagraph); Herculano Ramos (calcografia em cobre e ferro) e Edna Goya (xilografia, litografia, calcografia e serigrafia).

Com os artistas fundadores: Luiz Curado, D. J. Oliveira e Cleber Gouvêa, da EGBA e do IBAG, se tem a segunda geração de gravadores. A elevação da gravura à condição de arte autônoma é conquista dos pioneiros, de seus alunos e de vários outros artistas que, de certo modo, estiveram direta ou indiretamente ligados ao grupo pelas duas escolas, ou pelos salões de arte. São eles: Roosevelt (calcografia em ferro); Vanda Pinheiro (calcografia em ferro), que fez gravura nos ateliês livres de D. J. Oliveira e de Cleber, Laerte Araújo (calcografia em cobre); Fernando Thomem (xilografia), formado na Escola Guignard e aluno do curso livre de Ana Maria Pacheco.

A gravura goiana conta ainda com Paulo Fogaça (serigrafia), que faz gravura no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Washinton Honorato Rdrigues (serigrafia), aluno de D. J. Oliveira, do Curso Livre da EGBA; Naura Timm (litografia), formada na ENBA, Rio de Janeiro. Tem-se Antunis Arantes, Dec (Allan Kardec Cardoso Teixeira) e Octo Outorino Marques, artistas independentes.

Considerações finais
O desenvolvimento e a afirmação da gravura goiana estão associados, não só ao ensino artístico, promovido pelas duas escolas de artes, mas a vários outros fatores, a exemplo da criação das galerias e museus, em substituição aos improvisados saguões de teatro, de jornais ou livrarias dos anos 50, levando Goiás a promover mostras e incentivar os novos valores artísticos. A iniciativa pública e privada começa a organizar-se para criar e promover salões de artes e concursos, em nível local e regional, fatores que abrem espaços para critica de arte, tanto local quanto externa.

Conta-se com diversas exposições de gravura, a exemplo da mostra de Cartazes Americanos Contemporâneos, em estilo “Pop”, em que apresentava diversos processos de impressão de gravura, promovida pelo Museu de Arte da Prefeitura Municipal de Goiânia e pelo Centro Cultural Brasil Estados Unidos, aberta ao público no Palácio da Cultura, na Praça Universitária, no dia 2 de agosto de 1969. Têm-se ainda várias exposições de gravura brasileira e cursos de gravura, entre eles, dois ministrados por Ana Maria Pacheco, professora, desenhista, pintora, escultora e gravadora, que, formada em Escultura na EGBA, em 1964, iniciou e aperfeiçoou seus conhecimentos sobre essa arte na Groydon School of Art, na Inglaterra, de 1973 a 1977. Em 1978 e 1981, atuou em Goiânia, ministrando dois cursos de calcografia (em cobre), para os gravadores goianos.

Mas é importante ressaltar que o modernismo que se instala, em Goiás, em 1954, nas artes plásticas, por meio dos artistas pioneiros não se configura como um movimento em busca de uma ideologia estética, voltada para o nacional, a exemplo do modernismo paulista, mas estimulado pela nova condição política de modernização de Goiás, para inserir-se social, econômica e culturalmente no cenário nacional. O desenvolvimento do pensamento moderno, nas artes plásticas, consequentemente, na gravura, em Goiás, acontece em certo descompasso no que se refere a outras áreas produtivas da cidade, a começar pelo projeto de arquitetura dos prédios públicos da cidade, feitos, em 1937, ancorados no ideal estético da Art Déco, considerado, na época, um estilo moderno, favorecendo a um salto para o progresso, possibilitando a entrada e a expansão do capital em Goiás. Também no campo da Literatura já se experienciava, desde 1945, a modernidade.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHAUL, Nasr N. Fayad. A construção de Goiânia e a transferência da capital. Editora CEGRAF: Goiânia, 1988.

COSTA. Waldir. Caderno da Escola Goiana de Belas Artes. In: Revista Renovação. Nº 1, Goiânia, 1955, p. 7-8, 28.

GOYA, Edna de Jesus. 1998. A arte da gravura em Goiás. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo.

LACERDA, Regina. “O que foi a exposição do Congresso Nacional de Intelectuais”. In: Revista Renovação. Nº 1 Goiânia, 1955, p. 23 – 24.

OLIVEIRA, Jordão de. “Prof. Jordão de Oliveira”: pronunciamento durante o Primeiro Congresso Nacional de Intelectuais. In: Revista Renovação. Nº 1, Goiânia, 1955. p. 11.

SABINO JUNIOR, Oscar. Goiânia Global. Goiânia: Editora Oriente, 1980.

SALGUEIRO, Heliana Angotti. A singularidade na obra de Veiga Valle. Goiânia, Editora da UCG. 1983.

 

1 Desenhista, pintor e gravador.

2 O projeto de escolinha de arte é retomado, em 1962, com a abertura da Escolinha de Arte Infantil Veiga Valle, fundada em 1948 nos moldes da Escolinha de Arte do Brasil, do Rio de Janeiro.

3 A prensa de gravura se encontra no ateliê de ates gráficas do Curso de Arquitetura da UCG.

4 A escola de artes da UFG muda de nome várias vezes: 1960/61, IBAG (Instituto de Belas Artes de Goiás), seu primeiro nome; Faculdades de Artes da UFG, ao agregar-se à UFG, em 1963; Instituto de Artes da UFG, ao anexar-se ao Conservatório de Música, em 1969 e Faculdade de Artes Visuais da UFG, a partir de 1996, ao se separar da Música.

 

*Edna Goya é professora da Faculdade de Artes Visuais/UFG. Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/SP; Mestre em Arte Publicitária e Produção Simbólica pela USP-SP (1998); Especialista em Educação (PUC/GO, 1986) e em Arte-Educação (UFG, 1989); Bacharel em Artes Visuais-Gravura (UFG, 1992) e Licenciatura em Desenho e Plástica (UFG, 1983). ednajgoya@yahoo.com.br

 

Da coletividade ao convívio: fazer, estar e ser juntos | de Manoela dos Anjos Afonso

(…) a arte pode ser um lugar de produção de uma sociabilidade específica, gerar um terreno fértil de experiências sociais preservado da uniformização de comportamentos (…).” (TRAQUINO, 2010, p. 110).

Quando fui convidada a escrever um ensaio para esta revista, pensei que poderia ser uma ótima oportunidade para reunir breves relatos sobre três experiências artísticas significativas convividas na cidade de Goiânia entre os anos de 2006 e 2010: Le Mur, Grupo Teia e Arquigravura. Ao refletir sobre o que já realizamos, percebi que o “convívio” vem adquirindo uma importância considerável em nossas propostas, as quais usualmente se iniciam a partir de um grupo (móvel) de pessoas que procuram fazer algo coletivamente e que, em diferentes graus e combinações, podem ter o relacionamento entre si fortalecido pelo “fazer juntos”.

O “fazer juntos” provoca o “estar juntos”: atualmente continuamos a nos lançar a tais convivências com o objetivo de realizarmos projetos artísticos não só coletivos, mas também relacionais. Temos percebido uma urgência nesse sentido, além de constatarmos o desejo de buscarmos mais que uma reunião de indivíduos ativos em função da realização de projetos artísticos coletivos: almejamos um convívio efetivo capaz de, a partir das negociações das nossas individualidades, potencializar o “ser juntos”. Ou seja, que possamos ir além do fazer ou do estar e convocar mais pessoas à experiência conjunta da produção artística, pois o exercício poético é uma das formas pelas quais podemos dar espaço, tempo e lugar ao verbo ser. Não seria esse um dos meios de esburacarmos – com muitos pequenos orifícios – os microssistemas dos quais fazemos parte? Há que se deixar a luz entrar por esses buracos: nossos interesses têm sido dirigidos às relações humanas estabelecidas por meio de operações e arranjos poéticos. Desejamos que cada pessoa – artista ou não – possa escolher fazer, estar e/ou ser conosco durante propostas artísticas, inclusive propondo também.

Para mim, em particular, reconheço que este é um grande desafio, pois é mais cômodo – porém menos excitante – elaborar e executar projetos artísticos individuais e/ou autorais. A questão é que não podemos ignorar o fato de que, num contexto contemporâneo, lidamos mais com a polifonia do que com os monólogos poéticos. E ao citar aqui a polifonia, não me refiro à comunicação aberta das obras ou à diversidade das linguagens nas artes visuais, mas sim à multiplicidade de vozes, proposições, experiências e existências cada vez mais presentes nos processos e objetivos de algumas proposições artísticas contemporâneas. É claro que – e felizmente – continuaremos lidando sempre com nossas questões poéticas individuais. O convívio não é uma regra, mas sim um convite a ser aceito para que transitemos do privado ao público, do “meu” ao “nosso”, da parte ao todo, e vice-versa, exercendo nossas capacidades individuais e coletivas, compartilhando-as, transformando-as para transformar e sermos transformados. Esse é um processo dinâmico e colaborativo de aprendizagem, pesquisa e produção de conhecimento. E o melhor: conhecimento de muitas ordens, inclusive sensível. Isso se faz necessário, sobretudo num mundo tão individualizado e individualizante (apesar das redes).

O que me fez desejar, verdadeiramente, conviver com o outro durante alguns processos de elaboração e produção artística foi o exercício da docência. Provocar um grupo à reflexão e à produção poética passou a ocupar mais espaço e importância do que a necessidade de dar corpo matérico a uma produção artística individual a ser inserida no sistema das artes. Ao exercer a docência, no meu caso na universidade, que é uma instituição que tem – ou deveria ter – um compromisso direto com a sociedade, não poderia deixar de convidar, convocar, provocar cada vez mais pessoas à criação e à transformação, por mínimas que fossem. Não poderia deixar de ao menos tentar. Vejo na arte contemporânea uma possibilidade de inaugurar, junto com outras pessoas, lugares móveis para esse convívio poético e transformador. E transformação aqui não diz respeito a mudanças fenomenais no mundo ou na sociedade… sejamos honestos! Penso que as microtransformações são muito importantes, pois têm tempo para se fortalecerem e instaurarem lentamente um movimento sutil de atribuição de sentidos ao mundo, desencadeando noções de pertencimento nesses sujeitos ativos/ativados. Configuram-se, assim, as revoluções silenciosas. Experiência, memória e identidade dão substância e concretude a esses lugares móveis, construídos poética, estética e criticamente, onde podemos “ser juntos” e, consequentemente, fazermosestarmos com mais qualidade. O “fazer só” e o “fazer juntos” são importantes, pois um alimenta o outro e ambos constituem lugares diferenciados na produção artística. Ao olhar para o que já foi realizado entre 2006 e 2010, posso dizer que o “fazer juntos” nos levou a muito mais do que ao “executar juntos”, pois muitas das pessoas convocadas à participação nesses projetos se envolveram, propuseram, escolheram, realizaram, opinaram, refletiram sobre suas contribuições e continuam agindo, juntas ou não.

Ainda temos muito a avançar: continuamos em processo lento, em formato de grupo aberto, laboratoriando agora propostas artísticas de caráter relacional. Alguns de nós vivenciamos, inclusive, um prazeroso desdobramento desse convívio: a amizade. Talvez esse seja o caminho natural para os que escolhem “ser juntos”, em qualquer campo ou atividade.

 

Le Mur

Figura 1. Armando Coelho. Intervention 1, novembro de 2006. Foto: Amina Mazouza.

 

Figura 2. Edivaldo Junior (sobre o trabalho de Armando Coelho). Intervention 2, março de 2007. Autorias sobrepostas e em (des)agregação. Foto: Amina Mazouza.
Figura 3. Reijane Cunha (sobre o trabalho de Armando Coelho). Intervention 2, março de 2007. Autorias sobrepostas e em (des)agregação. Foto: Amina Mazouza.
Figura 4. Grupo Teia na Intervention 3 – tramas sobre os trabalhos de todos os artistas participantes das edições anteriores de Intervention. Autorias sobrepostas e em (des)agregação. Foto: arquivo pessoal.
Figura 4. Grupo Teia na Intervention 3 – tramas sobre os trabalhos de todos os artistas participantes das edições anteriores de Intervention. Autorias sobrepostas e em (des)agregação. Foto: arquivo pessoal.

O muro convida à ação e provoca reação. Todo aquele que age, reage à inércia e conquista a capacidade de interferir na pequena realidade que o cerca. Aquele que interfere no seu microuniverso é como a pedra lançada na lagoa: movimenta a água parada. Que o muro possa desestabilizar, plantar dúvidas e inquietações sempre. Que ele seja uma porta, uma passagem-conexão para a autonomia da ação. (Afonso, 2007. Texto escrito para a Intervention 2, publicado no fanzine Le Mur # 02).

Le Mur (O Muro) foi um projeto composto por quatro números de um fanzine, três edições de uma intervenção artística realizada no muro externo da Aliança Francesa de Goiânia, um blog (http://www.lemurbr.blogspot.com) e uma exposição chamada “Pátria que o pariu!”. O projeto, que teve início em 2006 e foi encerrado em 2008, foi idealizado em conjunto e teve a participação de vários artistas de Goiânia e de outras localidades.

O fanzine foi um veículo de informação e de livre pensamento, ligado às ações realizadas no muro, mas também com contribuições externas e relativas a outros muros. Como meio independente de comunicação, as contribuições tinham naturezas diversas e todos aqueles que quisessem escrever sobre arte e cultura, mostrar suas imagens, expor o seu pensamento puderam ter seus trabalhos publicados. Com uma tiragem de 150 exemplares por número, os zines foram distribuídos gratuitamente. A divulgação e as chamadas para as contribuições foram feitas pela internet.

A intervenção, chamada Intervention, surgiu da vontade da direção da Aliança Francesa (AF) de Goiânia daquele período, de fomentar a produção artística local e de colocá-la em intercâmbio com grupos de artistas franceses. Sugerimos o uso do muro lateral da sede da AF, até então inutilizado e esquecido. Essa ideia surgiu de uma breve pesquisa sobre movimentos de squat art, que se propõem a ocupar construções fechadas e abandonadas. No caso das três edições de Intervention(Figuras 1, 2, 3 e 4), a proposta geral feita aos participantes era a de ocupar um espaço no muro a partir do que já havia sido feito nele por outra pessoa. Sendo assim, a cada nova Intervention, o trabalho já existente deveria ser incorporado à nova proposta, configurando diversas camadas de subjetividades ali adensadas e coexistentes.

Grupo TEIA

Mãos amarram, soltam, enlaçam, contam, cortam, refazem,
tecendo (in)tensões,
com fios que prendem, sufocam, ligam, soltam, seguem
Perdem-se
Tecidos, redes, conluios…
Frágeis teias, tramas impermanentes
… sobre o reboco solto do muro …
(Kalissa Nawá – Gyn, 21 de agosto de 2007)

O Grupo TEIA (Figura 4) teve início durante a Intervention 3 – Tramas no Muro, do projeto Le Mur, que foi uma intervenção-oficina orientada por Kalissa Nawá, em setembro de 2007. O objetivo do grupo é realizar intervenções coletivas que apresentem ações e conceitos ligados ao ato de tecer. O grupo não possui formação fixa: ele é aberto àqueles que queiram propor ou participar dasIntervenções Tramadas. Em novembro de 2007 o Grupo TEIA propôs uma ação nos jardins internos da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (FAV/UFG), o que resultou numa instalação coletiva tramada com diversos materiais, inclusive peças de roupas e acessórios. Essa instalação adquiriu um caráter work in progress, pois pequenas contribuições continuaram aparecendo durante o período em que a estrutura esteve montada. Algumas intervenções foram feitas anonimamente, mas outras foram comunicadas por email (Figuras 5 e 6).

Figura 5. Raquel Rocha no momento em que somava a sua trama às tramas do projeto. Novembro, 2007. Fotografia de Roberto Scot. “(...) o título que escolhi é: "Eterno tricô". Explico: Iniciei este tricô há vários anos (vários mesmo), de vez em quando tricotava mais um pouco e largava. Queria fazer uma blusa de frio para o meu Pai. Ele jamais irá usá-la. Mas, sei que onde quer que o meu pai esteja agora, ele está torcendo por mim. Eu sempre me perguntava por que não o terminei antes. Quando li o seu e-mail, na parte da intervenção, lembrei logo desse tricô e pensei "é, tudo tem sua hora... mas chega de procrastinação! Basta! Está na hora de fazer parte de algo muito mais valoroso e digno, do que a autopiedade! Então, só posso agradecer-lhe, de coração, a oportunidade!!!” (trecho do texto enviado por email por Raquel Rocha).
Figura 6. Contribuição de Alice Gomes com elementos vivos para a trama. Uma trama para ser cuidada todos os dias. Fotografia de Alice Gomes.
Figura 7: Proposta do artista Ronan Gonçalves para o projeto Intervenções Tramadas. Ronan realizou tramas nas pessoas: “(...) utilizo material humano e o transformo em personagens amarrados com materiais inusitados dotados de diversidade de texturas e cores. A finalidade é destacar tais corpos e devolver-lhes a visibilidade dentro dos espaços urbanos.” (trecho do texto do artista enviado para o projeto). Fotografia: arquivo pessoal.

Arquigravura

O grupo ARQUIGRAVURA foi formado em 2009. É um coletivo com foco em ações artísticas contemporâneas e colaborativas que envolvam as artes gráficas. Funciona como um laboratório de aprendizagem e troca de conhecimentos artísticos – teóricos e práticos – ligados a temas que envolvam a cultura urbano-rural do estado de Goiás. O grupo faz parte do projeto de pesquisa “A prática relacional nas artes visuais: comunicação, interação, convívio e proximidade como elementos constitutivos de processos artísticos contemporâneos” (SAP/UFG). Alunos, ex-alunos e professores ligados – ou não – às artes visuais compõem organicamente o grupo. O Arquigravura já participou de alguns projetos coletivos: intervenção urbana na cidade de Resende/RJ (Figura 8), produção coletiva em estêncil para a Feira Tecnotêxtil/2010 e para o Espaço das Profissões da UFG (Figura 9) e, agora, vem discutindo e elaborando propostas com um caráter relacional mais aprofundando. O projeto PEQUI-NIQUE (Figura 10) consiste na elaboração de um piquenique com alimentos feitos com pequi (fruto típico do cerrado e da culinária goiana). Para tanto estamos produzindo uma grande toalha e cartazes-convocatória impressos à mão. Os participantes, convidados e/ou convocados para este PEQUI-NIQUE deverão obedecer a uma única regra: para comer é preciso pedir que outra pessoa o alimente. O que está em jogo nesta ação são as possibilidades de relação surgidas durante os eventos “cuidar” e “ser cuidado”.

Figura 8. Grupo apresentando a produção feita para o projeto de intervenção urbana “Xilogravura mudando uma cidade”, proposta do artista Tiago Gomes, em Resende/RJ.

 

Figura 9. Grupo produzindo coletivamente para participação na Feira Tecnotêxtil 2010.
Figura 10. Reunião do grupo para elaboração do projeto PEQUI-NIQUE. Parque Flamboyant, junho de 2010. Teste de cor do tecido sobre o gramado.

 

 

Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Cahapecó/SC: Argos, 2009.

BLIXEN, Karen. Anedotas do destino. 3ª ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins, 2009.

BRETT, Guy. Brasil experimental: arte/vida, proposições e paradoxos. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2005.

CANÇADO, Wellington; MARQUEZ, Renata; CAMPOS, Alexandre; TEIXEIRA, Carlos M. Espaços colaterais. Belo Horizonte: ICC, 2008.

HENDRICKS, Jon. O que é Fluxus? O que não é! O porquê. Rio de Janeiro: CCBB, 2002.

PANKOW, Gisela. O homem e seu espaço vivido: análises literárias. Campinas: Papirus, 1988.

TRAQUINO, Marta. A construção do lugar pela arte contemporânea.Portugal: Húmus, 2010.

 

 

*Manoela dos Anjos Afonso é artista visual. Mestre em Cultura Visual pela Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás – FAV/UFG (2008), na linha de pesquisa ‘Poéticas Visuais e Processos de Criação’. Professora Assistente da FAV/UFG com atuação nas disciplinas práticas ligadas às poéticas visuais.

 

Metaforametria – Notas sobre o quadrante zerodimensional | de Noeli Batista Santos

Foi na manhã de 10 de agosto, do ano de 2010, que a paciente foi ao Hospital S.T. na cidade de Goiânia, realizar seu mapa, tão revelador quanto poderia o ser, caso fosse o que se chama, de mapa astral. Sua recém-necessidade de um mapa de campimetria deu-se, pela solicitação de uma série de exames, condição sine qua non para tomar posse no concurso, para o qual recentemente havia sido convocada.

Após o retorno ao consultório oftalmológico para, desta vez, reparar o esquecimento (seu e do médico que a atendera dois dias antes) na solicitação do já citado exame, teve início a saga da procura para um local possível de concretizar o mapa de campimetria. As primeiras dez ligações, na busca por um local que pudesse, em tempo recorde (menos de três dias úteis), realizar o exame e consequentemente a entrega de seu res

ultado, foram desanimadoras. Ao que parece a paciente passou a partilhar da fila do grupo dos “sem mapas de campimetria”, devido à descoberta das filas de agendamento e a previsão da demora na entrega de um suposto resultado. A paciente percebeu que durante as ligações, o adjetivo computadorizado, fora várias vezes citado, sendo uma espécie de atestado de eficiência, sofisticação e porque não dizer, contemporaneidade.

Em uma das ligações, que se seguiram após a décima, eis que ela encontrou um local que pudesse atender à sua necessidade imediata.

Por favor, necessito de uma informação.
— Sim…
—Vocês fazem o exame de campimetria?
— Sim…
— Computadorizada? (
antecipando a intenção do item qualidade)
— Sim…
— Qual o prazo mais rápido para entrega do resultado?
— No mesmo dia.
(este fato foi animador).
— Que ótimo! Para quando vocês têm vaga?
— Hoje não dá mais tempo
(por volta das 17h30). Mas pode agendar para amanhã. É preciso chegar cedo.
— E o resultado, sai no mesmo dia?
— Depende…
— Depende de que?
— Se você consegue finalizá-lo no mesmo dia…
— Mas… O que, por exemplo, poderia acontecer para que eu não consiga realizá-lo no mesmo dia?
— Bom… Há pessoas que não conseguem. Alguns dormem, outros ficam agitados, depende de cada um. Em alguns casos precisam retornar no outro dia. O procedimento é demorado.
— Certo…
(temerosa). Digamos que eu consiga realizar o exame no mesmo dia, e o resultado?
— Se você conseguir, o resultado será entregue, no máximo uma hora depois da finalização do procedimento.
— Certo
(decidida).
— Mais uma pergunta: a pupila é dilatada
(prevendo a necessidade de um acompanhante)?
— Não.
— Então quero agendar o exame para amanhã
(decidida e temerosa).
— Tenho um paciente às 7h da manhã. Você será a segunda. Descanse, alimente-se bem, durma cedo.
— Certo
(mesmo sem compreender a necessidade das recomendações em relação ao procedimento que seria realizado).

Na manhã já citada, lá estava ela, às 9h30, horário indicado pela técnica responsável por realizar o procedimento. Enquanto aguardava o exame, imaginava o primeiro paciente. Se ele estaria saindo-se bem, se conseguiria concluir o exame no mesmo dia. Tinha pena e perseverança, percebeu que a condição que os unia acabara por estabelecer um laço de companheirismo, torcida e temor. Durante a espera recordou-se do agendamento e da conversa do dia anterior: “há pessoas que não conseguem”…

O exercício de adivinhar quem seria o primeiro paciente do dia (debilitado do pós-campimetria), ao sair da porta que interliga o interior do hospital ao espaço da recepção, acabou por distraí-la durante os 30 minutos que se seguiram após o horário previsto.

Finalmente fora chamada para a pequena sala, espaço no qual seria realizado o exame. Após os cumprimentos iniciais, a técnica de características franzinas, de expressão sisuda, fechou a porta pediu que a paciente sentasse no banco posicionado frente a um aparelho, que, a julgar pela quantidade de teclas e visores, seria o carrasco da vez.

Seu pedido de exame.
— Aqui está. (
Disse ela entregando à técnica a folha do receituário indicada pelo médico oftalmologista).
— Campimetria computadorizada?
(Questionou-se a técnica ao ler o receituário). Em seguida, uma nova pergunta:
— Este exame é para qual finalidade?
— Admissão em concurso público…
— Não tem cabimento. Fico revoltada com a falta de responsabilidade de alguns profissionais. Como pode solicitar um exame computadorizado para um caso como este?
(Avaliou a técnica)

Enquanto isso a paciente lembrava-se da conversa do dia anterior, das dificuldades do exame, e torceu (na verdade, implorou para os céus) para que o mau humor da técnica não se prolongasse.

— Você fará o exame de campimetria manual. Não faz sentido um exame computadorizado. Afirmou a técnica.

A paciente concordou, embora no plano de fundo dos seus pensamentos mais otimistas, se questionasse sobre qual seria a pior opção: computadorizado ou manual. 

— E o resultado, também sai no mesmo dia? (Perguntou a paciente).

Balançando a cabeça em sinal positivo a técnica disse:

— Entre, por favor… (Indicando a porta da pequena sala escura).

Não que ela teve medo, é que à primeira vista, a penumbra instaurada na sala que acabara de entrar revelou um misto de filme “trash” com laboratório de cientista louco. Enquanto sua pupila adequava-se à penumbra instaurada pela luz-ambiente, quer dizer, pela quase totalidade da ausência dela, observou que a “coisa” (Figura 1) instaurada à frente do pequeno banco estava imprensada entre a prateleira repleta de livros (lado esquerdo) e, uma porta lateral (lado direito). Pelo que a paciente compreendeu esta porta lateral indicava acesso ao consultório do médico que assinaria o laudo, do até então, “desejado” exame.

Figura 1. Campimetro de Goldman

Enquanto a técnica franzina e sisuda tampava com algodão e esparadrapo o olho esquerdo da paciente, sua voz lenta e pausada defendeu a intenção deflagrada pela escolha do exame denominado Campimetria de Goldman.

— Hoje em dia, são poucas as clínicas e profissionais, nesta cidade, que conseguem fazer o exame de campimetria, manualmente. É absurdo pensar que a experiência profissional, o grau de interpretação, e o ser humano estão pouco a pouco sendo substituídos por máquinas que são incapazes de interpretar os sinais e “manias” sinalizados pelo paciente durante o exame. Realizo as etapas do procedimento quantas vezes forem necessárias para analisar se de fato há alguma “anomalia” indicada nos sinais emitidos pelo paciente. No exame de campimetria computadorizado, a máquina é incapaz de compreender as variações subjetivas indicadas pelo ser humano à sua frente.

Durante o exame, enquanto a luz da lanterna aparecia e desaparecia no campo escuro do fundo infinito do Campimetro de Goldman (anteriormente denominado de “a coisa”), a paciente pensou em Flusser e nas questões que envolvem a produção e a manutenção do universo das imagens técnicas. Pensou na condição existencial da profissional responsável por seu diagnóstico, e porque não dizer, seu diferencial humano em relação ao programa inserido no aparelho. Neste misto de pensamentos, mesclado ao lento ritmo dos sinais para indicar o aparecimento e o desaparecimento da luz em seu campo de visão, a paciente piscou os olhos e quando os abriu…

Notas Sobre a Legião Subversiva…

Milhares de aparelhos produtores de imagens são diariamente inseridos em diferentes contextos, sejam eles no campo da ação doméstica, seja em formatos industriais e/ou educacionais. Milhares de seres humanos, atualmente deslocam-se da condição de sujeitos criadores, para a condição de funcionários destes mesmos aparelhos. Os governos, para mediarem as ações deliberadas em tais contextos, estabelecem normatizações de proibição do uso de aparelhos construtores de imagens em contextos, por exemplo, educativos. Uma maioria de seres humanos, seja por questões culturais, seja por falta de acesso econômico ou mesmo por resistência ideológica, mantém-se na condição de funcionários dos aparelhos produtores de imagens.

A dependência de funcionários e consumidores a estes aparelhos produziu uma espécie de geração zumbi. Tais funcionários zumbis adentram a chamada rede telemática, retroalimentando o universo das imagens técnicas, produtor desta condição funcional. Imagens técnicas neste contexto são imagens produzidas por aparelhos que possuem em seu interior programas definidos por códigos binários, frutos da lógica cartesiana.

Esta breve viagem tem por objetivo apresentar a Metaforametria, ou seja, o procedimento avaliativo que estuda o campo de produção de metáforas visuais por meio da sensibilização do olhar. Tal procedimento afirma a necessidade de avaliar e promover a capacidade criadora de um ser humano, por meio da representação metafórica dos diferentes contextos do qual faz parte.
Ao considerar que o campo visual é uma área espacial dentro da qual todos os filtros sociais são vistos simultaneamente, o campo metafórico de construção de imagens, neste contexto, divide-se em quatro quadrantes: abstração tridimensional, abstração bidimensional, abstração unidimensional e o quarto quadrante indicado por Flusser (2008), de zerodimensional.

O quadrante tridimensional refere-se ao gesto que manipula volumes, abstraindo o tempo ao seu entorno, na construção, por exemplo, de esculturas e objetos. O quadrante bidimensional relaciona-se à visão, que percebe o volume ao seu entorno, abstraindo tempo e espaço, imaginando cenas bidimensionais, tais como um desenho, ou mesmo uma gravura. Por quadrante unidimensional, compreende-se o gesto de abstrair as três dimensões: tempo, espaço e volume, na produção de textos. O quadrante zerodimensional refere-se à abstração do próprio ser humano, na construção de tais imagens.

O quadrante zerodimensional é um composto de programas inseridos no interior de aparelhos. Tais imagens são abstrações organizadas por meio de fórmulas matemáticas, convertidas em códigos binários. Os mesmos códigos que se revelaram ícones representativos das chamadas tecnologias de transmissão e armazenamento de dados.

O quarto quadrante, por agir como um câncer em meio às célulasmetaforaretinianas, multiplica-se randomicamente, inibindo a produção e integração de imagens por meio dos demais quadrantes. Neste contexto, para subverter a condição de abstração do ser que as produz, indica-se a possibilidade de relacionar os três primeiros quadrantes, de forma hibrida na produção de imagens zerodimensionais, ou imagens técnicas. Sobre o quarto quadrante, segue um breve histórico.

No processo evolutivo da condição humana, em relação aos diferentes quadrantes ou níveis de abstração do campo da produção de metáforas, o quarto quadrante foi aquele que melhor integrou os anseios do pensamento cartesiano, em relação ao afastamento dos saberes sensíveis, até então, condição essencial na produção de imagens. A facilidade com a qual o campo visual metafórico foi condicionado no contato com as imagens técnicas, provocou confusões de ordem perceptiva, tanto em seus produtores, quanto em seus observadores. Neste sentido, imagens zerodimensionais, não raras vezes, são confundidas com a própria realidade circundante, ao assumirem a condição de sombras da caverna platoniana, por mais relativo que o conceito de realidade possa ser compreendido.

metaforametria relaciona-se aos referenciais antropológicos, dos Estudos Culturais e, também, dos jogos de pensamento abordados pela cultura visual. Este diagnóstico, há tempos, vem sendo formulado pela conceituada linha da História da Arte. Contudo, profissionais das mais diferentes linhas de pesquisa, indicam as falhas críticas nesta linha de estudo, uma vez que esta não problematiza questões de gênero, classe, e outras problemáticas inerentes aos processos de afirmação e práticas hegemônicas na construção de um ideário social relacionado às visualidades presentes no contexto contemporâneo.

Metaforametria configura-se num dos possíveis meios para que se possam localizar consciências libertárias, que, no momento, encontram-se imersas no campo da construção de imagens técnicas. As implicações sobre a presença ou ausência destes genes libertários indicam a fragilidade do sistema do qual fazem parte. Este diagnóstico pode indicar duas classes de uma mesma espécie, neste contexto indicada por jogadores libertários. São elas: apertadores de teclas engajados ou programadores subversivos.

Os estudos sobre metaforantropologia apresentam indícios referentes à produção de imagens Eva (2009), apontando para a possibilidade subversiva desta ação. Este ato ao ser instaurado promove a ruptura com ambientes proibitivos, na busca pela libertação do reality show, instituído no paraíso castrador. No jogo da criação, Adão é uma máquina e Eva sua criação imagética. Eva em contato com a serpente e motivada por ações subjetivas, ao alimentar-se do fruto proibido, conquistou a liberdade para si, e também, para a máquina que a criou. Por ações subjetivas compreendem-se a metáfora da serpente, enquanto vírus subversivo, ou ruídos inseridos no interior do repertório, e porque não dizer, da estrutura inicial de sua criação. Tal vírus, neste contexto, passa a ser elemento inspirador para os sujeitos que desejam romper com a condição alienante presente no Universo das Imagens Técnicas.

Vilém Flusser, uma das mentes subversivas a este contexto, indicou em seus escritos, a existência de seres subversivos, indivíduos de crença zero (1967). Em suas primeiras investigações, ele os denominou de fotógrafos experimentais (2002), posteriormente de jogadores (2008). No contexto de produção e transmissão das imagens técnicas, a indicação de tais sujeitos foi ampliada para o que Santos, na elaboração do seu Jogo Antropofágico, passou a denominar de Jogadores Libertários (2010). Para exemplificar tal processo de ampliação, os membros da legião subversiva, indicados pelos pseudônimos de Cindy Sherman e Waldemar Cordeiro entraram em cena para subverter, por meio de sua prática artística, o jogo nulo instaurado pelo universo industrial.

A agente N. em contato com os membros da legião subversiva sinalizou a possibilidade de sistematização de um procedimento capaz de diagnosticar um possível resgate de seres humanos em condição de nulidade ante os aparelhos produtores de imagem. Metaforametria é a denominação dada a este procedimento investigativo e formativo, uma vez que sua ação não se resume à descoberta, mas paralelamente, à construção de espaços formativos de jogadores libertários. Neste processo, na produção de visualidades contemporâneas, torna-se possível indicar diferentes níveis de subversão no que se refere ao quadrante zerodimensional.

Cindy Sherman, por exemplo, ao apropriar-se da obra Sick Bacchus, de Caravaggio (Figura 2), exemplo do quadrante bidimensional, desenvolveu um projeto artístico cujo foco fora a produção de imagem técnica, enquanto produto artístico (Figura 3), diferindo-se da intenção documental, ou do mero registro materializado por códigos matemáticos.

Figura 2. Caravaggio. Sick Bacchus. 1593. Oléo sobre tela, 67 X 53 cm. Galleria Borghese, Roma. Fonte: http://artinvest2000.com/caravaggio_sick_baccus_.htm. Acesso em 4 fev. 2010.
Figura 3. Cindy Sherman. Untitled # 224. Fotografia. 1990. Fonte: www.artnet.com . Acesso em 4 fev. 2010.

Conforme explicitado anteriormente, no exemplo de Cindy Sherman, o aparelho não criou metáforas, porém, ao ser trapaceado pela artista, o produto do cálculo foi modificado, uma vez que a imagem não indicou reflexos do mundo (conforme pretensão cartesiana), mas sim, metáforas desse mundo previamente elaboradas por sua criadora, com finalidade de enganar o aparelho. Nessa dinâmica, o aparelho tornou-se instrumento da artista, e seu produto, irrealidade declarada.

Na elaboração da obra Derivadas de Uma Imagem (Figuras 4, 5 e 6), Waldemar Cordeiro em parceria com o físico italiano Giorgio Moscati, desenvolveu um programa capaz de digitalizar uma imagem fotográfica, a partir da transformação de algoritmos matemáticos. Neste exemplo, não foi o código binário, o responsável por construir as imagens, mas sim, a intenção do artista, ao corromper a lógica de programação cartesiana. No caso de programas desenvolvidos por jogadores libertários, o cálculo vazio continuará a ser processado, no entanto, a intenção criadora de seu programador será explicitada por meio de suas metáforas, conforme é possível observar na figura 7.

 

Derivadas de uma imagem. Waldemar Cordeiro/ Giorgio Moscati, USP. 1969. Coleção Família Cordeiro. Figura 4: Transformação em zero grau press out put, 47 X 34,5 cm. Figura 5: Transformação em 1 grau press out put, 47 X 34,5 cm. Figura 6: Transformação em 2 grau press out put, 47 X 34, 5 cm.

Figura 7. Gráfico da dinâmica do programador rebelde.

Enquanto as ações de Cindy Sherman sinalizaram a condição de apertadores de teclas engajados, Waldemar Cordeiro assumiu a condição de programador rebelde, uma vez que suas ações interagiram no interior do próprio aparelho, ao inserir intenção artística, no contexto objetivo dos códigos binários.

metaforametria, nestes casos, indica em que medida cada um dos sujeitos, inseridos no contexto do Universo das Imagens Técnicas, pode potencialmente tornar-se um jogador libertário, seja na condição de apertadores de teclas engajados, seja na condição de programadores rebeldes, ou na integração de ambos.

O exercício do olhar a partir de um retângulo, seja por meio dos visores de aparelhos captadores ou projetores de imagens do quadrante zerodimensional, indica a necessidade de três critérios: motivação, consciência e ação. A motivação indica a dinâmica de participar de um jogo. A consciência sinaliza a capacidade de reconhecer-se jogador neste jogo. Por ação compreende-se a capacidade de gerar situações e contextos que possam motivar novos sujeitos a tornarem-se jogadores libertários.

Edgar Morin em suas escritas desenvolvidas no quadrante unidimensional, intitulado Introdução ao pensamento complexo (2007), analisa a necessidade de uma tomada de consciência radical em relação à forma de organização do conhecimento na busca da superação da cegueira instituída pelo modelo de pensamento cartesiano. Esta tomada de consciência, segundo ele, indica a tentativa de religar saberes e sentidos, no desenvolvimento de projetos que integrem sistemas vivos, capazes de se auto-organizar e de autorrefletir. A metaforametria, neste sentido, assume-se enquanto contexto deflagrador de esclarecimentos e possibilidades no que se refere à humanização na produção de imagens presentes no quadrante zerodimensional.

É possível que este diagnóstico ocorra em diferentes espaços formativos, mas uma possibilidade concreta é que se desenvolva no contexto do ensino de arte, ao articular saberes e integrar sujeitos dispostos a romper com estruturas pré-determinadas. Efland (2008), outro integrante da categoria mentes subversivas, indica que tais possibilidades traduzem-se em uma abordagem dos âmbitos individual para o coletivo e do coletivo para o individual. O papel das metáforas, nesse contexto, seria o de estabelecer conexões entre objetos e eventos que, aparentemente, não se relacionam nessa dinâmica. Ao ensino de arte indica-se a responsabilidade de integrar imaginação e criação na produção de sentidos pessoais e culturais.

Notas sobre um laudo de campimetria…

A paciente piscou os olhos e quando os abriu percebeu, que na verdade, a demora do exame, e toda a descrição que o antecedeu, se dão, devido ao ser humano, frente ao Campimetro de Goldman. Aparelhos geradores de imagens técnicas não se comunicam por meio da troca de sentidos, os programas inseridos em seu interior são alheios a estas compreensões. Os diagnósticos computadorizados não refletem sobre a sua condição, não avaliam o contexto no qual estão inseridos, não avaliam a sensibilidade e subjetividade de outros seres por eles analisados.

Neste piscar de olhos, ela percebeu que a demora do exame é parte de uma condição poética, em resposta ao imediatismo cartesiano. Talvez alguns pacientes necessitem retornar outros dias, para que possam continuar a prosa, aprender ou apreender um pouco mais das histórias, quem sabe ler de relance os títulos dos livros de oftalmologia empilhados na prateleira da “sala de filme trash”. Quem sabe retornam para descansar os olhos dos bombardeios de imagens a que todos estão imersos em seu cotidiano. Talvez o exame de campimetria manual, possa ser um foco de resistência capaz de não apenas avaliar o campo visual de um paciente, mas em conjunto, ampliar o olhar no que se refere à condição do sujeito e da sua luta para manter sua condição humana num mundo cada vez mais robótico.

Pronto. O exame acabou.
— Nossa, pensei que fosse demorar mais.
(aliviada)
— Percebi alguns indícios de pressão “fora do normal” em seu olho esquerdo. É bom que você retorne para uma avaliação mais detalhada.
— Nossa… Retornarei, sim.
(aliviada)
— E o resultado?
— Pode esperar na recepção ao lado da porta. Vou redigir as observações e apresentar ao doutor para que ele avalie e emita o laudo.
— Obrigada. Gostei muito da sua avaliação. Ah… Também, gostei muito da conversa.
— Até logo…
— Até logo.

Após alguns minutos a paciente recebeu o seguinte laudo:

A Campimetria de Goldman da paciente, RG: XXXXXX/ 2ª Via DGPC,GO, apresenta isópteras dentro da normalidade, estando a paciente, do ponto de vista campimétrico, apta para trabalho que exija bom Campo Visual”. (10/08/2010)

Finalmente de posse do laudo, a paciente respirou aliviada. Mas no fundo do seu campo metafórico, gostou mesmo foi da conversa. Gostou também dos desenhos da Via Láctea, indicados nos dois mapas (olho esquerdo e olho direito), marcados pelo ser humano que acabara de conhecer.

Desenho da Via Láctea do olho esquerdo.
Desenho da Via Láctea do olho direito.

Referências Bibliográficas

EFLAND, Arthur D. “Imaginação na cognição: o propósito da arte”. Trad.: Leda Guimarães. In: Arte/ Educação Contemporânea – Consonâncias internacionais (Org. Ana Mae Barbosa). São Paulo: Cortez, 2008.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. 2. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

_____. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008.

_____. Jogos. Suplemento Literário OESP – 09/12/1967. Disponível em:
http://www.cisc.org.br/portal/biblioteca/jogos.pdf > Acesso em: 04 fev.

MARTINS, Alice Fátima & SANTOS, Noeli Batista. A Imagem Eva. In Revista Digital do LAV. Ano II – Número 02 – Março 2009. Santa Maria: UFSM. Disp. em <http://www.ufsm.br/lav/>. Acesso em 25 mai. 2009.

MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Trad. Eliane Lisboa. Porto Alegre: Sulina, 2007.

SANTOS, Noeli Batista. 2010. Imagens Técnicas e o ensino de arte: um jogo antropofágico. Mestrado. Dissertação, Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Artes Visuais.

 

* Noeli Batista Santos é bacharel e licenciada em Artes Visuais pela Universidade Federal de Goiás e mestre em Cultura Visual. Professora Assistente na Faculdade de Artes Visuais/UFG, atua nos cursos de Licenciatura em Artes Visuais na modalidade a distância e presencial. Pesquisa contextos de formação de professores mediados pelas TICs e intervenções poético-pedagógicas envolvendo ensino de arte e a produção de imagens técnicas.

 

Ciberespaço atomizado e novos modos de pensar a cibercultura | de Cleomar Rocha

Categorias do Ciberespaço: rumo à atomização

A estrutura de conexões possibilitadas pelos sistemas computacionais recebeu o nome de ciberespaço, como foi batizada por William Gibson em seuNeuromancer, de 1984. Para Gibson, o ciberespaço era uma alucinação consensual, como o definiu. Como alucinação o ciberespaço ensejava a ideia de um espaço criado na mente das pessoas, era assim uma projeção, um local imaginado, e não exatamente um espaço físico, visto que as redes computacionais não configuram um espaço, mas um fluxo de códigos que trafegam em cabos, ar e equipamentos. Nos cabos, no ar, nos equipamentos, existem códigos, e não espaço.

Contudo, a partir da metáfora criada para o termo cibernética, da qual deriva ciberespaço, e a noção de espacialidade sustentada pela palavra [espaço], que recebeu o prefixo [ciber], aliada ao conceito de espaço-informação de Douglas Engelbart no desenvolvimento das interfaces gráficas computacionais ou GUI (Graphic User Interface), criou-se uma concepção de universo paralelo, para o qual os usuários se transportavam ao acessar o ciberespaço. Engelbart, ao desenvolver um modelo de interfaces gráficas, sustentou sua invenção em três conceitos principais, espaço-informação, manipulação direta e duplo virtual. A sua concepção de espacialidade, contudo, se restringia ao espaço simulado pela interface gráfica, e não pelo ciberespaço. Engelbart pensava o espaço bidimensional da interface gráfica da tela dos computadores, com a possibilidade de forja da tridimensionalidade, seja a partir do uso da perspectiva, seja de outro recurso de ilusão óptica. Mas certamente seu empenho se distingue da concepção de que houvesse espaço para além da tela, da interface gráfica.

Entretanto, vários pesquisadores deixaram-se levar pelo senso comum, ajudando a divulgar a ideia de um ciberespaço alheio ao mundo natural, que era acessado pelas interfaces, como se estas fossem uma membrana que separa o mundo natural do ciberespaço.

Para Poster (1995: 20 – 21) uma interface está entre o humano e o maquínico, uma espécie de membrana, dividindo e ao mesmo tempo conectando dois mundos que estão alheios, mas também dependentes um do outro. (apud SANTAELLA, 2003, 91)

Narrativas maravilhosas e fábulas à parte, tentaremos aqui discutir tais concepções, fazendo avançar alguns conceitos, e negar uma perspectiva romantizada e idealizada que constitui uma primeira visada sobre o termo ciberespaço e seus desdobramentos, como a cibercultura. Não se nega, diga-se desde já, a existência desta concepção romântica, mas será preciso tê-la como idealizada, encontrando suas razões de ser, mas deixando-a, em seguida, para fronteiras outras do pensamento.

Se o termo cibernética encontrou sua razão de ser pela comparação que se fez entre a quantidade de informações processadas pelos sistemas computacionais, aproximando-a de um mar de informações – lembremos que o termo deriva deKubernetes, que em grego significa timoneiro, aquele que governa, em referência à condução de um barco em pleno mar -, seu prefixo, ciber, serviu para gerar outras palavras, tendo a maior referência o termo ciberespaço. Se considerarmos que Engelbart criou a interface gráfica a partir de alguns conceitos, dentre os quais o de espaço-informação, que seria tomar o espaço bidimensional da tela não como um conjunto de linhas, mas como um espaço que os elementos das interfaces pudessem ocupar livremente, pode-se inferir que a junção da simulação de espaço das interfaces gráficas e a metáfora de mar, derivada de cibernético, foi o motor para se gerar a ideia de um espaço para além da tela do computador, para onde nosso espírito seguia ao acessarmos os sistemas computacionais. Mais ainda, poderíamos assumir, naquele universo, novos corpos, chamados avatares, nos quais poderíamos ter uma outra vida, talvez uma segunda vida [a rede socialSecond Life se sustenta neste pensamento].

Esta definição de ciberespaço como mundo paralelo encontrou uma série de defensores, que sustentavam que a interface era uma janela para o ciberespaço, ou um lugar onde os sistemas computacionais e humanos se encontravam. As interfaces seriam, nesta concepção, o portal de passagem para o outro mundo, livre de todas as querelas de nossa sociedade. Destituídos de nossa cultura corpórea e social, estaríamos livres para compor uma outra cultura, a cibercultura. Contudo será preciso lembrar que a cultura não é constituída por espaços, mas por pessoas que ocupam os espaços. E sua base é a consciência, além do comportamento. Assim, ainda que fosse de fato outro espaço, ainda assim seríamos nós, com toda a nossa cultura, que estaríamos lá. A cultura é a humana, a mesma em todos os espaços, com as variações de pertencimento, formalidade, espontaneidade, que temos nos vários espaços sociais que ocupamos.

No nível da experiência, nosso corpo próprio recebe estímulos, compondo as sensações, reconhecidas como percepção. O que experienciamos ao acessarmos os sistemas computacionais é o estímulo da cor-luz emitida pelos monitores em suas telas, é o som, são as interfaces físicas que convocam nosso sistema háptico. As informações são atualizadas nas e pelas interfaces, alcançando nossa base sensível, os exteroceptores, compondo nossa experiência. Nossa consciência não deixa o corpo, não nos transportamos para um universo paralelo. Antes disto, aceitamos as regras da ilusão das interfaces, reconhecendo uma simulação da espacialidade tridimensional onde há apenas duas dimensões. Ao aceitarmos esta forja, desejamos crer nela, acatando-a como base da experiência, o que de fato não ultrapassa as noções de representação sígnica, simulação computacional e projeção do eu, em processos de subjetivação que se assemelham a literatura, quando nos reconhecemos em um personagem, ou no cinema, intensificados pela resposta simultânea das ações que executamos. O ciberespaço é ilusório desde a sua concepção. É uma forja auxiliada pelo design de interfaces e pelos textos que o querem um universo paralelo.

Esta concepção de ciberespaço, baseada no paralelismo, encontra duas outras categorias ou concepções: seu atravessamento e sua atomização. O atravessamento recebe o legado das tecnologias tele, de acesso remoto, como o telefone e a televisão. É quando a tarefa a ser realizada não ocorre nas simulações computacionais, mas estas possibilitam acessos remotos, como teleconferência, telepresença e telerrobótica. A telemática sustenta tecnologicamente esta concepção.

A terceira categoria, atomização, situa o ciberespaço não em um mundo paralelo, mas presente no mundo natural, como elementos atômicos. Sensores, câmeras e outros dispositivos identificam elementos do mundo natural, filtrando-os e identificando-os enquanto ações que determinam novas ações de sistema. Movimentos, gestos, cores, localização, posicionamento, voz, fala, ruído, qualquer elemento previamente determinado como acionador do sistema pode ser usado, de modo a atualizar informações virtualizadas em interfaces variadas, seja de entrada seja de saída do sistema. Aqui as interfaces são das três categorias: físicas, perceptivas e cognitivas 1. O ciberespaço, antes de estar para além das interfaces, situa-se para aquém delas, no mesmo espaço usado pelo corpo próprio, o mundo natural.

Cada vez menos é necessário se falar em ciberespaço. Na sala de aula, eu estou em contato físico com os estudantes, mas ao mesmo tempo estou usando uma tela de projeção conectada. Portanto, estamos nos apropriando de elementos que estão absolutamente incorporados àquele ambiente físico e que são coisas que estão no chamado ciberespaço. […] Essas fronteiras deixam de existir. (PALÁCIOS, 2009, 254)

Embora boa parte da cultura ainda se refira ao ciberespaço a partir da categoria do paralelismo, nota-se claramente uma mudança de curso, tanto em concepções teóricas quanto de mercado. Em filmes como MatrixAvatar temos a ideia de migração da mente, que deixa o corpo e assume outro corpo, digital no primeiro caso e biológico, porém artificial, no segundo. E se na primeira categoria, paralelismo, o corpo próprio era elemento obsoleto, relegado a uma função quase banal e dispensável, ele recupera importância na terceira categoria, atomização, sendo o grande responsável pelos acionamentos das interfaces computacionais. Na verdade, no paralelismo, o corpo não era dispensável, mas seus movimentos eram minimizados, com as mãos realizando os movimentos de condução do mouse e acionamento do teclado, enquanto o olhar vasculhava as imagens sintéticas das interfaces gráficas. Com a atomização o corpo ganha espaço e pede passagem, com a incorporação de gestos, voz, movimentos amplos. Para se jogar com o Wii, da Nintendo, o corpo todo é convocado para a ação. O Projeto Natal, da Microsoft segue o mesmo caminho, eliminando a figura do avatar e mantendo o corpo próprio como elemento de jogo. Porém, não se fala mais em entrar no ciberespaço, mas o ciberespaço, enquanto noção de espacialidade tecnológica de acionamentos e interatividade, se acomoda em volta do corpo, observado agora por câmeras e sensores que possibilitam ao sistema identificar deslocamentos, movimentos, gestos, sons, a própria fala. Não é o usuário que entra e navega no ciberespaço, é o ciberespaço que se lança no mundo natural, tornando-se cada vez mais pertencente a este, um elemento dele. Desfaz-se, e tardiamente, o equívoco conceitual de oposição entre real e virtual, e problematiza a definição de interface, visto que não é mais possível sustentar a afirmação de a interface ser um elemento que separa dois mundos, ou mesmo que os une. Não existem dois mundos, apenas um, o que conhecemos. Heim, já em 1993, mostrava o caminho de reconhecimento do ciberespaço, composto de um modelo ou mapa mental – daí o vínculo com a ideia de alucinação consensual de Gibson – e o leiaute da interface gráfica.

