O dossiê Gênero Z surge da urgência de se discutir políticas de gênero, questões LGBTQ+, feminismos cada vez mais inclusivos, teorias interseccionais e transdisciplinares nas práticas acadêmicas, artísticas, cênicas, políticas, literárias e filosóficas. Apostamos em perspectivas plurais de sexualidade e gênero e propostas para uma inclusão radical a partir do desenvolvimento da atenção para interseccionalidades.
Esta edição se constrói amplamente a partir de olhares que investigam o não normativo, muitas vezes capazes de questionar seu próprio lugar de fala acadêmica, trazendo contribuição não apenas quanto a temáticas em desvio, mas também em suas experimentações formais e teóricas, propondo discussões sobre performatividade e construção de gênero, de corpos, de pactos sociais e relações de poder – nos deslocando e surpreendendo. Anga Maion: uma performance entre a e ele, de Geruza Zelnys e Eduardo Guimarães, Reflexões de Alice: direitos humanos, carnaval e diversidade, de Leonardo Bora, e “O vestido de Claire”: arte, gênero e corpo em Grayson Perry, de Claudia de Oliveira, dedicam-se a pensar as performances de certos artistas e o potencial disruptivo que elas apresentam. Passeiam pela noite paulistana, pelo carnaval carioca, pelos lixões e por Londres, apontando para uma leitura ativa de quem decide embarcar nos seus vagares. Project Unbreakable: a cura por meio da visibilidade, de Bruna Rodrigues, toma, igualmente, a dimensão da esfera pública (mas no ambiente virtual) ao propor uma leitura das fotografias de vítimas com dizeres relacionados às suas experiências de abuso sexual e do testemunho como meio de cura. Reflexões de Alice, ainda, debruça-se sobre a esfera do Direito e, oportunamente, lembra a morte de Diego Vieira Machado, aluno da Faculdade de Letras/UFRJ, mesma universidade em que o autor pesquisa.
O Direito é, também, a principal esfera de atuação do Prefácio, que publicamos aqui, do livro da filósofa argentina Laura Klein sobre o aborto, tema caro não só ao Direito e à Política, mas à própria noção de construção de gênero e, assim, dos corpos. Masquerade as performance: the butch-femme gender roles, de Antonia Navarro-Tejero, discute, justamente a partir da ideia de construção, o gênero em duas produções de Bollywood, ampliando, ainda mais, o “escopo geográfico” deste dossiê.
Epidemia e extermínio em Seel e Arenas a partir de Ricoeur, de Guido Arosa e João Camillo Penna, e Literatura e HIV/AIDS: reflexões sobre a era pós-coquetel, de Danilo Melo e João Camillo Penna, dedicam-se à literatura e ao seu poder (ou sua supressão e resistência) de abarcar a condição homossexual dos escritores e, em alguns casos, sua soropositividade. A literatura é também o campo sobre o qual atua A fronteira que habito: o feminino n’O Livro das Comunidades, de Júlia Lopes, artigo que busca para si, através da obra da escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol, um feminino divergente para “habitar”.
Autorretratos: I’m in training don’t kiss me, de Mariana Ruggieri, e Por uma poética da androginia em Virginia Woolf, de Davi Pinho, oferecem, ambos, leituras de obras que desfiguram fronteiras entre gêneros, sugerindo um espaço outro de onde se escreve, se lê e se fotografa. Esse outro espaço também conforma a ambição de Arquitetura para uma possível etopoeiese feminista, de Carolina Correia dos Santos, que aproxima textos estranhos entre si – da biologia, antropologia e arquitetura – para praticar um feminismo simbiótico.
Para arrematar este dossiê, no espaço para poemas, temos o Duplo cuierlombista da poeta brasiliense Tatiana Nascimento, com um poema reza, oriki #11, fortitude, e um poema manifesto, cuíer A. P. (ou “oriki de shiva”).
Os artigos que compõem este dossiê desfrutam do espaço multidisciplinar que constitui a Z Cultural, convidando o leitor a se indisciplinar e cruzar diferentes campos do conhecimento. Esperamos, assim, que antes de tudo, este dossiê corrobore campos menos normativos desde seu lugar de atuação. E que a leitura se faça performance.