O arquivamento magnético não oferece nenhuma pista tridimensional para corpos físicos. Por isto, devemos desenvolver nosso próprio sentido internamente imaginado da topologia dos dados. Esse mapa interior que produzimos mais o layout do programa é o ciberespaço. (HEIM, 1993, 132)

Mas somente com a atomização do ciberespaço a cultura como um todo parece ter de dar razão ao estudioso.

 

Cultura digital, cibercultura e cultura contemporânea

Desde o surgimento da concepção de ciberespaço, e tem naquele momento a primeira categoria, estudiosos tratam de uma cultura própria, a cibercultura.

Este termo [cibercultura] surgiu pra fazer uma separação entre a cultura até então existente e algo que estava emergindo, que era o digital. Nos primeiros artigos sobre a cultura digital era muito comum se usar a expressão real life para se referir ao mundo das coisas sólidas, em contraposição a esse outro mundo, que seria o mundo virtual. (PALÁCIOS, 2009, 253)

A base de sua constituição era, desde o seu surgimento, a oposição à cultura propriamente dita, em clara referência à cultura estabelecida no/com o ciberespaço. Ainda que sua gênese fosse a cultura das mídias (SANTAELLA, 2003) e sua base não fosse o desktop, mas o processador (SANTAELLA, 2003), seu surgimento sustentou a oposição, como afirma Palácios, entre cultura real e cultura “virtual”. Vários estudiosos se debruçaram sobre o tema, ora fazendo ver que a cultura estabelecida não se restringia ao ciberespaço, mas a partir dele, contaminando o corpo social, engendrando-se na cultura, ora restringindo-o àquela ideia de espacialidade cibernética. No mundo de cá, mundo natural, cultura, no mundo de lá, ciberespaço, cibercultura. Haveria a possibilidade nascente de reconstruir a cultura a partir do zero, e pesquisadores como Pierre Lévy (1999) divulgava a boa nova como uma oportunidade preciosa para se reinventar a cultura humana, com vistas a um ambiente colaborativo, constituindo o que ele chamou de inteligência coletiva. O campo das possibilidades era profícuo.

Ocorreu, contudo, que o admirável mundo novo não era completamente novo, porque fora povoado pelos mesmos povos, com suas culturas, já existentes. Identificou-se que a cultura não é a do lugar, mas das pessoas que habitam esse lugar. Em outras palavras, o lugar, em si, não tem cultura, mas as pessoas a fazem. Ainda assim, o alicerce que sustentava a oposição entre real e virtual mostrou-se frágil, verdadeiramente falso. O mesmo Lévy o disse em seu O que é o virtual?(1996), ao reparar que virtual se oporia ao atual, e que ambos, virtual e atual, pertencem ao real. Ao aceitar tal fato, perde-se de perspectiva que o ciberespaço tenha um locus próprio, fora do mundo ou da cultura. Não faz mais sentido falar em cibercultura no contexto de oposição. Ela passa a nominar uma etapa específica da sociedade, uma faceta histórica.

A gente pode empregar como sinônimos cibercultura e cultura digital, que seriam nomes para a cultura contemporânea, marcada a partir da década de 70 do século passado, pelo surgimento da microinformática… (LEMOS, 2009, 136)

Postos deste modo, a cibercultura, nascida de uma oposição, se integra ou se dissolve na cultura contemporânea, nominando não mais algo pontual, mas geral, ainda que mantenha o vínculo tecnológico que a fez surgir. Não nos parecerá estranho, então, que o termo entre em desuso, por absoluta falta de necessidade.

 

Conclusão

Não me parece justo decidir sobre a obsolescência de alguns termos e seus sentidos, visto que isto cabe à cultura linguística, à comunidade que os utiliza. Contudo, parece caber ao observador atento a tarefa de reconhecer variações semânticas, e o sutil deslizar do emprego de determinados termos, na orientação que oscila entre o conceito e a semântica.

Se, semanticamente, os termos ciberespaço e cibercultura surgiram de uma necessidade nominativa específica, é também certo que tais termos sofreram, rapidamente, variações de sentido, como apontadas, perdendo parte de sua especificidade, em alguns casos a totalidade de sua serventia. E se assim o é, antever a obsolescência dos termos já não seria de todo condenável, já que a sua eliminação reacomoda, de modo mais consensual e adequado, os conceitos dos quais derivam.

Em sendo assim, identificamos a tendência de o termo ciberespaço voltar a ter o sentido de sua concepção original, como alucinação consensual ou como a junção de modelo mental e leiaute da interface gráfica, nada mais que isto. Já o termo cibercultura parece não mais suportar o peso do que nominou um dia, sendo paulatinamente substituído por outros mais gerais, como cultura digital, cultura contemporânea, ou até, talvez e apenas, cultura. Conceitualmente atualizamos a ideia de um único mundo e cultura, sabidamente recheados de facetas, tensões, variações e mesmo contradições.

 

Referências

HEIM, Michael. The metaphysic of virtual reality. Oxford University Press, 1993.

LEMOS, André. Entrevista. In SAVAZONI, Rodrigo, COHN, Sérgio (orgs.)Cultura Digital.br. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009. 135-149.

LEVY, Pierre. Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: ed. 34, 1999. (Coleção TRANS)

LEVY, Pierre. O que é o virtual? Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: ed. 34, 1996. (Coleção TRANS)

PALÁCIOS, Marcos. Entrevista. In SAVAZONI, Rodrigo, COHN, Sérgio (orgs.) Cultura Digital.br. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009. 253-261

POSTER, Mark. The second media age. Cambridge, Polity Press, 1995.

ROCHA, Cleomar. Interfaces Computacionais. In Anais do 8º Encontro Internacional de Arte e Tecnologia. Brasília: PPG Arte/IdA/UnB, 2009.

ROCHA, Cleomar. Três concepções de ciberespaço. No prelo. Goiânia, 2010.

ROCHA, Cleomar. Interfaces Computacionais In Anais do 17o Encontro Nacional da ANPAP. Florianópolis: ANPAP, 2008.

SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.
Filmografia

AVATAR. Direção e Roteiro: James Cameron. Produção: James Cameron e Jon Landau. Elenco: Sam Worthington, Zoe Saldana, Sigourney Weaver, Stephen Lang. EUA: Twentieth Century-Fox Film Corporation / Lightstorm Entertainment / Giant Studios, 2009. 1 DVD (162min).

THE MATRIX. Direção e Roteiro: Andy Wachowski e Larry Wachowski. Produção: Joel Silver. Elenco: Laurence Fishburne , Carrie-Anne Moss , Hugo Weaving , Joe Pantoliano, Marcus Chong. EUA: Warner Bros, 1999. 1 DVD (136min)

 

*Cleomar Rocha é pós-doutorando em Estudos Culturais no Programa Avançado em Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ), pós-doutor em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD/PUC-SP) e doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas (FACOM/UFBA). Professor Adjunto do Programa de Pós-graduação em Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás – FAV/UFG.

1 Apresentei e discuti as três categorias de interface durante o pós-doutoramento em Tecnologias da Inteligência e Design Digital, com supervisão da profa. Lucia Santaella. A discussão também foi apresentada em artigos publicados em 2008 e 2009, notadamente no #8.ART – 8o Encontro Internacional de Arte e Tecnologia, realizado em Brasília em 2009, e no 17o Encontro Nacional da ANPAP, realizado em Florianópolis em 2008.

 

Vampiros em (super)visibilidade: um fenômeno cultural em ação | Laura Maria Coutinho* – / – Adriana Moellmann**

“Se o mundo fosse como devia ser, se não houvesse monstros e magia…” (MEYER, 2009) 1

“You think you’re a vampire,” Simon’s mother said, numbly. “You think you drink blood.”
“I do drink blood,” Simon said. “I drink animal blood.”
“But you’re a vegetarian.” His mother looked to be on the verge of tears.
“I was. I’m not now. I can’t be. Blood is what I live on.” Simon’s throat felt tight. “I’ve never hurt anyone. I’d never drink someone’s blood. I’m still the same person. I’m still me.” (CLARE) 2

Em 1993, após assistir ao filme Drácula de Bram Stoker, 3 a surpresa foi tão grande quanto a emoção. O que de início era um filme de terror tornou-se, doravante, o desnudamento de uma figura mitológica, conhecida e reconhecida, construída em literatura e cinematografia, sempre com imagens controversas e diversas. Não havia – como ainda acreditamos não haver – uma personalização absoluta do que representaria o vampiro. No entanto, naquele momento, muito do que ele simbolizava e representava mostrou-se de forma intensa e contundente, levando-nos a questionar o que seriam os vampiros e por que seu simbolismo é tão presente, forte e controverso.

Ao iniciar a pesquisa 4 a partir do filme de Francis Ford Coppola, vários obstáculos apresentaram-se, o que também foi uma surpresa. Afinal, que dificuldades se apresentariam à tentativa de observar mais de perto uma figura tão conhecida e, de certa forma, tão presente no imaginário de diferentes povos e culturas? Eram tantos os filmes sobre vampiros, tanta literatura, música. Conhecê-los mais de perto deveria ser fácil.

Porém, não contávamos com sombras tão densas. Os filmes não estavam visíveis, não foram encontrados em locadoras de vídeo. Para assistir a Nosferatu, 5 de F. W. Murnau, foi preciso recorrer à biblioteca de uma escola de idiomas e ignorar os letreiros em alemão. Dança com vampiros 6 não estava acessível. Fome de viver 7 também não. Os filmes de Bela Lugosi 8 não estavam disponíveis. Os caminhos que havíamos escolhido traçar para contemplar os vampiros, para conseguirmos nos aproximar do Drácula de Bram Stoker, não estavam claros. Foram precisos alguns anos e certa contraposição às sombras – ou talvez um mergulho nelas, portando um pequeno feixe de luz – para entendermos os nossos empecilhos.

Entrevista com o vampiro9 filme baseado no livro de Anne Rice, 10 foi lançado com grande repercussão em 1994. Traz às telas dilemas, questionamentos, problemas morais, filosóficos e éticos da humanidade – como morte, envelhecimento, beleza, além do velho conflito entre o bem e mal –, a partir do encontro de um jornalista e um vampiro. Nele, o vampiro Louis, interpretado por Brad Pitt, conta ao jornalista a sua vida de vampiro, expondo sua força, fraquezas, angústias e violência. Louis apresenta uma figura conhecida hoje, “o vampiro com consciência”,11 aquele que questiona o que é e o modo como existe. Na narrativa de Anne Rice, Louis se contrapõe a Lestat, o vampiro que não mostraria dúvida do que é e de como vive. Com Lestat, Louis e suas entrevistas, a imagem do vampiro aparecia novamente em destaque, um ano após o Drácula de Bram Stoker.

Em 2008, foi lançada mundialmente a versão cinematográfica da saga literária criada por Stephenie Meyer em 2005, Crepúsculo 12. Elaborada a partir de um sonho da autora, em que um vampiro apaixonava-se por uma humana, surgiu a saga composta de quatro livros. Neles, o personagem Edward foi transformado em vampiro como uma alternativa à morte. O vampirismo aparece como a sua possibilidade de viver, não uma renúncia à vida. Parte de uma família que se recusa a sobreviver de sangue humano, ele encontra em Bella, a humana por quem se apaixona, outras possibilidades de recuperar sua própria humanidade. A partir dos livros, surgiram os filmes. Seguido a tudo isso, surge um fenômeno de superexposição. Agora, é possível encontrar os vampiros nos locais mais inusitados e inesperados.

Hoje a imagem do vampiro não se encontra mais nas sombras de um culto cultural restrito a determinada idade, local, interesse. Não temos mais que abrir atalhos em caminhos escondidos para conseguir encontrá-los. Eles se encontram expostos e iluminados. Isto um fenômeno cultural contemporâneo pode proporcionar: a superexposição de uma imagem à luz. Por circunstâncias e elementos que ainda buscamos compreender, uma imagem que já se encontrava presente em sociedade há séculos, que culturalmente nos era conhecida, passa, hoje, a ser supervalorizada, exposta, discutida, comercializada.

No entanto, seja nas sombras de uma figura cult, seja na superexposição iluminada de um acontecimento cultural de massa, a imagem não necessariamente se faz mais clara. A falta de luz ou o seu excesso podem representar, igualmente, uma deturpação da imagem. Tampouco essa forma de superexposição significa que se promova uma atenção, uma melhor contemplação que pudesse levar a uma maior compreensão da imagem, mas apenas pode significar que ela sai das sombras para expor-se no plano do visível.

Segundo Fredric Jameson, em As sementes do tempo 13, cada vez mais pode acontecer de os produtos culturais deslocarem-se da esfera da arte, que se faz pela diferença, para a esfera da massa, que se faz pela identidade. Os artefatos culturais nos quais se incluem os vampiros, hoje, estariam mais próximos dos fenômenos que ocorrem na esfera da massa: proporcionam mais a identificação que a diferença.

O excesso de exposição pode ofuscar a visibilidade de uma imagem. Ao mesmo tempo em que, criada para ser vista, sua exposição pode, muitas vezes, retirar o que lhe é inerente, evidenciando a identificação de aspectos mais gerais de personagens e narrativas em detrimento de sua especificidade e essência. Segundo Hannah Arendt,
…tudo o que vem a público pode ser visto e ouvido por todos e tem a maior divulgação possível. Para nós, a aparência – aquilo que é visto e ouvido pelos outros e por nós mesmos – constitui a realidade. (…) até mesmo as maiores forças da vida íntima – as paixões do coração, os pensamentos da mente, os deleites dos sentidos – vivem uma espécie de existência incerta e obscura, a não ser que, e até que, sejam transformadas, desprivatizadas e desindividualizadas, por assim dizer, de modo a se tornaram adequadas à aparição pública.

(…) A presença de outros que veem o que vemos e ouvem o que ouvimos garante-nos a realidade do mundo e de nós mesmos ...14

O vampiro: símbolo de vida e morte
O vampiro de Drácula de Bram Stoker, o filme, nos conduz à imensa dor da perda. Uma dor tão intensa e profunda que despe quem a sofre da própria humanidade. O Conde Drácula, ao perder tudo o que o constituía como ser humano – seu amor, sua pátria, suas crenças –, abre-se à escuridão do não-ser. Existe, mas não vive. Anda sobre a terra, mas seu coração não bate. A vida não mais o habita. A essência da vida ele precisa adquirir de outra forma, por meio do sangue. Morto em vida e esvaziado de si, o vampiro alimenta-se daquilo que pulsa nas veias do outro. Os vampiros estão mortos em sua perambulação quase sempre noturna. Não têm mais vida. São frios. Não têm alma. Insones, vivem no escuro, espreitam. A essência da vida não mais os compõe, precisando ser adquirida. O calor e a energia vital são usurpados de quem ainda os possui.

Segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, “o sangue é universalmente considerado o veículo da vida. (…) O sangue corresponde, ainda, ao calor, vital e corporal, em oposição à luz, que corresponde ao sopro e ao espírito.15A matéria de que é feita a vida.

Em Drácula de Bram Stoker, a figura do vampiro relaciona-se também com o simbolismo cristão, à contraposição céu/inferno, mas a ela não se reduz. O vampiro seria, sob esse aspecto, uma figura demoníaca que, ao final, se abre à redenção que, no filme, ocorre em uma igreja. Esse cenário parece ressaltar a ação – e esta é o que parece importar ali. A transformação é percebida nos movimentos, a partir dos gestos e da atitude de Drácula em relação à luz, à sombra e aos símbolos presentes no ambiente. Nesse momento, é possível vislumbrar em sua fisionomia o reconhecimento de sua própria dor e o seu desapego à escuridão. É a vida que ele busca sempre, não a morte.

A história de Conde Drácula popularizou o nome, que se tornou um sinônimo de vampiro. Seu local de nascimento, a Transilvânia, a sua casa, tornou-se também a morada de todos os vampiros. Apesar de se tratar de uma lenda que surgiu em local específico – o leste europeu 16-, sua associação com os vampiros é mundial. Drácula, o vampiro, se estendeu a outros locais, outros cenários, outras narrativas.

Essa forma de transposição da lenda e sua perpetuação no mundo real das produções culturais, fez com que, por exemplo, Roddy Doyle compusesse, de maneira instigante, o seu conto Blood.17 O personagem dessa narrativa cresceu na cidade de Drácula e passava pela casa de Bram Stoker todos os dias a caminho da escola. Apesar de haver crescido tão próximo à lenda, ele não se sensibilizava com os vampiros. Dormiu durante o filme Drácula de Bram Stoker por considerá-lo enfadonho. As imagens da narrativa não o sensibilizaram, mas ele não pode evitar que os vampiros invadissem a sua vida cotidiana. Ele não se interessava por histórias, filmes ou livros de vampiros, não se identificava com eles, mas mesmo assim não conseguiu mantê-los fora da sua vida. Apesar de seu desinteresse por esses seres, um dia ele acorda com uma necessidade extrema de beber sangue.

O vampiro e seu simbolismo se deslocam também das muitas narrativas que conhecemos e se propagam para o mundo. Transformam-se em ação, desejos, produtos. Extrapolam a ficção, ultrapassam as barreiras do sonho e ficam à nossa disposição não só em representação, mas em matéria. Estão presentes em produtos comercializados – copos, camisetas, roupas de cama, cadernos, joias. Passam a compor o nosso cotidiano; em reminiscência, trazem aspectos físicos do que representam. Como objetos da memória, afastam-nos do esquecimento e tornam-se cada vez mais presentes a partir das imagens que evocam.

Outro aspecto essencial na jornada do vampiro, nesse amálgama feito de realidade e ficção, é sua estreita associação ao mito do amor romântico. Presente na sociedade ocidental contemporânea de forma arrasadora, ele está na origem da dor do vampiro de Bram Stoker. O amor é também a força redentora, e se apresenta como a escolha de salvação e fator de humanidade aos vampiros nas narrativas atuais. Universal e de grande apelo emocional, o amor romântico também ultrapassa fronteiras.

Esse amor encontra-se personificado, sobretudo, na força das escolhas que os vampiros podem fazer. Seres que, oscilando entre a emoção, o instinto e razão, buscam se constituir mais como humanos do que como monstros. Sob essa perspectiva, podemos dizer que o amor os redime. O amor é o grande desafio a ser conquistado e parte essencial da jornada desses personagens que, como heróis, tornam-se cada vez mais próximos ao seu leitor. O amor é o elo que pode unir vampiros e humanos, trazendo do universo da ficção, forte identificação que alcança a vida real de leitores, sobretudo aqueles oriundos de um público bastante jovem. Mas não somente. A busca da superação de sua condição de vampiro, o anseio por outra realidade menos monstruosa, o seu afastamento da violência de um predador, tudo isso pode se justificar também pela força do amor romântico. Ele está na essência de quase todas as escolhas. É o que torna plausível o desejo de mudança dos vampiros e também de humanos.

O movimento realizado pelo vampiro no filme de Coppola já apontava para esse elemento importante para a composição da imagem atual do vampiro, ou seja, a escolha. Se nem sempre tornar-se um vampiro é uma escolha consciente, a superação da sua condição demoníaca poderia sê-lo. Ele precisaria agir no sentido da sua humanidade, e não contrariamente a ela. Esse é um dos aspectos que o tornaria adequado ao mundo e à sociedade dos homens. É a opção pela humanidade que daria à sua aparência, gestos e atitudes a qualidade necessária para estar em sociedade. Ele não mais seria um monstro incontrolável. Esse aspecto retira da imagem do vampiro muito do extremismo que está contido no seu simbolismo. Se a perda da humanidade foi uma resposta extrema à dor, esse extremismo não mais se apresentaria para o vampiro nas narrativas atuais. Talvez essa seja uma das razões do enorme sucesso dos vampiros de Stephenie Meyer.

Ao vampiro associam-se também outros instintos que compõem o ser humano. Dois deles apresentam-se muito fortemente relacionados: a violência e a sexualidade. Ambos encontram-se largamente discutidos, com maior ou menor detalhamento, não somente nos telejornais, em casa ou na escola, mas sim, e com muita ênfase, nas narrativas de ficção. Expressam condições passíveis de serem traduzidas em imagens de grande impacto visual e sonoro, sobretudo no cinema e na televisão. Comumente, violência e sexualidade andam juntas – essa combinação pode proporcionar uma associação dessas duas expressões no imaginário contemporâneo. O vampiro traz, desde sempre, a violência e o sexo nas suas representações. Portanto, é emblemático que uma sociedade que valoriza o controle dos instintos, sobretudo pelo comportamento civilizado, instituído e regulamentado, tenha como importante fenômeno atual – transformado, em alguns momentos, em grande espetáculo de massa e de mídia – uma manifestação cultural assentada em vampiros que, como heróis, tentam superar e controlar esses dois instintos básicos em nome do amor, da humanidade e da possível salvação de sua alma.

Essa trajetória do vampiro rumo à conquista de sua humanidade assemelha-se à jornada do herói, conforme descreve Joseph Campbel em O mito do herói.18Depois de viver na inconsciência de sua verdadeira essência, o herói passa pela tomada de consciência de sua própria condição e, daí, para a realização de seu potencial.

Na jornada dos heróis atuais, encontram-se presentes a busca de certa adequação ao mundo moderno e a aceitação das diferenças. Aqui a propagação na literatura e no cinema dos vampiros adolescentes fortalece o simbolismo. Dessa forma, os vampiros presentes nas narrativas atuais teriam uma escolha que estava ausente em Drácula. A escolha de superar os instintos, ou de pelo menos aparentar que o fazem. E assim nos aparecem os vampiros hoje: seres humanos que não tiveram outra escolha senão se tornarem o que são. Mas eles são também criaturas que não se conformam com a sua condição. Parece não estarem dispostos a se tornar apenas mais um clichê de filme de terror. Possuem escolhas e as exercem. Lutam contra sua natureza e instintos predadores para reconquistarem a humanidade perdida.

Outros elementos e simbolismos, propostos nas narrativas dos autores mais atuais, passam a compor a imagem do vampiro. Que, nessas histórias, eles apareçam cada vez mais novos, pode colocar em foco o poder e a importância de escolhas cada vez mais precoces. Longe da imagem de um predador ancião sem consciência, os vampiros hoje representam a possibilidade de tornarem-se o que escolherem, sugerindo o mesmo para um mundo no qual a humanidade encontra-se cada vez mais diluída, contraditória e sem saída. Talvez por isso a importância de uma reflexão sobre o deslocamento das narrativas sobre vampiros que visam públicos mais próximos da adolescência – momento essencial de escolha da construção da própria individualidade.

Os vampiros presentes nessas narrativas são adolescentes que, para estarem em sociedade, precisam mudar o sentido do que significa ser vampiro. A etimologia da palavra adolescente ressalta um dos aspectos da atração do simbolismo do vampiro para essa época da vida: originada do latim adoléscens, significa aquele que cresce, engrossa, aumenta. Aquele que se torna. Nas narrativas ficcionais atuais, o personagem que não sabe o que e quem é descobre sua verdadeira vocação, sua essência na época da adolescência. Criado em sociedade, o adolescente um dia descobre que não faz parte dela como imaginava. Descobre em si outras potencialidades, possibilidades e aptidões. Sua vida até então poderia ter sido como um ensaio, e o que virá a seguir, após a descoberta, será a sua vida.

 

A adequação e a aparência
Ao mesmo tempo em que a visibilidade confere ao vampiro seu lugar no mundo, ela lhe retira a força de seu simbolismo. As paixões, a dor da perda, o extremo que ele simboliza precisam ser domados e transformados para que ele se apresente adequadamente em sociedade. Simon, na epígrafe apresentada no início deste texto, explica para a mãe que, apesar de ter se tornado um vampiro, ele continua o mesmo. Morreu, mas ainda existe. Continua a ir à escola, a ensaiar com a banda de que faz parte, a divertir-se com os amigos. O que ele é não interfere no que ele aparenta ser em sociedade. A sua sede de sangue ou as mudanças por que passa são invisíveis aos outros. E para a sociedade dos homens, cada vez mais, é o visível que importa, não necessariamente a essência.

Os vampiros do seriado True Blood, exibido pela TV HBO,19 encontraram na criação do sangue sintético a camuflagem de civilidade que precisavam para expor ao mundo outro comportamento; com a possibilidade de se alimentaram artificialmente, sua necessidade de sobrevivência e sua condição de predadores do ser humano poderiam se transformar. No entanto, longe da visibilidade social, eles continuam sendo o que sempre foram; agem como antes de “saírem do caixão” e revelarem ao mundo o que são: predadores da humanidade.

Hannah Arendt (2000) contrapõe a sociedade moderna à grega-clássica com o seguinte aspecto: Na Grécia, ser cidadão significava agir. Na sociedade contemporânea, diferentemente, cabe ao cidadão se comportar. O comportamento é a sua ação em sociedade. O comportamento pode se configurar como uma forma de adequar-se às exigências sociais. Os vampiros, figuras mitológicas e de simbolismo intenso, não escapariam a essa exigência.

O simbolismo do vampiro se diferencia e se amplia no livro Crepúsculo por um aspecto significativo da história: a humana opta por ser vampira. Bella não sofre o destino dos outros vampiros da sua nova família. Ela não passa pela inevitabilidade da transformação. Ela tem uma escolha. Nem sempre na adolescência é possível ter a escolha. Bella tem essa possibilidade e, para o adolescente, essa é uma questão essencial. É a existência de uma opção. É a possibilidade de escolher seu futuro e quem deseja ser. É encontrar um local de existência em que haja adequação, felicidade e novas possibilidades. Assim, o vampirismo passa a ser não só um destino inevitável e cruel, de perda e dor, mas uma escolha por um modo de ser e por novas possibilidades de sobrevivência.

A superexposição dessa história traz ao foco da questão outras imagens que estão próximas ou têm alguma associação com os vampiros. Assim, com os vampiros – agora mais adolescentes, mesmo que centenários – e a sua grande exploração cultural e comercial, surgiram outras obras de ficção baseadas em figuras sobrenaturais. Os vampiros invadiram o mundo consciente, e com eles vieram os lobisomens, os transformadores, os fantasmas, as fadas, os nefilins, os anjos caídos. São adolescentes, presentes em sagas literárias que contam, em inúmeros livros, a jornada de heróis de 17 anos que precisam escolher o que querem se tornar e o que fazer, com o que são e com suas próprias qualidades.

A ampliação desse universo e a sua discussão por meio de obras literárias e cinematográficas sugerem narrativas que dialogam entre si e trazem essa conversa para o mundo da produção cultural. Os personagens, as circunstâncias em que vivem, o que têm à sua disposição não estão fechados em si. O sangue sintético deTrue Blood pode representar uma possibilidade para os vampiros de outras narrativas 20 . O diálogo se expande e, assim, o simbolismo tende a ampliar-se.

Todos esses símbolos já estavam presentes – no mundo, no chamado consciente coletivo, nos livros, pinturas, filmes, revistas em quadrinhos. Nas músicas. Na imaginação. No universo mitológico. O advento desse fenômeno de larga escala conferiu-lhes, no entanto, maior destaque. Colocou-os no centro de discussões, da paixão dos fãs e também como objetos de rejeição para aqueles que os consideram apenas como mais um modismo de qualidade duvidosa e movido a milhões de dólares.

 

A superexposição
Um fenômeno cultural traz consigo inúmeras implicações. Dentre elas, talvez a mais importante, no caso em tela, seja justamente aquela que escapa à maioria das visões mais superficiais e busca assentar-se em um olhar atencioso. O olhar atento implica abrir os olhos encarando o que vemos nos múltiplos prismas por meio dos quais se apresentam. Abrir os olhos para tentar enxergar além da superexposição. Olhar a imagem e atentar para o que ela deseja nos dizer, sem o a priori dos rótulos.
Jan Masschelein, em seu artigo E-ducando o olhar: a necessidade de uma pedagogia pobre, fortemente inspirado em Walter Benjamim, ressalta o que seria essa abertura do olhar:
Abrir nossos olhos é ver aquilo que é evidente; trata-se, como eu diria, de estar ou tornar-se atento ou expor-se. Caminhar pela estrada e copiar o texto são maneiras de explorar e relacionar-se com o presente, que são, acima de tudo, e-ducativas (…) Eles constituem um tipo de prática de pesquisa que envolve estar atento, que é aberta para o mundo, exposta (ao texto) para que ele possa se apresentar a nós de forma que nos comande. Esse comando não é o poder de um tribunal, não é a imposição de uma lei ou princípio (que supostamente deveríamos reconhecer ou impor a nós mesmos), mas sim a manifestação de uma força que nos põe em movimento, e assim abre o caminho. Ela não nos direciona, não nos leva à terra prometida, mas nos impulsiona.21

Olhar atentamente a imagem do vampiro hoje é deixá-la nos conduzir e contemplar o que ela evoca. É ter o olhar vazio para conseguir enxergá-la para além da moldura das ideias preconcebidas, do preconceito e dos modismos. É perceber como certo movimento de vida criou-se ao redor dessas narrativas, ofuscando muitas vezes o que elas próprias desejam expressar. É superar um pouco das barreiras criadas pelas classificações de idade e espaço nas obras literárias e cinematográficas. É tentar não ir simplesmente contra o que prevalece, mas buscar novas significações para velhos gestos. É buscar compreender como a imagem se propaga para além do seu direcionamento inicial e se faz presente de muitas formas. Crepúsculo é, por exemplo, uma história classificada como juvenil, mas que não se restringe hoje apenas ao público jovem. Restringi-la é uma forma de não abrir os olhos, de considerar suas possibilidades expressivas em um plano muito superficial.

As leituras, os visionamentos, as pesquisas que realizamos são formas de conhecimento de nós mesmos e do mundo em que vivemos. Elas não se configuram apenas num ambiente acadêmico. A pesquisa de fenômenos culturais não se limita às obras a que se refere. Elas são o nosso ponto de partida, o impulso. Elas conduzem-nos, como se referiu Messchelein acima. A partir delas nos movimentamos. O que traz esse impulso, o que ocasiona esse movimento é o que constitui essa pesquisa. Ela se constitui de muitos elementos, um verdadeiro caleidoscópio, feito para ser visto por um olhar atento e alegórico.

Walter Benjamim destacou as possibilidades de fazer emergir novas percepções existentes nesses entremeios de histórias, signos, símbolos, sentidos, significados, objetos de que se constitui a alegoria. Para o autor, a alegoria “está mais tenazmente radicada onde a caducidade e o eterno se chocam mais fortemente”22. O que é perecível e o que permanece juntam-se para nos trazerem outros significados; buscam o que é presente e o sintetiza com o passado, o que foi e o que era, e, ainda, o que poderá a vir ser. As possibilidades de cada imagem, em alegoria, expandem-se e se ampliam a partir de uma obra. Mas não se limitam a ela. Instalam-se no mundo, criam novos significados e novos simbolismos.

Dessa forma, o olhar atento também quer conseguir outro intento: superar preconceitos. Superar as limitações que os conceitos fechados nos trazem. “Os conceitos são roupas de confecção que desindividualizam conhecimentos vividos. Para cada conceito há uma gaveta no móvel das categorias. O conceito é um pensamento morto, já que é, por definição, pensamento classificado” (BACHELARD, 1993)23. Se as alegorias ampliam as possibilidades do que nelas está figurado, o pensamento morto não tem nelas um lugar cativo. Só os conceitos vivificados podem participar desse processo secular de fabricação estética e política de imagens e narrativas que proporcionam encantamento – e estranhamentos – no universo humano como parte da vida privada e social.

As narrativas de ficção se ampliam nas alegorias que apresentam e instalam-se no mundo, seja no mundo material, no das ideias, no dos sonhos, no da imaginação, no dos produtos culturais 24. A linha de separação entre eles torna-se cada vez menos visível. Olhar as narrativas que se apresentam ao mundo e acolher o que elas nos trazem cria novas possibilidades de compreensão do próprio mundo. Ultrapassa a ficção e transforma a realidade.
O inferno dos vivos não é algo que será: se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo e abrir espaço. (CALVINO, 1990)25

 
*Laura Maria Coutinho é graduada em Audiovisual: Cinema, Rádio e Televisão e mestre em Educação pela Universidade de Brasília; doutora em Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte pela Universidade de Campinas. Professora da Faculdade de Educação/UnB, atua na extensão, graduação e pós-graduação.

** Adriana Moellmann é graduada em História, mestre em Educação pela UnB e doutoranda pela Faculdade de Educação da Universidade de Brasília – UnB. Seu projeto de pesquisa, intitulado “Amar mais as Sombras que os Corpos: imagens e sons da ficção e da realidade”, tem orientação da Prof. Dra. Laura Maria Coutinho.

 

 

 

1 MEYER, Stephenie. Eclipse. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2009, p. 425.

2 Trecho do livro City of fallen angels, de Cassandra Clare, com publicação prevista para abril de 2011. A citação consta do site dedicado à saga de que faz parte o livro: www.imortalinstruments.com. Acesso em 14/10/2010. Tradução livre: “Você acha que é um vampiro”, disse a mãe de Simon, meio entorpecida. “Você acha que bebe sangue”. “Eu bebo sangue,” disse Simon. “Eu bebo o sangue de animais.” “Mas você é vegetariano.” A mãe de Simon parecia estar à beira das lágrimas. “Eu era. Não sou mais. Não posso ser. Agora eu vivo de sangue.” Simon sentiu sua garganta apertar. “Eu nunca machucaria ninguém. Eu nunca beberia o sangue de uma pessoa. Eu continuo a ser a mesma pessoa. Eu ainda sou eu.”.

3 Drácula de Bram Stoker (Dracula). De Francis Ford Coppola, EUA, 1992. Baseado no livro Drácula, de Bram Stoker (São Paulo: Martin Claret, 2002).

4 Essa pesquisa com o título Revista, Televisão, Cinema: a imagem do vampiro, realizada por Adriana Moellmann e Paula Christina Miranda Rêgo, à época alunas de graduação em História, foi desenvolvida no espaço da disciplina “História das Religiões” – Prof. Victor Leonardi – Departamento de História/UnB/1993.

5 Nosferatu (Nosferatu, eine Symphonie des Grauens). De F. W. Murnau, Alemanha, 1922. Werner Herzorg filmou uma versão do filme – Nosferatu, o vampiro da noite (Nosferatu: Phantom der Nacht) em 1979.

6 Dança com vampiros (The fearless vampire hillers). De Roman Polanski, Inglaterra, 1967.

7 Fome de viver (The hunger). De Tony Scott, EUA/Inglaterra, 1983.

8 Ator austro-húngaro (atual Romênia), famoso por interpretar vampiros no cinema. Um deles foi o próprio Conde em Drácula (Dracula), de Tody Browning, EUA, 1931. A banda inglesa Bauhaus o tem como tema de uma de suas músicas, Bela Lugosi’s dead. Esta música é o tema de abertura do filmeFome de viver, em uma cena incrivelmente impactante com Catherine Deneuve e David Bowie.

9 Entrevista com o vampiro (Interview with the vampire: The vampire chronicles). De Neil Jordan, EUA, 1994.

10 Escrito em 1976, Entrevista com o vampiro – na edição brasileira, pela editora Rocco, com tradução de Clarice Lispector –, inicia a série que apresentou ainda O vampiro LestatA rainha dos condenados.

11 A expressão refere-se aos vampiros que questionam o que são. Insatisfeitos com o seu destino, tentam viver de forma diferenciada. A expressão é usada, comumente, de forma depreciativa, como se a aquisição de uma consciência fosse contrária à natureza do vampiro. Alguns vampiros trazem fortemente essa característica. Além de Edward, de Crepúsculo, há Stefan, da série de livrosDiários do Vampiro (L. J. Smith, Galera Record, 2009) e da série de TV sob o mesmo nome (Vampire diaries, EUA, Warner, 2009). Aqui também há a contraposição, como ocorre em Entrevista com o vampiro: contrariamente a Stefan, seu irmão, Damon, sustenta a imagem do vampiro como tradicionalmente a conhecemos: violenta e sem escrúpulos – pelo menos aparentemente.

12 MEYER, Stephenie. Crepúsculo. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2008.

13 JAMESON, Fredric. As sementes do tempo. São Paulo: Ática, 1997.

14 ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, pp. 60/61.

15 CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. O dicionário dos símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1991, pp. 800.

16 De acordo com CHEVALIER & GHEERBRANT, 1991, p. 930.

17 DOYLE, Roddy. Blood. In: Stories: All-new tales. Gaiman, Neil & Al Sarrantonio (org.). Estados Unidos: HarperCollinsPublishers, 2010, pp. 5 a 14.

18 CAMPBELL, Joseph. O poder do mito (com Bill Moyers). São Paulo: Palas Athena, 2006.

19 True Blood. EUA, 2008. Série de TV criada e produzida por Alan Ball.

20 Assim acontece com Jane Jameson, vampira recém-criada no livro de Molly Harper, Nice Girls Don`t have fangs (EUA, Pocket Books, 2009). Os livros da série trazem vários elementos de outras histórias da literatura, numa referência constante, que se possibilita ao leitor o diálogo com outras narrativas.

21 MASSCHELEIN, Jan. E-ducando o Olhar: a necessidade de uma pedagogia pobre. In Dossiê Cinema e Educação – Educação & Realidade. Porto Alegre, 2008 v. 33, p. 39.

22 BENJAMIN, Walter. A origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 243.

23 BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 88 (Coleção Tópicos).

24 Desde o surgimento do fenômeno Crepúsculo, novos vampiros e seres sobrenaturais surgiram em sagas literárias, algumas já com previsão de serem adaptadas para o cinema. Essa afirmação não exclui a existência de inúmeras séries anteriores ao fenômeno. É importante reconhecer a invasão de novas séries no mercado literário desde 2005. Um exemplo foi o lançamento, em 2009, da série de televisão norte-americana Vampire diaries, produzida pela CW a partir da saga homônima escrita por L. J. Smith em 1991 e em 2009 houve o lançamento, pela autora, de um novo livro da saga, dezesseis anos após o primeiro. No Brasil, o fenômeno Crepúsculo ocasionou o maior número de tradução de livros sobre vampiros que até 2009 só eram encontrados em inglês. Algumas das sagas vampirescas atuais são: os livros de Sookie Steakhouse, que deram origem à série de TV True Blood, escritos por Charlaine Harris (2001, 10 livros); a saga Vampire academy, da autora Richelle Mead (2007, 5 livros, com lançamento previsto nos cinemas em 2013); House of night saga, escrita por P.C e Kristin Cast (2007, 7 livros – as autoras são mãe e filha, respectivamente – P.C. convidou a filha a escreverem juntas para poder adaptar seus livros à uma “linguagem mais adolescente”); Mortal instruments, de Cassandra Clare (2003, 3 livros, com previsão para chegar aos cinemas em 2012); Wicked lovely, de Melissa Marr (2009, 3 livros); Cirque du freak, a Saga de Darren Shan (2000, 12 livros e um filme), de Darren Shan; The Immortals, de Alison Noel (2009, 3 livros); os livros de Jane Jameson, de Molly Harper (2009, 3 livros); Fallen, de Lauren Kate (2010, 2 livros); Hush hush, de Becca Fitzpatrick (2009, 2 livros). Apesar de longa, esta lista está longe de abarcar sequer uma pequena porcentagem das séries hoje à disposição do leitor e espectador. No entanto, é importante destacar também como as sagas cresceram rapidamente, e tiveram vários livros lançados em curto espaço de tempo. Dos citados, apenas Cirque du freak, Jane Jameson e Wicked lovely não têm nenhum de seus livros traduzidos.Cirque du freakJane Jameson são sagas já encerradas, além de Crepúsculo; todas as outras continuam em andamento, com novos livros previstos para 2010/2011.

25 CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 150.

 

Humano-Pós-Humano: Flagelos e perspectivas de um ser em metamorfose | de Alexandre Quaresma

Introdução

Prezados leitores da Z,

O objetivo primeiro deste artigo é ajudar a fomentar o debate sobre o instigante e notável tema hora em tela (pós-humano), juntamente com suas indissolúveis implicações socioculturais, no sentido de propor uma reflexão mais aprofundada acerca da matéria, bem como trazer à baila as perpectivas e inquietações que surgem toda vez que o termo pós-humano é pronunciado como vetor de novas significações para os acontecimentos da pós-modernidade. Nesse sentido, não desejo apresentar verdades absolutas sobre o assunto analisado, mas sim ampliar os horizontes de debate, especialmente no que tange nossa essência humana que, junto a esses mesmos fenômenos, poderia encontrar-se ameaçada. Por fim e em última análise, trata-se pura e simplesmente de tentarmos responder à importantíssima e mais seminal pergunta que sempre nos acompanhou desde que existimos: Quem somos nós?
1. Deslumbramento, incerteza e responsabilidade

Vivemos um momento ímpar de deslumbramento e incerteza. Deslumbramento diante das possibilidades bionanotecnocientíficas que se abrem diante de nós, e incerteza quanto ao potencial ambíguo dessas mesmas possibilidades. Esse exacerbado desenvolvimento se dá como continuidade de um longuíssimo processo de domínio, subjugação e exploração do mundo e da natureza à nossa volta, culminando hoje com o determinismo tecnológico que pode ser identificado em tudo que realizamos no mundo desde a aurora imemorial dos tempos na Terra.
Recursivamente, perpetuamos através dos tempos uma dinâmica singular de extrema complexidade: criamos a cultura que nos cria, cultura essa que criamos ao sermos criados por ela, continuamente. Até aí, seria óbvio. Todavia essa dinâmica intensifica-se de modo exponencial nos últimos duzentos, e mais especificamente nos últimos cinquenta anos. Esse processo sociocultural torna-se relevante justamente quando essa velocidade fenomenal ultrapassa nossa capacidade de refletir sobre esse mesmo e recursivo imprinting tecnicista que determina não só a cultura, mas também o modo de enxergarmos e pensarmos o mundo; ou, devido à dispendiosa e célere ascensão de tais práticas, o modo de não conseguirmos fazê-lo.

De fato, e isto é notório e sabido, essa dinâmica de extrema importância para a consubstancialização da cultura foge totalmente de nosso controle. Alguns – e eu não me deterei em enumerar as suas possíveis motivações – acreditam que controlar ou influenciar essa dinâmica não nos compete, pois creem em uma espécie improvável de intenção ‘consciente’ que poderia estar por trás de tais fenômenos. Outros, bastante envolvidos no próprio fomento prático desses mesmos fenômenos e viciados nessas relações, pregam uma espécie igualmente improvável de legalidade moral fundamentadora, no mínimo questionável, na qual – em tese – o próprio fenômeno do avanço e do desenvolvimento seria responsável por tudo de valoroso, valioso e desejável em termos de progresso para a humanidade, reclamando para sua causa o controle da ‘locomotiva’ da história, tornando-se assim alvo e objetivo de toda a civilização moderna e pós-moderna. Aqui há uma armadilha significativamente perigosa: ambas as concepções apresentadas pretendem uma ingerência descabida, especialmente se considerarmos nossa ampla parcela de responsabilidade. Além disso, trazem um distanciamento e descomprometimento ético irreal e improcedente com a contrução da realidade, juntamente a um olhar equivocado e prepotente de assenhoramento, próprio do controle que sempre – mesmo diante da vida – vê e concebe tudo como ‘coisa’.

Hans Jonas é claro quanto a isto em seu livro O princípio responsabilidade – Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica:

Creio que certas transformações em nossas capacidades acarretaram uma mudança na natureza do agir humano. E, já que a ética tem a ver com o agir, a consequência lógica disso é que a natureza modificada do agir humano também impõe uma modificação na ética (JONAS 2006:29).

A natureza como uma responsabilidade humana é seguramente um novum sobre o qual uma nova teoria ética deve ser pensada (JONAS 2006:39).

Questões que nunca foram antes objeto de legislação ingressam no circuito das leis que a ‘cidade’ global tem de formular, para que possa existir um mundo para as próximas gerações de homens (JONAS 2006:44).

De certo que as antigas prescrições da ética ‘do próximo’ – as prescrições da justiça, da misericórdia, da honradez etc. – ainda são válidas, em sua imediaticidade íntima, para a esfera mais próxima, cotidiana, da interação humana. Mas essa esfera torna-se ensombrecida pelo crescente domínio do fazer coletivo, no qual ator, ação e efeito não são mais os mesmos da esfera próxima. Isso impõe à ética, pela enormidade de suas forças, uma nova dimensão, nunca antes sonhada, de responsabilidade (JONAS 2006:39).

Essa forma mais responsável, por assim dizer, de conceber o mundo à nossa volta e estabelecer relações com ele, que esse filósofo alemão nos propõe, traz uma intimidade com o fato em si (pós-humano) muito mais legítima, tendo em vista que tal fenômeno não se consolida aleatoriamente por si, mas depende, em última análise, de nossa participação direta – mesmo que involuntária e inconsciente – para poder vir às vias de fato e acontecer no mundo do real, o que por sua própria força configura nosso vínculo sólido de responsabilidade para com o fenômeno.

Assim – mesmo que à primeira vista imaginemo-nos inaptos, impotentes e até mesmo desvinculados no que tange influenciar tais acontecimentos; seja pela velocidade que estes acontecimentos venham a apresentar ou seja pela complexidade que realmente tenham por ultrapassarem as gerações, suplantando as perspectivas temporais individuais através da própria história –, podemos então postular: não é possível esquivarmo-nos de nossa participação direta e responsável em tais processos e fenômenos que dizem tanto a respeito de nós mesmos.

Jürgen Habermas em seu livro O futuro da natureza humana é convergente:

Tememos, não sem razão, que surja uma densa corrente de ações entre as gerações, pela qual ninguém poderá ser responsabilizado, já que ela transpassa de forma unilateral e na direção vertical as redes de interação contemporâneas (HABERMAS 2007:02).

Nesse sentido, enquanto escrevo este artigo, e enquanto você, prezado leitor e internauta, o lê, tal dinâmica tecnicista determinante desse imprinting segue sempre adiante, independentemente de nossa capacidade prática de refletir sobre ela, e os conflitos assim não tardam em aparecer. O primeiro deles, sem dúvida, é o descontrole do controle.

2. Um controle descontrolado

Hoje vivemos uma profunda angústia que tem sua origem no descontrole do controle tecnicista, controle esse perpetuado por nossa civilização e que agora nos ameaça cruzando todas as barreiras sólidas e até então estabelecidas no que diz respeito à nossa própria humanidade. E, esse sentimento desconfortável e perturbador é bastante bem fundado tendo sua origem em nossas próprias ações no mundo a nosso redor. Estamos num tempo singular chamado pós-modernidade, e esse nos apresenta agora impositivamente seu filho mais pródigo, fecundo e viril: o pós-humano. O pós-humano filho do humano nasce da impotência que experimentamos ao nos confrontarmos com nossas próprias e desmedidas capacidades bionanotecnocientíficas de realização, potencializadas. De fato, somos capazes de replicar animais, modificar a vida no nível biomolecular através das nanotecnociências e do ‘bioengenheiramento’, transformá-la, reconfigurá-la, misturá-la e até mesmo fundi-la a outras formas vivas, mas não somos ainda capazes de mensurar os possíveis impactos que isso gerará em nossa cultura e em nossa própria espécie. Novas tecnologias moderníssimas como a clonagem, a transgenia, as nanotecnologias, a genômica entre muitas outras, surgem ininterruptamente, mas velhos problemas sociais como a fome e a miséria continuam a nos atormentar desafiando nossa capacidade bioética, política e criativa. Todavia, não nos iludamos: todos esses avanços tecnocientíficos estão atrelados indissoluvelmente ao capital financeiro internacional que é necessário para seu fomento e desenvolvimento, e por isso muitas outras ações importantes como combate à desigualdade social, por exemplo, são deixadas de lado, pois o capital financeiro só se ocupa de si, sua concentração, seu aumento e sua multiplicação. Ou seja, além da dinâmica célere e aparentemente descontrolada que opera tais mudanças, existe ainda um certo interesse por parte destes mesmos grupos elitistas que fomentam tais avanços para que todo o processo siga sempre assim descontrolado, tentando tornar qualquer especulação a respeito de riscos e impactos negativos em meras projeções de lunáticos e paranoicos tecnofóbicos e inconsequentes. Ou seja, desimportantes.

Assim sendo, e independentemente de uma pretensa crítica social, é facílimo sentirmos a manifestação desse sentimento de angústia como algo pertinente, e pressentirmos a presença de uma série de conflitos e crises bioéticos que vão se acumulando em nossos horizontes futuros, cujo enfrentamento somos desafiados a assumir sob pena de por a perder a própria aventura humana na Terra, inviabilizando nossa permanência enquanto espécie, destruindo o meio ambiente e suprimindo, além disso, as possibilidades e oportunidades potenciais das futuras gerações.

Neste contexto, o fenômeno pós-humano surge como signo indicativo de transformação a partir da soma e convergência de diversos fatores socioculturais distintos e confluentes dentro de um mesmo momentuum, e assume relevância especial para nossa análise reflexiva neste artigo, pois é algo que se dá na prática involuntária e independentemente de nossa vontade e consciência objetiva, fugindo assim, talvez irreversivelmente, de nosso controle como fenômeno intersubjetivo e difuso. Um destes fatores mais eminentes na atualidade é a possibilidade bastante concreta de nos degenerarmos enquanto espécie distinta das demais, e a possibilidade no mínimo aterradora de nos fundirmos às nossas próprias criações: as máquinas. Seríamos então simbiontes: meio-maquínicos-meio-orgânicos.
Quanto a isto, Joël de Rosnay, em seu livro O homem simbiótico – Perspectivas para o terceiro milênio, informa-nos o seguinte:

...o simbiotente e sua vida trepidante podem aparecer como uma excrecência parasitária específica ao mundo industrializado, uma espécie de câncer das sociedades desenvolvidas, drenando em seu proveito fluxos cada vez mais densos de energia, informação e materiais (ROSNAY, 1997:22).