Resumo: Este texto não é um artigo. Talvez, uma apresentação. Mas, se for, é a apresentação de uma performance, híbrido de clínica e ritual, algo que também não pode ser plenamente apreendido. Escapa. Então que isso seja um tatear assim meio que às cegas, c’obra cega, porque o olhar é esse do corpo que sabe e convoca todos os sentidos para ver.: O toque, mas esse de dedos incertos sobre as teclas. Este texto, portanto, é somente o que pode ser: um texto. Texto tentando tocar rastro. Nuvem tentando conter-se chuva. Esse texto contamina-se em/de AngaMaion.
Abstract: This is not an article. It´s, maybe, an introduction. The introduction of a performance, a hybrid of clinic and ritual, that cannot be fully understood. It escapes. So this is a blind grope, a blind snake, since this is the search of a body that knows and convenes every senses in order to see.: The touch of the uncertain fingers over the keys. This text, therefore, is the only thing that it can be: a text. The text trying to touch a track. The cloud trying to contain the rain. This text is contaminated of AngaMaion.
Keywords: Performance; creature; incorporation.
Anga, in Guarani, means shade, shelter, soul. Maion, in Pataxó, means light. AngaMaion was a ritualistic performance realized at electronic music parties in São Paulo. The video revisits the experiment to register the relation between two vibrating bodies: performer and creature.
Anga en langue guarani signifie ombre, abri, âme. Maion en langue Pataxó signifie lumière. AngaMaion fut une performance rituelle tenue dans les partis de musique électronique à Sao Paulo. La vidéo revisite l’expérience pour imprégner le rapport de deux corps vibrants: interprète et créature.
Anga, en Guarani, significa, sombra, abrigo, alma. Maion, en Pataxó, es luz. AngaMaion fué una performance ritual que se realizó en fiestas de música electrónica de São Paulo. Este video revisita lo experimento para permear la relación entre dos cuerpos vibrantes: performer y creatura.
Este texto tem o desejo de pensar/sentir AngaMaion, entidade performatizada ritualisticamente pelo dançarino, performer e artista multimídia Fernando Gregório, que, segundo suas palavras já dissipadas pelo vento[1], chegou num ritual xamânico acompanhada de outros seres – leia-se outras formas de existência – que interagem com humanos.
Há algum tempo, Fernando Gregório vem tecendo mapas conceituais e o estudo dos fractais parece ser o cerne de uma pesquisa que busca, antes de tudo, a intersecção entre práticas de dança, performance, artes visuais, arte digital, processos clínicos e experiências ritualísticas xamânicas. Diz que a leitura de Viveiros de Castro e do perspectivismo ameríndio tem sido fundamental para refletir sobre uma possível aproximação entre AngaMaion e a cultura indígena, na tentativa de entender outros pontos de vista através de algo como a incorporação.
Conta ainda que, desde sua chegada, Anga se mostrou um ser de comunicação, “sempre sugerindo e nunca impondo nada”. Desde sempre, então, o diálogo horizontal entre o performer e a criatura nascida do cruzamento, potencializado pela radioatividade, de uma rata e uma água-viva, ou, mais especificamente, um ser tentacular que habitava os rios submersos de São Paulo. Nessa formação, houve também a interferência de uma cobra-cega
que via com o corpo todo.
b.
Aberturas.
Importa dizer que os pensamentos, lançados aqui sobre esse papel-não-papel, são mediados por quatro mãos, que ora encaixam fragmentos da entrevista, lembranças sensíveis da performance e estilhaços conceituais, tentando compor um dizer sobre, que ora cala sem saber qual faceta de Anga abordar. Anga-performance nas mentes pesquisadoras. Anga-cura nos corpos terapêuticos. Anga-rito nos corações de axé. Mas, sempre, Anga-poesia nas mãos de dois poetas.
Desde aí a tentativa, evidentemente fracassada, de apreensão de alguma coisa que já (se/nos) foi: imediaticidade cujo rastro, em mídia eletrônica, se apresenta mais como uma ausência, uma falta, uma espera.
c.
No link acima, o leitor poderá ter uma ideia da experiência provocada pela performance AngaMaion. A senha: transanga. A mistura de arte, clínica e ritual xamânico culmina numa (est)ética plurissignificativa que convida a diferentes diálogos com teorias, especialmente de fundamentação feminista, debruçadas sobre gênero, cultura e sobrevivência queer/kuir.
De pronto, experienciamos AngaMaion numa forte conexão com o pensamento de Donna Haraway (2016) quando aposta no “chthuluceno” como “novo e potente nome” para reunir as forças tentaculares da Terra. Isso porque Anga pode ser lida como criatura decentralizadora à medida que repovoa nosso imaginário: o que ela é? a que veio? o que trouxe? o que levou(-nos)? Tal fabulação especulativa pode criar uma alternativa à centralidade do humano – aqui especialmente o humano-homem-branco – mas desde que ultrapassemos os limites que separam a obra da arte da obra da vida. Ou melhor, como Donna propõe, desde que pensemos os seres junto com a ficção científica, aceitando a miríade de temporalidades, espacialidades e “entidades em arranjos intra-ativos, incluindo mais-que-humanos, outros-que-não-humanos, desumanos e humano-como-húmus (human-as-humus)”.
Só assim poderíamos entender AngaMaion como conjunto aberto-fechado de complexidades, porosas e tentaculares, que admite a completa contaminação narrativa e teórica da arte à vida e vice-versa. Ou como força chthonica se apresentando à nossa hostipitalidade, termo cunhado por Derrida (2003) para falar dessa relação ao mesmo tempo hospitaleira e hostil para com aquelx que vem. Aqui, vivenciamos a completa hostipitalidade uma vez que já estamos diante do outro-mais-que-outro, nem mesmo o outro animal, mas o já ciborgue (Haraway, 2009) ativado na/pela música eletrônica: um ser híbrido máquina-organismo desestabilizador das categorias convencionais de raça, gênero e classe social.
d.
Mas AngaMaion pode ser lida como presença-ausência-construção ciborguesca? Questão interessante, pois, apesar de ter uma história que nos foi contada pelo performer, como ciborgue AngaMaion não precisa, necessariamente, de uma narrativa de origem, pois, no momento mesmo do ato, para seus espectadores Anga apenas é. E isso desmascara qualquer crença e segurança numa linearidade temporal: tudo é presente. Tudo é agoridade que se ajusta à sobrevida da performance na malha tecnológica.
Por isso, Anga assusta. O tempo do “é” é muito menos racionalizável: precisa dos sentidos e acessa os saberes do corpo. E, assim, somos levados a expandir os limites de apreensão da “coisa” à medida que essa “nova narrativa mítica” mistura fragmentos e referências resultando em entes-sem-limites, com os quais não sabemos muito bem como e desde onde questionar. O que perguntar? Por que perguntar? E para quê? Então não perguntamos, calamos. Enquanto Anga dança. E intimida. Não precisa responder porque não sabemos ainda as perguntas.
(Ela só precisa do corpo).
Mas, se ciborgue, “determinadamente comprometido com a parcialidade, a ironia e a perversidade” (Haraway, 2009, p. 3), pois definitivamente desajustadx à lógica binária da enunciação totalizadora que divide os corpos em dois e marginaliza os corpos insubmissos ao sistema heterocentrado: “intersexuais, hermafroditas, loucas, caminhoneiras, bichas, sapas, bibas, fanchas, butchs, histéricas, saídas ou frígidas, hermafrodykes” (Preciado, 2014, p. 27). É claro que, aqui, não se trata apenas da desnaturalização dos binarismos sexuais, mas também da desconstrução do binarismo humano x máquina / cultura x natureza, construindo, com isso, um lugar mais espectral e sem tantos opostos, apenas com partes integrantes de uma mesma teia na qual próteses identitárias existem em favor da “textualização do corpo em sua totalidade”.
e.
Será por isso que AngaMaion não tem rosto? Será elx seja o rosto sem rosto, ou ainda o rosto qualquer do pensamento messiânico revisitado pela filosofia contemporânea?
Não sabemos.
f.