Certo, esta fusão com as máquinas já está acontecendo pois somos dependentes e mediados por elas em quase tudo que fazemos em nossas vidas cotidianas, e atualmente não conseguimos nos relacionar com a realidade senão através delas. Todavia, a intrusividade de próteses mecânicas e informacionais, ou seja, a incorporação indiscriminada dessas próteses no organismo – considerando incorporação como tornar normal e aceito incluir no corpo tais suplementos artificiais – já é uma realidade e aponta para uma exponencialização tão fenomenal, que ameaça abalar as estruturas de nosso pensamento habitual a respeito do que significa ser humano.

Eis aqui, coloquialmente, o “x” da questão: o humano está em metamorfose. Os parâmetros e as contingências que garantiam essas certezas ontogênicas, antes tão sólidas e estáveis, estão se rompendo. Não é mais possível dizer com precisão se é natural ou não clonar células e ‘fabricar’ biomolecularmente órgãos suplementares, se já cultivamos órgãos em cavidades toráxicas de porcos e vacas para, posteriormente, reintroduzi-los em corpos humanos, e ainda se todo esse processo poderia ser considerado humano ou não. Da mesma maneira, não sabemos mais diferenciar nossos olhos de nossas lentes de contacto ou óculos, pois já os incorporamos à nossa fisiologia e à nossa cultura como algo natural, e, em breve possivelmente, não reconheceremos mais a diferença entre nossos cérebros e nossas máquinas computadoras hiperinteligentes conectados a eles.

3. O humano-pós-humano

O pós-humano é ainda, em diversos sentidos, também humano. Mesmo que transformado em outro tipo de entidade cujas influências externas sobrepugem e transcendam os parâmetros que culturalmente foram estabelecidos para determinar e conceber o humano. Além disso, nossa civilização pós-moderna – de um modo ou de outro – é diretamente responsável por essa desmedida potencialização dos dilemas e crises do humano. O desencantamento com o mundo e com a vida que experimentamos sob a força das bionanotecnociências, a desmitificação da natureza e até de Deus, a tecnicização, o determinismo tecnológico extremado são exemplos claros desse mal-estar e dessa inquietação angustiosa que nos deixa perplexos e nos impulsiona adiante, onde humano e não-humano se fundem e se confundem, e se constituem enquanto representação simbólica nova, já que o pós-humano é em todos os sentidos: inaugurador e neoparadigmático.

Francis Fukuyama em seu livro Nosso futuro pós-humano não tem dúvidas quanto à nossa argumentação e afirma:

Poderíamos assim emergir do outro lado de uma grande linha divisória entre história humana e pós-humana sem nem mesmo perceber que o divisor de águas fora rompido porque teríamos sido cegos ao que era essa essência (FUKUYAMA 2003:111).

Quanto à definição do termo pós-humano, enquanto vetor de novas significações das consequências da pós-modernidade, a professora Lucia Santaella, em seu livro Cultura e artes do pós-humano, cita Robert Pepperell (1995), elencando os três sentidos em que ele emprega a expressão pós-humano como referência:

…em primeiro lugar, para marcar o fim do período de desenvolvimento social conhecido como humanismo, de modo que pós-humano vem a significar ‘depois do humanismo’; em segundo lugar, a expressão sinaliza que nossa visão do que constitui o humano está passando por profundas transformações, o que significa sermos humanos hoje não é mais pensado da mesma maneira em que o era anteriormente; em terceiro lugar, ‘pós-humano’ refere-se a uma convergência geral dos organismos com as tecnologias até o ponto de tornarem-se indistinguíveis (SANTAELLA 2009:109-110)

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4. A última tentação

A última tentação humana é o desejo incontrolável de superar a morte. Seja através de técnicas improváveis de suportes maquínicos, que em tese poderiam amparar nossa consciência num ambiente não-orgânico que certamente configura uma concepção obsolescente do corpo; seja preservando e adicionando a esse mesmo corpo todo tipo de drogas, acessórios, próteses, órgãos bioengenheirados, mecanismos e dispositivos artificiais de toda ordem, transformando o corpo humano numa plataforma viva a partir da qual se constituiriam outras formas de interface e consciência que, de certa maneira, também concebem o aparato orgânico humano como algo ‘incompleto’ e carente de ‘melhoramento’, e que também nos remetem a uma concepção de obsolescência do que consideramos humano.

Ser vivo é ter que morrer mais cedo ou mais tarde, pois dentro da natureza onde se desenrolam as delicadas e complexas coreografias da vida, tais fenômenos são imbricados e subsequentes dentro de uma ordem de complexidade que se retroalimenta contínua e sistemicamente. Assim, o ser humano-pós-humano perplexo diante de tamanha adversidade (a morte) passa a querer permanecer a todo o custo e por essa razão luta por postergar e, em seus desejos egoístas mais primordiais, não consegue se conformar à sua própria condição mortal, rebelando-se contra o próprio sistema natural que o gerou, subjugando cada vez mais esse mesmo sistema através da artificialidade tecnicista em busca se não de uma imortalidade, pelo menos de sua permanência estendida ao máximo possível. A própria técnica de clonagem animal – cuja motivação se esconde atrás de uma pretensa servilidade funcional reabilitativa, terapêutica e regenerativa futura, teoricamente benéfica em alguns sentidos restritos como produzir pele para vítimas de queimaduras, por exemplo – também disponibilizaria a clonagem como possibilidade técnica de indivíduos replicarem-se a si mesmos por desejos descontrolados de permanência e apego a essa existência singular, lançando um raio incidental de esperança na sombria senda de retorno irreversível ao Uno primordial que é a morte.

Talvez, nesse momento (2010), seja prematuro falar de imortalidade, é verdade, mas o prolongamento, quem sabe indeterminado da vida humana, já é uma possibilidade bastante plausível nos horizontes de nossa civilização tecnológia de controle e instrumentalização. Nesse sentido, o humano que sempre instrumentalizou tudo à sua volta, agora faz de si seu próprio objeto de manipulação, instrumentalização e controle.

Hans Jonas não deixa dúvidas quanto a isso: “O Homo faber aplica sua arte sobre si mesmo e se habilita a refabricar inventivamente o inventor e confeccionador e todo o resto” (JONAS 2006:57).

O Homo faber ergue-se diante do Homo sapiens (que se torna, por sua vez, instrumento daquele), e o poder externo aparece como o supremo bem – para a espécie, obviamente, não para os indivíduos (JONAS 2006:272).
O que Jonas quer nos dizer é que mesmo que tais práticas representem teórica e simbolicamente avanço tecnológico para a espécie, tais avanços – se é que poderíamos considerá-los avanços e não retrocessos – não chegariam a ser benéficos para a coletividade humana, servindo apenas como instrumento de uma minoria elitista e sofisticada que poderia surfar na crista da onda bionanotecnocientífias e pagar por suas benesses.

Aqui recaímos numa mesma armadilha da rasa lógica capitalista de mercado: tecnologias sempre vêm à luz amalgamadas a seus contextos e conjunturas culturais específicas. O que vale dizer que, por serem patrocionadas por grupos de elite (do ponto de vista da abastança material) representam, indubitavelmente, os interesses de seus fomentadores e investidores, até porque há que se ter muito dinheiro para fomentar tais P&Ds de altíssima complexidade e altíssimo custo financeiro.
5. Flagelos e perspectivas de um ser em metamorfose

Um notável flagelo autoimposto do humano-pós-humano a si mesmo é a perda de sua essência fundamental. Não numa concepção abstrata e representativa especular, mas sim no sentido da perda objetiva de caracteristicas tão determinantes como orgânico e inorgânico, por exemplo, de especificidades tão intrínsecas à nossa própria estrutura biológica e intelectiva que, ontologicamente, tornaríamo-nos outra espécie diferente da humana. O mesmo vale para o prolongamento indeterminado da vida humana numa medida muito significativamente maior. Num certo sentido, esse tipo de alteração na longevidade, muito exponencial e determinante, modifica drasticamente o acoplamento estrutural da espécie e sua própria autocompreensão. Além dos problemas práticos e óbvios que podemos de imediato imaginar, como imprevistos, acidentes e descontroles, podemos antever também possíveis estratificações sociais mais sectarizadas ainda do que são hoje, dando origem no topo da cadeia a uma raça diferente e mais ‘elevada’ de seres por assim dizer ‘melhorados e superiores’, ‘mais aptos’, em contraste gritante e absoluto com os ‘não-melhorados’, ‘inferiores’, ‘menos aptos’. Isso seria a replicação nefasta do modelo de categorização e discriminação social que já se manifesta através da classificação entre ricos e pobres, só que desta vez tais predicados e defeitos estariam mais intimamente associados às complexidades dos organismos individuais.

Jürgen Habermas corrobora tal compreensão e afirma que fazer da humanidade um meio, seja de transformação, ‘melhoramento’, desfiguração, exploração ou descaracterização implica, inevitavelmente, na quebra desta simetria e na morte da igualdade secular entre as pessoas. A ideia da humanidade, por si, obriga-nos – nos diz ele – a adotar aquela perspectiva do nós, a partir da qual nos consideramos uns aos outros como membros de uma comunidade inclusiva, que não exclui ninguém (HABERMAS 2004:78).
6. A consciência maquínica e o ciberespaço

Talvez a mais notável e fabulosa prótese pós-humana que se avizinha de nós em termos de possibilidades e realizações tecnocientíficas sejam os computadores – não inteligentes ainda, mas com capacidades espantosas de processamento de dados iguais ou superiores às do cérebro humano. Isso, em última análise, pode significar que, mesmo que não inteligentes num primeiro momento, esses aparatos artificiais poderão – pelo menos em tese – operar sistemas complexos de considerações e alternativas múltiplas, análogas às existentes em nossas próprias mentes, já que nossos computadores são concebidos e construídos à nossa imagem e semelhança. Aí, nesse momento, bastaria ligar essas supermáquinas à rede internacional de computadores, munindo-as de softwares, algoritmos evolucionários e redes neuronais complexíssimos, o que possibilitaria que elas aprendessem a aprender.

Um fator perturbador e agravante deste cenário hipotético futuro é a habilidade que as máquinas possuem de compartilhamento dos dados e informações a elas fornecidos. Num caso extremado como esse, surge a perturbadora questão: o que impedirá que as máquinas venham a nos superar em habilidades e dons, e ou mesmo se rebelar contra nós?

O ciberespaço, neste sentido, não seria apenas e tão somente uma espécie de hiperconsciência planetária, mas também um veículo extremamente eficiente que, em última análise, poderia servir a qualquer causa; inclusive – se fosse o caso – à das máquinas. Ou seja, além de nos mediar – orquestrar nossas finanças em nível global, entre outras atividades estratégicas, absorver, tratar e transportar nossas informações, e lembremos que informação é poder – ela (world wide web) se consolida como uma grande biblioteca viva da história e do conhecimento humano, disponível nessa grande consciência coletiva viajando à velocidade da luz.

Quanto a isso Joël de Rosnay é categórico:

Damos-lhe o nome de economias, mercados, rodovias, redes de comunicação ou estradas eletrônicas; no entanto, trata-se de órgãos e sistemas vitais de um superorganismo em vias de emergir. Irá modificar o futuro da humanidade e condicionar seu desenvolvimento no decorrer do próximo milênio (ROSNAY 1997:17).

Como enzimas de uma protocélula com as dimensões do planeta, trabalhamos sem plano de conjunto, sem intenção real, de maneira caótica, na construção de um edifício que nos supera (ROSNAY 1997:21)

 

Conclusão: Quem realmente somos nós?

Pergunta/problema final sobre nossa humanidade: Quem realmente somos nós? Somos tudo isso que criamos? Ou tudo isso que criamos transforma fundamentalmente o que somos?

Bem, a resposta exata parece inexistir. Talvez sejamos ambas as coisas ao mesmo tempo, e quem sabe até mais. Nossa metamorfose pode ter começado lá atrás quando nos despregamos do mundo natural comum dos demais animais vivos sob a força da pedra lascada e do domínio do fogo como as primeiras tecnologias de intrumentalização e controle primitivos; e daí para a frente teríamos seguido sempre adiante nesse progressivo processo, configurando-o como algo inerente à nossa própria natureza humana mais essencial, o que certamente justificaria toda essa violência e devastação que tanto primamos em desenvolver e melhorar em busca de nossa permanência e capacidade de prevalecer e sobressair.

Ou então, ao contrário, nessa mesma ocasião longínqua de nosso passado primitivo, teríamos nós – sem nem mesmo termos consciência disso – desviado-nos irreversivelmente de nossa essência e relação de pertencimento mais primordial com a natureza, provocando o acionamento de toda essa sequência de fatos, fenômenos e acontecimentos que culminam hoje nesses conflitos e crises bioéticos sem precedentes, que de fato abalam e podem até mesmo destruir nossa essência e nossa identidade, enquanto seguem igualmente também devastando e extinguindo as demais espécies vivas e o próprio ambiente que nos abriga a todos.
Nesse sentido, é inapropriado enxergar o fenômeno pós-humano como algo alheio a nós, mesmo que esse fenômeno se apresente exponencialmente livre de nossa vontade e reflexão intencionais. Prescrutá-lo em sua identidade neoparadigmática, verificar sua interface com a cultura que o gera, identificar seus possíveis pontos nodais significa, certo, debruçarmo-nos por sobre nossa própria essência enquanto humanidade.
Referências bibliográficas

FUKUYAMA, Francis (2003). Nosso Futuro Pós-humano – Consequências da revolução da biotecnologia. Rio de Janeiro: Rocco.

HABERMAS, Jürgen (2004). O Futuro da Natureza Humana. São Paulo: Martins Fontes.

JONAS, Hans (1979). O princípio responsabilidade – Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: PUC, 2006.

ROSNAY, JOËL DE (1997). O homem simbiótico – Perspectivas para o terceiro milênio. Petrópolis: Vozes, 1995.

SANTAELLA, Lucia (2003). Culturas e artes do pós-humano. São Paulo: Paulus, 2004.

 

 

*Alexandre Quaresma é paulistano, escritor, ambientalista e pesquisador de nanotecnologias e impactos sociais. Autor dos livros “Nanocaos e a Responsabilidade Global” e “Nanotecnologias: Zênite ou Nadir?”. Atualmente pesquisa sobre o fenômeno Pós-Humano e suas diversas facetas de interação dentro da sociedade e da cultura contemporâneas, tema central de sua nova publicação prevista para 2011. E-mail: a-quaresma@hotmail.com http://blog-do-escriba.blogspot.com/

 

Os indícios da perda | de Eduardo de Araújo Teixeira

Uma leitura de Nós que adoramos um documentário, de Ana Rüsche 1

“Pensei que viver seria estar no poema”
Ana Rüsche

I
Em Nós que adoramos um documentário, Ana Rüsche parece levar a termo esse desejo, posto aqui na epígrafe, de ser poema. Partindo de um título que anuncia um texto que se propõe documental, Ana Rüsche cerze uma intrincada autobiografia poética, menos lírica e mais prosaica, embaralhando formas, tencionando limites entre poesia narrativa e lírica discursiva. Memória, presente e futuro sci-fiction se entrelaçam na construção da paisagem interior de um ser em crise, posto que o livro orbita e se distende a partir da experiência de um trauma.
II

Se o romance Acordados, pelo protagonismo de uma linguagem poética que se parecia bastar página a página, fazia inexata a classificação de prosa, o mesmo cabe a Nós que adoramos um documentário. Ana Rüsche mais uma vez parece querer tensionar os limites dos gêneros, compondo uma autobiografia que não dispensa a ficção, mas que ao longo das 114 páginas se realiza de modo fragmentado em poemas que se conectam por continuidade de temas e até por versos reiterados.

Conectar parece o termo certo a uma obra que é também produto da fragmentação, da escrita rápida (quase descuidada) dos blogues; estendendo aqui seu intimismo, à natureza de diário em forma versificada. Consciente desta relação com a internet, a poeta faz do próprio projeto-livro uma extensão da relação autor/leitor, incluindo páginas em branco entre os poemas para que o leitor escreva-se igualmente, como quem preenche os comments das páginas eletrônicas. Propõe, inclusive, uma troca: livro rascunhado enviado pelos Correios em prazo certo com a promessa de devolução de um outro exemplar, possivelmente autografado pela autora.
III

Nós que adoramos um documentário é composto de poemas predominantemente curtos2 . Escritos em versos livres e brancos, a linguagem faz-se mais próxima da oralidade urbana típica de São Paulo; não lhe faltando insertsem inglês e espanhol, intertextualidade com poetas consagrados, frases clichês, e até pequenas transgressões da norma ortográfica oficial em abreviações saídas da escrita imediata da internet, como simplificações do pronome você para “vc”, da conjunção porque para “pq”. Mas o diferencial da escrita de Rüsche está na “quebra” de versos não orientada pela estrutura sintática, cadência da frase ou apoio em rimas. Um modo “falho” que parece querer traduz um tempo deficiente de lógica e sentido, propenso ao anacoluto:

a folha

sempre achei meio idiota isso do Anchieta
ter escrito o poema na areia e agora tem,
em qualquer azulejo, o nem-sei-qual-o-poema
dele
(…)
é mais uma gritaria tão grande que vc nem
consegue enxergar.
tenta. (p. 9)

Por “trair” a disposição lírica tradicional, a leitura se faz pedregosa, em ritmo da prosa; e não apenas pelas quebras propositais e/ou aleatórias dos versos, mas por permutas rápidas de um tom confessional para uma terceira pessoa que narra, comenta, infere, convoca o leitor para um posicionamento ativo em relação ao poema: “era vitória e não Ana/como uma filha da ilha e não com esse nome de/avó.//olhe, aquela ali, a menorzinha, uma tartaruga no horizonte, a mais escura, está vendo? (“testemunha n.2”, p.13)
IV

O livro de Rüsche divide-se em três cantos/capítulos: I.Município de Ubatuba, janeiro de 1983; II.Município de São Paulo, outubro de 2009 e III.Município de Ubatura, janeiro de 2037.

O primeiro, trata da memória da infância, por isso os versos aproximam-se da “dicção” infantil, e abundam anacolutos, saltos de assuntos, frases, temas, vácuos, lacunas. Busca-se, neste primeiro momento, investigar “ana” (assim em minúscula, infantil, apequenada), matéria da biografia/documento. Não por acaso, em toda a primeira parte o “ser” retratado se compõe de “testemunhos” que oscilam, e que mais “indefinem” quanto mais se propõem a aprofundar, esclarecer a interioridade de Ana, desta menina que se descobre frente ao mar, ante as brincadeiras violentas dos meninos, às disposições de uma ordem familiar ainda reinante.

“I.Município de Ubatuba” trata de uma espécie de descoberta do mundo que “Ana-poeta”, distante no tempo, faz da “Ana-que-foi”. Esta Ana, contudo, encontra-se fragmentada, recuperada na fala de “testemunhas numeradas” que figuram nos títulos dos poemas e, como projeções, reflexos de Ana em fases distintas, propõem-se a, “de fora”, entender a Ana de tempos pretéritos, cogitando assim uma Ana que será: “seria fernanda de arruda botelho e não ana erre/e voltaria para São Paulo toda semana.” (testemunha n.2); “essa nunca foi eu, ana. mas sempre quis./a menina dos olhos amendoados também não/tirava a camiseta.” (testemunha n.4); “aqui só chove. e os meninos ficam chutando/pedra/dando umas voadoras, sei lá o nome. Tô de férias, sabe?/mas só chove, o marido subiu pra trabalhar(…)”(testemunha n. 2 bis).

No aprofundar da Ana-menina e Ana-mulher, faz-se também uma investigação do feminino. A Ubatuba “das férias” evoca um período de inocência, ao mesmo tempo em que principiam as imagens do mar, dos peixes e de uma profusão de elementos aquáticos que remeterão ao feminino e ao ventre. Também a imagem da casa é metonímia de proteção/abrigo, núcleo familiar e, por fim, útero, centro do segundo capítulo.

“II.Município de São Paulo, outubro de 2009”, abre com um poema que evoca a questão de perda de centro geográfico: “mas a escola não fixou na nossa cabeça as capitais/do mundo(…)(“são esses dias de lua”, p.31)”, ponto de partida para focar de modo alusivo/cifrado o trauma do bebê perdido ainda no ventre: “mas não adianta, nada adianta/se a abóbada cede aos escombros de sangue/e há novamente uma tempestade/a te comer útero adentro/pq a vida é sempre quem guarda a melhor fome/a lamber os próprios planetas em luz(…)” (p.31). Nesta segunda parte, em todos os poemas proliferam imagens de águas violentas: chuvas, tempestades, torós, nuvens, torneiras, poças, águas negras, rios; e, por fim, o mar e figuras marinhas como baleias, arraias e peixes, bem como a figura da “mãe das águas”, Rainha, Iemanjá: “(…)meu cérebro então flutua como um bebê/alienígeno com desejos de casa, de conforto/parira como uma arraia-jamanta no azul profundo//e há novamente uma tempestade/a te comer o útero a dentro” (p.32)

A “filha” não-gerada conduz Ana ao mergulho na dor pela infância (cujos ecos estão no primeiro capítulo/canto) que não existirá: “(…)seria menina/tão bonita, muito tranqüila, ia chorar só um/pouquinho e dormiria, anjinha/quando te insere em todo esse engodo terrível até/a freira bondosa te perguntar/- e o teu bebê?” (p.52). Corpo, exames, marcas, sinais, pontuam os poemas de todo capitulo, onde predominam os périplos em hospitais para exames, diálogos desarticulados com freiras, médicos, visinhos; até, por fim, seu recolhimento na casa. Esta se torna, paradoxalmente, abrigo e assombro, pois refletirá o trauma do aborto sofrido por Ana-adulta que parece, por essa razão, perder-se igualmente de si.

Ao leitor, mais que “sentir” os poemas, há como uma convocação para decifrá-los, pôr sentido à estrutura do livro, em grande parte linear, mas contraditoriamente fragmentada, formando uma obra repleta de desvãos narrativos e confessionais, como no poema “veja, foi um delito involuntário”: “(…)/veja, nem sabia que eu possuía um prédio/ou ainda que existiam leis, quedas e vôos/abortados/agora sou o coração quebrado, ombro infiltrado/e furos na barriga – uma pirâmide/umbigo, ovário esquerdo, ovário direito – / três pontos que, com o quarto imaginário, logo/seriam os cardeais/uma mini-crucificação, prática e portátil/que levaria comigo sozinha/não mostraria para ninguém.(…)”(p. 45)

Nesta segunda parte, agudiza-se o pessimismo, a solidão, a aversão a um mundo de perdas. A dor interior atinge o centro físico, o corpo, o útero da protagonista: “(…)um útero, cemitério de bichos de pelúcia/desdentados,/cadaverezinhos dos que morreram/erguendo fundações(…)(“culinária doméstica”, p.66). O que faria de Ana uma mulher plena, lança-a num mundo infantil, a uma vida que almeja ser de “história em quadrinhos” como negação do trágico. Ela termina, assim, por exceder-se numa dor que é escamoteada pela suplência afetiva: “meu cãozinho não sai agora de meus pés/ele sabe toda a história, e assim nem passear longe vai/(…)nunca se afasta nada. e late bem bravo aos maus/sonhos que se avizinham”(“depois”, p.51).

Neste pesadelo que mergulha, homens ou estão ausentes ou são igualmente projeções fantasmagóricas. As impressões afetivas formam vãos, lacunas, labirintos como páginas a se perder/conhecer/completar, como em “os papéis”: “e assim ficamos/como tudo, como sempre/esse ever unfinished business//como tudo e como sempre/with so much love/esse isso tão difícil, a kind of rush/um compromisso com algo mais terrível do que o/amor.”(p.63)
Por fim, quando surgem os poemas de amor, eles evocam desilusão (“os papéis”, “anotações”), ou se fazem por auto-ironia de um tempo festivo, como em “(livro de poema sem poema de amor não é livro).”

Em “III.Município de Ubatura, janeiro de 2037”, predominam imagens de dissolução surrealista. O mundo violento, doente, de prédios vigilantes, hospitais, ruínas, caos urbano, morte de motoboys, crimes sem testemunhas e omissões (de afeto/de companheirismo), retornam redimensionados num futuro apocalíptico, abismal. Marca o retorno a uma “Ubatuba” agora sem espaço para prazeres e descobertas infantis.

O poema que se propunha a ser documentário/autobiografia, ao se situar no ano de 2037 ganha o sentido de ficção científica, descaracterizando o relato real, por isso pondo em descrença o que se “narrou”. Apesar de enfatizar a atmosfera opressiva de um futuro ácido, uma leitura detida permite identificar neste capítulo a fusão entre a primeira e a segunda parte do livro; como se o futuro fosse uma projeção fantasmagórica entre infância e trauma do aborto, a ecoar as mesmas imagens mar/corpo numa reiteração de aspectos angustiantes da existência: “Neste quando sem mundo nenhum/uma mulher me cortou o ventre de pequena//e por isso ela cortou é o ventre do peixe/queria ali bisbilhotar meus futuros/na barrigada da peixinha pulsando/da vida que já não foi(…)”(“eu própria sou a vida no outro planeta”, II, p.83)

As “coordenadas” (geográficas/cosmográficas) desenhadas no ventre (em “us abdome total”), a imposição de repouso/descanso na casa, e imagens/projeções que se seguem, terão por símile a cidade corrompida pela violência e a imposição do silêncio. O vazio do ventre refletirá a inexistência do mundo, de futuro e, igualmente, de abrigo seguro: “existe sim uma cidade que está sempre escura/(…)/mas às vezes a ouço ofegante/entrando pelas minhas janelas do sono/degolando criancinhas/(…)/não vi, não ouvi é regra de qualquer casa no/terceiro mundo/por isso eu digo que não a conheço/nunca estive lá/esqueci que existia isso logo hoje, eu te juro, peço/desculpa” (“dias com luz. pouca”, IV, p. 59)
V

Em Nós que adoramos um documentário, Ana Rüsche abusa de recursos já “desbravados” no plano da experimentação poética: verso livre, anacolutos, colagens, intertextualidade, metalinguagem, coloquialismo, uso da espacialidade da página, predileção pelo uso de minúsculas, ausência de pontuação e outras transgressões da norma oficial. Sua poesia destaca-se, contudo, por se posicionar fora da tradição de uma lírica portuguesa passional e discursiva (da qual somos ainda herdeiros). Rüsche surpreende ao converter tom confessional em fluxo de consciência, e dele deslizar a uma livre-associação que soa como empréstimo da prosa labiríntica de um James Joyce. Some-se este procedimento a uma estratégia de colagem/montagem de elementos eruditos/pastiches/clichês (à T.S.Elliot) expresso num verso aparente simples, mas repleto de subentendidos. Entendendo esses procedimentos, é possível reconhecer o que de revigorante há em sua poesia:

Whiteout

(sinto que houve
uma chuva de estrelas cadentes na pele
mas é tanta cidade iluminada que não se vê mais
as constelações
que desenho para meu amor, minhas rotas de
escuros)
(…)
De ouvidos cerrados de gelo essa verdade entra
No degelo da cera dos teus ouvidos
Agora é essa tua mão
Direita que desliza cirurgicamente fria
E move algo nessa tela
Onde esculpe e escalpela novamente
Minhas brancas estalactites cravejadas de dores
Sem me tocar
(…)

Como em “esculpe/escalpela”, “cerrado de gelo/degelo da cera”, na maior parte dos poemas, a sonoridade das palavras parece prevalecer sobre um sentido facilmente apreensível, impulsionando outras associações para traduzir uma desordem interior que se faz linguagem, cuja desconexão materializa a perda de certezas do mundo. Amor, solidão, perda, desilusão amorosa, o eu vs. mundo e natureza/mãe/inimiga, tudo se amalgama no questionamento do direito a ser, a existir. Assim o aborto, como a náusea sartreana, gera o turbilhão que lança Ana a dor de um mundo “documental”, com seu realismo cruel, martírio de crenças: “(…) ou ainda que existiriam leis, quedas e vôos/abortados/agora sou o coração quebrado, ombro infiltrado/e furos na barriga – uma pirâmide/umbigo, ovário esquerdo, ovário direito – três pontos que, com o quarto imaginário, logo seriam cardeais/uma minicrucificação, prática e portátil(…)”(“veja, foi um delito involuntário”, p.45)

Quando as tentativas de recuperação da infância (fomentadas pela gravidez/aborto) insurgem, sobrepõem-se planos em que ações pretéritas e futuras fundem-se em forma de pesadelo. No plano da linguagem, o efeito atingido muitas vezes é o de nonsense (entre o dadaísmo e o surrealismo), com “imagens de derruição” materializando a intraduzível dor na forma de cenários, “paisagens interiores” de um eu dilacerado. Por isso (como dito anteriormente), palavras e versos reverberam memórias, desdobram-se e se reconfiguram de um a outro poema, para completar, para dar sentido ao trauma cifrado: (“eu própria sou a vida no outro planeta”): “Ontem, quando o mundo ainda não existiu/eu era triste, as câmaras do meu coração tão/abandonado/naves de todas as catedrais de santos impassíveis/sentei e chorei/onde nem mesmo havia lugar.(…) e “agora caem anjos em forma de meninos sobre a terra./as formigas desse mundo caem nas correntes dos/meus rizomazinhos de tristeza/do lixo à pia, passando pelo fogareiro(…)”(VIII, p.93).

Resguardando-se das vozes indiscriminadas, dos discursos vazios (quando “dizer o trauma” torna-se interdito), Ana faz-se incomunicável, termina por se isolar e estender seu desconforto com o mundo para a cidade opressora: “(…) tenho bem medo dessa noite, tranco-me em/algum lugar, é a violência/medo desses dias em que todos os corações já são/escuros//aninho-me no meu cobertor que já não dança,(…)”(“dias de pouca luz”, p.54). Realiza a ruptura com o mundo, negando-o; e termina por fim a ensimesmar-se: “seria eu Jéssica ou Ana ou uma outra Márcia,/tantas,/as ideias todas e nenhuma, como nos filmes de/bombardeios/as conjugações pertencem a um eu, um outro.//E eu ali, sozinhas espremidas na faixa de areia/entre dúvidas.(…)(“A Quarta Pessoa”, p.111)

O movimento final é ver a si como um outro ser, uma tentativa de decifração de alguém que se perde de si, já demarcado no título “mesmas duas” e na troca súbita de possessivos de “meus” para “seus”: “pra variar, ela rondava e rondava a sala com seus/vermes dançantes na cabeça/(…) comia as próprias lágrimas, do seu último dia do/mundo/tão altos os traços nos meus céus de deserto (…)”(p.69). O uso de focos distintos está na essência do documentário, formato que ao multifacetar (depoimentos e perspectivas) busca aproximar-se do “real”. Na autobiografia, a memória e o recorte do real são arbitrários, mudam o fato, até num sentido de autopreservação do biografado. Usando drummondianamente a auto-ironia, a poeta dialoga consigo mesma, questionando a entrega sentimental de seu eu-feminino em oposição a objetividade embrutecida dos homens:

anotação
.
esse amor demais vai acabar te matando, Ana
escuta, presta atenção
vê se espreme esse coraçãozinho
pra ver se surgem um par de bolas embaixo
vai ser homem na vida
e para com isso, essa coisa toda,
essa bobageira.

tem dias que a gente só quer
que nos tirem pra dançar. (p. 70)

VI

Essa ironia sobre o “amor” está no título de um dos mais belos poemas do conjunto “(livro de poema sem poema de amor não é livro)”, narrativa lírica de encontro/despedida em linguagem coloquial e urbana com saltos temporais e discurso-direto. O poema rearticula a relação casa/abrigo vs. mundo exterior/opressão, elemento predominante em Nós que adoramos um documentário, já que nele, o espaço exterior projeta-se no corpo, metonímia/metáfora da sensação de perda de centro (autonomia e identidade). Mesmo a presença da natureza (tempestade) surge como prenúncio criativo de um fim (a árvore derrubada/os hematomas flores do eu-lírico) criativamente traduzida no corpo “solar” do ser amado, que a abandonará no fim do poema ao adentrar sozinha o “escuro” (no cinema). A dinâmica com que “narra” o encontro/fuga, presença/ausência do amado (ser reduzido a mero “tu” e “você), mostra a habilidade com que Ana Rüsche traduz sensações e sentimentos complexos em imagens prosaicas, quase “táteis”, sempre com uma graça singular que amalgama erotismo, afeto e melancolia:

(livro de poema sem poema de amor não é livro)

É tarde, dia claro, e num repelão há uma
tempestade lá fora
‘Que barulheira’ e me beijas
Te beijo tanto, ‘eu gosto de tempestades`

Amendoeiras japonesas alastram-se pela cama
em pink, em preto
É calor e chove-se tanto, nos lençóis, pelas tuas
costas ensolaradas
Dormimos mais meia hora, agora já queria mais
um dia, plis, mais uma noite, por favor.
Percebi que a chuva desbotou meu cabelo e todos
os meus hematomas colecionados na semana
– com a tinta escorrida, logo brotaram minúsculas
flores roxinhas no flanco dos travesseiros,
essas pequenas tatuagens do acaso
(…)
Na rua, foi ao chão a árvore de 6 metros de altura
e 20 anos de comprimento
orvalhando de folhas minúsculas carros, valas, a
gente velha fofoqueira, os vizinhos torcedores
domingo é um mesmo dia para tombar e já se
remover – caminhões, a prefeitura
Telefono: Você viu a árvore que caiu?
(…)
Seguro medrosa a mão invisível da saudade. Teu
cheiro, meus cabelos, suspiro
Adentro ao escuro. (p. 74)

VII

Dona de uma linguagem que pede esforço maior de classificação, Ana Rüsche parece pelejar em favor da Poesia. Do trânsito que faz entre experimentações (de quebra abrupta do nexo lógico da frase à uniformidade verbo-temporal), passando por um fragmentar/colar que nos remete a T.S.Eliot e James Joyce, sua escrita parece não querer definir-se, por isso vai à fonte da prosa de Guimarães Rosa, de Clarice Lispector, e retorna sem atrito, à poesia substantiva de Drummond e Ana Cristina César.

O que Ana Rüsche traz de muito próprio, é a forma como funde intimismo e nonsense. Ainda que aparente na escrita uma “frouxidão” blogueira (escrita automática? Dadá?), que pode passar por desleixo na forma, é habilidosa na expressão de um delicado olhar feminino, um tanto desiludido e melancólico. Sem itinerário fácil, linear, seu livro avança e recua para um tempo de afetos para, por fim, mergulhar na falta. Porque na poesia de Ana Rüsche, a perda surge como estratégia fundamental de autoconhecimento.

Nós que adoramos um documentário se constitui um desafio mesmo ao leitor contemporâneo familiarizado com linguagens múltiplas, fragmentação, fusão de gêneros e intertextualidade. Se boa parte dos poemas pode figurar facilmente fora do conjunto da obra, a leitura do livro como narrativa fechada parece redimensionar seu campo de sentido e ampliar o prazer estético da leitura.

Ana Rüsche, apesar do título irônico – Nós que adoramos um documentário – que denuncia o interesse contemporâneo no factual (talvez da vida alheia) e o atual desprestígio da interioridade/poesia, presenteia seus leitores com uma autobiografia que são indícios de uma “possível experiência pessoal”. Em tempos em que os autores “ficcionalizam-se” para além dos blogues, constituindo-se extensões de seus próprios escritos em mácaras-egos (pensemos em Clarah Averbuck, em Santiago Nazarian, por exemplo), Ana Rüsche escamoteia-se. Não nos dá a facilidade de penetrar sua biografia, composta de um eu pesaroso que se multiplica, ou ecoa suas angústias com vaguidões, projeções sobre projeções de passado, presente e futuro. Não trai a proposta inicial de documentar/biografar-se, antes se expõe/resguarda por indefinir, seja nos planos do real, da ficção, da memória, da reinvenção do vivido.

Fosse um filme, Nós que adoramos um documentário seria uma ficção futurista em primeira pessoa, cenas captadas em super-8, atemporais, com um mar ao fundo, e a sombra aos pés de um eu que enquadra o seu olhar, mas não se mostra.

 

REFERÊNCIAS

1RÜSCHE, Ana. Nós que adoramos um documentário. Ed. Ourivesaria da Palavra. São Paulo, 2010.

2À exceção de “são esses dias de lua”, “dias com luz. pouca”, “eu própria sou a vida no outro planeta” de maior extensão, apesar de partidos em seqüências menores, numeradas, apresentando contigüidade de tema.

 

*Eduardo de Araújo Teixeira

Doutor em Letras/USP

 

Premissas Culturais da Criação na Pós Modernidade | de Michel Maffesoli* – traduçao de Rosza Vel Zoladz**

Dionísio redivivo

O atual só faz sentido, pelo cotidiano, enquanto provisório. É essa impermanência que faz que não se apreenda o que acontece senão tomado a partir do que lhe é fundador. Eis porque todo pensamento autêntico retoma uma especificidade da existência humana: a gente semeia o que vai ser colhido somente mais tarde.

É assim que, no fim dos anos 70, eu anunciava o retorno de Dionísio, deus da orgia, sublinhando com isso o papel, cada vez mais importante, que a paixão (orgé) iria desempenhar nas nossas sociedades.

Do mesmo modo, em referência a um outro sentido da palavra (orgos: iniciado), eu indicava o lugar primordial que a iniciação iria tomar no neotribalismo contemporâneo. O que isso queria dizer, senão que ao encontro do que era convencionado e permanentemente dito, se situava aí a energia na vida social? Mas é preciso reconhecer, mesmo se isso não deixe de irritar numerosos observadores, que esta energia se exprime ao mesmo tempo pela proximidade, no cotidiano de uma busca de um hedonismo bem convincente. Em todo caso, fora das instituições racionais, terreno predileto da sociologia moderna.

Frequentemente se ouve também falar do consumo exacerbado. Ainda um destes exageros que se empregam para mascarar, na verdade, o fato de que nós passamos para uma outra coisa.

Por menos que se esteja cego pelo conformismo do ambiente, é evidente que a avidez dos objetos, a obsolescência rápida dos amores, o frenesi das novidades, tudo isso nos deveria incitar a dar outros nomes para o vertiginoso acúmulo de incertezas característico das maneiras de ser pós-modernos. Georges Bataille, com a sua noção de gasto, profeticamente esboçou seus contornos. De nossos dias, o consumo, o fato de fazer arder a vida em todos os propósitos, tornou-se uma realidade cotidiana que se configura como antípoda da mitologia do progresso peculiar à modernidade.
Isto é bem constatado pela invenção de um mito, o do Progresso, com que Auguste Comte, bem como Saint-Simon queriam lutar contra o obscurantismo peculiar, segundo eles, aos diversos politeísmos e depois aos monoteísmos semânticos.

O que faz lembrar em Saint-Simon o que ele nomeia de “religião industrial”. Esta aí – se é bastante consciente (?) devia comportar o todo de um produtivismo moderno, sua grande ideologia do crescimento. E a sociedade da produção tal qual ela se pôs em toda a extensão do século XIX e no começo do século XX, não podia senão acabar nessa sociedade de consumo. Esse tema, tão bem analisado por Jean Baudrillard, via precisamente nele, em um de seus livros, menos conhecidos, mas particularmente explorado, O espelho da produção.

Toda mitologia precisa de termos que sejam verdadeiros oscilógrafos, que lhe servem de sinalizadores de trajeto. Esses termos constituem uma espécie de caixa de ressonância, na qual cada um pode, facilmente, se reconhecer. Isso se dá até mesmo inconscientemente. A trilogia Progresso, Produção, Consumo tem exatamente esta função. São palavras-chave que repercutem as preocupações populares e fundamentos da mitologia moderna. Mas elas se tornaram simples feitiços. A saber, os termos que se continuam repetindo continuadamente, mesmo a partir de diversos discursos oficiais. Que repetem religiosamente essa cantilena em todas as ocasiões, chegam a fazer parte da opinião comum, da retórica rotineira. Mas às quais, embora por essa mesma razão, não se dá a elas mais grande atenção. Sabe-se, desde tempos longevos: litania, liturgia, letargia.

Numerosos, com efeito, são os índices oficiais, a contrapelo dos discursos ou análises legitimados, que lhes servem de racionalizações.

É frequente que um valor que se acaba conheça in fine um retorno fulgurante. E não é preciso lembrar o legendário canto do cisne pelo qual esse último, morrendo, transforma seu grito rouco e lânguido, mas bem inútil, em melodia. É bem assim que se pode compreender as diversas pequenas canções sobre o valor trabalho e outros cantos sobre a taxa de crescimento ou do famoso poder de compra! Elas são tão mais insistentes quanto, mais e mais, ignoradas. Como se, na França, em profundidade, a vida se resumisse aos aborrecimentos de obter um Plano de economias para a compra da moradia! De fato, a alardeada Crise Econômica (PEC) não tem outras fontes. Ela é, antes de tudo, civilizacional (culturas que se chocam). Ela é o mais próximo de sua etimologia (krisis) um julgamento de algo que se está acabando. Julgamento que os valores dionisíacos fulminam contra a prevalência prometeica do todo econômico!

Há aí como que um odor de incêndio no ar do tempo. E, de diversas maneiras, trata-se de queimar sua vida, por todos os objetivos ou, o que retorna ao mesmo sentido, de não perder a própria vida que se tem a ganhar. Eis o que uma mitificação do consumo tende ao uso opaco, do binômio produção-consumo.

O paroxismo se mostra nessas dezenas de milhares de carros que ardem em chamas, cada ano, no circuito das grandes cidades francesas. É preciso ousar dizer que se trata de um símbolo elucidativo? Em todo caso, instrutivo, quando se sabe como o carro era o signo absoluto do que se considerava como sociedade de consumo. Objeto caro a adquirir. Ele é a resultante de toda vida de trabalho, e o que permite, igualmente, se dirigir a esse trabalho. Ele é, ao mesmo tempo, aquilo com o que se pode escapar realmente ou fantasiosamente, da coerção do labor. Ele significa a possibilidade do lazer e do tempo não coercitivo. Enfim, este “objeto-signo” é a soma de um investimento libidinal sobre o qual os psicanalistas, longamente, teceram comentários.

E é esse objeto que arde em chamas!

Notemos, no entanto, que não é o carro da pessoa de posses – esse está protegido na sua garagem – que se incendeia. Não é esse que se encontra na rua. Ao pé do imóvel da cidade, ao qual as mídias denominam “os quarteirões”. Ele pode pertencer a um conhecido ou a um parente.

O fato de consumir um tal objeto não é um ato político, como é frequente o analisar. Trata-se mais de uma postura lúdica. Uma estrutura antropológica ocupando a destruição pelo coração mesmo da construção. Assim, o adágio romano pars destruem, pars construens, ou seja, a construção pela destruição, de alguma forma. E não é proibido pensar que há nesses incêndios curiosas reminiscências das festividades estudantis: Berkeley nos Estados Unidos, em 1964, ou rue Gay-Lussac, em Paris, no ao de 1968! Daí essa opinião admitida onde um pitainismo inconsciente se alia a uma estupidez bem pensada para clamar que é preciso tudo ao mesmo tempo: “trabalhar mais e esquecer 68”. Os múltiplos cânticos em torno de trabalho, família, pátria sendo agora moeda corrente na intelligentsia francesa.

No Le combat avec le démon, Stefan Zweig fala, a propósito de Nietszche, ou de Hölderlin, de um demonismo, animando suas obras e suas vidas. Seria um tanto abusivo dizer que, em certas épocas, um tal demonismo está atuante na sociedade em seu conjunto? Que a sombra de Dionísio se estende sobre as megalópoles pós-modernas?

O que se faz presente em paroxismo na criação literária se exprime em menor intensidade pelo conjunto dos objetos de consumo na vida quotidiana. Com efeito, eles não são mais nem menos construídos, nem mesmo encarados para conservá-la. Eles se inscrevem em tudo o que é concebido sob a égide da precariedade. Objetos, situações, relações marcadas pela fonte de obsolescência programada.

Isso se vive, igualmente, no domínio dos afetos. Amor não rima mais com duração eterna. Usura, fadiga, hábitos, tudo isso faz que, em geral, as relações amicais ou amorosas não se inscrevam mais na longa duração. E se sabe o que é da instituição conjugal que procura empalidecer sua fragilidade propondo o casamento entre homossexuais e outras orientações sexuais existentes. Num sentido figurado, é preciso dar trabalho aos diversos párocos e outros beneficiários de todo tipo.

As teorias também não são mais o que elas eram. Eis que os conceitos fazem água por todos os lados. Os dogmas não constituem mais receitas. O universalismo não convence mais do que alguns fanáticos da Razão, da Ciência, do Progresso, ou outras “capelas” do mesmo gabarito.

O ar do tempo é constituído de verdades parciais, momentâneas ou mesmo aproximativas. Mas é um tal relativismo, enfatizando o acento sobre o instante, que favorece a criação. Certo é que a energia individual ou coletiva não é mais mobilizada sobre a longa duração. Focalizada no instante, ela é vivida com muito mais intensidade.

É isso que exprime a sociedade de consumo, i.e., uma outra metodologia não repousando mais sobre a “Religião Industrial” de uma economia de si e do mundo, mas sobre o gasto, a perda. Uma inconsciente inconsciência que sabe, desde o tempo da sabedoria imemorial, que, por vezes, quem perde ganha. Após tudo, por que não fazer a aposta que possa aí haver, no Consumo, esse luxo noturno da imaginação, as premissas de uma intensa e fecunda criação? Pois de uma verdade advinda da observação da vida social Goethe nos lembrava: “Somente o que é fecundo é verdadeiro”.

Fazer da sua vida uma obra de arte! Colocar todas as coisas e todos os seres humanos na praça pública se inscreve bem nessa estetização da existência, onde o que importa, antes de tudo, é provar paixões e emoções comuns. Desse ponto de vista, a estética serve de cimento ético. Então, o que ela foi nas sociedades tradicionais, um elemento da vida de todos os dias, a arte, progressivamente, foi mumificada, posta para fora, separada do cotidiano. A criação, a criatividade, o jogo, a imaginação contaminam novamente a existência do homem sem qualidade. Nietzsche morreu louco de ter tido essa intuição, num momento em que isso não se colocava. E eis que do intelectual esteta ao esportivo atento ao seu corpo, do nômade “rurbano” ao ecologista zeloso de seus legumes sem agrotóxicos, se faz atenção à criatividade vivida no dia-a-dia. A arte se capilariza em tudo que era, até aqui, considerado como anódino.

Cada época tem suas imagens e seus próprios mitos. Mas eles não fazem nada além de retomar e atualizar as potencialidades arcaicas que se acreditava ultrapassadas e que, de repente, reencontram uma juventude vigorosa.

Mas isso é bem difícil de admitir, tanto que é enraizada a ideia de um Progresso da humanidade, de um desenvolvimento por um tipo de História, tendo como objetivo longínquo a assegurar.

A ideologia semita, por meio de seus matizes judaicos, cristãos, muçulmanos, perdeu o seu acento sobre o desenvolvimento histórico, cujo linearismo é a marca essencial.

Todo outro é o pensamento grego ou aquele das diversas sabedorias orientais repousando sobre o retorno cíclico das coisas. A partir daí o acento era colocado sobre as eras míticas, privilegiando a experiência vivida.

Desse ponto de vista, se pode lembrar de uma passagem muito instrutiva da “Cité de Dieu” (XII, 14,1), na qual Santo Agostinho se mostra injuriado com firmeza diante dos “sábios desse mundo que acreditavam ter que introduzir uma marcha circular do tempo para renovar a natureza”. O mito, com efeito, remete ao renascimento periódico de todas as coisas. Círculo ou espiral, pois as coisas não retornam exatamente ao mesmo nível. É assim que a sociedade do trabalho está em vias de ser substituída pela sociedade da criação.

Que nós vivemos uma era de transtornos é, agora, coisa admitida. Seja de um modo larvado, seja explosivo, o afrontamento dos grandes valores que presidiram a solidez da vida social é fácil de averiguar. Mas é com muitas reticências que vão ver aceitar as suas consequências psicológicas e sociais. Tanto é verdadeiro que a (re)novação de certos mitos dá calafrios aos clérigos (aos políticos, sábios, jornalistas), tendo por função gerir os mitos dos quais eles não querem, em hipótese alguma, ver a saturação.

Nos períodos diluvianos, nada nem ninguém escapa ao choque das diversas vagas da maré cuja atualidade não é marcada pela avareza. Assim, isso faz que apareça o pedestal fundador da modernidade: o trabalho.

Para retomar uma expressão conhecida do filósofo Emannuel Kant, eis bem o imperativo categórico maior. Este presidindo a realização de si e a do mundo. Por aí mesmo se elabora a mitologia do labor, inaugurando a prevalência do trabalho, do produtivismo e da economia que lhe é a consequência. Mas o fato mesmo que esse valor seja recente não incita a pensar que ela seja eterna. De fato, numerosos são os índices que, empiricamente, sublinham sua saturação. Isso obriga a observar que podem existir outras maneiras de agir sobre o ambiente social e natural.

Mas, como eu já indiquei, cada coisa se acabando lança seu canto do cisne: o último antes de morrer. E isso não é colocado entre parênteses, é divertido enfatizar como a expressão Valor trabalho constitui o pedestal incontestável das diversas coisas sociopolíticas sempre repetidas. Valor trabalho, do que nos lembramos, era justamente o elemento chave da suma teológica de Karl Marx: O Capital!

Revanche do marxismo? Em todo caso segundo uma intelligentsia, não se deva mais menosprezar, é pela revalorização do trabalho que se vai revolucionar, conservar, mudar, reformar a sociedade. E se o problema não estava mais aí? Se essa encantação não era, no fim das contas, um verão indiano de uma modernidade em declínio?

Com efeito, de diversas maneiras, em particular para essas gerações de jovens que já são a sociedade de amanhã, se sente bem que o essencial da existência não consiste em perder sua vida para ganhá-la. O imperativo tu deves deixa progressivamente o lugar ao optativo é bem preciso. Certo, é preciso trabalhar bem. Mas esse não é apenas um elemento entre outros. Um simples aspecto, forçosamente sem ser o mais importante, dos investimentos pessoais.

A mitologia do bem-estar, essa do hedonismo latente, faz que em tudo, ao mesmo tempo, se pode ser um bom administrador e ter múltiplos centros de interesse, tendo cada um uma importância própria. Hobbies diversos, práticas amadorísticas de diferentes artes, trabalho temporário, turn over de uma repartição, atenção dedicada à estética dos escritórios, heliotropismo revalorizando a importância das regiões do Sul da França, chamando atenção para seus valores, tudo é bom para relativizar o aspecto coercitivo do trabalho.

A partir daí, as condições de vida, no tempo coercitivo do trabalho, não são mais negligenciadas. Em resumo, o qualitativo está na ordem do dia. Todas essas práticas cotidianas, pouco teorizadas, mas intensamente vividas, nos lembram que são das civilizações e não das menos importantes onde é a criação que tende a prevalecer.

Prometeu cede o lugar a Dionísio.

Nessa perspectiva, o que é a criação senão a capacidade de mobilizar todos esses parâmetros humanos que são o lúdico, o onírico, o imaginário coletivo? A Renascença foi um desses momentos onde banqueiros, empreendedores, artistas e aventureiros de todas as ordens pensavam a vida social como um todo. E agindo com essas perspectivas. É qualquer coisa desta ordem que se exprime nos mitos “holísticos” da pós-modernidade nascente.

Metrossexuais e todo o camafeu das classes médias, a emergência de novas formas de vidas, adeptos do crescimento e do pacto ecológico, se empenham, de diversas maneiras, a colocar em segundo plano a prevalência do trabalho. Globalização colaborando, o peculiar da mitologia pós-moderna é colocar o acento sobre a sinergia existente entre o prazer arcaico do bem-estar e o desenvolvimento tecnológico. E quando se sabe que mais da metade do trânsito nas redes da Internet é dada aos encontros de amigos, eróticos, filosóficos ou religiosos, se vê bem em que consiste essa relativização do valor trabalho. É essa relativização que sublinha o retorno à criatividade na vida social.

O campo aberto por uma tal transmutação dos valores é imenso. E falta explorá-lo. Em uma palavra, é isso que vai ser encontrado em todos os mitos, enfatizando o vivido, a experiência, o desabafo etc. Isto porque não há real competência senão quando se apresenta um vasto apetite. Em resumo, não se mobiliza a energia individual e coletiva, fora do caso de estar sintonizada com o inconsciente da época. De acordo com um futuro próximo, aqueles que sabem se por em dia com os valores presentes no imaginário do momento, por um racionalismo estreito são relegados à pré-história. O ego cogito, fundamento da modernidade, está progressivamente deixando lugar a um est ego affectus. Afetados pelos outros, pelo sagrado, pela natureza, pelos humores (pessoais, coletivos). É isso que convém pensar: a mutação de uma existência dominada pelo materialismo moderno, quer dizer, um pouco dotado, para uma outra maneira de estar junto, onde o imaterial reencontra força e vigor.
São esses valores imateriais que estão em pleno reviver na vida política, social e econômica. E não são carregadas de neutralidade que as gerações jovens serão as protagonistas desse olhar novo sobre a natureza e a sociedade. É por isso mesmo que, na sua atitude um pouco desenvolta, os “criativos” multiformes são homens de seu tempo, reafirmando a eterna juventude do mundo. É isso mesmo que se cristaliza na figura emblemática de Dionísio, essa de Puer aeternus!

* Membro do Institut Universitaire de France. mm@ceaq-sorbonne.org

** Professora colaboradora do PPGAV da EBA/UFRJ (Programa de Pós Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes/Universidade Federal do Rio de Janeiro). Pesquisadora convidada do PACC-FCC UFRJ (Programa Avançado de Cultura Contemporânea do Fórum de Ciência e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro).

 

Sobre a ideia de liberdade, a propósito da autorreferência como enciclopédia livre, pela Wikipedia, na rede mundial de computadores | de Alice Fátima Martins

O que significa a condição de liberdade? Quando se qualifica alguma pessoa, comunidade, projeto ou ação como livre, que qualidades estão sendo evocadas?

O verbete livre, no dicionário Houaiss (organizado pelo sapientíssimo Prof. Antonio Houaiss, também responsável pela edição das Enciclopédias Delta-Larousse e Mirador Internacional), traz uma relação de acepções, dentre as quais destaco as seguintes:

1. Que não está sob o jugo de outrem
2. Que goza de independência política
3. Isento de restrições, controle ou limitações
4. Que não sofre a influência de grupos de interesse
Faço, aqui, a escolha de não avançar rumo à seara filosófica do significado de liberdade, tampouco os terrenos múltiplos das abordagens sociológicas possíveis, restringindo-me, assim, às acepções listadas para o verbete, com o intuito de compartilhar algumas indagações, inevitáveis, a partir do episódio ocorrido junto à Wikipedia, no mês de julho último, que passo a relatar.

O episódio da censura na Wikipedia

Em atendimento ao solicitado pelo Programa de Pós-Doutorado do PACC, tendo publicado um artigo em revista online, tendo apresentado o relatório final de pesquisa no dia 24 de junho último, tomei as providências para fazer a inserção de verbete no portal da Wikipedia. Observando as instruções para tal empreitada – o que envolve muitos passos, advertências, recomendações, e ferramentas –, fiz o cadastro, gerei senha, e preparei o texto para publicar. Tinha decidido disponibilizar algumas informações sobre o Sr. José Luis Zagati, um dos sujeitos da minha pesquisa. Seguindo as recomendações, levei a cabo uma pesquisa no próprio portal, com vistas a evitar repetição de informação ou tema do verbete. Constatei que não havia nada referente ao Sr. José Luiz Zagati ou ao seu trabalho na enciclopédia. Então passei a redigir o texto, que resultou de uma breve compilação de minha própria produção, o que incluiu alguns artigos já publicados (dentre os quais, o artigo na nossa Revista Z, e a página de abertura do III Seminário Nacional de Pesquisa em Cultura Visual – FAV/UFG), e trechos do próprio relatório final. Cumpridas todas as etapas, operadas todas as ferramentas do portal, o texto foi publicado. Enviei o link para a coordenadora do PACC, a Profa Heloísa Buarque de Hollanda, nossa querida Helô, e fiquei contente com a informação de que eu teria inaugurado o atendimento a essa solicitação do Programa, bem como por ter contribuído para a consolidação e divulgação do trabalho do Sr. Zagati.

Passados dois dias, recebi a notificação, via e-mail, de que meu verbete houvera sido retirado da Wikipedia. Um dos membros que integram o grupo de editores da enciclopédia, identificada como Béria Lima, localizou na internet trechos de meus textos que haviam servido de base para o verbete, e julgou que isso infringia uma das regras, segundo a qual não se pode copiar ou repetir texto já divulgado. Sua decisão não levava em conta o fato de que o texto, ou textos em questão eram de minha própria autoria. Embora a situação tenha me provocado alguma indignação, acatei o parecer, e retomei o projeto. Para tanto, elaborei novo texto para o verbete, tomando todos os cuidados no sentido de dar-lhe um tom estritamente enciclopédico, ao estilo dos demais verbetes da própria Wikipedia. Feita a inserção, mas já sem qualquer convicção de que teria minha contribuição aceita, fiquei na expectativa dos desdobramentos.

Desta vez sequer fui notificada: no dia seguinte, buscando pelo verbete, encontrei na própria enciclopédia a observação de que o mesmo teria sido censurado, por ser considerado impróprio por outro editor, no caso, o Sr. Hermógenes Teixeira Pinto Filho.

A essas alturas, muito chateada, quis compreender um pouco mais as dinâmicas dessa instituição digital Wikipedia, autorreferida como a enciclopédia livre, de onde tive excluídas minhas tentativas de inserção de informação.

Além da minha própria experiência, eu já ouvira relatos outros que davam conta do circuito fechado que seus editores vinham configurando, dentro do qual exerciam o pequeno poder de decidir as informações pertinentes ou não de serem veiculadas, de acordo com critérios próprios, nem sempre muito bem esclarecidos, nem sempre objetivos, tampouco efetivamente abertos à multiplicidade de enfoques, naturezas de informações, e diversidade de pontos de vista que caracterizam a cultura contemporânea.

Levantando mais informações sobre o cenário, descobri alguns dados interessantes, que em geral ficam fora do circuito de acesso ao grande público, usuários ou não do portal. Vale a pena trazer alguns a este relato:

1. A Wikipedia é o 4º site mais visitado atualmente. A enorme demanda gera ameaças para o projeto, que resiste em contratar publicidade para bancar provedores e toda a infraestrutura técnica que garanta não só manter disponíveis todas as informações, como renová-las e atender ao grande número de acessos que se amplia em progressão geométrica.

2. Nesse contexto, manter algum controle no conteúdo disponibilizado representa um desafio a mais. E equívocos podem ser cometidos nessa direção.

3. 95% dos editores brasileiros da Wikipedia são homens. Assim, não posso deixar de considerar que me coube a honra de ter meu texto excluído, na primeira tentativa de inserção do verbete, por uma das poucas representantes femininas do fechado círculo de editores: uma mulher em pleno exercício de conhecimento e poder num território hegemonicamente masculino.

4. A versão brasileira da enciclopédia, com alguma frequência tem sido referência para as versões em outras línguas, num sentido negativo. Em outras palavras, quando isso ocorre, é como exemplo a não ser seguido, porquanto os padrões dos verbetes sejam considerados chatos, redundantes muitas vezes, cujas prioridades restringem-se a determinadas áreas temáticas em detrimento de outras. Ou seja: pecam pela falta de isenção. Por exemplo: facilmente pode ser encontrado o histórico de todos os gols de cada jogador de alguns times de futebol brasileiros, enquanto muitas informações referentes à cultura popular são consideradas desimportantes, menores, ou impróprias para serem inseridas.

5. Embora o número de consulta venha aumentando consideravelmente, na contrapartida tem-se observado uma diminuição das iniciativas de colaboração pelos usuários em geral. Como resultado, ocorre uma redução da diversidade, e a concentração da produção de verbetes num grupo menor de pessoas. O que descaracteriza a pretendida multiplicidade e liberdade de pontos de vista, que deveriam ser suas marcas.

6. Nessa direção, muitos pesquisadores de renome, respeitados e experientes tanto nos seus campos de pesquisa e estudo, quanto no trabalho em publicações das mais variadas naturezas, têm tido suas colaborações excluídas pelo fechado grupo de editores da Wikipedia brasileira. Basta que um deles considere de menor relevância a temática em questão, para que o corte seja levado a cabo.

Para fechar o relato, e dar espaço às reflexões propriamente ditas, vale a pena, também, fornecer algumas breves informações a respeito dos dois editores responsáveis pela exclusão do verbete cuja tentativa de inserção foi frustrada.

A Sra Béria Lima, apelido Beh, representante dos parcos 5% formados por mulheres no grupo de editores, teve uma postura cortês: devo lhe fazer justiça. A enciclopédia é o principal espaço ao qual dedica sua produção intelectual. No perfil que consta da sua página na enciclopédia, lista projetos voltados para questões religiosas, relativas à Bíblia, além do projeto em curso no qual desenvolve uma lista de autores de obras eróticas. Mas também é responsável por outros portais, a exemplo do Portal do Cristianismo, do Islamismo, e da Religião. No fórum de discussão, parece estabelecer diálogos cordiais com usuários em geral: há solicitações de orientação, informação, conselhos, agradecimentos etc. Ao se declarar colaboradora do site Pensares, observa, bem humorada: “Afinal, quem pensares junto, pensa mió”.

O Sr. Hermógenes Teixeira Pinto Filho, por sua vez, tem um perfil mais autoritário e polêmico. No fórum de discussão, além das mensagens de rotina, encontram-se mensagens indignadas a ele dirigidas, algumas chegam a ser grosseiras. O resultado de pesquisas na internet também aponta para uma atuação dedicada principalmente à Wikipedia, onde assina um grande número de contribuições, em português, espanhol, francês e inglês. É membro do Rotary Club, declara-se interessado pela Marinha (navios da Marinha brasileira, porta-aviões etc.), por ciclismo, automobilismo e sistemas de metrô. Seu atual projeto, em curso, tem como assunto as Forças Armadas e sistemas de manutenção.

Foi com base nesse perfil, campo de interesses e atuação que este senhor considerou impróprio o verbete que inseri, apagando-o. Uma questão inevitável se coloca: teria sido considerado impróprio por fazer referência ao fato do Sr José Zagati ser catador de sucatas? Teria o Sr. José Zagati sido discriminado ali também, em razão da natureza do seu trabalho? Seria, o ambiente da Wikipedia, mais fechado e elitista do que a própria academia universitária, tendo-se em conta que, em 9 de junho de 2010, o Sr. José Zagati proferiu a palestra de abertura de um evento de pós-graduação, de âmbito nacional, organizado pela Universidade Federal de Goiás?

Ponderações

É preciso não se perder de vista que a rede mundial de computadores não constitui um mundo à parte, uma segunda realidade, de natureza diferenciada da realidade natural e social em que estamos inseridos. Ao contrário, a despeito do estabelecimento das redes de comunicação rizomáticas por ela propiciado, com fluxos intensos de informações, ferramentas de organização e armazenamento de dados, entre outras possibilidades, a rede mundial de computadores é parte integrante das malhas sociais, está inserida em suas dinâmicas, tensões, conflitos, disputas de poder. Fazendo uso de suas ferramentas, organizam-se comunidades solidárias e cometem-se crimes, iniciam-se guerras ou clama-se por paz.
Algumas abordagens mais entusiasmadas, marcadas pelo excesso de otimismo prematuro, defendiam a ideia de que nesse ambiente se teria assegurada a abertura de territórios efetivamente democráticos e livres, onde todos poderiam expressar-se, sem restrições ou discriminações, apresentando ou não informações que correspondessem às informações circulantes nas relações presenciais (aqui, tomo como referência o binômio virtual/presencial, ao lado do binômio virtual/atual…). Ao decurso do tempo, e com a ampliação sempre progressiva dos recursos tecnológicos, também se ampliaram os modos de regulação, além da implementação de sistemas quase imperceptíveis de controle e captação de informação, dos quais a maior parte dos usuários não tem ideia (o que os torna, portanto, ainda mais vulneráveis). Assim, são estabelecidos conjuntos normativos e hierarquias de poder ajustados aos projetos da rede de informações e comunidades ali constituídas.

Nesse sentido – e não seria diferente – faz-se uso da rede observando-se os mesmos padrões e patamares de quaisquer outros modos de comunicação e interação nos contextos mais diversos das instituições sociais.

É nesse aspecto que o relato do ocorrido com a Wikipedia aponta para o estabelecimento de um circuito de poder cuja principal matéria prima é a informação a ser disponibilizada no portal da enciclopédia. Tal poder é exercido por reduzido grupo de pessoas que evocam para si autoridade para aprovar, censurar, excluir ou incluir.

Por certo, não está em questão qualquer desqualificação de uma iniciativa como a Wikipedia, responsável por disponibilizar um leque extenso de informações ao grande público. Não por acaso o portal ocupa o 4º lugar em número de acessos, no cenário internacional. Mas há que se ressaltar: não se trata de uma enciclopédia livre. Não passa de mais uma coletânea de verbetes organizada a partir dos pontos de vista de grupos fechados de editores que, eventualmente, acolhem a colaboração de outrem, desde que esta corresponda às suas orientações, ideários e exercícios de poder…

Há vários títulos disponíveis no mercado, entre impressos e digitais. Façamos, deles, pois, bom uso. Mas não nos restrinjamos a eles. Produzamos pensamento de modo efetivamente dialogal. Busquemos aprender a partir das nossas diferenças. Sem, jamais, perder a elegância ou a civilidade. Preferencialmente, sem perder de vista a possibilidade da liberdade.

A tal liberdade, certa diferonça, e uma provocação para nos fazer pensar…
Revi, recentemente, a Trilogia das cores: azul, branco, vermelho, de Kieslowski. O ideário da Revolução Francesa é colocado em questão pelo cineasta, que duvida das utopias, e formula narrativas densas a partir do humano, do imensa e contraditoriamente humano. A versão brasileira do primeiro filme declara, já no título, que a liberdade é azul. Em inglês, a palavra blue (bleu), além de significar azul, evoca também o profundo sentimento de tristeza. Ali, estar livre é ter perdido os vínculos, e não desejar mais estabelecer relações. Liberdade é também isolamento. O cineasta pergunta: “As pessoas realmente querem liberdade, igualdade e fraternidade? Não é só uma figura de linguagem?”

Mas eu não me delongarei, aqui, sobre essa discussão. Já é suficiente pensar que a ideia de liberdade é escorregadia, e nos escapará entre os dedos toda vez que pretendamos defini-la, retê-la em nós… nada mais coerente, afinal…

Recentemente reli, também, o material que vem sendo produzido desde 1997 e disponibilizado, no formato WIKI, na rede mundial de computadores, intitulado Projeto AmaZone, ou, A onça e a diferença, daí, a diferonça. Desenvolvido no Núcleo de Transformações Indígenas, o NUTI, vinculado ao Museu Nacional da UFRJ, o projeto é coordenado e moderado pelo antropólogo e etnólogo Eduardo Viveiros de Castro. Ali, uma das palavras de ordem é alteridade.

Sem entrar no mérito das ideias veiculadas (que são, no mínimo, muito instigantes), ou em quaisquer outros méritos, gostaria de chamar a atenção para o formato WIKI, e para o fato de que o projeto está em contínua construção, em relação de diálogo entre os colaboradores que tenham alguma relação com o grupo de pesquisa. Há conteúdos que foram iniciados, mas ainda carecem de formatação. Alguns permanecem ali, fermentando, por anos… seus links indicam que ainda estão em construção. Outros tomam forma rapidamente, e estruturam de modo mais articulado os conceitos e informações de que pretendam dar conta. Não se trata de um projeto aberto a qualquer colaboração, de modo indiscriminado. Não se propõe a isso. Nem poderia. Mas se trata de um projeto aberto, na medida em que vai sendo construído no decurso do tempo, dos trabalhos de campo, dos estudos em desenvolvimento. Dessa forma, vai ganhando envergadura, complexidade. Além disso, está disponível ao grande público, dissemina informação e conhecimento. Seu formato também é flexível no sentido da própria escritura: alterna as línguas portuguesa, inglesa, espanhola; acolhe artigos e relatos de pesquisa cujas temáticas são afins, apresentando uma teia de produções muito interessante.

Quem sabe, a partir da diferonça não seja possível pensar/buscar/encontrar caminhos mais efetivos de compartilhamento e disseminação de ideários, pensamento, conhecimento, saberes que fervilham, em diversidade de pontos de vista, a partir das pesquisas e encontros que têm abrigo no PACC?

http://amazone.wikia.com/wiki/Projeto_AmaZone

E viva a diferença! Melhor: viva a diferonça, no melhor exercício de liberalteridade, se é que seja realmente possível alguma!

* Alice Fátima Martins é professora do Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual, na Faculdade de Artes Visuais da UFG, com pesquisa de pós-doutorado desenvolvida no Programa Avançado em Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ), financiada pela FAPERJ.

 

Lenin e a Microsoft | de Marco Schneider

1 INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é investigar alguns aspectos da articulação hegemônica entre economia, tecnologia e ideologia no universo atual das comunicações, bem como a possibilidade de articulações alternativas.
Empregamos o termo “comunicações” no plural, seguindo a distinção proposta por Lima (2004, passim), para definir um objeto de estudo que engloba as indústrias culturais, a informática e as telecomunicações, setores cada vez mais convergentes tecnológica e empresarialmente, em decorrência da revolução digital.

As comunicações são, hoje, simultaneamente agente econômico por si só destacado, base tecnológica imprescindível para a economia em geral e aparelho ideológico, não necessariamente “do Estado”, mas certamente das corporações midiáticas e do bloco de poder, mais ou menos coeso, que elas constituem com seus parceiros econômicos.

O emprego da noção “aparelho ideológico” pode sugerir que pretendemos requentar teorias supostamente obsoletas sobre o poder manipulatório da mídia. Como essa não é nossa intenção, cabe esclarecer desde já que não compartilhamos com as chamadas “teorias conspiratórias”, segundo as quais grupos de capitalistas sórdidos maquinariam, de modo consciente e organizado, a manipulação das mentes; tampouco com a crença em uma onipotência da mídia sobre as consciências. Por outro lado, é igualmente importante adiantar, acreditamos que a manipulação ideológica existe, pois é estruturalmente necessária à manutenção da sociedade de classes, ainda que seus agentes não “conspirem” de modo plenamente deliberado ou planejado, do mesmo modo como milhões de pessoas não “planejam” a cada dia, de modo coordenado, ir ao trabalho na mesma hora, lotando ônibus, trens, ruas e avenidas; não planejam, mas o fazem; e embora o efeito ideológico das ações das mídias sobre as consciências não possa rigorosamente ser identificado como absoluto ou unívoco, é suficientemente intenso e tendencialmente homogêneo a ponto de merecer alguma atenção.

2 QUADRO CONCEITUAL DE REFERÊNCIA

O quadro conceitual de referência dessa investigação é composto por algumas categorias marxianas um tanto ausentes do debate contemporâneo no campo da comunicação, mas cuja atualidade, propriedade heurística em relação ao nosso objeto e pertinência epistemológica ao campo pretendemos demonstrar.

Essas categorias são as seguintes: consciência de classe; ideologia; luta de classes; base e superestrutura; forças produtivas e relações de produção; modo de produção; trabalho. Como contribuição original ao debate, incluímos nesse rol o problema do gosto, que temos pesquisado nos últimos anos.

Iniciaremos a exposição com um esclarecimento desse quadro, que carrega em seu bojo, assim esperamos, a justificativa de sua escolha.

2.1 CONSCIÊNCIA DE CLASSE

Partindo da hipótese de que a substituição do capitalismo por formas superiores de socialização é desejável e não é inviável, mas ao mesmo tempo sabendo que uma operação de tal magnitude traz consigo a exigência da ação consciente de um sujeito coletivo, cuja identidade corresponde à posição que este ocupa em meio às relações de produção, portanto em meio à luta de classes, a consciência de classe permanece uma categoria necessária para o desenvolvimento de qualquer perspectiva de superação das sociedades de classe atuais. Ora, como não faria sentido hoje desconsiderar o papel das comunicações na formação das consciências e identidades em geral, é importante reinserir o debate teórico a respeito da consciência de classe em nosso campo.

A “consciência de classe” já foi um tópico muito debatido no legado marxiano, junto à problemática da ideologia, da “falsa consciência” etc. Embora tenha sido marginalizado por um século de descentramentos e mortes do “sujeito”, o fato de a subordinação estrutural do trabalho ao capital sequer ter sido arranhada, mesmo no chamado “socialismo real”, justifica nossa posição, cuja defesa se inicia desfazendo mal entendidos.

1º mal entendido: “a consciência de classe brotará espontânea e fatalmente das contradições entre forças produtivas e relações de produção”. Não é bem assim, embora, em mais de um momento, Marx e Engels possam ter dado margem a essa leitura, como na seguinte passagem de “A sagrada família”: “Não se trata do que este ou aquele proletário, ou até mesmo do que o proletariado inteiro pode ‘imaginar’ de quando em vez como sua meta. Trata-se ‘do que’ o proletariado ‘é’ e do que ele será obrigado a fazer historicamente de acordo com o seu ‘ser’.” (Marx; Engels, 2003a, p. 49)

Uma leitura apressada desta passagem pode justificar as velhas críticas ao caráter fatalista da “missão histórica” atribuída ao proletariado pelo marxismo, que teria sido desmentida pela história. Tal leitura, porém, pode ser evitada, considerando-se, por exemplo, que aquilo que o proletariado “será obrigado a fazer historicamente de acordo com o seu ‘ser’” ainda não pôde ser feito, ou talvez não dê certo.

Diversas passagens de Marx e Engels desmentem a leitura fatalista vulgar, deixando menos margens a dúvidas sobre sua posição a respeito dessas questões, ao apresentarem uma concepção da ação revolucionária do proletariado como possibilidade real, como uma tendência histórica necessária, como uma potência concreta do seu ser, não como uma determinação absoluta, garantida, irrevogável e cuja vitória esteja assegurada de antemão. Sem entrarmos em minúcias exegéticas, basta conferir os primeiros parágrafos do “Manifesto comunista” (MARX; ENGELS, 2003 b), onde, numa bem conhecida panorâmica analítica macro-histórica da luta de classes, é apontado, como um dos seus desdobramentos possíveis, o risco do “aniquilamento das classes em confronto”.

2º mal entendido: “as diversas formas de consciência seriam mecanicamente redutíveis às determinações econômicas”. Mészáros (1993, p. 75-119), em um texto intitulado “Consciência de classe necessária e consciência de classe contingente”, nos ajuda a refutar essa crítica, com uma reflexão que parte precisamente da passagem acima citada de “A sagrada família”, confrontando-a com uma outra, de Gramsci. Para Mészáros, ambas “ilustram, melhor que qualquer outra coisa, o dilema central da teoria marxista das classes e da consciência de classe.” (idem ibidem, p. 75) Por esta razão, é pertinente conhecermos também o texto de Gramsci:

Pode-se excluir a ideia de que, por si só, as ‘crises econômicas’ produzem diretamente eventos fundamentais; elas podem apenas criar ‘circunstâncias mais favoráveis’ para a propagação de certas maneiras de pensar, de colocar e resolver questões que envolvem todo o desenvolvimento futuro da vida e do estado. O elemento decisivo em toda a situação é a força, permanentemente organizada e pré-ordenada por um longo período, que pode ser utilizada quando se julgar que a situação é favorável (e ela é ‘favorável apenas até o ponto em que esta força exista’ e seja plena de ardor combatente); portanto, a tarefa essencial é a de atentar, paciente e sistematicamente, para a formação e o desenvolvimento dessa força, tornando-a até mesmo mais homogênea, compacta, ‘consciente de si mesma’. (GRAMSCI, apud MÉSZÁROS, op. cit. p. 76)1

Na sequência, Mészáros esclarece que a contradição entre a ideia de Marx de que o proletariado será “‘forçado’ a realizar sua tarefa histórica”, (MÉSZÁROS, op. cit., p. 76) e a de Gramsci, que “insiste em que a própria situação histórica é favorável somente na medida em que o proletariado já tiver conseguido desenvolver uma força organizada completamente consciente de si mesma” (idem ibidem, p. 76), é só aparente. Porque Marx e Gramsci estão tratando de coisas diferentes: o primeiro refere-se ao ‘ser social’ do proletariado, isto é, aos “determinantes complexos de uma ontologia social” 2, não a “crises econômicas’ – termos da polêmica de Gramsci contra o ‘economicismo vulgar’.” (idem ibidem, p. 76) Ou seja, não são posições antagônicas, mas complementares, pois as crises econômicas são apenas um entre outros fatores que podem favorecer a ação revolucionária das massas, embora não um dos menos importantes. Para Gramsci, porém, ainda mais importante é a pré-existência, em relação às crises econômicas, de “uma força organizada completamente consciente de si mesma”, condição para que essas crises se tornem, efetivamente, um elemento desencadeador da ação revolucionária. Esta ação, por sua vez, também faz parte do ser social do proletariado, enquanto potência, cuja atualização depende em grande parte não só de crises econômicas em termos genéricos, mas mais especificamente do desenvolvimento das forças produtivas entrar em contradição com as relações de produção e da emergência da consciência de classe. Essa contradição, contudo, embora constitua condição necessária para a emergência da consciência de classes em escala massiva, não é uma garantia de sua emergência, nem do resultado final da luta.

3º mal entendido: “a ‘consciência de classe’ verdadeira se oporia à ‘falsa consciência’ assim como a verdade se opõe à falsidade, ou a ciência à ideologia.” Na verdade, a noção marxista de consciência de classe “verdadeira” ou “falsa” é bem mais simples. Nos termos de Mészáros: “a consciência de classe, de acordo com Marx, é inseparável do reconhecimento – sob forma de consciência ‘verdadeira’ ou ‘falsa’ – do interesse de classe, baseado na posição social objetiva das diferentes classes na estrutura vigente da sociedade.” (MÉSZÁROS, op. cit., p. 88-9)
O que há de efetivamente decisivo na relação entre “posição social objetiva” e consciência de classe “verdadeira” ou “falsa”? A “subordinação estrutural necessária do trabalho ao capital na sociedade de mercadorias. […] O interesse de classe do proletariado é definido em termos de mudança dessa subordinação estrutural.” (idem ibidem, p. 92) Mas, afinal, por que o proletariado não se dá logo conta de seus “verdadeiros” interesses? A responsabilidade não cabe integralmente à indústria cultural, como queriam Adorno e Horkheimer, antes deriva do fato de que

os interesses a ‘curto prazo’ dos indivíduos particulares, e mesmo da classe como um todo, em um momento dado, podem estar em oposição radical ao interesse de mudança estrutural ‘a longo prazo’. (É por isso que Marx pode e tem que apontar a diferença fundamental entre a consciência de classe contingente ou “psicológica” e a consciência de classe necessária). (idem ibidem, p. 94)

Marx denominou esta “contradição entre a contingência sociológica da classe […] em um momento determinado […] e de seu ser como constituinte do antagonismo estrutural do capitalismo […] de contradição entre o ‘ser’ e a ‘existência’ do trabalho”, considerando que “o fator crucial na resolução dessa contradição é […] o desenvolvimento de uma consciência de classe adequada ao ser social do trabalho.” (idem ibidem, p. 95) 3

4º mal entendido: “o intelectual marxista se julgaria possuidor dA ciência e dA verdade sobre passado, presente e futuro da humanidade, cabendo-lhe ‘conscientizar’ o proletariado, isto é, iluminá-lo e doutriná-lo nas complexas sutilezas do materialismo dialético.” A posição marxista é bem menos pretensiosa. Diante do problema de como a consciência “falsa” pode ser superada pela “verdadeira”, ou como a “consciência contingente”, imediata, pode elevar-se à “consciência necessária”, que parte da posição econômica de classe do proletariado, mas é mediada pelo conhecimento acerca da subordinação estrutural do trabalho ao capital e do interesse (ainda predominantemente inconsciente) do trabalho de suprasumir essa subordinação estrutural, a contribuição do intelectual, embora necessária, é ao mesmo tempo mais modesta e mais abrangente, envolvendo, além da educação (conscientizar é simplesmente educar, não “iluminar”), análise, crítica e planejamento econômico, político e cultural, conjunto que abrange a questão da tecnologia. Se o intelectual não serve para isso, serve para quê?
Esperamos ter demonstrado que a consciência de classe “necessária” não brota espontaneamente do solo econômico, ao mesmo tempo em que certas condições econômicas são indispensáveis para o seu florescimento. Contudo, diante da hipótese bastante verossímil de essas condições já terem sido ao menos em parte atingidas, o desafio presente é descobrir (ou inventar) o que pode ser feito para estimular a emergência da consciência de classe necessária, articulada com um ‘pathos’ que lhe corresponda, em uma escala que torne efetivamente viável a perspectiva de superação das sociedades de classe subordinadas ao capital, em um horizonte de tempo calculável em algumas décadas – dizemos “em algumas décadas” porque “não temos um cronograma tão folgado para a necessária transformação da potencialidade em realidade. Isto deve acontecer com a agravante de uma enorme urgência.” (MÉSZÁROS, 2002, p. 267)

Enfrentar este desafio requer pensar o papel das comunicações no sentido de bloquear ou contribuir para a emergência da consciência de classe necessária. É um papel parcial, mas nem por isso negligenciável. Requer também, metodologicamente, o exame atento de certos conceitos que nos permitam pensar adequadamente a questão, bem como uma revisão dos esforços anteriores empreendidos no mesmo sentido, ao menos de alguns dos mais relevantes, de modo a podermos identificar sua eventual atualidade. Assim, após nos debruçarmos sobre a consciência de classe, tratemos agora de uma categoria vizinha, que traz consigo o complicador de ser um dos termos mais polissêmicos das ciências sociais: ideologia.

2.2 IDEOLOGIA

O termo “ideologia” foi cunhado na passagem do século XVIII para o XIX, por Cabnis e Destutt de Tracy, para denominar seu projeto de uma teoria das ideias4. Algumas décadas depois, adquiriu, com Marx e Engels, um novo sentido, claramente negativo. Ideologia, então, passou a designar especificamente as ideias que, de um modo ou de outro, legitimam a dominação de classe, estejam essas ideias situadas no discurso religioso, filosófico, jurídico ou econômico. A noção marxiana de ideologia, porém, não deve ser grosseiramente confundida com a de superestrutura, pois esta última envolve também a ciência e as artes, as quais, para Marx e Engels, não eram necessariamente ideologias.

Um sentido mais genérico do termo ideologia, popularizado por Engels, é expresso na noção de “falsa consciência”5. Aqui, é importante fazer alguns esclarecimentos. Em primeiro lugar, “falsa consciência” não é necessariamente o mesmo que “consciência contingente”, dado que esta última pode, em um determinado momento, corresponder à “consciência necessária” – no momento em que “ser” e “existência” do proletariado consigam suprasumir seu estado de contradição. Assim, a “falsa consciência” é a “consciência contingente” somente quando esta não corresponde à “consciência necessária”. Em segundo lugar, a noção de “falsa consciência” pressupõe, de fato, uma consciência verdadeira, mas esta, como vimos, não está na ciência, em termos genéricos, como pensa o positivismo, mas especificamente na compreensão científica da subordinação estrutural do trabalho ao capital. Assim, “falsa consciência” não é sinônimo de uma ilusão qualquer, mas de uma forma específica de ilusão, necessária a perpetuação do sistema e por ele mesmo possibilitada.
A seguinte passagem de Marx nos ajuda a entender melhor como a “falsa consciência” não consiste propriamente em uma irracionalidade qualquer, mas numa irracionalidade aparentemente racional, que é funcional ao sistema e que deriva da própria irracionalidade deste último:
A relação entre uma porção de mais-valia, de renda monetária […] com a terra é em si ‘absurda e irracional’; pois as magnitudes que aqui são aferidas, uma em relação à outra, são ‘incomensuráveis’ – por um lado, um ‘valor de uso particular’, um pedaço de terra de tantos metros quadrados, e, por outro, o ‘valor’, especialmente a mais-valia. Isso na verdade expressa apenas que, sob determinadas condições, a propriedade de tantos metros quadrados de terra permite ao proprietário conseguir à força uma certa quantidade de trabalho não-remunerado, que o capital conseguiu chafurdando nestes metros quadrados, como um porco em batatas. Mas, ao que parece, a expressão é a mesma se alguém desejasse falar da relação entre uma nota de cinco libras e o diâmetro da Terra.
Entretanto, a ‘reconciliação das formas irracionais’ sob as quais certas relações econômicas aparecem e se ‘afirmam na prática’ não diz respeito aos agentes ativos destas relações em sua ‘vida cotidiana’. E, como estão ‘acostumados’ a se movimentar em meio a tais relações, não acham nada estranho ali. Uma ‘absoluta contradição’ não lhes parece ‘nem um pouco misteriosa’. Sentem-se tão à vontade quanto um peixe dentro d´água, entre manifestações que estão separadas de suas conexões internas e são ‘absurdas’ quando isoladas. O que Hegel diz em relação a certas fórmulas matemáticas se aplica aqui: o que ‘parece irracional’ ao senso comum é racional, e o que lhe ‘parece racional’ é irracional.
(MARX, apud MÉSZÁROS, 2004, p. 478)

Isto ocorre porque, com o advento do capitalismo, radicaliza-se o processo mediante o qual a consciência imediata, contingente, dos sujeitos objetificados, passa a constituir-se em função da posição que ocupam enquanto forças produtivas (ou improdutivas) no circuito de produção e troca de mercadorias, ou seja, a partir de sua posição de classe6. Para o marxismo, esta consciência é “consciência necessária” quando compreende o caráter fetichista do processo e orienta a ação dos sujeitos objetificados no sentido de sua superação; é “falsa consciência” quando se rende à realidade “invertida”, quando não compreende este caráter e não se empenha em superá-lo na prática. Contudo, essa inversão não é uma espécie de “falha” fortuita do pensamento, mas uma forma coerente de pensamento derivada de uma realidade invertida: “A inversão não está no pensamento acerca dos ‘objetos’ (mercadorias), mas nos próprios ‘objetos’ (mercadorias), de modo que as representações ideológicas são reflexos corretos de uma realidade por assim dizer ‘falsa’, e não espelhamentos falsos ou invertidos da realidade.” (MAAR, 1996, p. 45)

Nessa mesma linha de raciocínio, Mészáros pensa a “falsa consciência” como um momento subordinado da ideologia, esta última entendida em um sentido mais amplo, enquanto consciência prática (de classe) necessária em uma sociedade dividida em classes antagônicas:

O reconhecimento das necessárias limitações da ideologia – originadas do papel que ela foi instada a desempenhar na preservação de sociedades profundamente divididas – significava que a questão da emancipação humana radical não poderia ser vislumbrada sem se considerar também a supressão final das formas distorcidas de consciência social. (MÉSZÁROS, 2004, p. 469)

Além disto, e isso é muito importante, “[…] a ideologia não é ilusão nem superstição religiosa de indivíduos mal-orientados, mas uma forma específica de consciência social, materialistamente ancorada e sustentada.” (idem ibidem, p. 75) É por isso que:

[…] se as causas identificáveis de mistificação ideológica fossem primariamente ideológicas, elas poderiam ser contrapostas e revertidas na esfera da própria ideologia. […] o impacto maciço da ideologia dominante na vida social como um todo só pode ser apreendido em termos da profunda afinidade estrutural existente entre as mistificações e inversões práticas, por um lado, e suas conceituações intelectuais ideológicas, por outro. (idem ibidem, p. 479)

Nesse sentido, o pensamento de Mészáros aproxima-se e complementa o do “velho” Lukács, de “Ontologia do ser social”:

[…] a correção ou falsidade [de uma ideação] não bastam para fazer de uma opinião uma ideologia. Nem uma opinião individual correta ou errônea, nem uma hipótese, uma teoria etc., científica, correta ou errônea são em si e por si uma ideologia: podem apenas […] tornar-se [uma ideologia]. Somente após se tornar veículo teórico ou prático para combater os conflitos sociais, quaisquer que sejam eles, grandes ou pequenos, episódicos ou decisivos para o destino da humanidade, elas são ideologia. (LUKÁCS, apud LESSA, 2002, p. 108) 7

Essa compreensão do conceito, para Mészáros, é decisiva, pois “sem se reconhecer a determinação das ideologias pela época como a consciência social prática das sociedades de classe, a estrutura interna permanece completamente ininteligível.” (2004, p. 67)

Mészáros, assim, emprega o conceito em um sentido mais neutro, na linha de Lênin, Gramsci e Lukács, diferente – mas não oposto – do sentido negativo popularizado por Marx e Engels8. Nesta acepção neutra, ideologia corresponde àquelas ideias, falsas ou verdadeiras, capazes de mobilizar amplos contingentes da população. Neste registro, podemos tranquilamente falar em uma ideologia socialista – o que para Marx e Engels não faria sentido – e em uma ideologia burguesa – o que para Marx e Engels seria uma redundância. Em todos os casos, a ideologia não é uma mera ilusão, correspondendo sempre, ainda que de forma altamente mediada, a um determinado estágio da articulação dialética entre forças produtivas e relações de produção, ou, em outras palavras, da luta de classes.

3 O PROBLEMA DA “PASSAGEM”, AS COMUNICAÇÕES E O GOSTO

Podemos agora retomar a questão da passagem da consciência de classe “contingente”, enquanto “falsa consciência”, à consciência de classe “necessária”. Talvez tenha sido o “jovem” Lukács, em “História e consciência de classe”, quem avançou mais nesse sentido, em seu esforço de teorizar a ideologia a partir da forma concreta como aquilo que ele denominava consciência “psicológica” poderia elevar-se, na prática, à consciência “atribuída”. 9
As noções de consciência de classe “psicológica” e “atribuída”, em Lukács, correspondem, respectivamente, às noções de consciência contingente e necessária, em Marx. Nos termos de Mészáros:

[…] a famosa distinção de Lukács entre a consciência de classe ‘atribuída’ ou ‘imputada’ e a consciência ‘psicológica’ tem sua origem na ideia marxiana que opõe consciência de classe verdadeira ou necessária – ‘atribuída ao proletariado’ em virtude de ele ser ‘consciente de sua tarefa histórica’[…] – à contingência do ‘que este ou aquele proletário, ou mesmo todo o proletariado, no momento, considera como sua meta’. (MÉSZÁROS, 1993, p. 86)

Tratando das diferenças ideológicas entre, de um lado, os operários empíricos, e de outro o proletariado enquanto “classe universal”, Lukács diferenciou a “consciência psicológica” dos primeiros da “consciência atribuída” da última, enxergando no partido comunista bolchevique a mediação entre contingência e necessidade, por ser a incorporação atuante, a mediação ativa, o portador da verdadeira consciência de classes do proletariado, à qual as massas operárias empíricas fatalmente teriam que ascender.

A ideia engenhosa do Partido como encarnação da consciência de classe “atribuída” do proletariado, contudo, se pode ter feito algum sentido conjuntural, em termos teóricos e práticos, por ocasião da Revolução de Outubro e até meados da década de 20, revelou-se, a longo prazo, irrealista e mesmo trágica, dado que o Partido, enquanto mediação singular entre o particular – o proletariado empírico – e o universal – o proletariado enquanto “classe universal”, ao invés de superar dialeticamente sua contradição, efetuando sua conciliação em um nível superior – a extinção de todas as classes e a superação da sociedade de classes –, por assim dizer estagnou a contradição em um estágio a longo prazo insustentável, mediante a subordinação do particular e do universal concretos ao “universal abstrato” encarnado na hipostasia do singular. Em termos menos abstratos, o Partido converteu-se, de unidade organizacional revolucionária, em unidade gerencial de extração de trabalho excedente sob uma forma estatizada, ainda que em nome de uma quimérica “acumulação primitiva socialista”. Como bem questionou Kurz (1993), acumulação de quê? De capital! Acumulação de recursos ou de riquezas a serem distribuídos, ainda que de modo menos desigual do que nos estados capitalistas, como legitimação de uma “relação social” (RUBIN, 1980) ainda calcada na extração de trabalho excedente como fim em si mesmo, apesar dos discursos apologéticos.

Enfim, os rumos tomados pelo stalinismo e pelos PCs por ele orientados desacreditaram, até segunda ordem, a elegante mas problemática articulação entre método dialético e estratégia revolucionária de Lukács, em “História e consciência de classe”10. A esperança de Rosa Luxemburgo de que essa consciência emergiria quase que espontaneamente das massas, no decorrer da própria luta, mostrou-se igualmente irrealista.

Permanecemos, assim, com nosso dilema: como efetuar, na práxis, a passagem da consciência de classe “contingente/psicológica” à consciência de classe “necessária/atribuída”? Não se pretende aqui resolver de uma vez por todas as complicadas implicações dessa problemática. Mas talvez o projeto gramsciano de composição gradual de um bloco histórico não “putchista”, que aproxime intelectuais e trabalhadores, visando a conquista da hegemonia ideológica na sociedade civil mais do que a conquista do Estado, siga sendo a mais fértil para se pensar a questão nos dias de hoje.
Para atualizar esse projeto é absolutamente necessário incorporar ao debate a centralidade econômica, tecnológica e ideológica que as comunicações exercem na sociedade civil – e, em certa medida, no Estado.

Aqui chegamos ao ponto onde talvez possamos oferecer uma contribuição original ao problema da “passagem”. Para isso, retomaremos uma hipótese que desenvolvemos em outra ocasião11, segundo a qual o gosto é a inconsciência sensível da ideologia e na ideologia; dela provém e ao mesmo tempo a sustenta; é sua inscrição no corpo. E a assimilação reificante dos gostos ao modo de vida capitalista foi a única forma, além da violência, de minimizar as contradições de seu desenvolvimento, e é a única forma de assegurar sua sobrevida insana e destrutiva. As ideologias só “colam” se seduzirem os gostos. E aí o papel das comunicações se mostra sob uma nova luz.

O gosto, usualmente identificado à esfera do consumo12, só se torna restrito a essa esfera a partir do momento em que é subordinado aos imperativos do capital na esfera da produção, isto é, na medida em que quem trabalha não controla no que trabalha, nem como trabalha, nem os frutos do trabalho. O fim dessa subordinação constitui talvez o objetivo principal do projeto socialista. Nos termos de Marx, “em uma sociedade futura, na qual o antagonismo de classe tenha deixado de existir, na qual não haverá mais classes, o uso não mais será determinado pelo ‘tempo mínimo de produção’; mas o ‘tempo’ de produção será determinado pelo grau de sua ‘utilidade social’.” (MARX, apud MÉSZÁROS, 2004, p. 176)

Assim, para além dos limites do fetiche do valor (em um nível mais alto de abstração) ou da solvência monetária (em um nível mais imediato), se é o gosto que efetivamente orienta o consumo, ele passaria a constituir não somente a única meta da produção, mas carregaria a própria produção de inspiração, no sentido empregado por Abraham Kook13 e seus comentadores, conforme podemos conferir nas belas alegorias que seguem, referentes ao tema bíblico da “queda”:

“As árvores que dão o fruto […] se tornaram matéria inferior e perderam seu gosto. Esta é a queda da ‘Terra’, em função da qual esta foi amaldiçoada, quando Adão foi igualmente amaldiçoado por seu pecado. Mas todo defeito é destinado a ser corrigido. Assim, estamos seguros que chegará o dia em que a criação retornará ao seu estado original, quando o gosto da árvore será o mesmo que o do fruto. A ‘Terra’ se arrependerá de seu pecado e os caminhos da vida prática não mais obstruirão o deleite do ideal, que é sustentado pelos degraus intermediários apropriados em seu caminho rumo à realização, e irá estimular sua emergência de potência em ato”14.

Nesta passagem, Rav Kook lida com o famoso ‘midrash’15 concernente ao ‘pecado da Terra durante os Seis Dias da Criação’. No terceiro dia, Deus ordenou à Terra que ‘produza ÁRVORES FRUTÍFERAS que dêem frutos’. A Terra desviou-se do comando original e limita-se a produzir ‘árvores que dão frutos’. Aos olhos dos Sábios, a Terra pecou por não produzir ‘árvores frutíferas’, isto é, árvores cujos troncos e galhos tenham o gosto do fruto. Ao invés disso, temos somente o exterior marrom usado para fogueiras, enquanto somente o fruto possui um gosto bom. […] Rav Kook explica este ‘midrash’ como uma parábola: fruto = os fins; gosto ‘[ta’am]’16 = a inspiração; árvore = os meios para que se atinja os fins. […] Originalmente os meios para se atingir os fins deveriam estar plenos do mesmo sentimento de prazer e inspiração que resulta dos fins. A satisfação dos fins penetraria o processo dos meios. Porém, o pecado da Terra deixou toda a inspiração nos fins, restando os meios sem gosto.[…] 17

A Terra, então, “pecou” (isto é, falhou), já que os troncos e galhos das árvores não possuem o gosto dos frutos. Se os troncos e galhos simbolizam os meios para se atingir a meta (o fruto), e deveriam ser da mesma ordem de inspiração (de gosto, sabor/saber) que os fins, não o são porque a Terra falhou. É aqui, pois, um problema da matéria (da imanência). Por outro lado, a missão transcendente do homem, isto é, o sentido de sua vida, seria redimir o “pecado” / falha da Terra, restaurando / realizando a ordem “divina”, ao tornar os meios de se atingir um fim tão inspiradores (saborosos e plenos de significado) quanto o próprio fim.

Depurado o tom religioso do texto, está dito aí que, através de sua práxis, a princípio penosa, o homem deve transcender o “pecado original da Terra”, redimindo-a,18 e estabelecer aquela ordenada por “Deus”, segundo a qual os meios têm que ser inspiradores e sagrados, isto é, plenos de sabor e significado, de gosto. Essa passagem adquire um significado materialista extraordinário se lida à luz do seguinte trecho de “A sagrada família”:

[…] o homem se perdeu a si mesmo no proletariado, mas ao mesmo tempo ganhou com isso não apenas a consciência teórica dessa perda, como também, sob a ação de uma ‘penúria’ absolutamente imperiosa – a expressão prática da ‘necessidade’ –, que já não pode mais ser evitada nem embelezada, foi obrigado à revolta contra essas desumanidades; por causa disso o proletariado pode e deve libertar-se a si mesmo. Mas ele não pode libertar-se a si mesmo sem supra-sumir suas próprias condições de vida. Ele não pode supra-sumir suas próprias condições de vida sem supra-sumir ‘todas’ as condições de vida desumana da sociedade atual, que se resumem em sua própria situação. Não é por acaso que ele passa pela escola ‘do trabalho’, que é dura mas forja resistência. (MARX; ENGELS, 2003 a, p. 49)

Sob esse prisma, a “ordem divina” pode ser pensada como um ideal radicalmente humano, na medida em que cabe ao homem a responsabilidade por sua realização. Esta responsabilidade, todavia, não precisa ser pensada como uma obrigação exterior, mas como um poder de autorrealização, já que se trata de uma parceria com “Deus”, e o homem traria em si o elemento “divino”, isto é, a potência de transcender historicamente as limitações naturais imediatas – consequentemente, as limitações sociais subsequentes – no devir histórico. Como ensina Paulo Blank, quando se refere ao “encontro fundador de Deus e Moisés”:

Quando o último pergunta em nome de quem ordenará ao faraó que liberte os hebreus, a voz que lhe fala de dentro do fogo diz: ‘Ehiê Asher Ehiê – Serei O Que Serei’. A versão grega do texto bíblico traduzirá a mesma frase como ‘Sou O Que Sou’. São palavras diferentes (…) O hebraico, que não possui o presente do verbo ser, permite pensar um mundo criado à imagem da mutabilidade e da transformação (…) Diríamos, então, junto com Guikatilla, cabalista espanhol do século 11, que aquele que realiza os preceitos e os atos justos ‘é como se construísse Hashém – o nome de Deus’. Construir o Nome é, sem dúvida, intrigante. Transforma-nos em possíveis parceiros na construção de um futuro que, chamado de Deus, traz em si um princípio que aponta para o futuro como o lugar da revelação. Como sabemos, o sentido judaico da revelação é também o cenário de um mundo de justiça e paz e não a salvação individual da alma. (BLANK, 2002, p. 3)

O que isto significa? Tendo a necessidade do trabalho sem inspiração, sem significado, sem sabor, isto é, sem gosto, se imposto desde os primórdios, seguiu-se o desejo de um paraíso que nos libertasse da condenação ao trabalho, “realizado” na religião, mediante a construção discursiva de um projeto divino que promete o paraíso e explica as razões de seu adiamento temporal, e nas mais diversas utopias políticas19, com sua elaboração de um projeto humano de teor aproximado.

Mais de um autor já apontou essa familiaridade entre a “escatologia” marxista e o messianismo: trazer à Terra o reino dos céus pela ação humana. De fato, ambas têm em comum a insatisfação com uma realidade – em todo caso social, ainda que isto não esteja sempre evidente no discurso religioso – passível de transformação, insatisfação a partir da qual ocorre a elaboração ideal dos meios e fins necessários à tarefa, que irão variar conforme as condições históricas favorecerem ou não o desenvolvimento de projetos menos ou mais realistas.