De qualquer forma, é incrível como a estética da performance traz uma discursividade radicalmente ética. Além da escolha da trilha sonora eletrônica, referência ao urbano contemporâneo, e do locus, um canto escuro com parede pixada em referência à margem, há o uso do zentai preto, criador de formas a um tempo firme e fluidas. Fernando Gregório diz que, como performer, veste o zentai, mas que Anga é o próprio zentai, ou seja, o estranho-erótico-pornográfico-fetichista que não reduz o corpo à uma única zona erógena, mas que o erogeniza por completo. Contrassexualidade: o corpo falante, mesmo que mudo, se conecta com outros corpos falantes desnaturalizando binarismos e renunciando “não só a uma identidade sexual fechada e determinada naturalmente, como também aos benefícios que poderiam obter de uma naturalização dos efeitos sociais, econômicos e jurídicos de suas práticas significantes” (Preciado, 2014, p. 56).
Então que essa pele sintética, em jogo de movimentos, não só gera a imediata associação a fetiches e energias claramente sexuais, criativas e criadoras, como estimula o diálogo com os corpos conscientes daqueles que se fazem presentes ao acontecimento. E esse diálogo de corpos, potencializado pela força Anga, é o lugar onde se energiza o corpo espectral formado e deformado a partir das mensagens surgidas, (re)transmitidas, (re)alimentadas e, em última instância, incorporadas pelos participantes. É o lugar onde o acontecimento se entrega de modo mais contundente à condição em que se manifesta: a de estranho.
Mas, uma vez feita a abertura, uma vez incorporado, algo se mantém estranho?
g.
Resulta da ampliação do corpo à erogenização íntegra e integral, a despeito das zonas consideradas erógenas, por meio dessas dobras e incorporações desviantes, dessas linhas de fuga, os tais corpos-que-dançam e que possibilitam, dentro do espaço hiperexcitado pelo movimento, também a aparição do espectro traumático (Gil, 2003).
Nesse sentido, e partindo de uma fala afirmativa de Fernando Gregório, percebemos a relação entre arte e clínica na performance AngaMaion que, em alguma medida, o aproxima dos experimentos com o corpo-bicho de Lygia Clark. Suely Rolnik fala desse lugar de borda entre arte e clínica, que busca extrapolar fronteiras e se espalhar pela vida. Sobre Lygia, ela diz: “são os elementos de um ritual de iniciação que ela desenvolve ao longo de ‘sessões’ regulares com cada receptor” a fim de experienciar o “desmanchamento de nosso contorno, de nossa imagem corporal, para nos aventurarmos pela processualidade fervilhante de nosso corpo-vibrátil sem imagem” (2016, p. 106).
Certamente a ritualística existe no processo de criação-incorporação AngaMaion e ela dá os contornos desse lugar de autocura no qual a performance surge como possibilidade conectando-se ao princípio ético de certa permacultura do corpo: “use os limites e valorize o marginal” para acordar e desentorpecer o corpo-que-sabe, anestesiado pela perspectiva dominante antropo-falo-ego-logocêntrica. Experimentação poética que explicita uma dimensão política: “da perspectiva de sua hibridação, prática artística e prática clínica revelam-se como forças de resistência à esterilização do poder disruptivo” da contradição entre possibilidades infinitas e a finitude da criação. Estamos no campo da esquizoanálise, que busca, a partir de práticas inventivas e mutativas, do “desdobramento de devires animais, vegetais, cósmicos, assim como de devires maquínicos, correlativos da aceleração das revoluções tecnológicas e informáticas” (Guattari, 1990, p. 23) transformar, por meio de novos agenciamentos, nossa relação com o mundo.
h.
Fratura.
Este fragmento do (não) artigo sobre Anga é uma fratura em tudo escrito até agora, mas não radical, não exposta. Quer dizer, talvez agora exposta porque nomeada: esse fragmento quer ser. Artigo? Ou qualquer coisa que seja “é”. Porque contamina e é contaminado por tudo posto e deposto até então, misturando criatura-performer-criador sem perder a possibilidade, a esperança de ser um texto, um corpo incorporado aos trechos que o precedem. Tal qual corp-Anga corpo-que-performa. Quem precede quem?