Ocorre, porém, que a despeito do que possa haver em comum entre messianismo e marxismo, é óbvio que os fundamentos teóricos e a forma específica de ambas as perspectivas variam imensamente, sobretudo no que tange ao fato de que, e agora iremos desfazer mais um mal entendido corrente, o marxismo não concebe nenhum “fim da história”, nenhuma “idade de ouro” definitiva, instaurada de uma vez por todas, mas o fim da pré-história, o início da história humana, isto é, consciente de si, livre de fetiches, não alienada:

O que dá sentido à opção humana pelo socialismo não é a promessa enganadora de um absoluto fictício (um mundo do qual todas as possíveis contradições estejam eliminadas para sempre), mas a possibilidade real de transformar uma tendência ameaçadoramente crescente de alienação numa tranquilizadora tendência decrescente. Isso, em si, já seria uma conquista qualitativa no sentido de uma superação prática, efetiva, da alienação e reificação. Mas outras conquistas importantes são possíveis, não só no plano da inversão da tendência geral, mas também em relação ao caráter substancialmente diferente – autorrealizador – das formas específicas da atividade humana, livres da sujeição a meios alienados a serviço da perpetuação das relações sociais de produção reificadas.
A substituição das “mediações de segunda ordem” capitalistas, alienadas e reificadas, por instrumentos e meios de intercâmbio humano conscientemente controlados é o programa socio-historicamente concreto desta transcendência.
(MÉSZÁROS, 2006, p. 228)

Nesse sentido, as comunicações seriam talvez os mais importantes dentre esses “instrumentos e meios de intercâmbio humano conscientemente controlados”. Por outro lado, considerando seus principais usos atuais, as comunicações, em especial as indústrias culturais, têm contribuído antes para a manutenção da separação dos fins, dos meios e da inspiração, isto é, para a perpetuação da divisão da sociedade em classes: 1) privilegiando o sabor sem saber na esfera do consumo e o saber sem sabor, meramente instrumental, na esfera da reprodução social, calcada na ideologia da divisão trabalho (alienado) / lazer (consumista); 2) subordinando toda produção simbólica socializada a imperativos econômicos de ganho de escala; 3) retroalimentando de modo reificante gostos e padrões de comportamento; 4) martelando a defesa da sociedade de mercado, direta ou indiretamente, na quase totalidade de seus produtos (jornalismo, publicidade, entretenimento); 5) forjando um imaginário coletivo que é em grande parte comum, apesar de desprovido de grande parte dos lastros das experiências concretas comuns, e é altamente diferenciado, sem lastro em boa parte das experiências concretas diferenciadas, borrando tendenciosamente as fronteiras entre vivência e representação, estimulando assim os mais alucinados “bovarismos” integrados; 6) homogeneizando gostos, práticas e mundivisões através de um processo de recalcamento de produção simbólica, que existe em potência e em ato nas experiências concretas extramidiáticas – não-comuns em escala massiva, mas fragmentadas em classes e frações de classes, gêneros, etnias, faixas etárias, nacionalidades etc. –, mascarando assim a luta de classes e seus desdobramentos culturais. Mascarando-a, porém, sem eliminá-la; pois se as comunicações contemporâneas praticamente conquistaram para si alguns dos tradicionais atributos divinos, isto é, a onipresença e a onisciência, não dispõe de onipotência. E é precisamente na potência das práticas concretas extramidiáticas ou intramidiáticas alternativas, nos movimentos de luta, cooperação e resistência à coisificação e obsolescência biológica, cultural e política, que reside o detonador da transcendência histórica, da conversão da quantidade em qualidade, de necessidade em liberdade, do sabor e do saber em gosto, em inspiração.

Juntemos algumas pontas soltas. Em termos materialistas, o “pecado da Terra”, causa da “queda” e do “Mal”, consiste na ausência de gosto (sabor, significado e inspiração) nos meios de se obter satisfação, devido à escassez, à brutalidade dos elementos e das feras, à resistência, com frequência extrema, da natureza face ao homem, fatores com os quais ele tem de lidar em busca de satisfação, mesmo das necessidades mais elementares, o que gera, além de desgosto, medo, dor e trabalho pesado. Este último, no entanto, é a condição de sua própria superação: se todos os meios para que se atinja qualquer fim poderiam ser simplesmente chamados de trabalho, a “condenação divina” que pesa sobre o homem – “ganharás teu pão com o suor de tua face” – reproduz, de modo invertido, uma condenação real, mas historicamente superável a partir de sua própria contradição interna: a ausência de gosto – de sabor, de significado e de inspiração – no trabalho não-livre, em todas as suas formas históricas.

4 LENIN E A MICROSOFT

É por essas razões que um dos principais objetivos do projeto socialista é a extinção do trabalho não-livre em sua forma atual, ou seja, o fim da escravidão assalariada, carente de sabor e de significado, isto é, de gosto. Nos termos de Mészáros:

É evidente que quando a atividade vital do homem é apenas um meio para um fim, não se pode falar de liberdade, porque as potências humanas que se manifestam nesse tipo de atividade são ‘dominadas’ por uma necessidade exterior a elas. Essa contradição não pode ser resolvida a menos que o trabalho – que é um simples ‘meio’ na presente relação – se torne ‘um fim em si mesmo’. Em outras palavras: apenas se o trabalho chega a ser uma ‘necessidade interior’ do homem é que será possível referir-se a ele como “atividade livre”.
É o que diz Marx quando fala do “homem rico” cuja “efetivação própria existe ‘como necessidade interior, como falta20’”. Sua definição de “liberdade como uma ‘necessidade interior’ não exige um ‘reconhecimento da necessidade’” abstrato e conceitual, mas sim uma ‘necessidade positiva’. Somente se existir essa necessidade positiva como uma necessidade ‘interior’ de trabalhar é que o trabalho poderá perder seu caráter de necessidade ‘exterior’ ao homem.
Uma vez que apenas enquanto necessidade positiva, como necessidade interior, o trabalho é ‘gozo’, então a autorrealização, a plenitude humana, é inseparável do aparecimento dessa necessidade positiva. A ‘liberdade’ é, assim, a realização da finalidade própria do homem: ‘a autorrealização no exercício autodeterminado e externamente não-impedido dos poderes humanos’. Como autodeterminação, a base desse exercício livre dos poderes humanos não é um “imperativo categórico” abstrato, que permanece ‘exterior’ ao ser humano real, mas uma necessidade positiva efetivamente existente de trabalho ‘humano’ autorrealizador. Assim, os meios (trabalho) e fins (necessidades) nesse ‘processo’ de humanização transformam-se mutuamente em atividade verdadeiramente humana, feita de gozo e autorrealização, por intermédio da qual poder e finalidade, meios e fins, surgem numa unidade natural (humana). (MÉSZÁROS, 2006, p. 170) 21

É disso que se trata quando falamos de resgatar o gosto cooptado pelo capital da esfera do consumo e inseri-lo na esfera da produção, como inspiração, na execução, da forma menos penosa que se puder, de tarefas coletivamente determinadas por pessoas livres e conscientes.

As comunicações podem e devem ser instrumentalizadas no sentido de solucionar este problema. Zizek, partindo de Lênin, nos dá uma boa pista de como isso pode ser efetivamente posto em prática:

As ideias de Lênin sobre como a estrada para o socialismo corre através do terreno do capitalismo monopolista podem parecer perigosamente ingênuas hoje: “O capitalismo criou um aparato contábil na forma de bancos, sindicatos, correios, associações de consumidores e organizações de empregados de escritório. Sem grandes bancos o socialismo seria impossível. […] nossa tarefa agora é meramente podar aquilo que capitalisticamente mutila esse excelente aparato, torná-lo ainda maior, ainda mais democrático, ainda mais inclusivo. […] seria […] algo como o esqueleto da sociedade socialista.” […] E se alguém substituísse o (obviamente datado) exemplo do banco central pela “World Wide Web” […]? Dorothy Sayers sustentou que a Poética de Aristóteles é efetivamente a teoria das histórias de detetive “avant la lettre¬” – como o pobre Aristóteles ainda não conhecia as histórias de detetive, ele teve que fazer menção aos únicos exemplos que lhe estavam disponíveis, as tragédias… Nessa mesma linha de raciocínio, Lênin estaria efetivamente desenvolvendo a teoria do papel da World Wide Web, porém, dado que ele não conhecia a WWW, ele teve que fazer menção aos desafortunados bancos centrais. Consequentemente, alguém pode também dizer que “sem a World Wide Web o socialismo seria impossível. […] nossa tarefa agora é meramente podar aquilo que capitalisticamente mutila esse excelente aparato, torná-lo ainda maior, ainda mais democrático, ainda mais inclusivo” […] Não haveria na World Wide Web um potencial explosivo também para o próprio capitalismo? A lição do monopólio da Microsoft não seria precisamente a de Lênin: ao invés de combater o seu monopólio através do aparato do estado (recorde-se a divisão da Micrsoft Corporation por decisão judicial), não seria mais “lógico” simplesmente SOCIALIZÁ-LA, tornando-a gratuitamente acessível?22

Isto é, as comunicações, em meio às quais a Microsoft Corporation ocupa um dos papéis mais ilustres, podem e devem ser instrumentalizadas em termos não só ideológicos, mas administrativos e logísticos, considerando-se a sua centralidade no conjunto da economia. Esta operação é absolutamente fundamental, pois como bem lembra Mészáros:

Não basta […] argumentar a favor de uma nova orientação ideológico-política caso se mantenham tal como hoje as formas institucionais e organizacionais relevantes. Se, em sua resposta por inércia às circunstâncias históricas que já não são as mesmas, a desorientação corrente é a manifestação combinada dos fatores prático-institucional e ideológico, seria ingênuo esperar uma solução no que muitos gostam de descrever como “clarificação ideológica”. De fato, enquanto os dois devem desenvolver-se juntos nessa reciprocidade dialética, o “ubergreifendes Moment” (momento predominante) na conjuntura atual é a estrutura prático/institucional da estratégia socialista, que precisa reestruturar-se de acordo com as novas condições. (MÉSZÁROS, 2002, p. 787-8)

Se isto é verdadeiro, e julgamos que sim, é pertinente repensarmos a dialética base / superestrutura à luz do enorme desenvolvimento tecnológico recente das comunicações. Nessa linha de raciocínio, identificamos nas comunicações atuais um momento no qual a produção simbólica é absorvida por sua base mercantil, não o contrário, como apregoam os defensores da “sociedade da informação”. A disputa ideológica contra a ideologia hegemônica, portanto, para ter alguma chance de sucesso, deve ser articulada com uma disputa político-jurídica pela socialização da propriedade das comunicações.

 

5 O CAVALO DE TROIA x O CAVALO DE TROIA DO CAVALO DE TROIA OU O GRÃO UTÓPICO NA CULTURA MASSA

Caso permaneça produtivo o emprego dos conceitos consciência de classe, ideologia e luta de classes, junto ao par base e superestrutura, tanto para os estudos sociais em sentido mais geral, quanto para aqueles mais específicos, como os do campo da Comunicação Social, essa verdade traz consigo a exigência de uma espécie de bifurcação metodológica: ou se dedica atenção especial às inúmeras mediações de ordem extraeconômica que atuam no âmbito das comunicações, assumindo-se a posição de que os interesses políticos e econômicos envolvidos são somente dois fatores a mais entre tantos outros, de peso equivalente; ou se admite que, embora as mediações extraeconômicas, envolvidas nos processos de produção, circulação e consumo das comunicações, não devam ser deixadas de lado, publicidade, entretenimento e informação vêm se convertendo, de forma cada vez mais abrangente, no “cavalo de troia” de determinados interesses políticos e econômicos, cujo peso é decisivo para uma compreensão adequada desses mesmos processos e de seu papel predominantemente conservador.
Nos termos de Ramonet:

Antes podíamos dizer que uma empresa jornalística vendia informação aos cidadãos, enquanto hoje uma empresa midiática vende consumidores a seus anunciantes. Quer dizer, a AOL-Time Warner, por exemplo, vende a seus anunciantes – Nike, Ford, General Motors – o número de consumidores que possui. Essa é a relação dominante. (RAMONET, 2003, p. 248)

Desdobrando esse raciocínio, logo percebemos que as comunicações exercem um triplo papel nas sociedades contemporâneas: 1) enquanto dispositivo de produção, circulação e consumo de bens materiais e simbólicos, constituem um setor econômico de ponta; 2) enquanto dispositivo de sedução, participam ativamente na geração da demanda pelos bens materiais e simbólicos existentes, sejam aqueles diretamente produzidos por elas (produtos da indústria cultural e equipamentos necessários ao seu consumo), aqueles nos quais elas participam na produção (tudo que envolva informática e telecomunicações) e aqueles que elas simplesmente anunciam (qualquer mercadoria); e 3) enquanto dispositivo de (in)formação, socializa, em diversas escalas, um determinado repertório de representações do real, que incluem os bens materiais e simbólicos, junto a sistemas classificatórios, ou códigos valorativos, que dispõem esses bens e representações, uns em relação aos outros, em hierarquias entrecruzadas, menos ou mais complexas.

Este é um dos lados da moeda, o lado mais forte atualmente, o lado da hegemonia. Por outro lado, o fato de os interesses hegemônicos serem em grande parte contraditórios, entre si e, sobretudo, com os interesses da maioria das pessoas – que vivem do trabalho e compõem a massa consumidora –, mesmo que estas últimas não tenham clara consciência desses interesses, esse simples fato representa uma espécie de “cavalo de troia” do “cavalo de troia”.

Um exemplo dessa contradição está no jornalismo, principalmente no telejornalismo. Seu objetivo último é cativar imensas audiências para os anunciantes dos intervalos comerciais. Mas para fazê-lo, é necessário que os programas possuam e conservem credibilidade junto à população, o que requer que estejam minimamente comprometidos com a verdade factual, ainda que a divulgação desta verdade eventualmente entre em choque com os interesses particulares da empresa de comunicação que produz o telejornal ou de setores mais amplos do capital dos quais ela é aliada. Além disso, há, entre os jornalistas, muitos que não pensam “como o patrão”, que possuem, em graus variados, consciência de classe, além de uma relativa autonomia produtiva.

No campo da música, do cinema e até da teledramaturgia, é inegável que, apesar de todas as tendências dominantes, canções, filmes e programas efetivamente inventivos conseguem, aqui ou ali, aparecer no universo das comunicações. No campo do ciberespaço, seu potencial democratizante e pluralista tem sido exaustivamente estudado e demonstrado, embora com frequência com uma carga excessiva de otimismo. Mesmo assim, esse potencial, enquanto potencial, parece inquestionável.

Quanto à publicidade, a mais “integrada” das esferas das comunicações, há que se considerar que, dado que para ser convincente, deve agradar, na busca pela atenção da audiência, a despeito dos apelos grosseiros mais óbvios e de seu conteúdo ideológico tendencialmente conservador, ela não deixa também de explorar e socializar experiências formais que, de outro modo, talvez permanecessem restritas aos nichos de vanguarda, ou a culturas distantes, contribuindo assim para uma maior abertura no repertório de referências culturais e na sensibilidade estética das audiências.23

Nesse ponto, entramos em rota de colisão com Adorno, já que, para ele, “os padrões estéticos inconscientes das ‘massas’ são precisamente aqueles de que a ‘sociedade necessita’ para se perpetuar e perpetuar seu domínio sobre as massas.” (ADORNO, apud MÉSZÁROS, 2004, p. 157, nota 35)
É uma sentença intrigante, mas com a qual se pode concordar integralmente. Porque se Adorno acerta na definição de um dos aspectos constitutivos do controle social, talvez mesmo do aspecto predominante nos últimos tempos, por outro lado não se dá conta que o momento revolucionário, que existe em estado latente como potência concreta, igualmente pressupõe “padrões estéticos inconscientes”, mas de uma natureza não integrada, não mimética, que podem ser identificados no gosto das massas por alguns produtos das comunicações, ou por alguns elementos de todos eles, para não falar de formas estéticas de resistência ou híbridas / experimentais, no campo da produção simbólica extramidiática.

Há um importante artigo de Fredric Jameson que aponta nessa direção, cujo norte é, sem perder o gume crítico em relação às mercadorias culturais da indústria cultural e de sua importância política e econômica, distinguir o “Cavalo de Troia” no “Cavalo de Troia”, ou o que ele denomina “grão utópico” na cultura de massa, mesmo em produtos cujo caráter ideologicamente reacionário é mais ou menos óbvio. Nas palavras de Jameson:

[…] as obras de cultura de massa não podem ser ideológicas sem serem, em certo ponto e ao mesmo tempo, implícita ou explicitamente utópicas: não podem manipular a menos que ofereçam um grão genuíno de conteúdo, como paga ao público prestes a ser tão manipulado. Mesmo a “falsa consciência” de um fenômeno monstruoso como o nazismo nutriu-se de imaginários coletivos de tipo utópico, sob roupagem tanto socialista como nacionalista. […] as obras de cultura de massa, mesmo que sua função se encontre na legitimação da ordem existente – ou de outra ainda pior – não podem cumprir sua tarefa sem desviar a favor dessa última as mais profundas e fundamentais esperanças e fantasias da coletividade, não importa se de forma distorcida. (JAMESON, 1995, p. 30)24

Mais adiante, o autor desenvolve este ponto da seguinte maneira:

Em meio a uma sociedade privatizada e psicologizada, obcecada pelas mercadorias e bombardeada pelos slogans ideológicos dos grandes negócios, trata-se de reacender algum sentido do inerradicável impulso na direção da coletividade, que pode ser detectado, não importa quão vaga e debilmente, nas mais degradadas obras da cultura de massa, tão certo como nos clássicos do modernismo. Eis a indispensável precondição de qualquer intervenção marxista significativa na cultura contemporânea. (idem ibidem, p. 34-5)

Essa hipótese de Jameson é muito importante no sentido de não se perder de vista o caráter contraditório interno da cultura de massa, reflexo das contradições sociais mais amplas, e para que não se caia no pessimismo imobilizante de Adorno.

Cabe então desvendar o que pode haver no gosto das massas de substrato sensível da ideologia, não só enquanto “falsa consciência”, mas também enquanto consciência de classe “necessária” ou “atribuída”, isto é, revolucionária. Esse desvendamento é necessário para que se possa pensar em deslocar o gosto da esfera mais passiva do consumo à esfera mais ativa da produção, reorientando a produção social – material e simbólica – no sentido da satisfação de gostos não cooptados pelas formas integradoras do capital. O mundo digital, embora por si só não resolva a questão, sem dúvida abre novas possibilidades de pensamento e ação nesse sentido.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O gosto, este saber dos sabores e vice-versa, é o substrato sensível de ideologias e práxis hegemônicas somente em sua positividade atual, passiva e imediata. Sua negatividade dialética, ativa e mediata, consiste em sua potência concreta de despertar práxis contra-hegemônicas. Ou seja, o gosto, em um primeiro momento, não diz respeito diretamente, imediatamente, à consciência de classe necessária, mas mediatamente, isto é, enquanto momento de uma mediação possível da consciência de classe “contingente” à “necessária”. Diz, assim, respeito ao momento da passagem possível da consciência em si à consciência para si. Porque o gosto traz em si um “pathos” revolucionário recalcado sob as mil manifestações do “ethos” conformista da ideologia hegemônica. Em um segundo momento, porém, diante de circunstâncias objetivas mais favoráveis, a tensão entre esse “pathos” e o “ethos” dominante pode resultar em sutura, em uma unidade superior de sensibilidade e consciência, a qual deverá servir imediatamente como sustentação psicológica e motivacional da consciência de classe necessária.

Uma ideia parecida com essa está implícita nas esperançosas palavras de Muniz Sodré: “[…] no bojo das novas condições de existência geradas pela ciência e pela tecnologia, a força ético-política da paixão de viver poderia impedir que a integração harmônica da máquina seja equivalente à assimilação do capital como ‘natureza’ à consciência do homem”.25

Trata-se, em suma, de pensar a noção de gosto cindido em prazer / desprazer e conhecimento / ignorância, a qual, por sua vez, remete à negatividade dialética da consciência de classe “contingente”, enquanto “falsa consciência”, dado que, se esta é positivamente, imediatamente, atualmente, fator constituinte da classe-em-si, negativamente, mediatamente ou potencialmente o é da classe-para-si, capaz de extinguir a si mesma e a todas as classes, portanto a sociedade de classes, promovendo a sutura no gosto em prazer, conhecimento e inspiração, articulados em um nível superior. Ou seja, a noção de consciência de classe “contingente” enquanto “falsa consciência” deve ser entendida, ao mesmo tempo, 1) como tensão entre sua positividade de não-reflexão atual e sua negatividade de reflexão potencial, e 2) como identidade de classe inconsciente, pulsional, passível de simbolização, de exteriorização, de objetivação na práxis, de incorporação à consciência portanto, convertendo nesse momento a consciência em si em consciência para si, através dessa práxis transformadora.

A ideologia, no recorte proposto, é sempre uma formulação dos gostos. Estes, por sua vez, são estruturações historicamente variáveis das subjetividades e das práticas intersubjetivas, ambas determinadas positiva e negativamente, em última instância, pelos vetores econômicos contraditórios de cada formação social; em outras palavras, limitadas em suas possibilidades de objetivação pelas contradições entre o modo de produção hegemônico, os resquícios de sua pré-história e de seus estágios passados, e as possibilidades de superação de si que em si carregam. “Modo de produção” é a forma como as pessoas produzem e reproduzem em sociedade suas condições de vida, nada mais que isso. Se essas formas não são determinadas pela vontade dos sujeitos, mas por imperativos cegos, os gostos como todo o resto permanecem limitados por estes imperativos. É necessário libertá-los. Isso não pode ser feito sem a socialização das comunicações.
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* Marco Schneider é doutor em Ciências da Comunicação (USP). Professor adjunto da Universidade Federal Fluminense – UFF – e professor assistente da Escola Superior de Propaganda e Marketing (RJ). Desenvolve a pesquisa de pós-doutorado no Programa Avançado de Cultura Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, intitulada “Culturas da Periferia, Culturas Digitais e Cidadania: Por uma Articulação dos Estudos Culturais com a Crítica da Economia Política”.
NOTAS

1 A passagem de Gramsci citada por Mészáros pertence a uma edição intitulada “The modern prince and other writings”.

2 Sobre as noções de “ontologia social”, de “ser” e “existência” do proletariado, e de “ontologia do ser social”, ver, além do texto acima citado de Mészáros, LUKÁCS (1979).

3 É aí que entram as comunicações, como veremos mais detidamente adiante.

4 Sobre essa origem do termo, cf. ALTHUSSER (1985, p. 81). Ver também HALL (1980) e LÖWY (1985).

5 Ver LARRAIN (1996).

6 Não que as consciências dos sujeitos sejam redutíveis a sua posição de classe. O que se quer dizer é que esta posição é o fator em última instância determinante do complexo de mediações que formam as consciências.

7 A esta citação de Lukács segue o comentário de Lessa: “Não é, portanto, o conteúdo gnosiológico de uma ideação que a torna ideologia, mas sim sua função social específica: ser veículo dos conflitos sociais […]”.

8 Cf. LARRAIN (op. Cit., passim) e WILLIAMS (1985, p. 154-5).

9 Cf. Mészáros, 1993.

10 Não obstante, o esgotamento do papel histórico do partido comunista de inspiração bolchevique (“marxista-leninista”) é um tema controverso. Sobre este tema, ver ZIZEK (2005) e “Repeating Lenin”. Documento eletrônico: http://www.lacan.com/replenin.htm. Acesso em abr. 2010. Ver também MAZZEO (1999).

11 Cf. SCHNEIDER, 2008.

12 Raymond Williams nota, a propósito, “que a ideia do gosto não pode hoje ser separada da ideia do CONSUMIDOR.” (WILLIAM, 1985, p. 314-15). Tradução nossa.

13 Segundo SCHOLEM (1995), Abraham KOOK (1865-1935) foi o último grande cabalista.

14 Tradução nossa.

15 Tópico narrativo da tradição oral talmúdica judaica, que inclui também suas interpretações.

16 O termo hebraico “ta’am”, gosto, também relaciona as noções de “sabor” e “significado”.

17 A passagem em itálico consiste nos comentários de Rav Hillel Rachmani sobre a citação anterior, conseguidos na Internet junto à Yeshivat Har Etzion – Virtual Beit Midrash – e-mail: yhe@jer1.co.il ou office@etzion.org.il, por intermédio de Ezra Bick – ebick@etzion.org.il, em 2002. Tradução nossa.

18 A propósito, e lembrando que a escrita hebraica não possui vogais, a palavra hebraica que designa o primeiro homem, “Adam” / Adão, é a mesma de “Adamá”, a Terra.

19 “Utopia” não significa necessariamente um projeto irrealizável, conforme o uso consagrado, inclusive, por Marx e Engels. O termo igualmente pode sugerir um projeto de melhoria social ainda não realizado em parte alguma (u-topos). Nesse último sentido, o socialismo pode ser considerado uma utopia.

20 A citação de Marx pertence aos Manuscritos econômico-filosóficos.

21 MÉSZÁROS, Istvan. A teoria da alienação em Marx, p 170.

22 ZIZEK, Slavoj. “Repeating Lenin”. Documento eletrônico: http://www.lacan.com/replenin.htm. Acesso em: abr. 2010.

23 Além disso, é possível supor que o aspecto atraente dos produtos oferecidos, bem como sua quantidade, podem sem querer contribuir para a emergência da consciência de classe, se as pessoas puderem sentir que há algo errado no fato de tudo aquilo existir e estar disponível, mas não para elas.

24 O trecho refere-se a uma análise empreendida pelo autor do filme “Tubarão”. Jameson também coteja o livro e o filme “Tubarão”, ambos de enorme sucesso comercial.

25 SODRÉ, Muniz. Estratégias sensíveis, p. 71.

 

Apagamento e visibilidade autorrepresentada: comunicação autóctone na periferia da periferia | de Ricardo Oliveira Freitas

Introdução

Considerando o fenômeno de emergência e visibilização de produções que retratam múltiplas realidades das periferias brasileiras, baseadas em discursos unívocos, o texto ora apresentado aborda os processos de comunicação e as interações sociais destes resultantes, a partir do lugar ocupado por iniciativas de comunicação popular e comunitária para o desempenho das identidades minoritárias e suas expressões no Brasil e para a elaboração de uma contrainformação do que é produzido sobre si. Por comunicação comunitária e popular entendo todo tipo de iniciativa que, ao utilizar-se de recursos de mídia, promove a participação ativa do indivíduo em processos de desenvolvimento local, quando seus grupos e suas comunidades encontram-se distanciadas das esferas de poder, privilégio e prestígio.

Apesar de presenciarmos a emergência de grandes produções sobre o periférico, tanto no cinema como na TV brasileira (o que coloca o debate como um caso não necessariamente específico da comunicação autóctone), centrei-me na investigação de iniciativas autóctones produzidas por comunidades rurais, no almejo de alcançarem reconhecimento junto à esfera de visibilidade pública e, por extensão, à esfera pública política, a partir da análise e da elaboração de uma pequena cartografia das iniciativas de comunicação popular e comunitária elaboradas na região Sul da Bahia.

Meu interesse por tais modos e formas de comunicação deveu-se ao entendimento, com base nos produtos (finalizados), de que estas invertem a clássica lógica atribuída às populações periféricas e minoritárias, ao contemplarem modos de vida que não são necessariamente urbanos ou suburbanos, aos moldes das recorrentes representações em mídia que, constantemente, lhes atribuem representações baseadas em modos e estilos de vida circunscritos às periferias das grandes metrópoles brasileiras: populações de favela, de modo geral, cerceadas por toda a sorte de violência urbana. Nesse sentido, ao privilegiar periferias rurais nordestinas, me comprometi, pois, com o estudo de modos e formas de comunicação como tido e visto na “periferia da periferia”.

Interessou-me pensar com base em recortes referenciais bibliográficos, que privilegiam análises que desmantelam o clássico esquema da comunicação unilateral onipotente, tão recorrente na corrente funcionalista de estudos da comunicação, representada pelo clássico esquema “emissores dominantes versus espectadores passivos” (cf. MARTÍN-BARBERO, 2003), ao atribuírem tanto um papel de atividade como um lugar de poder ao “canônico” agente da recepção passiva, no que reconhecem a importância de produtos autóctones – tanto em termos de produção como de distribuição e recepção. É, pois, tal fato que atribuirá à comunicação autóctone as categorizações de alternativa, popular e/ou comunitária, em concordância com o que John Downing concebeu como mídias radicais alternativas (DOWNING, 2002).

Ao reconhecer a virtude da categoria “autóctone”, deixo claro que o interesse do projeto sustentou-se sobre as questões da representação; sejam estas “de fora sobre dentro para dentro”, “de fora sobre dentro para fora” e, sobretudo, “de dentro sobre dentro para dentro e fora”. O caso do Sul da Bahia encaixa-se nesta última proposta. Além de comunicação autóctone, pode mesmo ser classificada como comunicação étnica, já que integra-se ao rol de preocupações debruçadas sobre as questões da identidade (étnico-racial) frente não somente às forças homogeneizantes da comunicação hegemônica, mas, sobretudo, às forças homogeneizantes da globalização – o que proporciona importante debate sobre a comunicação como instrumento de análise das questões da identidade e da cultura no mundo globalizado. Sua importância deve-se ao fato de que o tema, além de revelar o caso da não-representação, revela, também, situações em que representações negativadas são acionadas, através de projetos, velados ou não, de [in]visibilidade (que se concretiza pela ausência) e apagamento (que se concretiza pela presença pejorativa e desqualificadora).

A periferia da periferia

A importância de se pensar o conceito de periferia da periferia deve-se ao fato de que, ao assumi-la, incorporam-se tanto as noções de pertencimento, dentro de uma perspectiva global, como as noções de pertencimento a partir de uma lógica local; tanto do Brasil em relação às grandes potências mundiais, como do Nordeste em relação ao eixo centro-sul do país. Ao reconhecer que a quase totalidade das produções sobre periferias (paisagens e cenários) e populações periféricas (panoramas e personagens) estrutura-se a partir de representações do periférico como tido e visto nos grandes centros urbanos brasileiros, opto por classificar meu campo de trabalho como uma “periferia da periferia”, considerando tanto o distanciamento desta região em relação à capital do estado e a outras metrópoles, como o fato de serem cidades com populações abaixo de 25.000 habitantes, que concentram expressivos traços de ruralidade como base das suas economias. Além disso, ao reconhecer as nações em desenvolvimento como territórios periféricos, baseado numa lógica de territorialidade global, que se debruça sobre a noção de centro versus periferia, na qual o centro refere-se aos países desenvolvidos e a periferia ao restante do mundo, e ao comparar o Nordeste rural brasileiro às metrópoles do eixo centro-sul do país, e, até mesmo, aos grandes centros urbanos nordestinos, a partir de uma lógica nacional, percebo a existência de uma meta periferia, que teima em separar o litoral do sertão, o campo da cidade, o interior da capital.

Nos termos da comunidade imaginada, pensada por Benedict Anderson (2009), ou da invenção do Nordeste, como proposta por Albuquerque (2001), não tenho como desconsiderar que tais tipos de categorizações, baseadas em termos relacionais e, com isso, excludentes, são determinadas por processos e contexto históricos que refletem as transformações “inventadas” tanto na esfera sociocultural, como política e econômica. Tais transformações constroem representações autóctones, inaugurando a aparição de termos nativos, mas também externas, que inauguram a aparição de termos no mais das vezes tomados como unívocos e canônicos sobre o Outro, transformando, como lembra Nestor Garcia Canclini (2005), maiorias demográficas em minorias culturais.

A cultura da mídia, ao passo que torna modos de vida e visões de mundo homogêneas, através de incisivas representações ideológicas aliadas aos interesses das classes dominantes, oferece os recursos para que grupos invisibilizados e populações minoritárias reelaborem seus textos a partir de leituras reconstituídas com base em experiências próprias (cf. KELLNER, 2001). É o que Jesus Martín-Barbero percebe como a importante presença dos conflitos, contradições e lutas que descaracterizam a clássica lógica atribuída ao processo comunicacional “como estruturado entre emissores-dominantes e receptores-dominados, sem o menor indício de sedução nem resistência” (MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 15).

Não à toa, é o paradoxo entre o local e o global que tem regido o debate em torno da comunicação comunitária e popular como comunicação alternativa à grande mídia. Para alguns autores, a mídia é alternativa ao quebrar a homogeneização centralizadora da grande mídia. O debate entre o global e o local também é importante, pelo fato de chamar a atenção para os paradoxos da globalização. Afinal, em um mundo que parecia estar às raias da singularização universal, falar em comunicação comunitária faz parecer um passo bastante retrógrado. Entretanto, tal como o mundo da cultura globalizada, eis que presenciamos a expressiva emergência do tema da comunicação de aspectos locais, popular e comunitária, no bojo da globalização de mensagens e representações em âmbito global.

Ao enfocar a esfera pública de visibilidade midiática e sua relação com o desenvolvimento da ação política por parte de grupos minoritários, baseio-me na hipótese de que tal tipo de prática coletiva contribui não apenas para deslocar lugares e vozes no espaço público, mas, também, para o surgimento de formas alternativas de visibilidade pública midiática, ao reconhecer que a construção e a consagração dessas formas de aparecimento e visibilidade (midiáticas) dependem da ação política compartilhada entre sociedade civil, movimentos sociais e setores do governo.

Por esfera pública, entendo, aqui, a dimensão na qual se constitui um processo de formação de opinião pública, através da participação de atores públicos e privados, regulamentada para o estabelecimento de leis gerais para aplicação no âmbito do privado, mas, objetivamente, relevante para o âmbito do público. Um tipo de esfera que media a relação entre público e privado, entre sociedade civil e Estado, como sugere Habermas (2003). Outra concepção nos remete à ideia de esfera pública como espaço de aparência (mesmo em contextos de aparência derivada da exposição midiática). Nesse caso, a esfera pública aparece como condição sine qua non para que o ato de aparecer no espaço público promova a condição da existência real, a objetividade de ser e estar no mundo, de se fazer ver e ouvir por todos, a concretude da cidadania através da visibilidade.

É em relação a esta múltipla importância da esfera pública que o termo ‘privado’, em sua acepção original de ‘privação’, tem significado. Para o indivíduo, viver uma vida inteiramente privada significa, acima de tudo, ser destituído de coisas essenciais à vida verdadeiramente humana: ser privado da realidade que advém do fato de ser visto e ouvido por outros, privado de uma relação ‘objetiva’ com eles decorrente do fato de ligar-se e separar-se deles mediante um mundo comum de coisas, e privado da possibilidade de realizar algo mais permanente que a própria vida. A privação da privatividade reside na ausência de outros; para estes, o homem privado não se dá a conhecer, e portanto é como se não existisse. O que quer que ele faça permanece sem importância ou consequência para os outros, e o que tem importância para ele é desprovido de interesse para os outros (Arendt, 2000, p. 68).

Nesse sentido, tais iniciativas são importantes pelo fato de contraporem modos e formas de exclusão e de invisibilidade, que, não necessariamente, estruturam-se na ausência; mas sobremaneira, na presença negativada, que por sua vez, proporciona uma visibilidade que invisibiliza, que excluiu. Um apagamento constituído pela presença, pela presença apagada. A recorrente presença afro-descendente na produção jornalística policial encenada pelo choro e pelo sofrimento é exemplar 2. Em termos cognitivos, a presença negativada, no que é repetidamente representada, naturaliza a ideia de uma existência firmada em um sublugar, em uma subexistência.

A apropriação de meios e veículos de comunicação por grupos e comunidades subalternizadas é forte aliada da emancipação social, através da constituição de ações políticas pelos movimentos sociais, sobretudo em sociedades constituídas com base na desigualdade social – esse, o caso do Brasil. Por isso, a emergência dos movimentos sociais aliados aos recursos de comunicação e suas tecnologias, assim como às expressões em arte, contribui para o enfraquecimento de projetos (velados ou não) de dominação que se sustentam na exclusão, invisibilidade ou apagamento de determinados segmentos sociais.

Agora, nós vamos invadir a sua praia

Muitos são os autores que defendem a ideia de que, ao deixar de constituírem-se em instrumentos de mediação social para configurarem-se em instrumentos de midiatização, os meios de comunicação de massa transformaram fenômenos sociais em espetáculos. A tônica da espetacularização não proporcionou anseio por visibilidade enquanto fenômeno estético, de grandiosidade e beleza, pura e simplesmente. Espetacularização, aqui, traduz-se pela lógica do ineditismo e da representação embutida na ideia de espetáculo. Nesse sentido, grupos e comunidades, até então invisibilizadas dos projetos midiáticos, ao almejarem inclusão e reconhecimento junto à esfera de visibilidade pública, que podemos mesmo traduzir como a esfera de visibilidade midiática, almejam mais que a exposição infundada de suas iniciativas. Anseiam, pois, pela aquisição de reconhecimento de seus problemas, prioridades e, sobretudo, de seus anseios, modos de vida e visões de mundo, junto às esferas de poder e aos seus pares. Por isso, as iniciativas de comunicação comunitária tentam encontrar formas de interação (de comunicar) entre comunidades – quer seja entre grupos e comunidades afins, quer seja entre grupos e comunidades desinteressadas, quer seja junto à sociedade abrangente e hegemônica. Também por isso, comunicação comunitária passa a traduzir a ideia de pertencimento de grupos e comunidades ideologicamente minoritárias junto à esfera hegemônica, relacionando, pois, comunicação comunitária, cultura de minorias, mídias alternativas, midiativismo e ações de resistência.

Jesus Martín-Barbero (2004) entende que as alternativas de comunicação popular não devem, necessariamente, ser marginais às grandes mídias. Podem mesmo apoderar-se de traços de cultura massiva. O que não é problema. Entretanto, devem atentar para o fato de que as culturas populares não são homogêneas – tal qual o discurso construído pelas grandes mídias. O problema reside no fato de que no que é produzida para massificação e controle das massas, a cultura massiva tende a negar as diferenças, fazendo com que desapareçam por assimilação e, com isso, homogeneizando-as. Considerando que mesmo o gosto popular está moldado pela cultura de massa, reconhecemos que a comunicação será alternativa ao assumir a complexidade dos processos de massificação da cultura (e formação da comunicação massiva) que são estruturados na quase negação do popular. Digo, quase, já que entendo que numa análise aguçada dos complexos processos de formação da cultura massiva, podemos perceber traços de popularidade, “de códigos e dispositivos em que se imbricam a memória popular e o imaginário das massas” (Martín-Barbero, 2004, p. 213).

Boaventura de Sousa Santos (2009) confirma a tese de que a apropriação de recursos de comunicação por comunidades desprestigiadas é importante elemento para a aquisição de autonomia e da emancipação de tais comunidades, proporcionando maior atuação e, por extensão, visibilidade junto à esfera pública política.

É evidente que essas tecnologias têm possibilitado um uso contra-hegemônico. Meu trabalho teórico é, sempre, mostrar que os instrumentos hegemônicos podem ter um uso contra-hegemônico. Nós não estamos em um mundo onde haja instrumentos hegemônicos, de um lado, e, do outro lado, instrumentos contra-hegemônicos puros. Temos que usar contra-hegemonicamente instrumentos hegemônicos – entre eles, obviamente, os meios de comunicação e a revolução da informação. (SOUSA SANTOS, 2009).

O Movimento Cultural Arte Manha é boa ilustração. Exemplo típico das articulações entre arte, comunicação e mobilização social, congrega a lógica de que expressões e manifestações em arte permitem trazer à tona problemas e prioridades que afligem, de modo específico, grupos ideologicamente minoritários e, por extensão, juridicamente vulneráveis, tornando-os visíveis para o mundo. Se, num primeiro momento, o grupo priorizava apenas a arte e suas expressões como elemento central em suas atividades, após bom tempo utilizando recursos de mídia como ferramentas para registro, divulgação e documentação (fotografia e vídeo, mais especificamente), seus componentes perceberam que produtos audiovisuais poderiam transformar-se em fortes aliados para o fortalecimento das propostas do grupo: formulação de políticas inclusivas e democratização da arte como favorecimento de ações cidadãs, de atitudes autoestimadas e reconhecimento. A expressiva produção de audiovisuais e a importância creditada a esse tipo de produção resultou na criação de um polo de produção de vídeos e de um cineclube de rua e comunitário, o Cineclube Caravelas.

A lógica do reconhecimento deu às formas de representação lugar de destaque nas produções realizadas pelo Cineclube e seu grupo de autores. Na articulação entre arte como forma de expressão e mídia como instrumento de informação, o Cineclube produziu nos últimos dois anos mais que uma dezena de filmes, com toda a sorte de recursos para produção audiovisual – de equipamentos profissionais a celulares, passando por uma ilha de edição provida de excelentes recursos – mesmo sem o apoio de uma secretaria de cultura, até então, inexistente no município.

Mostramos que existem formas de confrontarmos os grupos que estão no poder em Caravelas! São forças políticas que buscam nos esvaziar como pessoas com o abandono da cidade, do nosso patrimônio… neutralizar nossa riqueza cultural. Mostramos que é possível nos organizarmos, que a partir da própria população podemos criar, construir outras possibilidades para a cidade. Quando um filme de Caravelas ganha um prêmio na capital cultural do país chegamos para essas pessoas e perguntamos: E aí? (sic, Jaco Galdino 3).

Instâncias de intencionalidade na produção audiovisual caravelense e, por extensão, articulações e negociações entre processos de produção e recepção, representação e reconhecimento, fazem do Cineclube Caravelas uma espécie de base para um Estado ampliado, como proposto por Gramsci (2004), que elabora consensos e mediações entre a cidade, seu governo e seus moradores, além de trazer à tona toda a sorte de questões identitárias e de pertencimento (gênero, sexualidade, raça e etnia, geração, classe e regionalismos). Ou seja, a partir das suas especificidades, transformam “arte desinteressada” em “comunicação engajada”.

[…] a comunicação da cultura depende menos da quantidade de informação circulante do que da capacidade de apropriação que ela mobiliza, isto é, da ativação da competência cultural das comunidades. […] O comunicador deixa, portanto, de figurar como intermediário – aquele que se instala na divisão social e, em vez de trabalhar para abolir as barreiras que reforçam a exclusão, defende o seu ofício: uma comunicação na qual os emissores-criadores continuem sendo uma pequena elite e as minorias continuem sendo meros receptores e espectadores resignados – para assumir o papel de mediador: aquele que torna explícita a relação entre diferença cultural e desigualdade social, entre diferença e ocasião de domínio e a partir daí trabalha para fazer possível uma comunicação que diminua o espaço das exclusões ao aumentar mais o número de emissores e criadores do que o dos meros consumidores. (MARTÍN- BARBERO, 2003, p. 145).

Ao reconhecer a necessidade de se produzir vídeos que sejam representacionais e que contemplem traços de reconhecimento pelo público, Jaco (e tantos outros produtores das periferias brasileiras) faz saltar aos olhos a importância da intencionalidade e especialização tanto da produção como da recepção, revelando assim o importante papel creditado ao público e às audiências como codificadoras e decodificadoras daquilo que o produtor inseriu na mensagem. Afinal, a própria ideia de cinema comunitário indica o importante papel do público e audiência naquilo que, afinal, reconhecemos como recepção ativa. Nesse sentido, o cinema que se faz sobre Si, autóctone, quer seja exibido para o Outro ou para o Mesmo, terá o importante papel de suscitar a afirmativa, elaborada por Hall, de que a distinção entre denotação e conotação é apenas analítica – indicativa dos diferentes níveis em que as ideologias e os discursos se cruzam, e não da presença ou ausência da ideologia na mensagem. (cf. HALL, 2003).
Domínios discursivos, hierarquicamente organizados, dão sentido à vida social. A isso, Hall intitula “sentidos dominantes ou preferenciais” instalados dentro de “mapas de sentido” – lugar em que uma cultura é classificada através de uma série de significados. (HALL, 2003, p.397). Entretanto, tal crença dá margem a considerar o resultante da produção um fato e a interpretação uma instância particular e individual, aos moldes de uma “percepção seletiva”.

Mas, “a ‘percepção seletiva’ quase nunca é tão seletiva, aleatória ou privatizada quanto o conceito sugere. Os padrões exibem agrupamentos significativos ao lado das variantes individuais” (HALL, idem). Entretanto, mesmo que consideremos o lugar de destaque dado às teorias que creditam valor supremo ao sentido conotativo do signo, pelo fato de aí instalarem-se, mais eficazmente, as ideologias que transformam e alteram a significação, “isto não quer dizer que a denotação esteja fora da ideologia” (HALL, 2003. p.398). O que significa que a codificação não pode determinar ou garantir os códigos de decodificação que serão utilizados. Portanto, Hall sugere três posições hipotéticas para entendimento do modo com que a denotação de um discurso pode ser construída. Centro-me na hipótese que reconhece que o espectador pode perceber e diferenciar o sentido conotativo e denotativo embutido na mensagem-discurso. Mas, pode, também, decodificá-la de modo contrário, afinado com definições de situações e eventos que estão em dominância global, realocando-lhe dentro de algum referencial alternativo, operando, portanto, um “código de oposição”, numa leitura contestatória da posição hegemônica-dominante – momento em que se trava “a ‘política da significação’, a luta no discurso” (HALL, idem), ou, como prefiro, a aparição do lugar do produtor na figura do receptor.

Se a produção de vídeo sobre a periferia quebra a universalidade de códigos, que no caso brasileiro, parecem estar erigidos sobre uma produção que representa a periferia a partir de um modelo de caos metropolitano como tido e visto no eixo centro-sul do país, os vídeos autóctones, produzidos na, pela e para a periferia, parecem significar uma “nova estética de periferia”, que, se não fogem tão radicalmente dos moldes pré-definidos pela produção hegemônica, contribuem para a destituição da carga de dominação presente na produção hegemônica, reelaborando novas esferas de dominância e preferência. Afinal, seus produtores, até então tidos como receptores passivos, elaboram a codificação a partir de uma longa experiência com a decodificação da mensagem. Ao conotar e denotar tais mensagens, seja no processo de produção seja no processo de recepção, transformam-nas em práticas sociais, permitindo que o circuito comunicacional se complete e produza efeitos. Do contrário, como sugere Hall, “não poderíamos falar de uma efetiva troca de comunicativa”. (HALL, 2003, p. 398).

Tais trocas são importantes, pois promovem a inclusão de novos atores no cenário midiático, com a inclusão de novas mídias e produtos no cenário mundial, além de encontrarem nos recursos midiáticos importantes suportes para desenvolvimento de novas expressões e alianças político-sociais entre Estado, governo, democracia, terceiro setor, sociedade civil e grupos ideologicamente minoritários. Elaboram, assim, novos modos de representação contra-hegemônicos, acenando para a promoção de políticas públicas para inclusão social e redução da desigualdade social, através de recursos de comunicação popular. A expressividade de redes de solidariedade, organizadas entre sociedade civil e terceiro setor, faz emergir, através dos recursos de mídia, vozes subalternizadas e invisibilizadas, excluídas dos projetos de cidadanização, através de “atores coletivos cívicos – associações voluntárias, movimentos sociais, porta-vozes de causas” (MAIA, 2006), criando novas formas de produção artística e cultural como ações inclusivas e novas utilizações de tecnologias na [off] indústria cultural [periférica] – elaborando algo em torno do conceito de redenção pela arte e pela tecnologia.

Se as características no plano das produções culturais não são universais, para o caso das questões sociais acontece o mesmo. Baseadas em prioridades estritamente locais, as “causas” determinarão o ponto de distinção entre um modelo universal e uma tônica local de reivindicações e prioridades. São privilegiadas as causas sociais; entre estas, toda sorte de desigualdades e de ações discriminatórias, assim como a necessidade de inserção destes tidos como Outros no âmbito da hegemonia. O fato é que aquilo que a princípio caracterizava-se como contra-hegemônico acaba constituindo uma nova hegemonia, não outra e não menos hegemônica, formando uma espécie de mainstream do periférico e do minoritário, que faz da contra-hegemonia uma nova hegemonia. Com isso, passam a criar produtos próprios, autorais, responsabilizando-se não somente pela produção como também pela emissão e distribuição. De coadjuvantes a protagonistas, de receptores passivos a emissores ativos.

Galo cantou, eu vou mimbora

O universo de interesse do projeto versou sobre modos e formas de utilização da mídia (mais especificamente, audiovisual) e a contribuição de tais formas de utilização para a consolidação de um [novo] mercado midiático, que, a partir de uma tendência mundial, tenta referenciar identidades pessoais, locais, regionais e étnicas em oposição à premissa da singularização unificada e ímpar trazida no bojo do debate sobre globalização. Dessa forma, o presente projeto se encaixou no rol da produção preocupada com o paradoxo entre o global e o local, tradição e modernidade, que tem constituído, nos últimos tempos, as discussões nas ciências sociais e em estudos de cultura e mídia.

Como objetivos específicos, o projeto apresentou questões a fim de contribuir para as discussões em torno das políticas de identificação e cidadanização (e, por extensão, da nacionalidade) como temas emergentes dos veículos e discursos comunicativos, culturais e mediadores, a partir do debate sobre identidade e diferença que tem, tão incisivamente, tomado tônica nos últimos tempos com o advento da globalização, além de fornecer elementos para uma análise crítica da produção comunicacional brasileira, em seus aspectos comercial e social. Reconhecer a importância da comunicação popular para a construção de redes de solidariedade, acenando para a sua paradoxal configuração, que cria formas de socialização que se estabelecem no âmbito do público (as audiências de TVs e cinemas de rua estabelecem relação com o outro em espaços que são públicos, a céu aberto), na contramão da ideia onipresente de que as novas tecnologias de comunicação contribuem para consolidar a privatização das relações sociais contemporâneas ao serem acessíveis em âmbito privados, foi outro ponto importante no desenvolvimento deste projeto.

Acreditei, pois, que seria necessário tecer uma visão aguçada sobre a totalidade das estruturas de produção da informação. Para Martín-Barbero, é nos interstícios das “estruturas transnacionais da informação e estruturas nacionais do poder” que são revelados domínios ideológicos em modos de ver, que não dizem respeito apenas aos espectadores, mas também aos produtores. Estes últimos, também videntes, espectadores. Os modos de ver são produzidos socialmente, pelo imaginário coletivo. O que confirma a lógica de que a análise do produto não deve centrar-se exclusivamente no produto em si e na sua condição de reproduzir a verdade, mas nos dispositivos de enunciação-produção, de percepção e reconhecimento. Ou seja, os estudos das tecnologias ou dos meios devem ceder lugar aos estudos debruçados sobre a produção de mensagens situadas no âmbito da cultura, a partir de um prisma que privilegie a interação das mídias na mediação entre indivíduos (produtores, receptores e produtores-receptores) na esfera da cultura e sociedade contra uma ideologia tecnocrática, que permeia e esteriliza os esforços da comunicação alternativa, da informação contra-hegemônica, já que não chega a questionar verdadeiramente as estruturas ideológicas e políticas da produção de informação. (cf. Martín-Barbero, 2004).

Portanto, o reconhecimento da comunicação como fenômeno social e sistema cultural exige que sua abordagem e análise não se restrinjam às estruturas formais da comunicação, aos moldes de uma análise das técnicas, como rebatido por Geertz (2003), mas, que englobe os processos socioculturais que moldam a sua produção, isto é, seu uso e significado, aos moldes de uma análise das mediações, mais que dos meios, como proposta por Martín-Barbero (1997).

Nesse sentido, o referido projeto tentou contribuir para os estudos da comunicação que se preocupam com o papel da comunicação popular e comunitária como recurso para preservação e fomentação do panorama cultural de microrregiões e comunidades destituídas de poder, caracterizando-se não somente como importante recurso para registro e preservação da memória tradicional local, como também, possibilitando acesso a novas tecnologias e a novas formas de produção cultural e inaugurando novos modos de organização social, compromissada em divulgar novos modos de comportamento presentes em microrregiões e na realidade de microgrupos (ou em qualquer prática cotidiana sob a égide da globalização), não se restringindo, apenas, à preservação de traços tradicionais isolados, mas de traços tradicionais articulados com formas, modos e estilo-de-vida propostos pela modernidade, a partir do lugar em que a comunicação popular funciona como prática social contemporânea.