Na política dos corpos, a relação entre artista e entidade evidencia o corpo como lugar transitório. O de Anga, manifestação que vem e se esvai, pronto para uma nova invasão-incorporação-performance; o do performer, que ao rasgar o zentai ao final da apresentação, cumpre a promessa do corpo-lugar como elemento que não nos abandona, ou seja, retoma seu corpo inicial que, no entanto, se apresenta numa nova versão, corpo pós-transmutado, e, portanto, aberto a novas possibilidades de sensibilidade. A certeza do corpo como lugar de incerteza, aberto ao estranho, seja como manifestação estética, seja pela porosidade da compreensão do que ocorreu.
O que foi Anga?
i.
Não vemos nas fotos, mas num dos vídeos, sim: outra presença: a presença-Outra[2]. Participa da performance de Anga a figura da Outra, que se apresenta num primeiro momento como um híbrido de assistente-espectadora do performer, e possivelmente de Anga, que assiste (a) toda ação. Trata-se da espectadora ideal, almejada a todo custo pela arte contemporânea que se quer, acima de tudo, ser uma experiência. Figura que rompe a condição de espectadora-assistente e vai contaminando, atuando até tornar-se condição para aquela performance, para a manifestação artística/ritualística, tornando-se finalmente, também, uma performer. É o rompimento, ou o deslocamento das atuais fronteiras flexíveis.
O ritual, a transe-performer-criatura como apresentada, não é possível, ao menos não plenamente, sem o movimento onde a Outra joga uma gosma espessa sobre o performer completando o ritual em toda sua potência. Ela cumpre a crença no que se passa, somada à crença do performer, jorrando Anga às testemunhas do acontecimento. E então algo se passa naquela figura que some de cena. Estará a Outra à espera de sua própria entidade? Ou é ela a própria entidade, já incorporada ao acontecimento, um segundo encontro que rompeu uma segunda vez o binarismo do encontro perfomer-Anga, binarismo esse apresentado de início e rompido a primeira vez pela própria força resultante da dinâmica do encontro, desde o primeiro encontro?
Cumpre-se, portanto, uma relação de parceria mais do que antropofágica dado que se trata de seres distintos e plurais – Anga, performer, assistente, espectadores – existência / coexistência. Na lixeira onde os primeiros processos mágicos aconteceram e a gente não estava vendo, uma sugestão ecológica. Tudo fervilha e contamina. Fervilhamos. Somos tudo em alguma lixeira para a qual ninguém olha.
Será que foi Anga quem disse isso, Eduardo?
Será que foi Anga quem disse isso, Geruza?
Não sabemos. Mas o corpo
Sabe?
l.
Poema do artista, cedido como resposta à pergunta impossível:
meu segredo é uma caixa linda
(acho que é a caixa mais linda do mundo)
lacerada acima da minha cabeça
uns 45o com 30 cm à frente
ela pode cair
quebrar
nunca houve caixa
só o que ela pariu:
uma massa disforme
moldada
doída
que esqueceu
[Fernando Gregório]
* Geruza Zelnys é escritora e poeta. Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada (USP), mestre em Crítica Literária (PUC-SP), pesquisa as potencialidades provocativas, educativas e terapêuticas das oficinas de escrita criativa em pós-doutoramento (UNIFESP) com bolsa CNPq. Ministra oficinas de escrita criativa e curativa.
** Eduardo Guimarães é escritor e poeta. Bacharel em Comunicação Social com ênfase em Roteiro (ECA-USP). Bacharel em Direito (PUC-SP). Ministra oficinas de escrita literária. Pesquisa o fazer literário como processo catártico-ritualístico, capaz de (re)narrar memórias, atuar em realidades e levar ao êxtase.
Referências
DERRIDA, Jacques. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da hospitalidade. Trad. Antonio Romane. São Paulo: Escuta, 2003.
GIL, José Nuno. “Abrir o corpo”. Palestra proferida no Simpósio Corpo, Arte e Clínica. Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, PPG em Psicologia Social e Institucional, 2003.
GUATTARI, Félix. As três ecologias. Trad. Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas: Papirus, 1990.
Resumo: O trabalho lança questionamentos sobre as obras Alice no Brasil das Maravilhas, desfile carnavalesco assinado por Joãosinho Trinta, e Alice e o chá através do espelho, série fotográfica e performance realizadas por Rafael Bqueer, em cotejo com as reflexões de Luis Alberto Warat, para quem a introdução da arte na vida do direito é um movimento fundamental para se pensar a diversidade e a não-normatividade. Objetiva-se mostrar que os jogos de inversão propostos por João Trinta e Bqueer (a tradução de Alice em “corpos distópicos”, negros, gays, marginalizados) servem para que as teorizações de Warat sejam atualizadas e direcionadas para o urgente e complexo universo das questões LGBTQI.
Abstract: The work focuses on the works Alice no Brasil das Maravilhas carnivalesque parade signed by Joãosinho Trinta, and Alice e o chá através do espelho, photographic series and performance made by Rafael Bqueer, in comparison with the reflections of Luis Alberto Warat, for whom the introduction of art in the life of the law is a fundamental movement to think about diversity and non-normativity. The objective is to show that reversing games proposed by João Trinta and Bqueer (the translation of Alice in “dystopian bodies”, black, gay, marginalized) serve for the theorizing of Warat be updated and directed to the urgent and complex universe of LGBTQI issues.
Keywords: Human rights; carnival; diversity.
Introdução
Fazendo jus à tradição das proféticas narrativas finisseculares, os enredos (narrativas escritas e conjuntos visuais formados por fantasias e carros alegóricos) concebidos pelo carnavalesco Joãosinho Trinta e apresentados no período de 1974 a 2005 clamavam por justiça social e procuravam despertar a atenção do público e dos jurados para os grandes problemas da história brasileira. Dono de um discurso político afiado, o artista maranhense falou sobre a preservação da natureza, a valorização dos saberes afro-ameríndios, as chagas sociais ocasionadas pela concentração de renda, a urgência dos direitos humanos e do combate ao racismo e à homofobia. Em 1991, ao transformar em enredo da Beija-Flor de Nilópolis a história de Alice, a mais famosa personagem do escritor Lewis Carroll, tal constante de discursos críticos e reivindicatórios não foi interrompida. Ao contrário: em Alice no Brasil das Maravilhas, a perspectiva crítica se viu fortalecida, já que as peripécias da personagem britânica sempre estiveram carregadas de politização.
A despeito de ser genericamente considerado uma obra de “literatura infantil”, o texto de Carroll, publicado em 1865, transporta o leitor a uma sucessão de situações marcadas pela violência, a começar pelos discursos genocidas (que nunca se concretizam, apesar das ameaças) da temida Rainha de Copas. Em um contexto dos mais autoritários, Alice aponta o despotismo da mandatária e desnuda a arbitrariedade com que os julgamentos são conduzidos no decorrer da história: jardineiros são condenados à morte porque plantaram rosas brancas em vez de rosas vermelhas; as provas do tribunal (em que o rei é também juiz) são manipuladas ao sabor do vento, com o fim único da punição violenta. São tantos os brados de “Cortem as cabeças!” que não parece descabida a afirmação de que “em Wonderland, como na Alemanha nazista e nos demais regimes totalitários, algumas pessoas são descartáveis (literalmente, no caso das cartas de baralho) pelo simples fato de existirem (…)” (Bora, 2010, p. 108).
Tal substrato textual foi traduzido em um desfile carnavalesco de poderosas críticas às omissões da sociedade e dos Três Poderes brasileiros. Conjunto simbólico que, mais de 20 anos depois, despertou a atenção do artista paraense Rafael José Bandeira da Penha, que assina Rafael Bqueer. Como o próprio nome artístico insinua, a preocupação central da produção do performer é discutir questões e perspectivas plurais de identidade, sexualidade e gênero, desconstruindo padrões e normatividades na esteira das provocações do ativismo queer, que defende que “novas identidades podem ser criadas, recriadas e subvertidas permanentemente e que todas elas são importantes, sem hierarquias (…)” (Colling, 2015, p. 240-241).