Ao avaliar a importância da comunicação popular e comunitária para a formação técnica e para o aperfeiçoamento profissional de integrantes de microrregiões nordestinas, criando novas linhas de emprego e renda e analisar os mecanismos que cooperam para o apaziguamento de ações excludentes, redução da desigualdade social e fomento da inclusão social, visando elevar os índices de melhoria da qualidade de vida e desenvolvimento humano junto a populações destituídas de reconhecimento, fomentando a participação inclusiva e cidadã (inserção junto à esfera pública política e à esfera de visibilidade pública) através de recursos de mídia, o projeto revelou, pois, a participação de grupos e comunidades minoritárias para a elaboração de uma contra informação que reelabora o que é produzido sobre si.

A utilização de recursos de comunicação por sociedades tradicionais acena para a configuração de novos panoramas, que promovem a descontextualização das funções canônicas dos veículos de comunicação e, por extensão, a sua refuncionalização e a sua ressignificação, contribuindo objetivamente para mudanças no consumo e uso dos veículos e produtos comunicacionais, a partir de uma estratégia de desconstrução, cumprida, no mais das vezes, pela cultura hegemônica diante das culturas subalternas. (cf. CANCLINI, 2005). A apropriação de recursos de mídia por sociedades tradicionais é prova de que recursos tecnológicos, e, por isso, modernos, podem servir como importantes aliados de projetos voltados para a preservação do patrimônio memorialístico e tradicional, mesmo quando tal uso resulta em formas de hibridação cultural, de sincretizações, negociações e articulações, contrárias à ideia de uma essência de pureza em termos identitários. Desse modo, a importância da apropriação da mídia por comunidades tradicionais é que estas descontextualizam não somente a função dos objetos e os recursos das tecnologias criadas a serviço das sociedades industriais e urbanas; mas, sobretudo, recontextualizam a relação de subordinação das culturas subalternas frente à cultura hegemônica.

Concluo que, mesmo quando classificadas como produções artísticas, o teor discursivo das produções sobre minoritário e periférico, no que contempla certa lógica de visibilidade, faz com que tais produções configurem-se como um circuito comunicacional.

Ressalvo, ainda, que o recorte sobre os produtos analisados levou em consideração a variedade de gêneros e formatos e, paradoxalmente, a homogeneidade de repertórios entre tais produtos, com base nas questões da cidadania e da inclusão social; a fim de avaliar a importância da produção de comunicação autóctone para a construção de um modelo de identidade, num primeiro momento, segmentada, depois, regional e, por fim, nacional, atentando para a importância de tais produtos para a elaboração de modelos identificatórios entre grupos minoritários no Brasil e para o debate sobre cidadanização, que extrapola, pois, a esfera da teoria da comunicação e engrossa os estudos sobre sociedade e cultura.

Interessei-me em tecer um estudo não das tecnologias ou dos meios, mas da produção de mensagens situadas no âmbito da cultura, a partir de um prisma que privilegiasse a interação das mídias na mediação entre indivíduos (produtores, receptores e produtores/receptores) na esfera da cultura e sociedade. Essa a ideia de mídia-ação, mediação, que considera a mídia como prática social. Além de considerar a contribuição que tais produtos e suas representações deram para o desmonoramento de práticas excludentes (xenófobas, discriminatórias, racistas etc.) e para a idealização de práticas inclusivas.

 

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*Ricardo Oliveira de Freitas realizou o Pós-Doutoramento no Programa Avançado de Cultura Contemporânea – PACC, do Fórum de Ciência e Cultura – FCC, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. É Docente e Coordenador do Grupo de Pesquisa em Midiativismo e Mídias Alternativas – GUPEMA, da Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC, na Bahia. Foi bolsista CNPq e FAPESB. Autor da coletânea de artigos Comunicação Alter[n]ativa: estratégias e desafios para a comunicação hegemônica, publicado pela FAPESB/EDITUS, 2009.

 

1 O presente texto é parte resultante do Estágio de Pós-Doutoramento por mim realizado no Programa Avançado em Cultura Contemporânea – PACC/UFRJ, sob a supervisão da Profª Drª Heloísa Buarque de Hollanda, entre maio de 2009 e abril de 2010. Não teria sido possível sem o apoio da minha instituição de origem, UESC; do CNPq, que me concedeu uma bolsa PDS; e da FAPESB, através da bolsa de Apoio à Pesquisa. Devido ao espaço determinado pelas normas da Revista, privilegiei o desenvolvimento teórico em detrimento da etnografia e da análise de dados obtidos durante a pesquisa de campo. Para dados e etnografia, ver FREITAS, 2009.

2 Sobre a ideia de “visibilidade sofrida”, ver SILVA, 2009.

3 Jaco Galdino é integrante do Grupo Arte Manha, em Caravelas, e idealizador do Cineclube Caravelas. É o diretor/videomaker que mais vídeos produziu no Cineclube. Entrevista publicada no jornal comunitário O Timoneiro, edição n. 4, jun./jul. 2007 (este, outro projeto do Grupo).

 

O museu em três dimensões | de Viktor Chagas

Pensar o museu como ferramenta de comunicação social é ir além do aprisionamento formal dos meios impressos, digitais e de radiodifusão. E, nesse sentido, ir além do aprisionamento formal do museu como ambiente físico predial, sujeito a limitações de espaço e dinâmicas. O museu é um instrumento de comunicação por excelência, capaz de integrar a comunidade em torno de si e dar vazão a um processo de participação cidadã , através de sua reconstrução engajada do passado .

Dessa forma, tanto quanto com a televisão e o cinema, inserir o museu em uma categoria que permita a sua identificação como meio de comunicação, é trabalhá-lo nos moldes de uma orientação multimídia, dada a intensidade de representações sinestésicas memoriais. No espaço museal, a experiência sensorial de vivenciação e “decodificação” – uma evidente aproximação no sentido de que se opera um deslocamento no tempo e no espaço (meios também de transporte, portanto) – se fundamentam no contato entre o visitante e o acervo. Critério evidente para a construção da associação do museu como ferramenta de comunicação, a proximidade entre a conceituação de tecnologias da informação e da comunicação – trabalhadas especialmente pela chamada Escola de Toronto em meados do século passado – e a de tecnologias da memória – cuja maior inspiração, poderia-se dizer, está alicerçada na sólida Escola dos Anais – permite que compreendamos o museu como híbrido de ambas as categorias.

Myrian Sepúlveda dos Santos, em tese fundamental para os estudos contemporâneos acerca da museologia , descreve dois gêneros de museus, o museu-objeto e o museu-texto, demonstrando especialmente a complexidade deste último no cumprimento da transmissão de uma narrativa museal. O museu-texto, ela indica, conta uma história (jamais uma História). Esta passagem se coaduna com o raciocínio de Richard Wurman, arquiteto da informação americano, que define em belas palavras o processo comunicacional. Para Wurman, “comunicar é lembrar como era quando não se sabia” .

Num museu, durante o percurso da exposição, o visitante é não “instruído”, mas “informado”. Como no rádio – pela condição privilegiada de caráter popular e abrangente –, sua reação imediata é buscar pelo seu lugar na representação do teatro da memória. Assim, seja pelo caráter cívico ou pelo seu foco nos aspectos comunitários, o laço que o museu, sobretudo o museu histórico – que discute ao extremo a patrimonialização do objeto e do discurso museal –, estabelece é o mesmo vínculo através de valores comuns que inspiram os meios de comunicação. Tal vínculo, de acordo com a conhecida descrição de Benedict Anderson , é sem dúvida capaz de conformar uma “comunidade imaginada”, claramente afeita ao trabalho de memória executado pelos técnicos museais.

Pensar o museu como ferramenta de comunicação social é, para além de imaginá-lo como mídia tradicional, aliar sua dinâmica à discussão recente que se tem travado no âmbito estrito do jornalismo, no que tange ao debate político em torno da imagem conceitual do jornalismo público . O museu, assim, coloca a comunidade – seja em que sentido for que estivermos tratando de uma comunidade – no centro do movimento de construção do conhecimento, numa perspectiva que desmitifica seu papel como “lugar de guardar coisas velhas” ao mesmo tempo em que o deselitiza. O museu é feito pela própria comunidade e para a própria comunidade. Não à toa, a experiência emblemática de museus comunitários – a saber, o Museu da Maré –, numa favela que congrega dezesseis localidades do Rio de Janeiro, possui um índice espantoso de público se comparado com o de outros museus de grande porte. Capitaneado por uma organização não-governamental formada por moradores e ex-moradores da favela, o Museu da Maré recebe anualmente uma média de 10 mil visitantes, dos quais mais de 60% se descrevem como moradores da área. Levando-se em conta os visitantes de outras favelas e regiões vizinhas, e o importante fato de que o preconceito e a autocensura, muitas vezes, leva o visitante a se declarar como procedente de outro bairro, são aproximadamente 65% a 70% os visitantes que mantém alguma relação direta com a região . Diferentemente de outros gêneros de museu, portanto, o museu comunitário não é um mero atrativo turístico, capaz apenas de potencializar as atividades do setor de serviços. A frequência e o interesse que desperta na própria comunidade em que se instala sugerem que, em muitos casos, o museu é capaz de dinamizar a cultura local, favorecendo a afirmação de práticas e saberes antes marginalizados pelos meios de comunicação de espectro menos intimista.

O museólogo, nesta concepção, é o agente responsável pela expertise local. Ele atua no espaço da intermediação, isto é, é ele próprio o mediador, capaz de formular com precisão a mensagem a ser transmitida. Para isso, precisa estar próximo à comunidade, de alguma maneira pertencer a ela, equivalendo-se, por assim dizer, ao editor do noticiário.

No modelo clássico do processo comunicativo tradicional, concebido em forma de circuito (emissor—mensagem—receptor), e que muito tem sido criticado por diversos autores , pela sua linearidade e a ênfase no nível da troca de mensagens, o visitante do museu seria mero destinatário da mensagem, e a ele caberia processar a concepção museográfica como discurso . Só isto já seria o suficiente para o argumento que tenta trazer o museu para a categoria de ferramenta de comunicação. No entanto, nos parece que o visitante ele próprio negocia a realidade, tornando-se sujeito histórico, a partir da busca e realização de seu papel no cenário político e cultural que o contexto do museu lhe oferece. Sem muita surpresa, nesse sentido, na mesma pesquisa acerca dos livros de visitas e de depoimentos do Museu da Maré , são algo comoventes as manifestações de moradores que reconhecem seus parentes nas fotos ou que reivindicam a doação de um objeto particular à coleção do museu. Experiências deste gênero permitem compreender o objetivo do espaço museal não apenas como de um estático lugar de memória, mas como de uma ferramenta dinâmica de apropriação cultural e ressignificação de valores. O museu comunica, porque inscreve, escreve e transmite uma mensagem, que é lida, reescrita e reinterpretada. Mutatis mutandis. Sua apresentação não é jamais meramente pedagógica, no sentido de uma instrução verticalizada sobre um determinado tema, mas trabalhada colaborativamente, segundo um esquema de participação cidadã, que envolve mobilização em três etapas distintas no âmbito da comunidade, isto é, produção, planejamento e gestão do conhecimento. Por constituir-se como vetor de memória, o museu é e deve seguir sendo território de negociações, conversações e debate nas esferas política, social e cultural.

Ao trabalhar em conjunto com outros meios de comunicação, como jornaizinhos de bairro, rádios comunitárias, blogs, o museu incorpora a linguagem comunicativa tradicionalmente legada a estas ferramentas e amplia seu alcance. Sobre esse aspecto, é exemplar citarmos mais uma vez o caso do Museu da Maré pelo que ele nos concebe de paradigmático. Em seu bom trânsito com outros projetos paralelos e na constituição particular da ação do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (o Ceasm), valorizando as tecnologias da informação, o Museu da Maré ocupa ainda uma das páginas mais lidas do principal jornal local, talvez o exemplo mais bem sucedido de comunicação comunitária do país, com mais de dez anos de existência ininterrupta, o jornal O Cidadão. A coluna produzida e editada pela Rede Memória, a mesma que coordena as atividades do museu, e que é, em si, um dos braços de atuação do Ceasm, traz a cada edição um texto que valoriza a cultura e a memória da região, desnaturalizando o museu e traduzindo-o como “obra aberta”. A mesma obra aberta que permite que crianças levem e tragam objetos da exposição: são carrinhos que somem e reaparecem nas maquetes, são utensílios de cozinha que ocupam e desocupam o cenário estilizado de uma palafita no centro do galpão em que se localiza o museu. O objeto museal, por este ponto de vista, não é sacralizado, senão fetichizado, transformado autenticamente em suvenir. Da mesma forma que os moradores trazem, eles levam, completando um ciclo que, de certo modo, está representado na própria expografia.

Mas é preciso esclarecer que, ao me referir ao museu, em nada tenho solidificada a imagem do edifício-museu. Em princípio, é importante trabalharmos com a ideia de uma instituição museal, que, portanto, extrapola o sentido de um prédio. Basta lembrar que a noção de “comunidade” evoca ainda, no imaginário contemporâneo, os agrupamentos sociais nos diversos ambientes da chamada web 2.0 e suas redes colaborativas.

Não de outra maneira, tenho recebido com entusiasmo as experimentações de natureza cibernética no campo dos assim chamados webmuseus. Sem maiores resistências, a instituição museal é plenamente apta a oferecer dinâmicas de interação e participação online aos mais diferentes grupos. O contato com o objeto patrimonial virtualizado, a visita emulada em ambiente tridimensional, a visita guiada por aplicações de mensagens de texto através de celular, a rede social que congrega personagens históricos e os coloca em contato direto com o avatar do visitante; todas estas são extensões possíveis sobre as quais se pode intervir. Todas estas são extensões da instituição museu, ou, se preferirem, extensões de nós mesmos, a partir da consagrada ótica mcluhaniana.

Parece-me que o museu é capaz de cumprir ao menos duas funções sociais: a primeira, internamente, num esforço por convergir, ou seja, tornar-se uma instância de identificação da comunidade, através das lembranças e relembranças de um passado comum; e a segunda, exercida externamente, como um bem-entendido divergir polemizador, em que o questionamento e a polêmica gerados em torno de si – como é o caso, por exemplo, da experiência do Museu da Maré como “primeiro museu em favela” – repercutem nos meios de comunicação tradicionais e se aliam à proposta natural de um trabalho de memória na compreensão ressignificada do lugar que ocupa a comunidade no imaginário noticioso da mídia impressa, digital e radiodifundida. O museu, portanto, ainda que feito por e para a comunidade, extravasa as suas fronteiras geográficas e se constitui como referência local para a cultura da região. Se hoje há placas que indicam o caminho para o Museu da Maré a partir da Linha Vermelha, uma das vias mais importantes da cidade do Rio de Janeiro, é sinal de que o museu informa e referencia, inclusive geograficamente, a favela. É sinal de que ele comunica e aponta caminhos. E, sobretudo, é uma indicação clara de que o museu adiciona nuances e valores à realidade combalida das comunidades.

Com estes pressupostos em mente, quero crer que há outras hipóteses a considerar no panorama estratégico da contemporaneidade. Hipóteses que atribuem um sentido lato à ideia de comunicação, mas que perpassam os meios tradicionais, ampliando seu alcance e otimizando a comunicação em esfera hiperlocal, justamente aquela que não é contemplada pelas complexas estruturas midiáticas de cobertura globalizada e globalizante.

De alguma maneira, o museu é capaz de penetrar na comunidade – seja a comunidade uma representação da “favela” ou de “nichos de consumidores eletrônicos” –, atravessando a barreira dos estereótipos e atingindo sobremaneira o cotidiano íntimo daqueles que se constituirão em seus visitantes. Mas é preciso ter consciência de que o museu é visitado, mas é também revisitado. Ele não exerce sobre os visitantes a mesma influência dita avassaladora pelos clássicos frankfurtianos, senão oferece novos horizontes a serem descortinados. Está longe, portanto, de ser mídia de massa e, justamente por isso, meu apelo para a categoria social dos museus comunitários e experiências hiperlocais de comunicação.

Olhar para o passado através de um museu não é o mesmo que olhar um museu como lugar de velharias e cacarecos. Os estudiosos do campo da Comunicação – mas não apenas eles, também, eu poderia dizer, os estudiosos do campo da Memória – têm trabalhado pouco as interfaces de contato entre seus objetos e tecnologias sacralizados. A introdução de um universo novo e vasto como o das novas TICs termina por ofuscar o potencial de mudança social de outras tecnologias muito mais presentes e afirmadas em nosso cotidiano. É um erro correspondente ao etnocentrismo para o etnógrafo ou ao anacronismo para o historiador a circunscrição dos objetos da Comunicação àqueles que se relacionam apenas com a imprensa. Da mesma maneira, é infantilizada e infantilizadora a tentativa de traduzir, por exemplo, um webmuseu em um espaço tridimensionalizado, disposto em galerias e objetos vetorializados e virtualizados. Nesse sentido, ainda que belíssima, a experiência do Museo Virtual de Artes do Uruguai <http://muva.elpais.com.uy/> é, sem dúvida, conservadora. Por outro lado, ainda que careça de um aprofundamento conceitual mais denso em sua estrutura de navegação, o Museu da Pessoa <http://www.museudapessoa.net/> segue pelo extremo oposto, caracterizando-se por uma iniciativa digna de análise cuidadosa. O museu não é prédio, o museu é texto. Esta compreensão pode ser inovadora, se proporciona o desapego de categorias tradicionais de nosso pensamento.

Pensar o museu como ferramenta de comunicação é lembrar da escrita como primeira revolução tecnológica da memória , revolução, em todas as medidas, engendrada por uma tecnologia da comunicação. Desde Michael Pollak , não há dúvida de que a memória, mesmo silenciada, comunica. A provocação que lanço aqui, contudo, quer ultrapassar a inércia do silêncio, e transformar um ambiente propício para a contemplação do discurso histórico em espaço de deliberação e debate sobre as práticas culturais locais. Sobre a revolução das mídias digitais, esta que é uma das mais antigas formas de comunicação – o museu – talvez seja a grande novidade.

*Viktor Chagas é escritor, jornalista, e professor do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da UFF. Mestre e doutorando em História, Política e Bens Culturais pelo Cpdoc/FGV, desde 2006 integra a equipe de moderação do projeto Overmundo <http://www.overmundo.com.br>, ocupando atualmente a Coordenação Editorial e de Projetos de Comunicação do Instituto Overmundo.

 

O Natal da transformação | de Mana Bernardes


 

 

 

 

 

 

 

* Mana Bernardes é uma jovem designer de jóias, poetisa e artista plástica. Tão múltipla que consegue circular entre o Chelsea Art Museum em Nova York e as ruas populares do Rio de Janeiro. Seus colares estão à venda em conceituadas lojas de design – como a Colette, em Paris e a Zona D em São Paulo. Já sua invenção o Magnomento, um fecho magnético de imã que não pesa, é comercializado em larga escala para os fabricantes de bijuteria do Saara, no Rio. Com o irmão Pedro Bernardes, escreve um livro de poemas musicados. Ela ainda viaja pelo Brasil multiplicando em oficinas o seu trabalho.

O Texto fora do Papel – A Literatura na Mostra SESC de Artes 08 | de Antonio C. Martinelli Jr.


18h30: Instalação do escritor Samir Mesquita na unidade SESC Ipiranga

“Escritas presentes em toda parte, pintadas, gravadas, incisas (…)
ora publicitárias, ora políticas, ora funerárias, ora comemorativas,
ora públicas, ora mais que privadas, de anotações
ou de insultos ou de jocosa lembrança. (…)
Por alguns lugares específicos, praças, foros, edifícios públicos, (…)
num pedaço de parede livre, a altura do homem”
(Armando Petrucci)

O que norteia a produção literária contemporânea? Ainda é interessante preservarmos a literatura ao confinamento de uma única linguagem artística? Quando os gêneros artísticos se tornam híbridos? O objeto livro está ameaçado? O que podemos chamar por literatura contemporânea brasileira hoje? Como se comporta essa literatura? De que forma essa produção toma partido de outras mídias, suportes e tecnologias para se concretizar ao leitor?
Em seu mais recente livro Contemporâneos: Expressões da Literatura no Século XXI, a crítica literária Beatriz Resende aponta que uma das características mais observadas atualmente no fazer literário é a de que este tem se dado “fora do papel”. Para além do modelo clássico livro, os textos ficcionais se apóiam cada vez mais na virtualidade poética, em folhetins eletrônicos (blogs, sites, redes sociais), em intervenções visuais nos espaços públicos, por meio de instalações, cartazes, entre outros.

Segundo Resende:
Dentre as peculiaridades da literatura contemporânea brasileira, venho apontando o fenômeno que podemos chamar, partindo de outras percepções estéticas e produções artísticas, de ruptura com o suporte. Nas artes plásticas, a ruptura já se deu há muito com o suporte tela, papel e outros materiais, para dar lugar as experiências que lidam com o efêmero. Nas artes cênicas também não é novidade, primeiro a ruptura com o palco, em seguida com o próprio edifício teatro, depois com a noção de texto dramatúrgico e, finalmente, com a idéia fundamental de conflito como base da ação. Na literatura, a ruptura teria que ser com aquele que parecia ser sua condição de existir, de tomar forma: o suporte papel”.

Entre 8 e 19 de outubro de 2008, o SESC São Paulo realizou a Mostra SESC de Artes 08, que contemplou todas as linguagens artísticas, entre elas, a literatura. Com uma programação voltada tanto à prosa quanto à poesia (13 projetos ao todo) -, a curadoria da programação literária se lançou a ações que pretendiam atingir diretamente o público em locais e situações não usuais e “assaltar” o cotidiano das pessoas com textos inéditos de importantes escritores e poetas brasileiros. Dessa maneira, a pesquisa da literatura baseou-se no abandono do suporte convencional livro e investiu na busca de outros meios de comunicação que gerassem essas outras formas de leitura (breves ou não).

Foram 80 os convidados à produção de um breve conto, poesia, bilhete, texto curto, mensagem, ou qualquer outra forma literária que tomasse lugar fora do suporte livro, ocupando lugares e meios não usuais, como elevadores, escadas de prédios, celulares, guardanapos, chão, táxi, parede, concreto.

Tudo começa com um torpedo

“ Palavra ou mágica?
Só uma opção. Escolheu. Errado: não era “palavra”.
Mas escritor sempre opta pela palavra”.
(Moacyr Scliar,
SMS enviado dia 15/10, às 20h30)

SESC Pompeia, 8 de outubro – vários celulares apitam nos bolsos e nas bolsas do público convidado e participante da programação da noite de abertura da Mostra SESC de Artes 08. Era o primeiro dos SMS, enviado às 20h30, para os celulares cadastrados das pessoas que ali estavam. A mensagem – um texto duro, grotesco e truncado – do escritor e dramaturgo Alberto Guzik, com título o “Torpor” dava início a um dos projetos literários do evento: o Literatura Celular.

Nos dez dias seguintes, dois mil celulares tocaram em três diferentes horários – 11h30, 16h e 20h30 – com trinta diferentes microcontos de Alessandro Buzo, Ana Rüsche, André de Leones, Evandro Affonso Ferreira, Fernanda Siqueira, Ferréz, Flávio Viegas Amoreira, Ivana Arruda Leite, João Silvério Trevisan, Lirinha, Luciana Penna, Livia Garcia-Roza, Lourenço Mutarelli, Marcelo Ariel, Marcelo Rubens Paiva, Maria José Silveira, Mário Bortolotto, Maurício de Almeida, Menalton Braff, Moacyr Scliar, Modesto Carone, Paulo Lins, Pedro Biondi, Raimundo Carrero, Reinaldo Martins, Ronaldo Cagiano, Sacolinha, Sérgio Roveri e Verônica Stigger.

Idealizado pela equipe da Mostra, e com curadoria de Marcelino Freire -, os torpedos tinham apenas 120 caracteres: um desafio para os autores. O cadastramento dos celulares foi realizado no site do evento, limitado a dois mil números inscritos e válidos apenas a uma determinada operadora no Estado de São Paulo. Porém essa ação programática, como previsto, tornou-se viral, uma vez que os participantes, muitas vezes, repassaram as mensagens para outros amigos ou conhecidos, e esses para outros e outros.

Hoje já difundida e praticada no Brasil, essa forma de escrita teve início em 2000, em Tóquio, Japão 1 , e foi realizada pela primeira vez no país nesta programação do SESC São Paulo. Ela sintetiza muito do norte curatorial da Mostra, uma vez que esta pretendia fazer um mapeamento da produção literária hoje, fosse por meio de ações e práticas já adotadas pelos escritores contemporâneos, fosse pela proposta e convite para que outros viessem experimentar novas formas e suportes para seus textos.

(Logotipo da Literatura Celular, criado para a Mostra SESC de Artes 08, primeira ação programática dessa natureza no Brasil)

Qu’est-ce que c’est?

“Escrever sobre o escrever
é o futuro do escrever”
(Haroldo de Campos, in Galáxias)

Ao escolher apresentar a literatura no meio virtual, com o uso de aparelhos de comunicação de ponta, a Mostra SESC de Artes 08 preocupou-se em abordar a já clássica e polêmica especulação que alguns teóricos da cultura fizeram, ou fazem, sobre o fim do livro. É evidente que, ao criar uma programação que foge, escapa, liberta a literatura da estante, da biblioteca, da poeira e das traças, essa polêmica sobre o fim do livro reacende.

Em sua obra A questão dos livros – Passado, presente e futuro, o historiador norte-americano e criador do projeto Gutenberg-e Robert Darnton, relembra que“o futuro de Marshall McLuhan não aconteceu. A web, sim; a imersão global na televisão, certamente; mídias e mensagens onipresentes, sem dúvida. Mas a era eletrônica não levou à extinção da palavra escrita, como foi profetizado por McLuhan em 1962”.

Recentemente, os críticos Umberto Eco e Jean-Claude Carrière deixaram por encerrada essa tolice na definitiva obra Não Contem com o Fim do Livro 2 . Tivemos e temos o partido de que, o meio virtual, as novas tecnologias e a utilização de diferentes suportes não vieram, ou virão, condenar ou deixar obsoleta a era gutenbergiana. Porém, essa questão nunca foi pauta para essa curadoria.

Ao selecionar ações que expunham o texto literário para fora do objeto cânone da arte literária expunha-se o questionamento recorrente: – Isso é Literatura, com L maiúsculo? Porém, essa Mostra também não preocupou-se em saber se esses fenômenos literários podem ou não ser classificados como Literatura. Assim, escolhemos nomeá-las de “Práticas Narrativas”, valendo-se desse termo sugerido e empregado pela crítica Heloísa Buarque de Hollanda.

Se por um lado os conservadores criticam a literatura de celular e questionam a qualidade das obras, de outro, o escritor e agitador cultural Marcelino Freire rebate, sem hesitar: “Eu sempre falo que um idiota será sempre um idiota na frente do computador ou não. E é a mesma coisa com a literatura. Eu não vou ser da geração naftalina de jeito nenhum! Todo mundo está usando a internet, o celular e, como um profissional da palavra, por que não devo ficar curioso com essas novas mídias?”. É desse lado que estávamos!

Literatura ao alcance de todos


“São Paulo ocupada. São Paulo dominada.
Por um tempo, a cidade viu-se centro de articulações radicais entre
a experiência da palavra, a vida cotidiana e
a densidade da textura urbana contemporânea.
Arte, cidade e vida. Arte ao alcance da mão, da paixão de ler.
O ofício do escritor afinal apostando no que provavelmente
será a maior conquista deste século:
o acesso ao livro, à cultura e à criação compartilhada”.
(Heloísa Buarque de Hollanda. In: Cidade é Texto.
Catálogo da Mostra SESC de Artes 2008 )

De um lado, o desejo do escritor em praticar novos formatos para seu texto, novos suportes para a palavra, novos lugares para outras sentenças; do outro, nossa aposta de que a literatura (as práticas literárias) deve e necessita se reafirmar, se mostrar, se evidenciar. Partindo de constatações e de problemáticas (algumas já “lugares comuns”) do comportamento dessa arte e de seu público, a Mostra SESC de Artes 08 buscou se apoderar dos espaços e aproximar-se mais da vida cotidiana das pessoas. Assim como Marcelino Freire, o criador da Balada Literária, acreditamos que “a literatura é a prima pobre das artes, tão pouco divulgada. Então, quanto mais estiver espalhada no juízo e na memória das pessoas, melhor. Melhor para ela, para os leitores e para os autores”.

As questões que realmente nos tomaram foram essas: Que sutilezas podemos criar para que as palavras possam efetivamente tocar as pessoas de diferentes maneiras? Como pensar essa literatura (essas práticas literárias) em outros meios que não o livro? Qual é a natureza da escrita em nosso tempo? Como pode a literatura desafiar o leitor? Encontrar poesia e prosa em lugares inusitados talvez faça com que prováveis leitores se surpreendam? A palavra ainda causa emoção?

Acreditamos no fato de que apresentando a literatura para diferentes lugares, promovendo encontros, o público/leitor seria convidado a refletir, dialogar e ter momentos de pausas literalmente poéticas no seu dia-a-dia. Acreditamos que essa programação se propunha a criar um fato para o ato da leitura. E essa aposta deu certo, pois perturbamos as categorias mais ordinárias e obsoletas da arte narrativa e poética e proporcionamos o deslocamento e a transfiguração do texto. Isso causou estranhamento e/ou identificação; isso fez com que o texto se mostrasse próximo, presente, vivo.
Não se trata de novidade, e sim de mapeamento

“Apreender e entender o tempo presente são aspirações máximas partilhadas pela literatura séria, entre outras artes, e pelo leitor crítico”.
(Ana Paula Pacheco, in Grafias Urbanas)

Alguém de vocês já pegou uma nota R$ 50, R$ 20, R$ 10, R$ 5, ou R$ 2, com o seguinte poema carimbado: “agora que esta nota contém/ uma poesia,/ fica valendo dois terços/ do que valiam ontem”. Alguém de vocês, ao cruzar o semáforo, foi surpreendido com uma etiqueta colada no poste: “Olhe/ para os dois lados/ antes de atravessar/ um diálogo”. Alguém de vocês, provavelmente, já esbarrou com poemas e aforismos de Rix Silveira, espalhados e fixados em lixeiras, ônibus. Alguém de vocês já foi surpreendido por um livrinho em formato de caixinha de fósforo, plagiando o rótulo de uma marca conhecida, intitulado Dois Palitos, com micro textos do jovem prosador Samir Mesquita 3 . Algum de vocês já participou, ou ouviu falar, de uma balada literária, organizada pelo poeta marginal Chacal, no Rio de Janeiro, e conhecida por CEP 20.000. Algum de vocês possivelmente já esteve em um dos eventos performáticos do escritor Paulo Scott. Algum de vocês talvez tenha recebido um poema gif por e-mail, possivelmente assinado por Marcelo Shae 4 . Essas são práticas literárias recorrentes no cenário nacional.

O poema clip, a performatividade da leitura de um conto, de um sarau, o poema holográfico, a vídeo-poesia tridimensional, o conto curto animado e jogado na rede, nada disso é novo, sabemos disso. Mas, mesmo não sendo novo, ainda é uma prática literária inventiva, diferente da literatura residente nos livros.

Sabemos que uma das características da literatura contemporânea é a de se experimentar em diferentes possibilidades combinatórias com outras linguagens. Escrita e som. Escrita e performance. Escrita e imagem. Escrita e movimento. Escrita e arquitetura. Em Esses poetas, Heloísa ressalta que “a poesia articula-se, em várias realizações e performances, com as artes plásticas, com a fotografia, com a música, com o trabalho corporal”.

Por meio de seus 13 projetos, a Literatura na Mostra SESC de Artes lançou-se na investigação estética sobre a diluição das linguagens artísticas. O limiar entre palavra e imagem, entre o texto e a plástica, entre literatura e artes visuais pautou os seguintes projetos da Mostra: Poesia Visual, uma individual de Marcelo Sahea, e Poesia Concreto, com poemas de Arnaldo Antunes, Antonio Cícero, entre outros. Ainda dialogando com elementos visuais, foram apresentadas as inéditas instalações 18h30, de Samir Mesquita e a Poça de Poemas, com haikais de Alice Ruiz. No que concerne às ações mais performáticas, projetos como o Literatura em Trânsito (Ou Histórias para Ouvir na Hora do Rush) e Concerto Literário para Voz e Base Eletrônica foram exemplos de ações em que a frágil linha entre o que é literatura, o que é cênico ou musical caem por terra.

Comece pelo primeiro degrau…

Os projetos Histórias de Elevador e Prosa na Escada convidaram diversos escritores para um site specific literário, uma vez que convidava escritores e ilustradores para a criação de textos e imagens que figurassem nas paredes dos elevadores de algumas unidades do SESC SP. Breves contos de Beatriz Bracher, Bernardo Carvalho, Chico Mattoso, Cíntia Moscovich, Clara Averbuck, Índigo, João Paulo Cuenca, Michel Laub, Santiago Nazarian dialogaram em uma dobradinha com as imagens criadas pelos ilustradores André Neves, Eva Uviedo, Eduardo Kerges, Laura Teixeira, Milena Galli, Sylvia Jorge e Alexandre Matos. O escritor Bernardo Carvalho apresentou sua criativa e contundente narrativa “Leia de baixo para cima”, num movimento solo, abrindo mão de um ilustrador. Enquanto o escritor e desenhista Lourenço Mutarelli assumiu a mão dupla, do texto e das ilustrações que compuseram o seu elevador infernal.

Com tema livre, essas diferentes intervenções/ocupações provocaram uma experiência diferente ao público visitante ou habitué do SESC SP. Ao subir de um andar para o outro, de escada ou elevador, os frequentadores e passantes se depararam com textos que despertaram curiosidade, espanto ou surpresa. Se mudassem de elevador, eles seriam novamente surpreendidos por outras prosas. Se optassem pela escada, seriam ainda convidados a participarem de narrativas com estrutura labiríntica e circular, assinadas pelos escritores Joca Reiners Terron e Santiago Nazarian, com arte de Valéria Marchezoni e Andres Sandoval.

Trecho da narrativa de Joca Reiners Terron, criado para o projeto Prosa de Escada. Arte: Valéria Marchesoni

Poesia ao alcance das mãos
“(…) Guarda na poesia mora na filosofia, por que rimar futuro e muro
e, isso é duro, por cortesia – falar, só de boca vazia”.
(Poema de Paula Glenadel, para o projeto Boca Suja)

 

 

Os projetos Boca Suja e Poema para Viagem nasceram do desejo de desmistificar a palavra, provocando o público a refletir sobre a potência de um texto mesmo que num pequeno pedaço de papel. No primeiro, um simples guardanapo proporcionava uma série de oito breves poemas inéditos, delicadamente escritos à mão e impressos em diferentes cores. De forma direta, um pedacinho da nossa poesia contemporânea foi apresentada ao público de restaurantes, lanchonetes e comedorias do SESC São Paulo. Na série, poemas do “marginal” Chacal, dos gaúchos Fabrício Carpinejar, Angélica Freitas e Verônica Stigger, além dos jovens poetas Fabiano Calixto, Fabrício Corsaletti, Paula Glenadel e Tarso de Melo. Durante a Mostra, virou mania colecioná-los!

Já em Poema para viagem, o poeta e artista plástico Ricardo Silveira reeditou seu projeto homônimo. Trata-se de uma referência direta aos cartazes de divulgação usualmente fixados em painéis de avisos nos campi universitários, nas ruas, nos postes, e que divulgam, por exemplo, anúncios de compra e venda, de prestação de serviços – o famoso “Aluga-se”- e que o passante destaca um pedacinho com o contato e leva-o para casa.

Nesse caso, as folhas de sulfite A3 traziam, no maior campo da folha, o seguinte poema/ anúncio (de autoria do próprio Rix): “Poemas destacáveis. Poemas de gente nova e muito talentosa. Um tipo de antologia das ruas, feita arbitrariamente, sem o consentimento dos autores. Poemas de Ademir Assunção, Alice Sant´Anna, Ana Guadalupe, Carlito Azevedo, Fabrício Corsaletti e Ricardo Silveira. E o maior (em dimensão, óbvio), meu”.

Outros projetos evidenciaram a produção da poesia contemporânea, como foi o caso do Poça de Poemas, uma instalação de arte-eletrônica, que apresentava haikais de Alice Ruiz numa falsa poça d’ água que, ao ser pisada ou tocada pelo público, mudava, apresentando um novo texto poético. Com o Poema Passageiro, a Mostra SESC de Artes 08 apresentou uma programação de poemas em vídeo, exibidos nas TVs dos ônibus da cidade de São Paulo 5.

Pessoas que circularam pela cidade no período da Mostra, em especial no itinerário que passava pelas conhecidas Rua Augusta e Avenida Europa, puderam contemplar e ler poemas de Chacal, Rodrigo Garcia Lopes, Ricardo Domeneck, Marcelo Montenegro, Ricardo Silveira, Angelica Freitas, Bruna Beber, Marcelo Sahea, Ana Rusche e Leo Gonçalvez.

Detalhe de um dos guardanapos da Mostra, assinado pelo poeta carioca Chacal, no projeto Boca Suja

Outras Histórias para Ouvir ou Ler na Hora do Rush

Um táxi estacionado e seu motorista convida os passageiros para uma corrida literária. Só podem entrar quatro pessoas por vez. Dispostos – um na frente, três passageiros no banco de trás – todos estiveram a bordo de uma leitura dramática de textos da literatura nacional a preço de Bandeira 0 (Zero!). De tanto a tanto, quem foi ao SESC Consolação enfrentou fila para ver o projeto Literatura em Trânsito (ou Histórias para Ouvir na Hora do Rush).

Na primeira noite, 14 de Outubro, o ator Eric Nowinski fez a performance/leitura de trechos do livro Eles Eram Muitos Cavalos, de 2001, do escritor e jornalista Luiz Ruffato. No dia seguinte, o público pôde acompanhar José Eduardo Rennó, a bordo de um táxi, interpretando o conto Só uma Corrida, ficção inédita de João Anzanello Carrascoza, criado especialmente para a Mostra. Por fim, na noite seguinte, sempre começando às 18h, Luís Mármora narrou e vivenciou a personagem do conto Rush, do escritor e músico mineiro André Sant’Anna. O mais interessante era que, embora o táxi não saísse do lugar, a impressão de circulação pela cidade se dava de forma vertiginosa, ou fuik. O que garantia isso era um aparato de projetores instalados no vidro dianteiro do carro e em tripés que exibiam vídeos com diferentes trajetos. Assim, tínhamos a impressão de deslocamento pela pólis, com direito a curvas e brecadas (ressaltadas pela movimentação corporal dos atores/motoristas).

Mas esse não foi o único projeto que se propunha a uma reflexão sobre o frenesi do nosso dia a dia na metrópole. A Mostra apresentou ainda o 18h30, uma instalação de Samir Mesquita, com cinquenta microcontos colados em carrinhos e alinhados como num congestionamento que convidava o leitor a conhecer um pouco do universo particular de cada pessoa presa no trânsito, nestes muitos mundinhos confusos e caóticos da metrópole.

Mais Poesia Visual

e se um poema opaco feito um muro
te fizer sonhar noites em claro?
e se justo o poema mais obscuro
te resplandecer mais que o mais claro?”
(poema de Antonio Cícero,
projeto Poesia Concreto)

A investigação da poesia verbivocovisual contemporânea não parou por aí. Na Mostra SESC de Artes 08, a obra de Marcelo Sahea ocupou algumas paredes, corredores e vidros das unidades do SESC SP, apresentando poemas visuais que investigavam os limites da diluição entre texto e imagem.

Segundo a jornalista da revista Bravo!, Laila Abou Mahmoud: “Outros objetos do cotidiano também viraram suporte para a Literatura e a Poesia na Mostra. Os bebedouros do SESC Pompeia, por exemplo, foram marcados com poemas do paulista Ricardo Silveira. Já as paredes das unidades Interlagos, Itaquera e Vila Mariana receberam poesias contemporâneas de autores como Arnaldo Antunes, Age de Carvalho, Ana Rüsche, Antonio Cícero e Ricardo Aleixo. Os versos brincam com o trocadilho entre o conceito de poesia concreta e o concreto das paredes nas quais estão expostos. Já nas unidades Ipiranga e São Caetano, o brasiliense Marcelo Sahea expõe seus versos sobre o cotidiano”.

Instalação do poeta visual e artista plástico Marcelo Sahea, nas unidades do SESC Ipiranga e São Caetano

Literatura Performática

 

“Na ressonância ouvimos o poema,
na repercussão, nós o falamos, pois é nosso”
(Gaston Bachelard)

Para quem quis ver os próprios autores declamando, uma oportunidade foi a apresentação do Concerto Literário para Voz & Base Eletrônica. Neste sarau, happening, show, ou que mais se tenda a chamar, o escritor Paulo Scott foi um MC, o ator Rodrigo Penna um DJ-intérprete, a atriz Fernanda D’Umbra uma atriz mesmo e Simone Carvalho cantou. Com eles, escritores leram trechos curtos de sua produção literária, enquanto cenas de vídeos caseiros tomaram os telões do espaço. Esses materiais mostraram fotos, cenas de cotidiano, poesias, blas-blás-blás de muitos escritores e poetas. Em paralelo, ao vivo, os escritores convidados – como Índigo, Michael Laub, Tony Monti, Verônica Stigger e João Gilberto Noll – participaram com leituras e improvisações.

O Texto na Cidade

“A cidade ideal é aquela sobre a qual paira um pulvísculo de escrita
que não se sedimenta nem calcifica”.
(Ítalo Calvino, in A Cidade Escrita: Epígrafes e Grafites)

 

Considerando que no establishment da literatura a maioria das atividades é restrita a encontros, lançamentos de livros, saraus e mesas de debates, e considerando ainda que grande parte da população brasileira não tem o hábito de ler, essas ações literárias geraram novas propostas aos escritores, evidenciaram práticas literárias já existentes e apresentaram ao público novas formas de leituras, em lugares públicos ou de passagem. Textos breves e convidativos, curtos e atraentes, estenderam-se para fora das salas fechadas e tomaram espaço na cidade.

Segundo a jornalista Laila Abou Mahmoud ressaltou na página da Bravo!, com essa iniciativa a Mostra SESC de Artes 08 possibilitou ao público a percepção de que “a literatura não tem ou teve um espaço exclusivo, mas diversos e, muitas vezes, inusitados”. Para Heloísa Buarque de Hollanda, numa perspectiva curatorial “a Mostra SESC de Artes foi realmente ao ponto e conseguiu o que muitas pesquisas na área das Letras ainda não deram conta. Focada na busca de novas definições do lugar da arte contemporânea hoje, esta edição 2008 dramatizou a atual expansão da literatura no espaço da cidade e colocou em debate a urgência em democratizar a fruição literária em grande escala. São treze os projetos e treze os espaços onde a palavra literária se desdobra e se revela (…)e sugerem o designer de uma cidade ocupada pela palavra”6.

A questão era exatamente esta. Com todos os riscos implicados, tocamos nosso ponto de fuga a que se pretendia o conjunto do projeto: relembrar as pessoas, leitores ou não, que a literatura, como a arte, pode e deve ser percebida e evidenciada por e para todos. A literatura que se coloca ao público para que esse a decifre, que cria e estabelece diálogo, participação e contemplação livre. Era isso em que acreditávamos. Era neste ponto que queríamos chegar. Nos damos por felizes!

 

NOTAS

 

1 Essa ação batizada de Keitai Shosetsu (Romances de Celular) foi criada pelo jovem escritor japonês Yoshi, que lançou seu primeiro romance adolescente “Deep Love” (“Amor Profundo”). A novidade saiu do mundo virtual, ganhou as páginas impressas e virou febre no Japão e no mundo.

2 Para Umberto Eco, com a Internet e as novas tecnologias nos reintroduzimos na galáxia de Gutenberg, “e, doravante, todo mundo vê-se obrigado a ler. Para ler é preciso um suporte”. E essa ferramenta mais flexível é o livro, e ressalta: “O culto da página escrita, e mais tarde do livro, é tão antigo como a escrita”.

3 Lançado em 2007, este livro apresenta uma coletânea de 50 microcontos, de até 50 caracteres cada, que vem dentro de uma caixinha de fósforos. Esse livro foi distribuído ao público na abertura da Mostra SESC de Artes, bem como a formadores de opinião, como um exemplo claro do que pretendíamos chamar de práticas literárias.

4 O projeto PoeGifs foi criado, a princípio, com o propósito de partilhá-lo apenas com amigos e uns poucos eleitos durante o ano de 2007. Marcelo Sahea criou, produziu e enviou por oito meses via e-mail, todos os domingos, a uma lista de mais ou menos 150 pessoas, Gifs (Graphics Interchange Format) animados com poemas de seus livros e outros textos inéditos.

5 O projeto Poema Passageiro contou com o apoio da Bus Mídia Televisão; puderam ser vistos também na Linha Verde do Metrô e nas livrarias Cultura, Nobel e Siciliano.

6 HOLLANDA, Heloísa Buarque, in Cidade é Texto.

 

* Antonio C. Martinelli Jr. É Coordenador de Programação do SESC Belenzinho. Foi curador da área de Literatura na Mostra SESC de Artes 08.

 

Atraso do progresso | de Alckmar Luiz dos Santos

“… a civilização é a criação de estímulos em excesso constantemente progressivo sobre a nossa capacidade de reação a eles. (…) ser civilizado é inventar reações para os estímulos que excedem já a reação possível, isto é, inventar reações artificiais…”
Fernando Pessoa, A influência da engenharia nas artes nacionais

Given that our days are limited, our hours precious, we have to decide what we want to do, what we want to say, what and who we care about, and how we want to allocate our time to these things within the limits that do not and cannot change. In short, we need to slow down.”
John Freeman, Not so fast. Sending and receiving at breakneck speed can make life queasy; a manifesto for slow communication 2

O que pretendo desenvolver aqui não é, de modo algum, uma lamúria conservadora acerca de nossas relações com as tecnologias. Não haverá neste ensaio a menor sombra de saudosismo das origens, nem lamentação pela pretensa perda de uma suposta época de ouro, no que teria sido uma espécie de tragédia inaugural da civilização. Isso funciona muito bem nos mitos e, talvez, na psicanálise. Aqui, teria o grave defeito de encobrir processos e desdobramentos muito mais interessantes. D. H. Lawrence, em seu Lady Chaterley’s Lover, afirmava que sua época era trágica 3 Ora, em vários sentidos, todas as épocas são trágicas, pois, frequentemente o excesso e o excessivo travam barulhentos combates em que o campo de batalha está em todos e em cada um de nós 4 . Ou, como diz George Simmel, Pues existe lo trágico allí donde la tribulación o la anulación de una energía vital por su adversaria no se debe al choque casual o externo de ambas potencias, sino donde el destino trágico que una preparaba a la otra se encontraba prefigurado ya en ella como algo inevitable. La forma de unidad de esta contradicción es la lucha. 5
É curiosa a retomada de uma perspectiva heracliteana por um pensador, como Simmel, que foi certamente influenciado por Hegel. Contudo, me interessa justamente essa contraposição entre pensamentos de recorte heracliteano e pensamentos de filiação platônica (e, talvez, hegeliana). De certa maneira, boa parte da filosofia ocidental — que François Châtelet caracterizou como um longo diálogo direto com a filosofia de Platão — desprezou uma linhagem mais próxima de Heráclito e que consiste na capacidade de tratar os contrários sem reduzir um a outro, ou sem substituir a ambos por um terceiro. Esta linhagem, curiosa e paradoxalmente, tanto permitiu o surgimento de correntes gnósticas e iniciáticas da Idade Média, quanto influenciou, por menos que fosse, a criação da lógica paraconsistente, por Newton da Costa, em meados do século XX .6
É assim que estou buscando entender as relações entre as artes (em particular, as literaturas, que constituem o campo de onde falo) e as tecnologias, nesse nosso ambiente atual de intensa saturação tecnológica 7 , partindo do que seria próximo de uma perspectiva heracliteana… ou, talvez, paraconsistente. De toda maneira, até aqui, não há nada de substancialmente novo nesse contraste que busco apresentar entre ambas (artes e tecnologias): as primeiras estão sempre fundadas em algumas técnicas (que são, na maior parte, internas às artes) e mantiveram relações constantemente tensionadas com as tecnologias (que são, estas, na maior parte, externas às artes). E quando falo em relações tensionadas, isso quer dizer que estou buscando entender as diferenças e as aproximações das artes com as tecnologias, sem que se tenha de escolher definitivamente uma possibilidade ou outra, como quase sempre tem sido feito ao longo do tempo por artistas, estetas, críticos ou teóricos. Quero dizer com isso que, no mais das vezes, se tem optado pela aproximação com o tecnológico de forma quase sempre submissa e empobrecedora, ou se tem escolhido um distanciamento, frequentemente estéril. O que pretendo aqui é manter visões opostas, sem ser obrigado a adotar uma das posturas rivais; sem ser obrigado, muito menos, a resolver a contradição através de uma síntese dialética unificadora tão artificial quanto impossível. Ao se conservar essa oposição, chegaremos à dinâmica da tragédia como a descreve Simmel, mas também chegaremos a uma perspectiva trágica, no sentido do teatro grego, em que o sofrimento encenado e assistido era o início de um percurso de conhecimento. Em outras palavras, posso dizer que nossas relações com as tecnologias (e não apenas no âmbito das artes) são trágicas, por que elas, as tecnologias, são ao mesmo tempo nocivas e benéficas (e não, de modo simplista, nocivas ou benéficas). E não se pode ter uma perspectiva, sem manter a outra.
Com essa opção, torna-se impossível ou, ao menos, improdutiva a escolha de qualquer uma das duas possibilidades — a tecnofobia ou a tecnofilia. A partir daí, impõe-se reformar a noção de progresso, que, não por acaso, está ligado a vários racionalismos nossos velhos conhecidos. Em vez de progresso, quero propor aqui a noção de avanço, o que implicaria estar livre das camisas-de-força dos esquemas deterministas de presivibilidade. Baseada frequentemente nas mentalidades positivistas, a ideia de progresso parece necessitar desses saltos epistemológicos, em que a síntese em direção a um novo estado se dá pela supressão de um ou até dos dois membros da disjunção anterior. Em vez disso, creio ser possível optar pelo que estou entendendo como avanço, isso é, uma transição complexa e indefinida, em que as disjunções não se resolvem por uma concórdia otimista entre os opostos, nem pela imposição de um oposto sobre o outro. Contudo, ainda não é o momento de aprofundar essa distinção entre progresso e avanço. Mais adiante o faremos. Por ora, voltemos a nossas relações com as tecnologias.
De tudo que acima foi dito, pode-se resumir que não é possível adotar qualquer espécie de luddismo, que renega o acúmulo e a complexidade tecnológica; também não me deixo seduzir pelas vozes entusiastas da tecnologia, mesmo as que se enfeitam com alguma sofisticação, a exemplo de Pierre Lévy. Por outro lado, não há neutralidade possível nesse embate… E nem meio-termo… Dito de outra maneira, nosso diálogo com as tecnologias é muito mais profundo e muito mais antigo do que pode parecer à primeira vista, ou do que tem sido constantemente afirmado. Se me permitem usar uma figura, eu diria que o lado negativo e saturante das tecnologias é como um bola de ferro que, amarrada a nossos pés, pode nos fixar, imóveis, em algum ponto de nosso percurso; ou pode ser jogada à frente, com grande esforço, lançando-nos para bem mais adiante do que iríamos normalmente. Em outras palavras, esse lado negativo das tecnologias não nos abandona nunca e é constitutivo de nossa dimensão cultural.
Alguns terão notado, nos meus comentários acima, alguns ecos longínquos da psicanálise. Em outra perspectiva, trata-se de um raciocínio semelhante ao que aparece no excerto de Fernando Pessoa, transcrito acima. Sem deixar de ecoar as muitas discussões sobre o mal-estar da civilização, o poeta português, nesse trecho citado, associa à civilização um incômodo que é também estímulo, propondo uma postura que pode ser invocada como possível resposta à (correta!) observação de Freeman, também citada acima. Se não temos como deixar de lado nossas limitações 8 , é possível fazer com que elas sirvam de estímulo a nosso trato com as tecnologias.
Assim, de maneira criativa (e a arte não está aí para outra coisa!), é possível usar a saturação e os processos pretensamente deterministas e falsamente ilimitados das tecnologias, para fazer com que tal incômodo nos permita inventar reações artificiais que tomem distância de qualquer lógica de reafirmação da artificialidade tecnológica. Em outras palavras, trata-se de escapar de antigos limites para inventar novos limites para nós, o que significa que não nos conformaríamos com algum estado anterior já adquirido e pretensamente estável. Mas isso tem que ser feito agora, nesta nossa época, justamente quando os mitos contemporâneos das tecnologias nos acenam com redes de informação supostamente infinita possibilitando conhecimento pretensamente ilimitado. E não é preciso dizer que inventar novos limites para nós, implica necessariamente impor também limites às tecnologias, mas limites inesperados, situados fora das lógicas com que elas foram projetadas e das lógicas com que foram construídas 9 .
* * *
Todo esse preâmbulo serve para situar melhor um dos motivos principais deste ensaio — a situação dos estudos críticos e teóricos do texto digital, particularmente os que se desenvolvem a partir do campo literário. Contudo, em relação a este, tomo algumas premissas que ainda devo explicitar, do modo mais claro e simples que me seja possível (mesmo que não constituam absolutamente grandes novidades). Vamos a elas!
1. Quando falo de estudos que se desenvolvem a partir do campo literário, quero chamar a atenção para o fato de que os estudos de literatura, em particular as diversas teorias do texto, surgem dentro do âmbito literário, mas podem ser usados em outros campos: a crítica e a teoria das artes ligadas ao meio digital; as questões relativas aos hipertextos; os processos de construção de redes de informação e de sentidos no ciberespaço; os sistemas de construção de grandes narrativas tecnológicas (especialmente as digitais)10 e que constituem uma nova mitologia imanente em oposição às mitologias transcendentais que vêm da tradição oral… E assim por diante. Posso ainda afirmar sem hesitação que os estudos do texto literário estão em posição privilegiada no que se refere à investigação das relações tumultuadas entre arte e tecnologia. Essa capacidade não viria de nenhuma superioridade do literário com relação a outros campos do conhecimento, mas do simples fato de que é em nosso campo que as investigações sobre processos expressivos e sobre estratégias e campos de construção de sentidos se aprofundaram mais, nas últimas décadas.
2. Sem embargo, assim como é possível fazer os estudos literários saírem de seu âmbito específico e serem utilizados em outras instâncias, é também possível (como, aliás, sempre foi) trazer, para o literário, contribuições de outros campos, notadamente os das diversas artes. Com isso, processos e situações semelhantes já vividas em outras épocas, por outras artes, podem muito bem servir como modelos para se entender paradoxos, impasses e limites dos estudos literários, como os que se experimentam atualmente quando se examina a literatura do meio digital. Com isso, essa atual mudança de paradigmas, do impresso para o ciberespaço, pode ser mapeada, estudada e compreendida, a partir de mudanças de paradigmas com dinâmicas e condições algo semelhantes às que hoje se observam.
3. Uma última premissa se refere às vanguardas e aos experimentalismos, que impuseram seus ritmos e suas perspectivas às discussões sobre as artes, do início do século XX até os dias de hoje. De fato, é impressionante a frequência com que Marcel Duchamp ainda é invocado atualmente como inspiração, como santo protetor das artes contemporâneas. É como se não se tivesse passado quase um século desde suas primeiras intervenções vanguardistas; como se suas relações equivocadas com as técnicas, com as tecnologias e com os meios de produção em massa não fossem já um capítulo mais do que superado na história das artes. Aliás, a esse propósito, haveria que se destacar com mais ênfase a figura de Alfred Jarry (quase contemporâneo de Duchamp), na maneira como se coloca ao mesmo tempo dentro e fora das tecnologias e das ciências, de maneira muito mais interessante do que o fez o próprio Duchamp11 . Em suma, é inegável que todas as discussões sobre literatura e meio digital não podem ficar alheias às questões envolvendo os diferentes experimentalismos, tanto nos acertos quanto nos lapsos destes.
Dito isso, voltemos à segunda premissa para desenvolver alguns de seus elementos. Há que se reconhecer que estamos ainda passando pelas turbulências de uma evidente mudança de paradigmas nos estudos literários, a partir do advento das tecnologias digitais. No dizer de vários teóricos e críticos, praticamente todos os elementos que alicerçavam os estudos da literatura impressa se encontram em processo de contestação ou, declaradamente, de dissolução. E nem é preciso citar nomes, basta uma ligeira busca pela internete para se dar conta desse quase genocídio que vem atingindo conceitos que, até há pouco tempo, eram essenciais e incontornáveis: leitor, escritor, autor, gêneros, texto, leitura, retórica etc. A impressão que se tem é que pouca coisa fica de pé, depois desse furacão chamado internete. Às vezes, autor e escritor parecem condenados aos museus das citações e das referências arcaicas, como antiqualhas que apenas servem, atualmente, para obscurecer a extrema e exclusiva importância dos processos digitais de construção, armazenamento e disseminação de objetos (assimilados a gestos expressivos). Pierre Lévy afirma que “The distinction between author, editor, publisher, critique (assessement) and librarian (categorization) will continue to blur 12.” Philippe Bootz diz que “… bug et obsolescence sont les deux maîtres mots de la condition de l’auteur numérique” 13 . A respeito do leitor, Serge Bouchardon, por exemplo, fala de uma “mise en échec du lecteur” que “fait écho à une autre mise en échec, celle de l’auteur” 14 . Contudo, muitos teóricos passam ao largo de propostas mais bem fundamentadas como as de Bouchardon, na qual se parte da premissa de que leitor é também, mais do que nunca, uma função, uma estratégia, e não apenas uma perspectiva a ser exercida com autonomia por um terceiro 15 . Todavia, não são poucos os que se apressam em esconder essa colocação em xeque do leitor, para alçá-lo ao que seria a nobre função de criador, vaga com a morte do autor 16 . O rei está morto; viva o Rei!, parecem pensar. Quanto aos gêneros, Philippe Bootz, em “Vers de nouvelles formes en poésie numérique programmée 17 ?” , tenta construir uma nova grade para a poesia digital, a partir das primeiras tentativas mais sistemáticas de criação poética:

Le milieu des années quatre-vingts voit la reconnaissance de la spécificité de la poésie numérique à travers trois genres qui sont la génération automatique de textes développée par Jean-Pierre Balpe dès 1980, l’hypertexte, surtout développé aux USA, et la poésie animée, développée en France, principalement sous la forme de l’animation syntaxique, à partir de 1985 par les poètes qui formeront le collectif L.A.I.R.E. en 1988.

Em resumo, ainda estamos mergulhados em uma crise dos modelos oriundos da tradição impressa e, consequentemente, dos elementos a ela associados (autor, escritor, leitor, gêneros, texto etc.). Para alguns, isso parece indicar que seria aconselhável, ou até mesmo mais produtivo, que se desistisse de trabalhar com a tradição ou com a história dos estudos literários. Mais radicalmente, há mesmo quem passe rapidamente da desistência para o desconhecimento. Para chegar a isso, partem da constatação, correta, de que há um desvio epistemológico entre a tradição do escrito e do impresso, com respeito à tradição do digital, mas entendem esse desvio epistemológico de modo simplista e errôneo. Como se ele significasse uma desvinculação radical entre os paradigmas do ciberespaço e os da “galáxia de Gutenberg”; como se nenhum elemento, processo ou estratégia de um paradigma viesse se misturar àquele que lhe é posterior. Isso está expresso claramente, por exemplo, na ideia de Pierre Lévy de que a telemática possibilitaria a existência uma nova humanidade 18 .
É claro que, apressadamente, é até mesmo fácil concluir que tela digital não teria nada que ver com papel; que a linguagem verbal já não seria mais a melhor base para as construções de um pensamento que se tornaria icônico ou imagético à semelhança dos espaços de navegação 19 ; que a ergonomia pode ser melhor critério que a retórica ou a estética para medir o alcance e a profundidade de qualquer expressão, pensamento ou gesto de criação. Ora, abandonar ou ignorar o paradigma anterior, ligado ao impresso, implica muita coisa, menos um aprofundamento na maneira como se podem entender as literaturas do meio digital. De fato, só podemos ter prejuízos quando esquecemos a tradição anterior e nos fixamos na ilusão de que o desvio de paradigmas implica uma ruptura radical e impõe a elaboração de estratégias e de conceitos ab ovo. Desconhecer a tradição anterior e a história dos conceitos e dos métodos, nos obrigaria a propor perspectivas completamente novas, o que só pode ser feito a partir do circunstancial e do imediato. Nesse caso, o risco é cair rápida e facilmente nesses ceticismos ou relativismos contemporâneos, companheiros fraternos da preguiça intelectual. Diga-se, a bem da verdade, que estou muito tranquilo para propor esse diálogo entre paradigmas, na medida em que, desde 1995, para ler e analisar os textos digitais, venho defendendo a utilização de conceitos oriundos do que se convencionou chamar de teoria do texto francesa 20 . E diga-se também que tal diálogo nunca representou para mim uma continuidade de esquemas e teorias antigas, ou uma submissão cega a eles.
Contudo, o que está por trás de todo esse imbróglio poderia talvez ser resumido à antiquíssima dicotomia entre unidade e multiplicidade (que se desdobrou nas várias polêmicas entre idealistas e sofistas, entre realistas e nominalistas, entre racionalistas e empiristas etc.). De fato, o ciberespaço é uma multiplicidade(pois está sustentado por uma imensa quantidade de técnicas, tecnologias, processos, gestos, expressões e obras) híbrida (pois nenhum de seus componentes tem uma primazia evidente e concreta sobre os demais). Com isso, torna-se impossível compreendê-lo em sua totalidade através de uma leitura específica, individual. É claro que isso poderia ser dito do mundo vivido da tradição filosófica ocidental e, ainda uma vez, não teríamos aí nada de novo. Contudo, com relação ao ciberespaço, a diferença reside no fato de que essa impossibilidade está imediatamente diante de nós, disponível como se fosse a singularidade de uma função matemática que é, ao mesmo tempo, infinita em valores, mas restrita a um único ponto do plano cartesiano. De fato, o ciberespaço nos torna capazes não de manipular o infinito, mas sim a sua imagem especular, ou seja, a sua infinitude 21 .
E, nesse caso, mais uma vez batemos de frente com os limites da dedução ou da indução. Até poderíamos tentar entender a multiplicidade como resultado de derivações imperfeitas de um princípio unificador; mas, neste caso, o excesso de significantes do meio digital (que é correlato da saturação tecnológica contemporânea) não se deixa resumir a uma unidade, como quer o dedutivismo; rapidamente, o excesso parece se converter em excessivo e põe diante de nós, concretamente, essa multiplicidade imediata do ciberespaço, tornando aparentemente impossível qualquer operação dedutiva pré-concebida. Diante disso, poderíamos tentar outro caminho e aceitar a limitação de nossos atos de leitura, restringindo nosso percurso de conhecimento ao limite mais imediato dos objetos e das experiências imediatamente disponíveis; fazendo uso de um empirismo que se baseia em alguma forma de indutivismo. Mas, neste último caso, rapidamente o objeto se fecha sobre ele mesmo, a singularidade assume o lugar da generalidade, e o excesso cede lugar à lacuna. Como resultado, ficamos com as mãos vazias de qualquer certeza sobre o objeto que estávamos investigando. De fato, temos aqui um problema de método de pensamento, de leitura, de investigação 22 . É preciso sublinhar que não somos obrigados a escolher uma de duas opções: ou reduzimos tudo a um só esquema totalizante, ou nos restringimos ao horizonte da experiência imediata. Creio ser possível um exercício de pensamento e de leitura dos objetos digitais, que nos faça escapar tanto do reducionismo, representado pela empolgação tecnológica dos inúmeros tecnófilos contemporâneos, quanto do ceticismo (ou do niilismo) dos muitos tecnófobos.
* * *
Nesta nossa época de intensa saturação tecnológica (e não é demais repetir esta expressão!), penso que uma abordagem pelo viés da estética pode nos fazer avançar no entendimento das artes digitais, especialmente das literaturas de que me ocupo. O apelo à dimensão estética da criação e da leitura digitais será capaz de nos fazer ir além dos dualismos redutores com que muitos teóricos do ciberespaço temos trabalhado: linear e não-linear, contínuo e fragmentário, limitado e ilimitado, e assim por diante. No caso da literatura, diria que essas disjunções têm servido para manter as discussões ainda presas à oposição entre impresso e digital, como se estivéssemos condenados a permanecer indefinidamente nessa transição específica. Ou como se não houvesse uma transição contínua em que nos movemos sempre. Vem daí a distinção que mencionei acima entre progresso e avanço. Nesse caso, avanço se oporia a progresso como as imagens fractais se opõem à linha (mesmo que seja uma linha descontínua como a da função tangente).
De outro lado, essa abordagem estética é fundamental para entender de modo mais aberto a criação literária digital. De fato, as dificuldades de explorar e de organizar o campo dessas literaturas estão ligadas diretamente às decorrências estéticas da leitura de obras literárias, sejam elas digitais ou não. De modo geral, isso sempre foi relegado a segundo plano, como se estética e arte não dissessem respeito à literatura. Para confirmar esse juízo, basta ver que poucos manuais de história ou de teoria literária utilizam conceitos que se fundamentam suficientemente em alguma perspectiva estética.
Em um ensaio publicado há alguns anos 23, procurei justamente desenvolver esses aspectos estéticos, com respeito aos poemas digitais, investigando-os como coisa, como objeto e como obra, a partir do que diz Heidegger em A origem da obra de arte 24 . Para retomar brevemente essa discussão, poderia dizer que, como coisa, a literatura digital é explorada como interação imediata, ou seja, como realidade palpável, direta e concretamente disponível aos sentidos do corpo e aos sentidos de algum discurso outro que tente falar de suas especificidades. Como objeto, é vista como resultado de uma criação, como resposta (conflitante ou obediente) a um conjunto de significações possíveis e de utilidades de que as coisas vão sendo dotadas para que apareçam então como objetos. É a partir daí que se torna possível sua utilização como instrumento de observação do mundo e do vivido. A passagem de coisa a objeto se faz quando se explicita que a coisa se reveste de linguagem. Desvela-se assim o objeto, que, nessa operação, se desdobra em interioridades e exterioridades. Todavia, para que cheguemos à perspectiva deobra, é necessário que o objeto deixe de ter interior, é necessário compreender que seu interior se torna imediatamente feito de mesma matéria, a saber, linguagem. Nesse caso, já não resta nenhum espaço para qualquer relação utilitária com a literatura digital.
Se essas descrições dão conta dos aspectos específicos das criações literárias digitais, ou seja, de suas singularidades, elas não exploram suficientemente sua dimensão cultural e histórica. E esta perspectiva é sempre necessária; desprezá-la significaria ser obrigado a optar por concepções redutoras das literaturas digitais, como já apontei acima. Sem isso, não se pode entender suficientemente as condições e as características das artes e das literaturas contemporâneas (digitais ou não). É justamente o que pretendo fazer aqui.
Na história das ideias estéticas, uma questão que me parece muito relevante diz respeito à autonomia das artes, processo que se instala a partir do século XVIII (nas literaturas, essa dinâmica vai surgir bem depois, no final do século XIX, mas é fundamental para se compreender tantos as literaturas impressas que desde então se vêm realizando, como as atuais literaturas digitais). De modo geral, pode-se afirmar que, a partir do século XX, passou-se para um segundo estágio desse processo de autonomia. Quero dizer com isso que ele se radicalizou de tal forma, que chegou a algo que nem mais era autonomia, mas sim desvinculação da arte de outras instâncias culturais. Isso representou na verdade uma postura narcísica ou, em alguns casos, quase um fechamento autista. As artes que levaram esse processo de autonomização às últimas consequências esgarçaram-se, diluíram-se e se tornaram, paradoxalmente, dependentes da figura do artista. Em muitos casos, o objeto artístico tornou-se mero pretexto para a publicização das pessoas envolvidas, isto é, artistas, teóricos e críticos. Em outras palavras, o objeto de arte ficou como que abandonado e perdido em algum lugar ignorado do campo cultural. Nesses casos, só o que temos concretamente diante de nós, no campo artístico, é o artista; no campo estético, o crítico ou o teórico. Resumindo, pode-se dizer que a arte se reduziu ao artista e a estética se reduziu ao crítico e ao teórico. Isso explicaria afirmações do tipo “não há sentido em discutir se um objeto ou processo é arte ou não; se o criador diz que é, aceita-se!…25” ; daí vem essa redução do processo criativo à figura do artista; da crítica à pessoa do crítico ou do curador. O que vale é o gesto que remete à persona e não o objeto em si! Mas, de fato, que autonomia é essa?! Por esse viés, nunca a arte esteve tão presa e tão sujeita a outras esferas que não a sua! Da autonomia, passou-se imperceptivelmente para sua dependência total com relação às pessoas envolvidas (artistas, curadores, compradores, público especializado). Certamente, não há autonomia possível em um processo em que o objeto não apenas se desmaterializou, mas foi abandonado, claramente afastado do horizonte de leitura, lançado fora como escolho, como estorvo; ou, o que dá mesmo, devendo ser acolhido com toda a complacência possível, sempre considerado como prova irrefutável da genialidade de algum indivíduo (artista, crítico, ou curador). Com a ilusão de se estar criando um objeto totalmente autônomo, passou-se a um objeto 26 totalmente dependente das pessoas envolvidas. Mesmo a arte que se diz engajada, que criticaria a sociedade, o consumo, o desastre ecológico, a perda de identidade dos indivíduos etc., mesmo essa arte não faz mais do que ressaltar a figura do criador, ao se tornar mera porta-voz deste. De fato, como combater a perda de identidade dos indivíduos, com manifestações artísticas que perderam sua própria identidade, ainda que seja em proveito de um criador, esse sim!, com identidade hipertrofiada?! Parece-me que temos aqui um processo muito semelhante ao que Simmel descreveu, quando comentou o Futurismo: “… las formas que la vida se ha construido como vivienda se han vuelto una vez más cárcel para la vida 27.” Cárcere para a vida, assim me parece uma boa parte das artes contemporâneas, ao optar pela facilidade do imediatismo, pelo empirismo desajeitado 28 , pelo conceito exposto grosseiramente em forma de alegoria simplista.
À guisa de resumo, poderia dizer, mais uma vez, que se trata de optar por uma visada decididamente epistemológica, no que se refere às artes: é fundamental acercar-se do objeto sem abstrair o sujeito; igualmente, deve-se pôr o sujeito em meio às coisas, sem que estas se reduzam a juízos daquele. E tudo permeado por uma visão do campo artístico como processo eminentemente histórico, maneira consistente de fazer com que nem sujeito (criador ou leitor), nem objeto (criado ou lido) sejam tomados como referência única e privilegiada. Assim, nesta nossa época de substituição do meio impresso pelo digital, é importante aprender com outros períodos em que também se viveu alguma importante mudança de paradigmas. Uma das possibilidades é investigar, mais uma vez, o que ocorreu no século XVIII, época de rebaixamento dos cânones clássicos, em prol de uma nova sensibilidade, mais apropriada ao mundo moderno que então surgia. Pode-se dizer que as intensas discussões estéticas que apareceram nesse período preparavam e anunciavam essa nova sensibilidade, um outro ambiente e uma dinâmica diferente, antes mesmo de que se consolidassem as criações artísticas já integradas a essas situações recentes. Assim, num primeiro momento, os conceitos estéticos que surgiam e tentavam se impor como padrão, deviam encarar criadores e criações artísticas que ainda tinham suas bases solidamente estabelecidas na sensibilidade clássica. É claro que isso é comum a todo câmbio de paradigma nas artes, mas o que me interessa, nesse caso, é justamente essas mudanças que se anunciam no século XVIII, em que claramente se passava por um aumento quantitativo na produção e na leitura de arte, com a incorporação de amplos setores da sociedade ao grupo dos consumidores de objetos artísticos (entenda-se aí não apenas compradores, mas sobretudo observadores). Isso representou inegavelmente um acúmulo de informações como nunca havia sido visto anteriormente, o que exigia dos críticos e do público 29 que se adaptassem a essa situação inusitada em que começavam a dispor de muito mais estímulos para processar e a que responder, do que estavam habituados. Balzac descreve muito bem essa situação na abertura do romance Pierre Grassou 30 :

Toutes les fois que vous êtes sérieusement allé voir l’Exposition des ouvrages de sculpture et de peinture, comme elle a lieu depuis la Révolution de 1830, n’avez-vous pas été pris d’un sentiment d’inquiétude, d’ennui, de tristesse, à l’aspect des longues galeries encombrées ? Depuis 1830, le Salon n’existe plus. Une seconde fois, le Louvre a été pris d’assaut par le peuple des artistes qui s’y est maintenu. En offrant autrefois l’élite des œuvres d’art, le Salon emportait les plus grands honneurs pour les créations qui y étaient exposées. (…) Aujourd’hui, ni la foule ni la Critique ne se passionneront plus pour les produits de ce bazar. Obligées de faire le choix dont se chargeait autrefois le Jury d’examen, leur attention se lasse à ce travail ; et, quand il est achevé, l’Exposition se ferme. Avant 1817, les tableaux admis ne dépassaient jamais les deux premières colonnes de la longue galerie où sont les œuvres des vieux maîtres, et cette année ils remplirent tout cet espace, au grand étonnement du public. (…) Au lieu d’un tournoi, vous avez une émeute ; au lieu d’une Exposition glorieuse, vous avez un tumultueux bazar ; au lieu du choix, vous avez la totalité. (…) Maintenant que le moindre gâcheur de toile peut envoyer son œuvre, il n’est question que de gens incompris. Là où il n’y a plus jugement, il n’y a plus de chose jugée. Quoi que fassent les artistes, ils reviendront à l’examen qui recommande leurs œuvres aux admirations de la foule pour laquelle ils travaillent…

Ora, numa situação de excesso de informações, a primeira reação é adotar uma lógica de exclusão como faz Balzac, insinuando a necessidade de livrar as exposições (e, em decorrência, a própria arte) dessas criações secundárias ou inferiores. Contudo, eu diria que essa não é, definitivamente, a melhor escolha: afinal, criações secundárias ou inferiores, se não concretizam nenhum progresso artístico, são fundamentais para isso que venho chamando de avanço, desde que não sejam acompanhadas de outra exclusão, a dos juízos críticos que apontem tanto as qualidades (o que se pode fazer com facilidade) quanto os defeitos ou impropriedades das obras (o que se faz sempre com dificuldade). Explico melhor: para que tenhamos de verdade essa dinâmica que venho chamando de avanço, é fundamental que nem obras, nem juízos críticos sejam excluídos. De fato, quando me refiro a problemas e obstáculos (limites e pequenezas) das artes (atuais ou não), pode parecer que estaria lamentando uma decadência evidente das criações artísticas. Mas não é nada disso. Esses equívocos fazem parte de toda dinâmica cultural, e as artes não estariam imunes a eles. Pode-se dizer que a lógica do avanço implica que não haja mesmo esse progresso inevitável, sobretudo no campo das artes. O que se pode e se deve lamentar é que, tentando preservar, inutilmente, a noção de progresso, não se exerça a crítica com toda a profundidade desejável. É fundamental justamente apontar essas falhas, essas faltas, essas criações superficiais e inócuas. Esses defeitos, claramente, não fundamentam nenhum progresso; todavia, sem eles e, a fortiori, sem uma crítica feita a eles, não se constrói nenhum avanço.
Voltando à discussão sobre o século XVIII e à mudança de paradigmas estéticos e artísticos que veio com ele, é interessante analisar o caso da literatura. Nela, o abandono dos padrões clássicos só se efetivou com a consolidação do romance como gênero literário, na primeira metade do século XIX. Houve aí então um período de mais de cinquenta anos de defasagem com relação às artes em geral. Algo muito semelhante ocorre hoje em dia. Desde o início do século XX, várias das artes (as plásticas e as visuais, sobretudo) vêm discutindo suas relações problemáticas com as tecnologias 31 , mas a literatura mal começou essa discussão. E isso se reflete na maneira como muitas dessas questões, exploradas pela crítica e pela estética das demais artes, chegam com atraso à literatura; e, quando o fazem, muitas vezes parecem repetir o mecanismo das ideias fora de lugar, que consagrou o crítico brasileiro Roberto Schwartz 32 : são ideias e princípios que, se funcionam bem na pintura, na instalação, na performance, não apresentam o mesmo rendimento na literatura, mostrando-se aí desfocados e deformados. Haja vista a tentativa inábil (e muito frequente) de utilizar os conceitos de original e deaura, de Walter Benjamin, para uma arte, a literária, em que a noção de originalidade tem muito pouco que ver com o que ocorre com a pintura e com a fotografia.

Além do princípio da autonomia da arte, discutido acima, há outros elementos, nessa transição da sensibilidade clássica para a sensibilidade moderna, que ainda podem nos ser úteis, para entender a atualidade das literaturas digitais. Contudo, vou abordar apenas mais um, para não me estender em demasia: o conceito de unidade. Ele é fundamental para as estéticas e as artes clássicas e, a partir da decadência delas, foi colocado em xeque, especialmente no que se refere à ideia de beleza. Trazido para os dias de hoje, esse processo deperda da unidade parece corresponder ao que se convencionou chamar de fragmentação, de não-linearidade, de descontinuidade. Contudo, a despeito da infindável quantidade de discussões a esse respeito, me parece que ainda não se aprofundou suficientemente a oposição entre unidade e multiplicidade nas artes contemporâneas (aí incluída a literatura 33) .

Mas isso nem é o mais importante. O que me parece relevante é que esses debates quase sempre têm insistido em deslizar, imperceptível mas inapelavelmente, para uma outra oposição, aquela que se dá entre materialidade e objetividade. É claro que esse reino do fragmentário e do descontínuo é correlato da desmaterialização da criação artística. Contudo, muitas análises também dão um segundo passo, chegando de forma apressada, fácil e indevida a uma pretensa desobjetivização. O argumento parece ser o seguinte: por ser fragmentária e descontínua, a criação artística se desmaterializa (até aí, creio que estamos todos de acordo), o que significaria que ela também perderia sua objetividade. O problema se dá justamente nessa passagem do desmaterializado ao desobjetivizado. De fato, trata-se de uma ilusão: se se admite que há um processo de desmaterialização nas artes em geral, a partir do século XX, é preciso se dar conta de que esse processo se torna, por sua vez, um objeto. Ora, é justamente quando se faz de conta de que há tal desobjetivização, que se abre caminho para a supremacia atual da persona em detrimento do objeto artístico, como discuti acima. Ao contrário, abandonando essa solução tão fácil quanto improdutiva, pode-se descobrir onde está e como se dá a objetividade (desmaterializada, certo!) da arte contemporânea, o que vale dizer que é possível associar a ela algum tipo de unidade. Mais ou menos como o fizeram os românticos, que substituíram a unidade externa do objeto artístico clássico por uma unidade interna baseada frequentemente na imaginação.

Nesse caso, a questão importante é: como propor uma perspectiva de unidade, nesta nossa época em que circulam quantidades imensas de informações, em que a descrição coerente, de agora há pouco, de um dado objeto, de um certo processo, parece ser posta em dúvida pela informação que nos chega no instante seguinte? Diria que é a primeira vez que a humanidade enfrenta tal desafio, em que a informação não se divide apenas em útilinútil einacessível, como antes, mas em útilinútilimpossível de ser processada por nós 34 . Contudo, também o século XVIII representou um salto bem perceptível na quantidade de informação disponível. Kant possuía em sua biblioteca mais de duas centenas de volumes, o que já era uma enormidade diante das bibliotecas particulares que encontrávamos nos séculos anteriores; mas era bem menor diante das bibliotecas do século XIX. É certo que nossa época se baseia num acúmulo impressionante de informações. Diante dela, os séculos XVIII e XIX apresentavam bem menos informações circulando, com muito menos velocidade. E, nessa situação, levou cinquenta anos para que se consolidasse o abandono dos padrões da arte clássica em proveito da arte moderna. Contudo, nesta nossa época, em que há muito mais informação, circulando com muitíssima mais velocidade, isso não implica que as mudanças de paradigmas ocorram com mais rapidez e com mais facilidade. Ao contrário! Minha hipótese é que, muito provavelmente, a consolidação de novos modelos e novos gêneros vai demorar muitíssimo mais. Talvez se possa investigar até a hipótese de que não haverá mais estabilização alguma de gêneros, modelos, padrões, de que não haverá aí progresso algum! É nessa perspectiva, assim, que estou propondo utilizar a expressão atraso do progresso. Em outras palavras, se podemos eventualmente falar de progresso tecnológico, isto é, aceitar que há uma acumulação aparentemente linear de habilidades e de possibilidades técnicas, isso não significa que essa mesma progressividade linear esteja presente em todos os processos culturais 35 . Ora, a própria progressividade dos processos tecnológicos é causa de atrasos, de crises imprevistas, de retornos inesperados de situações (ou seja, semelhantes a algumas já passadas). E é a conjunção desses progressos e desses atrasos que permite acontecer o que estou chamando de avanço. Vou explicar melhor! No caso da sociedade contemporânea, o acúmulo e a circulação de informações progrediram (ou seja, aumentaram) de maneira vertiginosa, mesmo sendo movimentos conflitantes (de fato, acumular e circular se opõem de várias maneiras). Todavia, de quando em quando, aqui e ali, alguma perturbação (inesperada e limitada a alguns locais) no sistema tecnológico faz com que essa oposição se torne explícita, evidente, efetiva: é o que ocorre quando o acúmulo excessivo obstrui a circulação de informações e, ao mesmo tempo, a velocidade se torna obstáculo ao acúmulo de informações. De uma só vez, temos velocidade reduzida com grande acúmulo, e acúmulo deficiente com alta velocidade, numa situação que chega à paralisia e à indecidabilidade. Talvez esteja eu aqui falando algo próximo do que propõe Virilio, quando menciona a possibilidade de um “grande acidente”. Mas há uma diferença: Virilio o esboça como catástrofe, eu o proponho como solavanco, como percalço. No meu modo de ver, são os acidentes que podem fazer com que passemos da ilusão do progresso para a construção e a constatação do avanço. Enquanto Virilio associa ao “grande acidente” um alcance unitário global (e, claro!, catastrófico), procuro entendê-lo como um processo descentralizado, em que não se pode prever quando irá surgir e, quando surge, vem certamente perturbar a lógica progressista das tecnologias, estabelecendo uma dinâmica que, ao contrário, pode estar longe de ser catastrófica.

Em resumo, atraso do progresso é usado aqui no sentido de uma estrutura de acontecimento — à falta de melhor expressão —. Uma estrutura de acontecimento nodal, singular, que surge aqui e ali, quando percebemos um certo deslocamento, um deslizamento de sentidos 36 : algo rompe as lógicas e os sentidos 37 de percurso do progresso tecnológico, para trazer uma dinâmica que se lhe opõe (o travamento; no nosso caso, a impossibilidade de avançar na formulação de modelos, de gêneros, de paradigmas novos). Sem embargo, isso não se resolve pelo esquema hegeliano, pois não parece haver caminho para uma superação dialética em direção de uma síntese. O avanço não se faz como síntese totalizante, como instalação de um modelo a ser submetido futuramente a novo período de contestação (como disse Thomas Khun), mas como um fluxo constante de idas e vindas, mais no sentido de uma dialética heracliteana 38 . Essa dinâmica é importante para entender propostas que surgem no campo da tecnologia, como a recente, de um engenheiro da Microsoft, de um dispositivo supostamente capaz de armazenar toda informação referente à vida de um indivíduo (como se essa bobagem fosse possível). Mas não só! Ela também é fundamental para compreender como paradigmas se desenvolvem no campo da estética, onde, mais claramente, não há uma progressão linear e contínua de modelos ou de padrões, mas um avanço que se constrói também através de hesitações e de recuos. É assim que a proposta de gêneros literários e de elementos de leitura para as textualidades digitais só pode ter alguma viabilidade, se entendemos sua formulação como uma dinâmica de avanço e não de progresso. Nesse caso, os paradigmas estéticos que vamos desenvolver devem estar atentos às dobras e singularidades que podemos vislumbrar na história das artes e na história da tecnologia. São essas dobras e singularidades que nos fazem ver a impossibilidade do progresso linear e que, por isso, nos permitem dar, não uma sobrevida, mas uma nova vida a elementos aparentemente mortos e enterrados, como leitor, autor, obra e texto. Ou a formas discursivas como a narração. Ou a gêneros antigos como a poesia lírica. E não se trataria de dar-lhes uma continuidade, mas de renová-los diante da realidade tecnológica que é essa nossa contemporânea. Esse caso dos gêneros literários digitais é, assim, bastante ilustrativo. No que diz respeito a essa dificuldade de propor categorias, modelos ou tipologias, como já venho afirmando neste ensaio, não se trata apenas de obstáculos passageiros que serão superados assim que tivermos uma visão mais larga, com mais distanciamento temporal das criações digitais literárias (como parece ter acontecido até aqui, na história da literatura). De fato, o progresso tecnológico saturante causa modificações profundas na maneira como podemos (ou não) organizar as criações literárias. Por vezes, parece que surgem ou desaparecem tantos gêneros quanto surgem ou se tornam obsoletos programas de computador usados na criação. Temos diante de nós uma situação em que a sofisticação tecnológica parece ter tornado quase impossível uma categorização dos objetos literários (e artísticos em geral).

Sob outro ponto de vista, essa sofisticação tecnológica não é distinta da atual multiplicação dos instrumentos e das perspectivas de análise teórico-crítica literária. Em outras palavras, a vertiginosa multiplicação informacional também chegou (como não poderia deixar de ser) a nossos instrumentos de leitura. Ampliou-se assustadoramente o acesso a periódicos especializados da área; abriu-se a possibilidade de acesso a gigantescos bancos de dados (que não se comparam aos das ciências exatas ou biomédicas, mas, gigantescos, assim mesmo); é cada vez mais fácil a frequentação de congressos, ou a consulta a seus anais etc. etc. Com tudo isso, é evidente que fica cada vez mais penosa a dinâmica da atualização constante e do (re)conhecimento das teorias e das críticas que vão sendo feitas e publicadas. Dinâmica que é imposta como moeda-corrente no mercado da notoriedade intelectual e acadêmica. Dinâmica que tenta esconder os óbvios (e cada vez mais prementes) problemas para se manter o ritmo de sofisticação das teorias e dos aparatos críticos que se verificava até há algumas décadas atrás. Em outras palavras, temos também aqui uma situação em que o progresso das teorias e das críticas levou muitos de nós, de fato, a uma imobilização intelectual. Mas esta, muitas vezes, vem a ser disfarçada a golpes de citacionismo desenfreado, vocabulário absconso, arrogância hermética. Assim, o melhor que a maioria dos atuais críticos e teóricos consegue fazer é improvisar um ecletismo à la mode, leviano e passageiro, brandindo algumas das últimas novidades para esconder a angustiosa sensação de que elas seriam, de fato, as penúltimas, e já estariam correndo o risco de uma iminente desatualização. Assim, como propor gêneros mais estáveis que permitiriam estabelecer tipologias convincentes e produtivas? Impossível, diriam muitos leitores. Dessa maneira, parece que temos diante de nós, novamente, uma situação em que a sofisticação dos elementos de um setor cultural (a teoria e a crítica literárias) causou, ao revés, uma limitação dos processos de compreensão de seus objetos. Essa virtual impossibilidade de propor gêneros, sejam duradouros ou não, pode ser entendida como mais outro sintoma desse atraso do progresso. Ora, outras épocas passaram por essa situação de dificuldade ou mesmo de impossibilidade de propor gêneros. Foi o caso das literaturas medievais ibérico-provençais. E nem por isso os críticos e teóricos que a estudaram deixaram de sistematizar suas visões e suas leituras das obras produzidas naquele período, adaptando ou propondo outras tipologias (como a noção de registro, em lugar de gênero). Em nossa época digital, me parece perfeitamente possível aprender com esse passado em que a noção de gênero era estranha a criadores e a leitores. Pode ser um caminho interessante a seguir, encontrando aí uma maneira de chegar a um avanço na compreensão das obras literárias digitais (à semelhança do que já fiz acima, quando propus voltar ao século XVIII para deslindar impasses do nosso século XXI).

De outro lado, uma possibilidade que se apresenta a mim, como criador, pode ser a construção artificial de uma situação em que possa observar mais de perto essa dinâmica do avanço. Seria como uma singularidade artificial 39 , criada e utilizada para adquirir algum conhecimento dela e algum controle sobre esse processo. Em outras palavras, trata-se de inventar, através de um processo da criação artística, uma situação em que o progresso (a rapidez, a quantidade) das tecnologias seja contestado pelas limitações inerentes à arte; e trata-se também de acelerar os gestos artísticos pela influência inegável da velocidade dos processos tecnológicos contemporâneos. É o que estou tentando fazer atualmente, com uma criação que denomino Pequeno jornal das notícias diárias desimportantes. Trata-se de um esforço consciente para diluir um gênero tradicional (a narrativa) e uma retórica específica (a dos jornais), dentro do gênero e da retórica dos poemas em versos, propondo um deslocamento constante de gêneros, um deslizar incessante entre sistemas retóricos diferentes; trata-se de uma tentativa para experimentar ritmos arcaicos, como os do hai-kai e os da terça-rima, perturbando-os ou acelerando-os com os linques e as contínuas sobreposições dos significantes digitais. No caso, é importante sublinhar que não se trata da formulação de conceitos através da criação literária (e já conhecemos bastante bem os equívocos e as fraquezas das artes conceituais). Afinal, fazer da arte apenas uma crítica aos mitos da tecnologia ou limitar-se a uma anteposição de “arte elevada” a “tecnologias depravadas”, significaria uma simples retomada de posturas já gastas do século XIX (lembremos Marx: “a história ocorre uma vez como tragédia, depois se repete como farsa”). Esse confronto entre arte e tecnologia, feito através da criação artística, não pode ser um fim nele mesmo (novamente: cairíamos aí na mera e paupérrima arte conceitual). Essa contraposição que estou buscando não é conteúdo a expressar, nem conceito a exprimir, nem ideal a defender. Repito, não é um fim, mas um meio para atingirmos uma arte que expresse e permita expressar a experiência humana nos dias de hoje. E nos faça trabalhar com toda a complexidade da criação, campo onde todo avanço nasce justamente dos atrasos do progresso.

 

1- Este trabalho foi realizado graças a uma bolsa concedida pela CAPES.
3-“Ours is essentially a tragic age, so we refuse to take it tragically.”
4-Sobre excesso e excessivo, ver o meu livro Leituras de nós. Ciberespaço e Literatura. São Paulo: Instituto Cultural Itaú, pp. 113 e ss.
5- “Miguel Angel”, Sobre la aventura. Ensayos filosóficos. Barcelona: Península, 1988, p. 132.
6-A respeito dessa lógica, verwww.inf.ufsc.br/~barreto/trabaluno/TC_Nerio_Mauricio.pdf ou www.cfh.ufsc.br/~dkrause/pg/cursos/lparac.htm.
7- Por “saturação”, não quero entender nenhum processo em vias de finalização, ou que apresente uma aproximação assintótica com algum limite definitivo. Saturação, aqui, diz respeito à complexidade heterogênea dos muitos processos e objetos tecnológicos com que lidamos no dia-a-dia e aos quais somos praticamente obrigados a atribuir um sentido imediato e pragmático.
8- Em Notas para a recordação do meu mestre Caeiro, o mesmo Fernando Pessoa faz seu heterônimo Alberto Caeiro dizer, pela voz de Álvaro de Campos, outro heterônimo: “Se concebo o quê? Uma coisa ter limites? Pudera! O que não tem limites não existe. Existir é haver outra coisa qualquer e portanto cada coisa ser limitada. O que é que custa conceber que uma coisa é uma coisa, e não está sempre a ser uma outra coisa que está mais adiante?”.
9- E diga-se que, no campo tecnológico, lógicas de projeto e lógicas de construção não são necessariamente as mesmas, a despeito de os técnicos assim o afirmarem.
10- Como discutido em meu trabalho “La technologie: un récit”, apresentado no seminário L’internet littéraire francophone, em Cerisy-la-Salle, agosto de 2005.
11- Estou me referindo sobretudo a seu romance Le surmâle. Ibid.
12- “From Social Computing to Reflexive Collective intelligence: The IEML Research Program” – http://www.ieml.org/IMG/pdf/IEML-Levy.pdf.
13- “Une poétique fondée sur l’échec”, passages d’encres 33. poésie : numérique, 2008, pp. 119-122.
14- Hypertexte et art de l’ellipse. D’après l’étude de NON-roman de Lucie de Boutiny- http://www.utc.fr/~bouchard/articles/Bouchardon_article-cahiers-du-numerique.pdf.
15- E este último ponto-de-vista implica quase sempre uma visão psicologizante do leitor.
16- Que, a bem da verdade, já havia sido anunciada antes do advento da era digital, como bem se sabe.
18- Como ele afirma em Les Technologies de l’intelligence.
19- Recentemente, em palestra organizada pelo Instituto Madroño, em Madri, com a participação de profissionais da Springer-Verlag, tentava-se vender um banco de imagens da editora, e um dos argumentos favoráveis foi tirado da fala de uma usuária das imagens disponibilizadas pela Springer, que afirmava: “You can in fact skip reading the whole paper, and honestly that is a huge improvement…”
20- Especialmente abordagens teóricas de Julia Kristeva e Gérard Genette.
21- Do mesmo modo como não controlamos nem contamos os valores infinitos Y de uma função matemática, mas podemos calcular e controlar os valores de X, nos pontos em que ela é infinita. Um bom exemplo é a função tangente:
22- Problema que, de fato, não atinge apenas o modo de tratar com as criações digitais, ou seja, ao modo como se articulam concepções teóricas e explorações críticas, mas diz respeito também ao modo como estas minhas reflexões e este meu artigo estão sendo construídos.
23- “O ser e o existir do poema digital”. Gragoatá, Niterói, v. 16, p. 143-152, 2005.
24- Publicado em Arte y Poesía, tradução de Samuel Ramos, Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1997.
25- Como ouvi em recente defesa de um trabalho acadêmico.
26- Que já nem mesmo é mais uma criação específica, mas a generalidade do campo artístico.
27- El individuo y la libertad. Ensayos de crítica de la cultura. Barcelona: Península, 1986, p. 134.
28- Picasso podia dizer, com toda autoridade, “je ne cherche pas, je trouve”, mas quantos picassos temos hoje em dia? Pelo que dizem de si mesmos, milhões. A julgar por suas criações, pouquíssimos.
29- E era a primeira vez que esta categoria ganhava assento no campo artístico.
30- http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k101303h.r=.langPT#. Como outras referências deste meu trabalho, devo esta à muito útil Historia de las ideas estéticas y de las teorias artísticas contemporáneas, organizada por Valeriano Bozal (Madri: A. Machado Libros, 2004).
31- O que não quer dizer que as tenham solucionado.
32- Ao Vencedor as Batatas: Forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, 1977. Ouhttp://www.culturabrasil.pro.br/schwarz.htm.

33- Rapidamente, diria que, no caso dos objetos artísticos digitais, a unidade está onde sempre esteve, isto é, na estreita e incontornável tensão entre sujeito e objeto. Quero dizer, com isso, que a unidade não se encontra numa inteireza independente do objeto, tal como pregavam as estéticas clássicas; nem numa decisão unilateral e constituinte do cogito, tal como impunham os racionalismos tradicionais. Ela está numa adesão (que é também tensão, como disse acima) que se estabelece entre leitor e obra, de maneira que o leitor (sujeito) se torne obra por meio de seu objeto, quando reconhece a adesão com seu objeto: nesse caso, ele, sujeito, se dá a ler quando lê a obra, se dá a ler por outros e por ele próprio. Mas isso é discussão para ser aprofundada em outra ocasião, não aqui!

34- Como indica John Freeman em uma das epígrafes deste ensaio. No trabalho “La technologie: un récit”, acima citado, mencionei as estratégias de esquecimento próprias à nossa cultura de saturação tecnológica e que seriam necessárias para construir o conhecimento em nossa época.
35- De fato, ela não está nem mesmo na tecnologia, mas isso é discussão que escapa dos limites deste trabalho.
36- Semanticamente falando.
37- Topologicamente falando.
38- Como já venho apontando desde o início deste ensaio.

39- Singularidade no sentido das matemáticas; artificial no sentido que lhe empresta Pessoa, na epígrafe.

 

* Alckmar Luiz dos Santos é pesquisador convidado da Universidad Complutense de Madrid, professor da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do CNPq.

 

A cidade dividida nas charges de Mangabeira | de Marcelino Rodrigues da Silva


“No futebol, cada clube não tem uma torcida, tem um partido organizado,
e eles se aliam ou se separam conforme os azares do campeonato.”

Carlos Drummond de Andrade

Estado de Minas, 21 out. 1956.

Se o mundo do futebol pode ser visto como um grande teatro no qual se projetam os sentimentos de pertencimento, sofrimentos e aspirações de indivíduos e grupos sociais, o discurso jornalístico é certamente a principal instância em que essas significações são produzidas, compartilhadas e cristalizadas. Por isso, é no jornalismo esportivo que tenho concentrado as atenções, ao longo de minha trajetória como pesquisador, em busca de elementos que ajudem a compreender o complexo fenômeno cultural que se desenvolveu em torno do futebol no Brasil.1

 

Após dispensar alguns anos à pesquisa sobre a construção e o funcionamento da mitologia esportiva nacional, que historicamente teve o Rio de Janeiro como seu palco principal, tenho me dedicado mais recentemente ao estudo do passado e do imaginário do futebol em Belo Horizonte, cidade onde nasci e continuo vivendo. Nessa investigação, inevitavelmente dispersa em diferentes momentos do século XX, as décadas de 1940 a 1960 acabaram se impondo como as mais significativas, por marcarem a consolidação da rivalidade entre Atlético e Cruzeiro, fato de inegável relevância na vida esportiva belo-horizontina e mineira. Para um breve panorama desse trabalho, pode servir como ponto de partida a história do surgimento dos mascotes dos clubes e a produção do artista que os concebeu.

Os símbolos dos principais clubes de futebol de Belo Horizonte (o Galo para o Atlético, a Raposa para o Cruzeiro e o Coelho para o América) foram criados pelo desenhista Fernando Pierucetti (1910-2004), em 1945, para o jornal Folha de Minas, que tinha uma das seções esportivas mais vibrantes da imprensa mineira daquela época. No ano seguinte, o artista se mudou para o Diário da Tarde e pouco depois para o Estado de Minas, onde continuou publicando por várias décadas. O surgimento dos mascotes foi motivado pelo desejo de Álvares da Silva, secretário da Folha de Minas, de lançar charges parecidas com as que, na mesma época, o Jornal dos Sports publicava no Rio de Janeiro (o Flamengo era o Popeye, o Fluminense o Pó-de-arroz, o Vasco o Almirante, o Botafogo o Pato Donald e o América o Diabo). Ao pedido de Álvares da Silva, Fernando Pierucetti, que era professor de desenho e ilustrador do suplemento literário e da página infantil do jornal, respondeu com a proposta de fazer os mascotes no espírito das fábulas de Esopo e La Fontaine, mas utilizando animais da fauna brasileira. Adotando o pseudônimo de Mangabeira, ele fez os desenhos, não só para os mascotes de Atlético, Cruzeiro e América, mas também para diversos outros clubes da capital e do interior do estado.2

 

Estado de Minas, 14 jan. 1968.

A inspiração para a escolha dos bichos vinha, em grande medida, de elementos que já faziam parte da imagem dos clubes: o Atlético, com sua fama de “bom de briga” e seu uniforme preto-e-branco, que lembrava um galo da raça carijó, seria o Galo; o Cruzeiro, que costumava ter dirigentes italianos de incomparável esperteza para os negócios (como Mário Grosso, presidente da época), seria a Raposa; o América seria o Coelho, que era o sobrenome de vários diretores do clube e combinava com a sua personalidade “fagueira”; o Villa Nova, de Nova Lima, seria o Leão, pois “fazia os adversários sentirem-se em seu estádio como leões na arena”; o Siderúrgica, criado em Sabará por funcionários da Usina Belgo-Mineira, seria uma tartaruga com a carapaça dura como aço; e assim por diante. 3

Desde o seu nascimento, portanto, os bichos de Mangabeira capturavam algumas das significações, tendências e possibilidades de desenvolvimento futuro que estavam em jogo naquele momento da história esportiva da cidade. O Atlético, forte desde as primeiras décadas do século e cada vez mais querido pelos torcedores das classes populares, e o Cruzeiro, que com astúcia e perseverança vinha se tornando cada vez mais poderoso, já começavam a cultivar a rivalidade ritual que dividiria a cidade ao meio, duas décadas depois. Enquanto isso, o América se encontrava num lento processo de decadência, que começou na década de 1930 e se completou apenas nos anos 1960. O combate fabuloso entre o Galo, que defende bravamente seu terreiro das ameaças externas, e a Raposa, bicho atilado que busca com astúcia invadir o território inimigo, foi logo assimilado pelos adeptos de ambos os clubes. Conta-se, por exemplo, que Zé do Monte, ídolo do Atlético nas décadas de 1940 e 1950, costumava entrar em campo com um galo debaixo do braço. Em resposta, a torcida cruzeirense prometia soltar uma raposa em campo, para caçar o bicho de Zé do Monte.