A escolha de Alice no Brasil das Maravilhas enquanto ponto de partida, algo não gratuito, desperta a atenção do leitor literário (afinal, trata-se de um diálogo intertextual dos mais ricos) e convida o espírito crítico (sem qualquer fim absolutizante) a um manancial de questionamentos. O que se objetiva, neste trabalho, é tecer indagações a partir das proposições de Bqueer, artista contemporâneo que buscou reatualizar, em contextos distintos, a problemática de que falou Joãosinho Trinta no carnaval de 1991. Para isso, serão enfocadas questões referentes ao universo LGBTQI, em especial ao ativismo queer, uma vez que o artista propõe a reconfiguração das discursividades que envolvem (atacam e não raro condenam à morte) os corpos que não se enquadram nos padrões heteronormativos impostos historicamente. Antes, porém, serão apresentadas algumas provocações de Luis Alberto Warat, teórico do direito que propôs o mergulho no oceano das artes enquanto estratégia para a humanização da prática jurídica. Pretende-se, por meio da conversa com Warat, verticalizar os apontamentos críticos e tocar a seara dos direitos humanos – uma experimentação ensaística em busca da radicalidade do direito à diferença.
Lewis Carroll e Luis Alberto Warat: Aliceando Themis
O cenário jurídico latino-americano se viu atordoado, em 1988, diante da publicação de uma curta e extremamente provocativa obra assinada por Luis Alberto Warat, um dos mais heterodoxos teóricos do direito argentino. Intitulado Manifesto do Surrealismo Jurídico, o texto convidava os leitores à humanização radical do direito e à celebração da vida em suas múltiplas manifestações, contra as camisas de força da tradicional “ciência jurídica” e contra qualquer tentativa de opressão e planificação (ou normatização/normalização) das diferenças (Bora, 2010, p. 41). Em outras palavras, um convite à carnavalização e ao gozo irrestrito dos direitos humanos.
Segundo Warat, o ensino da “ciência jurídica” falha ao cair em abstrações que não dão conta da complexidade do real e das demandas dos excluídos, produzindo legiões de juristas incapazes de ouvir os gritos das ruas. Para ele, o direito “pode mais afastar as pessoas da real possibilidade da justiça do que aproximá-las das esvoaçantes vestes de Themis” (Bora, 2010, p. 47), ou seja: o direito pode se converter em uma ferramenta de segregação, impedindo que inúmeras pessoas tenham acesso à deusa grega da justiça, obstruindo a passagem para a cidadania plena e para a efetivação dos direitos humanos (o que, no limite, pode ser exemplificado pelas “soluções finais” dos regimes nazifascistas, pelo apartheid sul-africano, pela condenação de homossexuais à morte e pela perpetuação de práticas de violência contra a mulher em inúmeros países teocráticos etc). É por isso que, na contramão do império da racionalidade jurídica que, na visão dele, só faz reverberar a opressão e a violência estatal, propôs a inclusão da arte na vida do direito e destacou a importância do nomadismo e da transdisciplinaridade.
Desde então, o manifesto vem sendo interpretado à luz dos mais inusitados pontos de vista, sobrando leituras conflitantes, o que reforça o caráter experimental da obra. Poético, o texto se diz “um protesto contra a mediocridade da mentalidade erudita e, ao mesmo tempo, um saudável desprezo pelo ensino enquanto ofício” (Warat, 1988, p. 13). Ao denunciar as limitações de um ensino autorreferente, antecipava as discussões contemporâneas sobre os “lugares de fala” e acenava para as pedagogias freireanas, contra a chamada “educação bancária”, aquela segundo a qual “o educador se coloca acima dos educandos, figurando enquanto única fonte do saber que, num ato paternal (melhor é dizer patriarcal), doa/transfere o conhecimento aos educandos” (Bora, 2010, p. 48-49). O manifesto de Warat, diferentemente, advoga pela educação problematizadora e argumenta que isso só é possível por meio do diálogo com as artes.