Mas a história da rivalidade entre Atlético e Cruzeiro não pode ser contada sem um recuo às primeiras décadas do século, quando a recém-fundada nova capital do estado dava seus primeiros passos. Já nesses anos iniciais, a prática de esportes como o turfe e o ciclismo fazia parte da vida belo-horizontina, como componente de um imaginário de sofisticação e modernidade que inspirou o projeto de construção da cidade. Os primeiros clubes de futebol surgiram em 1904, com a chegada de Victor Serpa, um estudante de família abastada que vinha de uma temporada na Europa, trazendo as últimas novidades da metrópole. O Atlético, fundado em 1908, e o América, criado em 1912, foram os principais clubes desse primeiro momento da história futebolística de Belo Horizonte, e cultivaram entre si uma acirrada rivalidade, cuja significação principal estava no caráter elitista e de distinção social que o futebol emprestava a seus adeptos naquela época.4

Entretanto, não demorou muito para que a popularização do esporte provocasse uma transformação nesse panorama. Entre os indícios da mudança, está o próprio surgimento do Palestra Itália, em 1921, por iniciativa dos membros da colônia italiana da cidade, que era predominantemente formada por operários, artesãos, comerciantes, trabalhadores da construção civil etc. Outro momento de grande importância foi a criação da primeira liga profissional de futebol, em 1933, como resultado da presença cada vez maior de interesses econômicos de dirigentes e atletas, decorrentes da popularização do esporte. Enquanto Atlético e Palestra aderiram ao profissionalismo, seguindo uma tendência de crescimento e modernização que se manifestava em diversos campos da vida cultural belo-horizontina, o América permaneceu amador, capitulando ao profissionalismo apenas em 1943, fato que certamente interferiu de maneira decisiva em sua trajetória posterior.

Embora o Palestra já tivesse surgido como um clube forte, conquistando três títulos na década de 1920, o confronto entre Atlético e América continuou sendo considerado, por muito tempo, o principal clássico da cidade, recebendo da imprensa o epíteto de “clássico das multidões”. Na década de 1930, marcada institucionalmente pela profissionalização, a hegemonia esportiva esteve sintomaticamente nas mãos do Villa Nova, clube que tem suas raízes ligadas aos operários da mina do Morro Velho, em Nova Lima. Nos anos 1940 e 1950, o Atlético se manteve sempre no primeiro plano, enquanto o América continuava em lenta decadência e o Cruzeiro em progressiva ascendência. A única exceção foi o ano de 1948, quando o América conquistou o título estadual diante do Atlético, num confronto antológico que pode ser considerado como o último avatar da grande rivalidade que houve entre os dois clubes nos primeiros decênios do século. Foi apenas na década de 1960 que o Cruzeiro passou a ser amplamente considerado como o principal rival do Atlético, conquistando títulos importantes e ampliando sua torcida graças a um time sensacional, formado por craques como Tostão, Dirceu Lopes e Piazza.

A decadência do América e a consolidação da rivalidade entre Atlético e Cruzeiro foram fartamente registradas e comentadas por Mangabeira, em seus desenhos para o Estado de Minas. Como no início de 1968, quando uma curiosa série de charges lamenta a agonia do Coelho, contrapondo-a à supremacia que Galo e Raposa vinham exercendo na eterna luta entre os bichos do futebol mineiro. Em 20 de janeiro daquele ano, por exemplo, o desenho de um globo terrestre dominado por Galo e Raposa, enquanto o Coelho levita para o “outro mundo” onde estão os bichos “que também já morreram”, vem acompanhado de uma longa legenda que começa assim: “o Super-Coelho entra hoje, definitivamente, no esquecimento. Já foi enterrado e agora pertence ao mundo dos mortos. Enquanto na terra todos falam na eterna briga do Galo com a Raposa, o Super-Coelho caminha para o Além…”

Estado de Minas, 20 jan. 1968.

Na criação dos mascotes, como vimos, Mangabeira se inspirou em determinados elementos que já faziam parte do imaginário esportivo da cidade, trazendo para a simbologia dos bichos muitas das significações que já estavam projetadas nos clubes naquele momento. Além da referência ao uniforme do clube – listado como um galo carijó –, o Galo de Mangabeira remetia à mística do “vingador”, cultivada pelo Atlético desde os seus primeiros anos e ressignificada com a popularização do clube a partir dos anos 1930. Da história de uma sequência de jogos em 1913, contra o Granbery de Juiz de Fora, a fama de vingador se transmutou na mística da raça e da paixão desmedidas, que hoje é marca registrada do time e da torcida atleticana. Citando uma reportagem de João Vianna de Oliveira, publicada no jornal O Debate em 1956, a Enciclopédia do Atlético, de Adelchi Ziller, define assim a inspiração de Mangabeira para compor a personalidade do mascote atleticano:

O Atlético é um time que vende caro uma derrota. A vantagem do adversário no placar não lhe tira a garra. Parece um galo de rinha. Um galo na rinha? Justamente: seu símbolo será o Galo, o Galo Carijó, entrando o adjetivo na história por obra e graça de suas cores tradicionais: preto e branco. E o Atlético surgiu nas charges de Mangabeira a caráter: raça de brigão, de sujeito mal encarado, o bico adunco e sempre pronto para rasgar a carne antagonista.5

A escolha da Raposa como símbolo do Cruzeiro, por sua vez, fazia referência à trajetória de muitos dos membros da colônia italiana em Belo Horizonte, cuja astúcia para os negócios possibilitou a ascensão às camadas privilegiadas da população da cidade. Ao lado dessa astúcia, que emula uma racionalidade prática típica do capitalismo, o trabalho e a perseverança também marcaram a trajetória daqueles imigrantes e compõem o cerne da mitologia do clube. Na narrativa das tradições cruzeirenses, dispersa nas diversas publicações que falam sobre sua história, esse traço herdado da origem é constantemente lembrado, como justificativa para o crescimento paulatino e constante da agremiação ao longo do século XX. Como, por exemplo, no livro De Palestra a Cruzeiro, de Plínio Barreto e Luiz Otávio Trópia Barreto, que encerra sua narrativa da fundação do clube tocando de modo conciliador na difícil questão da assimilação dos italianos à sociedade belo-horizontina:

O Palestra nasceu como um clube do povo, diferente de seus atuais dois grandes rivais regionais (…) era a agremiação dos que arregaçavam as mangas nas indústrias da panificação, nos andaimes das construções civis, nas oficinas de calçados, nas serrarias, marcenarias e serralherias, na condução das carroças. Onde houvesse um setor cuja mão-de-obra (…) fazia-se necessária, lá estava um palestrino – italianos e brasileiros – colaborando com o seu trabalho para o progresso da nova Capital. Lado a lado, clube e cidade caminhavam rumo ao progresso.6

Metaforizada pela eterna luta dos dois bichos na disputa pelo terreiro belo-horizontino, a rivalidade ritual entre Atlético e Cruzeiro parece, então, opor dois conjuntos diferenciados de representações e valores, por meio dos quais se constroem duas imagens distintas. Se hoje ambos os clubes reivindicam para si o atributo “popular”, não há dúvidas de que se trata de duas formas diferentes de ser popular. O Atlético, com sua mitologia da raça e da paixão desmedida, parece reafirmar a diferença de um povo passional, intuitivo e sofredor, personificando a heterogeneidade e as energias incontroláveis das massas e opondo-se ao processo de modernização. O Cruzeiro, por sua vez, reforça o vetor desse processo com suas raízes na ação dos próprios europeus como agentes modernizantes e seu ideário marcado por valores e atributos como trabalho (o próprio fundamento do sistema capitalista), perseverança, astúcia e sucesso. 7

Essas significações reverberam, de forma diluída e disseminada, em inúmeros discursos do imaginário esportivo belo-horizontino. A fundação do Atlético por um grupo de estudantes de boa família é contada como um momento de rebeldia inconsequente de garotos que mataram aula para se encontrar no coreto do Parque Municipal. O ambiente social elitista dos primeiros anos é amenizado pela figura acolhedora de dona Alice Neves, mãe de um dos fundadores que acolhia os primeiros encontros do grupo e é tomada como símbolo de um clube que “soube se abrir para o mundo” e “foi generoso com os torcedores que bateram à sua porta”. 8 No panteão dos grandes ídolos atleticanos, destacam-se figuras como o humilde e folclórico Dario Peito de Aço e o negro Ubaldo, que fazia “gols espíritas” na década de 1950 e foi carregado pela massa do estádio Independência até o centro da cidade após um jogo em 1955, num episódio de verdadeira comunhão do clube com o povo. Mediação social e potencial de conflito fundem-se na mitologia do Galo de uma forma semelhante à que, dentro de certa tradição cultural, tem sido identificada como característica definidora da identidade nacional brasileira, baseada na hibridação étnica e cultural e na conciliação sempre tensa das diferenças.

Do outro lado da fronteira simbólica que divide a cidade ao meio, na galeria de herois cruzeirenses os craques do gramado (muitos deles de origem italiana) dividem as glórias com dirigentes quase tão celebrados quanto os próprios jogadores. Como os pioneiros Aurélio Noce e Antonio Falci, e depois Mário Grosso, Felício Brandi, Carmine Furletti etc. A trajetória histórica do Cruzeiro é vista como uma linha contínua de ascensão, “sem lances de heroísmo pungentes” e marcada pela “simplicidade de um trabalho constante e reiterado, quase anônimo, cuja somatória, ao correr do tempo, conferiu a dimensão grandiosa, internacional, universal, de um dos maiores clubes do mundo”. 2Trabalho, racionalidade e sucesso, portanto, se fundem na mitologia cruzeirense para compor uma imagem heroica do popular, evocando a ideia da multidão de trabalhadores que marcha triunfalmente em direção ao progresso.

Os ecos dessas significações ainda se fazem presentes na cena contemporânea. Se a torcida do Atlético é fiel e apaixonada, a do Cruzeiro é exigente, ranzinza, acostumada a cobrar o desempenho de seu time. À possessão da “Galoucura”, encarnando a paixão atleticana, o Cruzeiro opõe a organização e a diligência de sua “Máfia Azul”. No universo da administração dos clubes, o Atlético tem uma mentalidade quase populista, dependendo de um líder forte e carismático como Alexandre Kalil, capaz de superar a corrupção e o desmando e entrar em sintonia com a massa. Enquanto isso, o Cruzeiro vive os benefícios de uma sequência de boas administrações, encabeçadas pelos irmãos Perrella, verdadeiras raposas quando se fala em negócios. Dentro de campo, o rebaixamento do Atlético para a série B do Campeonato Brasileiro e a volta para a série A, em 2005 e 2006, foram vividos dramaticamente, como mais um episódio de superação do “vingador”. Ao passo que a “tríplice coroa” do Cruzeiro, com a conquista do Campeonato Mineiro, da Copa do Brasil e do Campeonato Brasileiro em 2003, foi mais uma “página heroica” na trajetória cruzeirense.

Estado de Minas, 26 out. 1956. Estado de Minas, 9 dez. 1958.

Curioso notar, no entanto, que a simbologia dos clubes captada pelo traço de Mangabeira elide certos elementos que, de certa forma, apontam para o caráter de artifício dessa tradição inventada.10< Na história atleticana, por exemplo, é difícil assimilar a origem elitista dos garotos que fundaram o clube em 1908. Por isso o acontecimento tem que ser deslocado e transformado pelas narrativas da tradição em um lance de rebeldia, que já prefigurava a identidade que o clube consolidaria ao longo do século. E, na trajetória do Cruzeiro, é flagrante o incômodo que se manifesta nos relatos sobre o momento traumático vivido pelo clube em 1942, quando foi forçado a mudar de nome (de Palestra para Cruzeiro) por um decreto do governo federal que proibia referências aos países do Eixo, num episódio cercado por um pesado clima de animosidade contra os membros da colônia italiana em Belo Horizonte. Com sua referência aos céus brasileiros, a escolha do novo nome do clube deixa entrever o caráter problemático do processo de integração dos imigrantes italianos na sociedade brasileira, projetado na necessidade imposta pela guerra de optar entre a fidelidade às origens e a assimilação por uma nova comunidade nacional.

Assumindo algum risco (pelo menos o de ser censurado por ambas as torcidas), seria possível dizer que essas duas narrativas de tradição clubística se assemelham na ambiguidade, oferecendo à sociedade duas alternativas para a solução simbólica do conflito entre o povo e as elites, necessária ao processo de modernização: a ideologia populista da mediação e do pacto social, investida no Atlético, e a ideologia liberal-capitalista da ascensão pelo trabalho, encarnada no Cruzeiro. Daí a necessidade de mitificar a origem, de esquecer os ressentimentos e de selecionar no passado os lugares da memória que sustentarão a tradição. Para que a popularidade se constitua, é preciso assimilar a origem social daqueles garotos que “mataram aula” para fundar o Atlético, é preciso esquecer momentos de tensão e violência que ameaçaram a integração italiana na cidade.

Desse ponto de vista, ao invés de uma simples oposição, a rivalidade entre Atlético e Cruzeiro pode ser vista como uma complementaridade, que naturaliza e cristaliza a dicotomia entre o tradicional e o moderno, tão disseminada no imaginário e na historiografia belo-horizontina, substituindo e dissimulando outros antagonismos, entre o povo e as elites, brasileiros e italianos etc. Tornados populares, os dois clubes mantêm uma relação especular. O Atlético inveja e busca a racionalidade cruzeirense e o Cruzeiro tem ciúmes da paixão e da fidelidade da torcida atleticana. Os rojões preparados para uma vitória que não chegou hoje poderão sempre ser utilizados na derrota do rival amanhã. A força simbólica de um depende da presença do outro, assim como a cidade precisa conciliar modernidade e tradição, povo e elite.

De certo modo, esta opção interpretativa mais radical nos lembra que, mesmo se estiver fundamentada na experiência dos grupos sociais que se envolveram com os clubes ao longo de sua história, qualquer outra interpretação da rivalidade entre Atlético e Cruzeiro terá algo de abusivo e suplementar. As histórias do futebol e da vida são sempre mais complexas do que os mitos identitários e as construções historiográficas. É preciso reconhecer que tende para o esquematismo qualquer tentativa de “explicar” o universo futebolístico por meio do enquadramento, da classificação e da oposição clara e coerente dos signos esportivos. Porque o futebol, como esporte, espetáculo e universo comunicacional, extrai sua eficácia justamente da capacidade de produzir narrativas que se cruzam, diversificam e desdobram, ao sabor das circunstâncias e das posições enunciativas. É bastante oportuna, portanto, a advertência dada por José Miguel Wisnik, em seu recente livro sobre o futebol, sugestivamente intitulado Veneno remédio:

A divisão da população de uma cidade em times rivais, claramente dualizada em algumas cidades, como acontece com Grêmio e Internacional em Porto Alegre, Atlético e Cruzeiro em Belo Horizonte, e Bahia e Vitória em Salvador, obedece, para além dos perfis sociológicos, a uma necessidade antropológica: a de se dividir em “clãs totêmicos” mesmo no mundo moderno, e disputar ritualmente, num mercado de trocas agonísticas, o primado lúdico-guerreiro, como se não fosse possível ao grupo social existir sem suscitar por dentro a existência do outro – o rival cuja afirmação me nega me afirmando.11

A rivalidade especular entre Atlético e Cruzeiro tem a ver, certamente, com essa “necessidade antropológica” de afirmação e negação do outro, como condição para a realização do jogo social pelo qual se dá circulação dos poderes, sentidos e valores em uma coletividade. Presente tanto na política quanto no esporte, essa necessidade antropológica do jogo e da rivalidade pode ou não encontrar expressão contextualizada mais definida, com contornos razoavelmente legíveis. De qualquer modo, as tensões e os antagonismos sociais estarão sempre presentes, estabelecendo configurações que desafiam a interpretação.

 

* Marcelino Rodrigues da Silva é doutor em Literatura Comparada pela UFMG e professor adjunto da Faculdade de Letras da UFMG. Realizou pesquisa de Pós-Doutorado em Estudos Culturais no Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ), com financiamento do CNPq.

 

NOTAS

1 Cf. SILVA, Marcelino Rodrigues da. Mil e uma noites de futebol; o Brasil moderno de Mário Filho. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.
Cf. também SILVA, Marcelino Rodrigues da. O mundo do futebol nas crônicas de Nelson Rodrigues. 1997. Dissertação (Mestrado em Letras – Estudos Literários.), Faculdade de Letras da UFMG, Belo Horizonte.

2 Cf. GALUPPO, Ricardo. Raça e amor: a saga do Clube Atlético Mineiro vista da arquibancada. São Paulo: DBA Artes Gráficas, 2003, p. 77-78.
Cf. também ZILLER, Adelchi. Enciclopédia do Atlético. Belo Horizonte: Ed. Lemi, 1974, p.221-223.

3 GALUPPO, Ricardo. Raça e amor. Op. cit, p. 78.

4 Sobre a história do futebol em Belo Horizonte nas primeiras décadas do século XX, cf. COUTO, Euclides de Freitas. Belo Horizonte e o futebol: integração social e identidades coletivas (1897-1927). 2003. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), PUC Minas, Belo Horizonte.
Cf. também RIBEIRO, Raphael Rajão. A bola em meio a ruas alinhadas e a uma poeira infernal: os primeiros anos do futebol em Belo Horizonte (1904-1921). 2007. Dissertação (Mestrado em História), Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, Belo Horizonte.

5 Citado por ZILLER, Adelchi. Enciclopédia do Atlético. Op. cit, p. 223.

6 BARRETO, Plínio e BARRETO, Luiz Otávio Tropia. De Palestra a Cruzeiro; uma trajetória de glórias. Belo Horizonte: [s.ed.], 2000, p. 25.

7 Como referência para a discussão teórica sobre as relações entre a cultura popular urbana e o processo de modernização nas sociedades periféricas, cf.:
CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP, 1997.
HALL, Stuart. Notas sobre a desconstrução do “popular”. In: ______. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p. 247-264.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.

8 GALUPPO, Ricardo. Raça e amor. Op. cit, p. 41.

9 SANTANA. Jorge. Páginas heróicas; onde a imagem do Cruzeiro resplandece. São Paulo: DBA Artes Gráficas, 2003, p. 32.

10 Para a discussão teórica sobre o papel da memória e do esquecimento na constituição das narrativas identitárias, cf:
BHABHA, Homi K. Disseminação: o tempo, a narrativa e as margens da nação moderna. In: ______. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998, p.198-238.
HOBSBAWN, Eric. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.2, n.3, 1989, p.3-15.

11 WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 51.

 

Desentranhando Luis Olavo Fontes – Entrevista, por Masé Lemos

Entrevistar o poeta Luis Olavo Fontes foi uma experiência muito agradável. O “Lui”, como ele é conhecido pelos amigos, domina a arte da boa conversa. Com o seu jeito carioca e sem nenhum pedantismo, ele foi capaz de refazer o seu “retrato de época”, ou seja, da chamada poesia marginal da qual participou ativamente. Essa entrevista foi gravada, transcrita e depois revisada e editada. Ela é uma tentativa de preencher a lacuna do livro de Carlos Alberto Messeder Pereira, pois o Lui, na época, estava literalmente viajando.

Masé Lemos: Você participou nos anos 1970 do movimento chamado “poesia marginal” e em recente minibiografia que você escreveu diz que você seria “um poeta marginal dentro dos marginais ou que teria sido marginalizado nos anos 70 e esse teria sido o seu fim”. Poderia falar um pouco sobre isso?

Lui: Há dois assuntos na sua pergunta. Primeiramente, em relação a mim, ocorreu que em 1976 eu saí do Brasil e só retornei em 79. A poesia marginal estava no auge quando parti. Eu acabara de lançar um livro Papéis de Viagem, que era como eu estava me sentindo: tirando os papéis de viagem para partir. Para mim foram apenas três anos – 74/75/76 – participando do movimento de poesia marginal. Mas, foram três anos muito intensos em que fiz três livros, fundei com o Cacaso a coleção “Vida de Artista”, participei de antologias e fiz muitos trabalhos em jornais e revistas da época. Aconteceu que a melhor e mais completa pesquisa sobre a “poesia marginal”, o livro Retrato de Época de Carlos Alberto Pereira, foi feito em 1977 quando eu não me encontrava no Brasil. Ele entrevistou todo mundo menos eu. Fiquei de fora – marginalizado dentro dos marginais
Além disso, havia contra a poesia marginal um preconceito muito grande, a começar pelo nome. Na verdade, não sei quem deu esse nome, mas não fomos nós. Marginal ali ninguém era. O que havia é que nossos livrinhos eram marginais ao circuito editorial. Com isso, nos livrávamos da censura dos militares, muito rígida na época – censuravam tudo e todo mundo – e também de todos os intermediários – livrarias, distribuidores, editores. Vendíamos diretamente do autor para o leitor. Agora, marginal é uma palavra muito vasta, dá margem a muitos significados pejorativos que a alguns agrada, a outros não.

ML: Essa marginalidade não era também uma forma de resistência a esse sistema editorial? Não só politicamente contra a censura, mas também uma maneira de furar esse, digamos assim, sistema capitalista?
L: Claro que sim. Até porque éramos muito jovens e não conseguiríamos entrar no sistema editorial, ainda mais publicando poesia, algo difícil até hoje. Qualquer jovem que queira publicar poesia vai sofrer a mesma coisa que nós sofremos naquela época. É como você disse: as editoras são empresas capitalistas, feitas com o intuito de gerar lucro. E poesia não dá lucro… Aí vem aquelas frases: poesia está fora do mercado, não dá dinheiro etc. Então era sim uma maneira de furar esse mercado editorial e tentar criar um outro circuito: vender em bares, na praia, no teatro, na rua, no mundo.

ML: A poesia de vocês tem muito do Modernismo…
L: Com certeza. Literariamente falando, nossa maior influência era o Modernismo. O Brasil mudara muito de 68 a 73. Houve a revolução sexual, a televisão a cores com satélite para todo o país. Nós queríamos descobrir esse novo Brasil que estava nascendo. Daí talvez a ligação com os modernistas. As maiores influências eram Manuel Bandeira (de Libertinagem em diante), Oswald de Andrade, Drummond de Alguma Poesia, Murilo Mendes do Poemas, enfim, aquela fase modernista inicial dos anos 1930. Quase me esqueço: Mário de Andrade a gente também lia muito. A outra grande influência vinha da música: Tropicália, samba e rock’n roll. Bob Dylan, John Lennon, Jimi Hendrix, Caetano, Chico Buarque – esses eram os nossos gurus. Eu, particularmente, adorava João Gilberto e o Jim Morrison dos Doors.

ML: E qual relação de vocês com os concretos?
L: Não havia relação… A relação com os concretos me faz lembrar o Cacaso. Cacaso era cheio de frases de efeito, um mestre das respostas rápidas. Uma vez ele disse: “o concretismo é o AI-5 na poesia.” Os paulistas ficaram furiosos. Nós vivíamos o AI-5 naquela época, era o auge dos anos de chumbo da ditadura militar, o governo do General Médici. Cacaso queria fazer não uma poesia engajada tradicional, mas uma poesia de denúncia dos crimes da ditadura, dos horrores da tortura, da violência, do autoritarismo. Mesmo porque havia censura e ninguém sabia o que estava realmente ocorrendo. Cacaso não se conformava com o fato dos concretos terem abolido o discurso literário – com a velha desculpa pernóstica de que “tudo já foi escrito.” Ele dizia, com alguma razão, que a poesia concreta só contribuía para uma maior alienação da poesia brasileira. Fatos terríveis estavam acontecendo e a poesia concreta estava fazendo “Coca-Cola”, “Luxo é Lixo” – poemas alienados que mais pareciam “slogans” publicitários. Ele propunha que a poesia voltasse a ter um discurso, que fosse mais reflexiva, que se aproximasse mais da realidade, e o concretismo realmente estava em outra onda, algo mais “clean”, mais estético – o formalismo em estado puro – que os aproximava mais das artes plásticas do que da literatura.

ML: O que é interessante é que desde os concretos era comum relacionar a poesia artesanal ao individualismo, mas na poesia dita marginal essa ideia de artesanato está muito mais ligada ao coletivo.
L: É verdade. Em termos de produção, eram sempre criações coletivas. É o caso do Almanaque Biotônico Vitalidade, cujo primeiro número foi um exemplo disso. Poetas, pintores, fotógrafos, “designers”, se reuniram e o resultado foi ótimo. O mesmo ocorreu nos primeiros livros da coleção “Vida de Artista”, que foram feitos coletivamente, um monte de gente junta, na fazenda do meu avô. Já com relação à produção poética, acho que as individualidades predominam e são bem definidas. Não concordo com pessoas que rotulam “poesia marginal” como uma coisa una, todos escrevendo parecido. Acho que individualmente éramos muito diferentes e isso se refletia em nossa poesia. A poesia da Ana Cristina é totalmente diferente da do Chacal. A poesia do Chico Alvim é muito diferente da do Cacaso. E todos são considerados poetas marginais.

ML: Como foi dito, no livro Retrato de Época: poesia marginal de Carlos Alberto Pereira, há várias entrevistas com os componentes da “Vida de Artista”, mas você não foi entrevistado. Por onde você estava viajando na época?
Lui: Estava fazendo a grande viagem da minha vida, uma viagem de volta ao mundo. Era um sonho antigo de conhecer o Oriente, a Índia, a China… Nos meus planos iniciais, era uma viagem que iria durar entre 3 e 6 meses, mas acabou durando 2 anos. A ideia era seguir a rota de Marco Polo, de Veneza a Pequim pela Estrada da Seda e voltar pela Ásia do Sul – exatamente como foi a viagem de volta de Marco Polo. Mas, o Sikiang (oeste da China) estava fechado para estrangeiros, então fui primeiro pra Índia e sudeste asiático e terminei na China. Voltei pelo Pacífico, parando em algumas ilhas, até chegar no Chile. A viagem foi bacana porque foi feita toda por terra, só peguei dois aviões: um na ida, Rio-Roma, e outro na volta (com escalas), Bali-Santiago do Chile. Foi a volta ao mundo em 700 dias.

ML: Antes da viagem, você foi aluno da Faculdade de Letras da PUC-RIo.
L: É verdade. O Cacaso e a Ana Cristina foram muito importantes nesse processo. Em 1973, eu estava terminando o curso de Economia na PUC – que cursara por pressões familiares – quando houve um evento poético na faculdade: a “Expoesia”. Puseram um monte de quadros de cortiça no pilotis da PUC, que é uma área imensa, e você podia ir lá e pregar com tachinhas um poema seu. Era uma coisa livre, aberta a todos – então, fui lá e coloquei um poema meu. Ocorreu que o Cacaso e a Heloísa Buarque escreveram em conjunto um artigo para a revista Argumento – uma revista importante na época, era do Fernando Gasparian, que também tinha o jornal Opinião – dizendo que havia um novo movimento de poesia feito pelos jovens. Para exemplificar, publicaram uns 4 poemas expostos na Expoesia, entre os quais estava o meu “Homenagem à Yoko Ono”. Eu me surpreendi porque até então não conhecia nenhum desses jovens poetas, não conhecia o Cacaso, não conhecia a Heloísa, ainda estava estudando Economia. Por outro lado, sempre fui muito ligado à literatura, porque o meu avô por parte de pai era o Amando Fontes, romancista com alguma fama nos anos 30, 40 do século passado, quando ganhou prêmios com seu romance Os Corumbas. Sempre escrevi, desde garoto, mas era algo solitário e meio secreto, não mostrava pra ninguém. Nunca havia exposto em público um poema meu até que nessa “Expoesia” tudo aconteceu. O Cacaso escreveu esse artigo com a Helô e quis me conhecer. Logo conheci a Ana Cristina e comecei a me interessar em, quem sabe, cursar Letras na PUC. Foi assim que terminei Economia em 73 e entrei para Letras em 74.

ML: E aí você foi cursar Literatura em 74. Conte como foi que surgiu a coleção “Vida de Artista”.
L: Foi um tempo muito bom. O Cacaso logo se tornou meu amigo e fez um curso sobre a poesia da gente – que ainda não se chamava marginal. A Ana Cristina, que era minha namorada, era também minha monitora num curso que eu fazia com a Cecília Londres. Houve uma espécie de simbiose entre as pessoas, todas ficaram muito amigas. O Chacal, que fazia o curso do Cacaso de ouvinte, começou a namorar minha irmã Debinha. Ele fez um poema lindo pra ela que está no América, dedicado “à Deborah”. O Cacaso começou a namorar outra irmã minha, a Kaki, que também estudava literatura na PUC. Nesse curso, ele começou a publicar os poemas da gente no mimeógrafo da PUC e a ideia de fazer livros assim já estava acontecendo – o Charles e o Chacal já haviam feito seus primeiros livros dessa maneira. Foi então que surgiu o Toledo, um amigo do Cacaso que tinha um mimeógrafo moderno na sua firma de arquitetura e deixou que nós fizéssemos nossos livros lá. Eu estava com meu primeiro livro, Prato Feito, pronto e o Cacaso convidou: “Vamos fazer no mimeógrafo do Toledo.”
Prato Feito tinha fotos da Bita Carneiro, que tinha sido namorada do poeta João Carlos Pádua e era irmã do Geraldinho Carneiro, também poeta – ambos alunos de Letras da PUC. A ideia do Cacaso, nosso professor, era fazer uma coleção em que cada livro vendido pagasse a produção do seguinte. Uma espécie de cooperativa literária. O dinheiro da venda do livro não iria para o autor, mas para a produção do próximo livro. Assim, o Prato Feito financiou a publicação do Segunda Classe, o segundo livro da “Vida de Artista”.

ML: E como eram os famosos encontros na fazenda do Lui?
L: Esses encontros foram muito citados no Retrato de Época, mas a fazenda não era o único ponto de encontro da gente. No Rio, havia a casa do Cacaso – um apartamento enorme na avenida Atlântica – e o casarão da Lagoa, onde morávamos eu e meus irmãos. Éramos sete irmãos, a casa era bem grande e vivia cheia de gente. Isso era no tempo em que havia casarões na Lagoa… Os meus dois primeiros livros, Prato Feito e Segunda Classe, foram lançados lá. O que aconteceu foi que no réveillon de 74/75, passamos uma longa temporada na fazenda e foi um tempo muito rico, vários livros foram feitos. Foi uma turma enorme pra lá: poetas, artistas plásticos, músicos, cineastas, um bando de artistas, mas o intuito principal era fazer livros de poesia. E foram feitos pelo menos três livros nessa temporada na fazenda: Segunda Classe, que era meu e do Cacaso, o América do Chacal e o Creme de Lua do Charles. Aliás, o América foi o terceiro livro da “Vida de Artista”, tinha o carimbo da coleção feito pelo Dick e Sérgio Liuzzi – um balãozinho muito bonitinho. Mas, o Chacal estava sendo muito pressionado por amigos da faculdade dele – ele estudava comunicação na ECO, onde também estava o Charles – para participar de outra coleção que eles estavam criando: a “Nuvem Cigana”. Assim, o América foi, nas palavras do próprio Chacal, um livro híbrido; foi tanto da “Vida de Artista” quanto da “Nuvem Cigana”. O Creme de Lua do Charles já saiu pela “Nuvem Cigana”. Aliás, tem um poema nesse livro que foi feito na fazenda: o Charles estava deitado na rede da varanda quando apareceu um bando de maritacas aos berros num vôo rasante. Charles gritou: “Olha a passarinhada!” Fomos todos correndo para a varanda: “Aonde? Aonde?” E o Charles imóvel na rede respondeu: “Passou.” Esse poeminha está no Creme de Lua e tem três linhas: “Olha a passarinhada!/Onde?/Passou…”

ML: A Ana Cristina César na entrevista que deu ao Carlos Alberto Pereira, falando sobre a fazenda do Lui, dizia que tinha toda uma roda de meninas em volta… então, talvez houvesse esse clima narcisista, clube do bolinha, o que você poderia falar sobre isso?
L: É difícil falar sobre isso… São os sentimentos da Ana Cristina… Mas, acho que ela tinha alguma razão – afinal, éramos uns garotões de vinte e poucos anos… Mas aí, acho que tem duas coisas. Primeiro, talvez ela se sentisse meio deslocada porque ela era a única mulher poeta, todos os outros eram homens. Talvez, ela se sentisse meio fora do negócio. Em segundo lugar, é preciso lembrar que no réveillon de 75 Ana Cristina ainda não havia publicado nada. Ela escrevia muito, mas não queria publicar, não se sentia segura. Ela dizia também que não possuía uma quantidade suficiente de poemas para fazer um livro de qualidade, algo com que eu não concordava. Eu dizia a ela: “está cheio de gente muito pior que você publicando livros, por que você não publica?” Mas, ela não publicava nada. Então, devia ser uma situação meio incômoda pra ela: todo mundo fazendo livro e ela não. Mas isso são suposições…
Agora, nesse comentário que ela faz, que havia muitas luluzinhas em volta da gente, como se fossem umas tietezinhas, acho que há um certo exagero dela em dizer isso. Ainda que houvesse um certo machismo dos homens, as meninas que estavam lá eram nossas amigas e namoradas, a maioria delas também artistas. Você quer nomes? No réveillon de 75 na fazenda, em volta da mesa redonda da sala de jantar, estavam a Sandra Werneck – hoje cineasta de renome – , a Bita Carneiro que é uma grande fotógrafa, a Olívia Byington que é ótima cantora (acho que ela namorava o músico Paulo Guimarães na época), Debinha que era atriz, Massoca que é artista plástica e a Kaki que é poeta, mas que também só publicaria mais tarde. Como se vê, as meninas eram todas artistas e não tietes idiotas como ela deixa transparecer na entrevista. Havia também um pessoal da música, ouvia-se e tocava-se muita música. Muitas drogas também. As pessoas tomavam muitas drogas naquele tempo.

M: E essa viagem ao São Francisco, que deu como resultado o Segunda Classe, qual era o significado da viagem? Porque você tem uma relação especial com essa noção de viagem…
L: Tenho. E o Cacaso não. O Cacaso era mais quieto, mais sedentário. Ele nasceu em Uberaba e depois se mudou para Barretos. O pai era fazendeiro de gado, tinha terras em vários estados. As maiores fazendas ficavam no Pantanal. Com 11 ou 12 anos, Cacaso se mudou para o Rio, e aquilo foi um choque para ele, menino interiorano na cidade grande. Apesar de estar no Rio há tanto tempo, Cacaso nunca deixou de ser aquele mineirinho calado, observador, esperto.
Já o meu caso era diferente, nasci no Rio e minha família adorava viajar. Minha mãe era a maior incentivadora dessas viagens. Lembro que em 61, Brasília estava quase pronta e meus pais decidiram conhecê-la. Puseram as crianças no carro e lá fomos nós pro planalto central. Meu pai era médico, Dr. Olavo Fontes, mas sua maior paixão eram os discos-voadores. Então íamos para os Estados Unidos, onde meu pai se encontrava com astrônomos e pesquisadores de OVNIS. Passei assim a infância viajando, era uma coisa natural pra mim.
Mas, a primeira grande viagem que fiz foi com meu amigo de infância, Guy Van de Beuque. O pai dele era francês, Jacques Van de Beuque – idealizador do maravilhoso museu Casa do Pontal – e na sua lua-de-mel com a mãe do Guy, nos anos 40, atravessaram a América por terra desde os Estados Unidos à Patagônia. O Guy queria repetir essa viagem (eles tinham slides que nós assistíamos) e me convidou pra ir com ele. Minha namorada tinha terminado comigo, eu estava meio sem rumo, acabei indo. Fomos de mochila – era 1970, eu tinha 18 anos – e nossa viagem tinha duas leis de ouro. Primeira: não pagar transporte. Segunda: não pagar hotel. Isso se devia ao fato de termos pouquíssimo dinheiro – então a viagem virava uma coisa meio aventureira, só viajávamos de carona e nos hospedávamos em igrejas, escolas, universidades ou em casas de pessoas que ofereciam quartos de graça.
Eu e o Guy viajamos assim por toda a Bolívia, Peru, Equador e Colômbia. Nessa viagem aprendi a viajar. Descobri como era fácil viajar com pouco dinheiro e comecei a viajar pelo mundo todo. Viajava também pelo Brasil: fui conhecer Sete Quedas antes que a represa de Itaipu a cobrisse para sempre. E, como todo mundo, me apaixonei pela Bahia.
O movimento poético dos anos 70, seguindo os passos do Modernismo, também tinha esse desejo de conhecer o Brasil. O Charles e o Dick (o designer Rogério Martins) foram de jipe para o Nordeste e passaram por muitas aventuras no sertão. Havia os livros do Oswald viajando com a Tarsila pelo Brasil, os livros do Blaise Cendrars, do Mário de Andrade… Manifesto Antropofágico era a leitura predileta de quase todo mundo: “Tupi or not Tupi: that is the question”. Era preciso conhecer o Brasil.

ML: Mas o Cacaso não se animava…
L: É, o Cacaso era meio parado e nós ficávamos forçando “Vamos viajar, Cacaso?” e levávamos o Cacaso para Rio das Ostras, pra Pirapora… Sim, porque essa viagem pelo rio São Francisco começava em Pirapora (MG) e terminava em Juazeiro (terra de Ivete Sangalo) no sertão da Bahia. O mais interessante eram as barcas que haviam sido importadas do Mississipi e tinham aquelas enormes rodas de madeira na popa. Apesar de lindas, as barcas era altamente antiecológicas, pois seu combustível eram toras de madeira recém-cortadas das matas ciliares do rio. Elas provocavam a maior devastação nas margens do São Francisco. Iam acabar com as barcas, mas não por esse motivo. Uma enorme represa, a de Sobradinho, estava para ser construída, o que iria afetar a navegabilidade do rio. Por isso, resolvemos ir – para conhecer as famosas barcas do São Francisco que iam se acabar.

ML: E era tranquilo viajar com o Cacaso?
L: Era ótimo. Cacaso era cômico, estava sempre fazendo alguma observação engraçada sobre tudo que via. Ele ficou maravilhado com a Bahia, que nós já conhecíamos e ele não. “Nós” éramos eu, minha irmã Massoca e a Bita Carneiro. Parecíamos dois casais, mas não éramos. Acho que foi em outubro de 1974 que fizemos a viagem e eu namorava a Ana Cristina. Já o Cacaso queria namorar a Massoca e não conseguia. Assim fomos os quatro amigos e acabamos nas praias de Salvador comendo acarajés, abarás, carurus e vatapás.

ML: E essa ideia de poesia escrita coletivamente que o Segunda Classe apresentava, sem diferenciação de autoria nos poemas?
L: Os teóricos adoraram na época.

ML: Já havia essa noção de coisa coletiva, de grupo, de “Vida de Artista”, de coleção…
L: Mais ou menos. A gente tentava, mas éramos muito desorganizados. No caso do Segunda Classe, não houve nenhum planejamento, tudo foi acontecendo naturalmente. Quando fizemos a viagem, não foi para escrever um livro. Foi para conhecer o São Francisco.

ML: E como surgiu a ideia do livro?
L: Não surgiu, foi acontecendo naturalmente.

ML: Vocês foram escrevendo lá mesmo?
L: Sim, mas separadamente. Eu escrevia meus poemas, Cacaso escrevia os dele. Às vezes mostrávamos alguma coisa que havíamos acabado de fazer um para o outro. A viagem foi indo, a gente foi escrevendo sem compromisso de estar preparando um livro. Foi só depois, quando fomos para a fazenda no fim do ano que eu mostrei pro pessoal: “olha só os poemas que fiz lá.” O Cacaso tirou uma pasta da bolsa baiana recém-adquirida no Mercado Modelo e disse: “Eu fiz esses todos lá”. A Bita chegou e mostrou: “olha, eu tirei essas fotos.” E a Massoca: “ah, eu fiz esses desenhos.” Nós estávamos no mesão redondo da fazenda onde tudo acontecia: fazia-se livros, tocava-se música, conversava-se muito e a certa altura o Cacaso se vira e diz: “Com esse material aqui dá pra se fazer um livro. Vamos fazer um livro?” E assim foi. No meio do processo é que surgiu a ideia de não dizer de quem eram os poemas, acabar com esse conceito autoral.

ML: Uma espécie de morte do autor…
L: Pois é. Mas, havia uma coisa curiosa acontecendo: os nossos poemas tinham ficado muito parecidos. Um dia dissemos, meio de brincadeira, que se tirássemos a autoria dos poemas, ninguém saberia dizer qual era de um, qual era de outro. Na verdade, um influenciava o outro, as coisas que líamos eram as mesmas, as paisagens deslumbrantes eram as mesmas para os dois.

ML: Era a mesma viagem…
L: Era a mesma viagem e realmente os poemas ficaram muito parecidos. Era difícil distinguir o que era de um, o que era do outro.

ML: Recentemente você voltou a ter problemas com a autoria dos poemas deste livro – conte o que houve.
L: Chega a ser irônico. Ficamos esse tempo todo sem dizer de quem eram os poemas e quando isso foi revelado – saiu tudo errado! Três poemas meus foram dados para o Cacaso. São eles: “Mudando o Estado”, “Constatando” e “Diário”. O pior foi ter lido num ensaio crítico recente da pesquisadora Luciana di Leone que escrevendo sobre o Segunda Classe apontou diferenças cruciais entre a minha poesia e a do Cacaso. Para demonstrar isso ela cita dois poemas do Cacaso – que são meus! Quer dizer, com isso ela conseguiu comprovar que eu sou completamente diferente de mim mesmo.

ML: Mas ela partiu de um material que estava errado.
L: É verdade, ela não teve culpa. O erro está no livro das obras completas do Cacaso, o Lero-Lero, editado pela Cosac Naify e 7Letras. Vou mandar uma carta para eles, para ver se eles corrigem isso nas próximas edições. Afinal, já existem estudos literários dizendo que os meus poemas são de outro!

ML: Seria melhor que deixassem como antes – sem autoria. Deixar os dois misturados coletivamente.
L: Realmente, teria sido melhor. Foi o Pedro, filho do Cacaso, que me pediu para que assinalasse no Segunda Classe os poemas do pai que havia morrido. Mandei para ele uma lista com os poemas do Cacaso no livro. E mesmo assim saiu errado.

ML: Ana Cristina César tem um poema, Vigília 2, “desentranhado do poema Vigília de Luis Olavo Fontes”. Como foi isso?
L: Ana fez esse poema lá em casa, na minha mesa. Fizemos uma tentativa de morar juntos que não deu certo, éramos muito jovens (22 anos) e muito dependentes de nossos pais. Aluguei um apartamento em Santa Teresa e saí de casa. Mas, comíamos na casa dos pais, falávamos no telefone (não tinha telefone no apê), enfim, era uma vida meio dividida. Mas em Santa Teresa, líamos, escrevíamos e namorávamos muito. Vários poemas da Ana foram feitos lá em casa – por exemplo, os dois que ela publicou na revista Malasartes de setembro de 1975. Um deles foi o “Vigília 2”, que eu considero um dos melhores poemas da obra dela. Aliás, foi a Luciana di Leone quem percebeu que no livro póstumo, Inéditos e Dispersos, organizado por Armando Freitas Filho, o poema foi publicado sem a epígrafe – “desentranhado do poema Vigília…”. Ou seja, o Armando cortou a epígrafe. Acho que ele não gosta muito de mim… O título do poema fica sem sentido – por que Vigília 2? Onde está o Vigília 1?

ML: Alguns poetas da geração de vocês morreram jovens… Queria perguntar sobre essas mortes que de certa maneira santificaram alguns poetas.
L: Santificaram uns e outros não, né? Lá no Nordeste, o povo gosta de dizer durante o velório de um pecador: “agora que morreu, vai virar santo.” Mas, tem também os que morrem e ninguém lembra mais. Um dos poetas fundadores da “Nuvem Cigana”, o Guilherme Mandaro, morava a três prédios da Ana Cristina na mesma rua Tonelero e também se jogou pela janela, uns dois anos antes dela, e hoje ninguém fala dele, é uma pessoa totalmente esquecida. Era ótimo poeta, mas só fez dois livros: Hotel de Deus e Trem da Noite. Tinha militância política e apareceu no livro do Gabeira “O que é isso companheiro” com o codinome de Bom Secundarista. Ele era do Pedro II no tempo da guerrilha urbana. No início dos anos 70, Guilherme era professor de História e foi dele a ideia de usar os mimeógrafos das escolas onde dava aula para publicar poesia. Foi ele quem permitiu ao Charles e ao Chacal fazerem seus primeiros livros em mimeógrafos. A ideia foi dele, do Guilherme Mandaro. E quase ninguém sabe disso. Já outros, como você disse, foram beatificados: Leminsky, até mesmo o Cacaso; e a Ana Cristina é a santa maior.

ML: Torquato…
L: Torquato, pois é, também conheci o Torquato. Foi numa filmagem em Super 8 do Ivan Cardoso, “Nosferatu no Brasil”. Torquato era o ator principal, o Nosferatu. Tinha uma cena antológica: Torquato (Nosferatu) de sunga e capa negra à sombra de um coqueiro, com os caninos pontiagudos à mostra, tomava coco gelado no canudinho enquanto fiscalizava os pescoços femininos na areia da praia.

ML: Em 2007 você publicou três livros – Colar de Coral, Linha de Fogo e Livro do Príncipe. Excesso de inspiração?
L: Nada disso. Excesso de preguiça para publicar. O Livro do Príncipe é antiquíssimo, foi escrito em 1975 no apê de Santa Teresa, tempo em que estudava Letras na PUC. Ficou na gaveta mais de 30 anos. O Colar de Coral é meu livro de poesias inéditas abrangendo um período de tempo que vai de 1982 a 2002. Eu não fazia um livro de poesias inéditas desde 1987, quando lancei o Tupis, Rubis e Abacaxis.

ML: Bem modernista o título, né?
L: Na verdade é um verso do Mário de Andrade, num poema em que exaltava as riquezas e maravilhas do Brasil: “Abacate, cambucá e tangerina/Tupis, rubis e abacaxis!” Algo assim, não lembro bem.

ML: Faltou falar de um livro…
L: Ah, sim… O Linha de Fogo é um livro pequenino, no formato de uma caderneta, que por isso cabe no bolso de uma calça jeans ou na bolsa das mulheres. São 150 poemas curtinhos ou poemetos – que hoje chamam poema-minuto – 50% dos quais inéditos. É outra característica da poesia dos anos 70 inspirada no Modernismo. Drummond, Oswald de Andrade, Murilo Mendes e até Bandeira – todos faziam o chamado poema-minuto de quando em vez. Nossa geração seguiu essa tradição.

ML: Você não disse como terminou a Coleção Vida de Artista… Quais os livros publicados?
L: A “Vida de Artista” começou a ficar famosa em 1975. Pessoas desconhecidas nos mandavam livros de todo o Brasil para que as publicássemos. Tivemos de fazer uma triagem, uma seleção. Acredito que a ideia inicial do Cacaso era compor um conselho editorial comigo, Ana Cristina, João Carlos Pádua, Charles e Chacal – a turma que passara a temporada na fazenda. Mas, Charles e Chacal logo abandonaram o barco e foram para a Nuvem Cigana. João Carlos e Ana Cristina tiraram o corpo fora, como era de praxe, não queriam se envolver. Sobramos então eu e o Cacaso para tocar a “Vida de Artista”. Publicamos um poeta de Brasília, Eudoro Augusto, que não conhecíamos, mas que nos enviou um bom livro, A Vida Alheia. Publicamos também Carlos Felipe Saldanha, também conhecido como Zuca Sardana, um diplomata amigo do Chico Alvim que fazia livros em mimeógrafos desde os anos 1960, muito antes da nossa geração ter essa ideia. O livro dele chamava-se Aqueles Papéis. Cacaso publicou o Beijo na Boca, seu livro de poemas líricos, com capa da minha irmã Massoca. Acredito que, finalmente, depois de toda essa paquera, ele tenha conseguido namorar ela.
Em 1976, o projeto do Cacaso para a “Vida de Artista” começou a caducar. A antologia da Heloísa Buarque fizera um enorme sucesso, nossa poesia se espalhara pelo Brasil. Já havia editoras interessadas em publicar os “marginais”. A Vida de Artista foi se esvaziando naturalmente. Os namoros acabaram, outros começaram, as pessoas se distanciaram. Como dizia Murilo Mendes: “a vida separa muito mais do que a morte”. Ainda fizemos dois livros que podem ser considerados da coleção “Vida de Artista”: o meu Papéis de Viagem (1976) e o Na Corda Bamba (1977) do Cacaso. O carimbo da “Vida de Artista” – todos os livros eram carimbados manualmente na capa – ainda está lá em casa, guardado com carinho.

ML: E a poesia contemporânea, você tem acompanhado?
L: Até tenho, na medida do possível. Acho que a poesia contemporânea está muito tribalizada. Cada tribo tem sua poesia. Como no tempo dos índios, algumas tribos guerreiam entre si. Outras, sentindo-se superiores às demais, ignoram-nas. Essas últimas cultivam a fantasia de que só eles conhecem e produzem a verdadeira poesia. Parecem não se aperceber que a poesia é como o vento – sopra onde quer. Há inúmeras maneiras de se fazer boa poesia – basta ler poetas como Fernando Pessoa, Maiakovski, Baudelaire, e ver como são maravilhosos, ainda que suas poesias sejam construídas de modo bastante distinto.

ML: Algum poeta lhe agradou ultimamente?
L: Sim, gostei muito do livro Rilke Shake da Angélica Freitas. É uma poesia bem-humorada, a começar pelo título. Está faltando um pouco de humor na poesia: tá todo mundo muito sério… Também gostei dos poemas daquele menino que morreu, Leonardo Martinelli; entrei no site dele e ele era um bom poeta. Fiquei com pena, um poeta tão jovem e tão talentoso…

ML: Você lançou um livro de prosa em 2009?
L: Lancei Novelas de Guerra. Livros de contos e novelas. Sou um contista bissexto, mas fazia 16 anos que não publicava nada desde Ócio do Oficio de 1993. Já estava na hora de publicar outro. Estou até espantado com a boa repercussão do livro, tenho recebido inúmeros e-mails com elogios, algo que não ocorre quando publico poesia…
Novelas de Guerra era na verdade dois livros: um de novelas e outro de contos. Pensei a principio em editá-los separadamente, mas a Heloisa Buarque de Holanda, que é a minha editora, me convenceu a uni-los num só volume. Três contos são de 1973 [eu tinha 21 anos] e não entraram no Ócio do Oficio nem me lembro mais por quê. Mas, a maioria é recente, do século XXI, ainda que haja dois ou três dos anos 1990. Apenas um deles, “Separação”, não é inédito, pois já havia sido publicado numa coletânea de contos editada pela Francisco Alves. A maioria das histórias é de aventuras em vários lugares do mundo – minhas viagens tiveram alguma influência nisto. São fáceis de ler e têm boa dose de humor, acho que é por isso que têm agradado tanto às pessoas.

ML: E os planos para 2010?
L: Estou terminando uma biografia do meu avô, o dono da fazenda onde fazíamos os livros de poesia, Severino Pereira da Silva. É um livro feito por encomenda da família. Mas, a história dele é tão incrível que pode até dar samba. A ideia seria lançá-lo em dezembro de 2010.

Masé Lemos é professora de Teoria da Literatura na UERJ. Em 2007, publicou Redor pela 7Letras. maselemos@me.com