O diálogo entre o direito e a literatura vem gestando, nas últimas décadas, publicações das mais interessantes, como Contar a lei – as fontes do imaginário jurídico, de François Ost, e Poetic Justice – The Literary Imagination and Public Life, de Martha Nussbaum. No Brasil, a professora Vera Karam de Chueiri, doutora em filosofia do direito pela New School for Social Research e ex-aluna de Luis Alberto Warat, coordenou o grupo de pesquisa em direito e literatura da Universidade Federal do Paraná, dentro do qual eu desenvolvi a pesquisa que culminou na monografia de conclusão de curso intitulada O direito pego pelo rabo – Aliceando Themis, defendida em novembro de 2010. Já no título, procurei expressar a provocação sugerida por Warat, dialogando com Pablo Picasso e com a peça surrealista O desejo pego pelo rabo, “encenada” em 1944 por um elenco dos mais notáveis (participaram da leitura dramática, realizada na casa de Michel Leiris, em Paris, Jacques Lacan, Simone de Beauvoir, Jean Paul Sartre e Albert Camus). Ao longo do texto, propus a aplicação das ideias defendidas por Warat no manifesto de 1988 a partir do diálogo com Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, e com algumas criações carnavalescas de Joãosinho Trinta, artista que fez da Passarela do Samba o palanque ideal para expressar um sem-fim de indignações sociopolíticas.
A escolha de Alice no País das Maravilhas se deu, em parte, porque a obra tensiona, sucessivas vezes (ainda que de forma indireta), a ideia de corpo: Alice muda de tamanho e se apresenta indócil; as cartas de baralho, metáfora precisa, oprimem e são oprimidas enquanto corpos massificados, amedrontados e descartáveis. Ora, Warat desfia reflexões sobre o controle normatizador dos “corpos indóceis” no Manifesto do Surrealismo Jurídico, afirmando que os regimes autoritários trabalham contra as diferenças e substituem as instâncias jurídicas pelas instâncias disciplinares – o que produz “corpos dóceis” e “úteis” para a manutenção de uma determinada ordem (o condicionamento das relações sexuais e das definições de gênero aos fins procriativos, por exemplo, ideia que contribui para a sustentação da homofobia, da transfobia, da misoginia e de inúmeras outras exclusões simbólicas). Nas palavras do autor:
Nas instâncias disciplinares do poder se afeta mais um corpo observado, vigiado e classificado que uma consciência alienadamente configurada. A produção social da subjetividade encaminha-se, assim, para um futuro sem oportunidades, vencida pelas práticas disciplinares de individuação dos corpos. Corpos vazios, proibidos de pensar e identificar-se com qualquer tipo de significações (Warat, 1988, p. 102).
O estado de vigilância, no País das Maravilhas, é permanente: os oprimidos (a exemplo dos jardineiros) revelam a opressão introjetada e as noções de panoptismo e micropoder entram em cena, convidando às leituras de Michel Foucault. O filósofo francês apresenta, em Vigiar e punir, a ideia de que o panóptico, estrutura prisional em formato circular que estimulava a introjeção da opressão (os presos não sabiam se estavam ou não sendo observados, de modo que superdesenvolviam o senso de vigilância), sintetiza, no imaginário punitivo contemporâneo, a necessidade de docilização dos corpos. Nos termos do autor, o panoptismo “automatiza e desindividualiza o poder” (Foucault, 2006, p. 167). Os corpos dos presos, a exemplo dos corpos dos “anormais”, se veem condenados a uma docilização forçada, inseridos que estão em uma teia biopolítica das mais amarradas. Recorrendo a Giorgio Agamben (2004), pode-se dizer que os moradores de tão exótico lugar vivem um estado de exceção ininterrupto: as vidas dos cidadãos são capturadas pelo aparato judicial e julgadas ao sabor do vento, sem acesso a garantias básicas, como o devido processo legal e o contraditório.
Durante o tribunal instaurado às pressas para investigar (a rigor, condenar o Valete) um suposto roubo de tortas, Alice, revoltada com a manipulação das provas e com a violência dos discursos proferidos, contesta o poder do rei-juiz e se apresenta enquanto a “rebelde que se nega a obedecer determinadas regras, figura comum nas narrativas distópicas” (Bora, 2010, p. 121). A exemplo do selvagem de Admirável mundo novo e dos rebeldes homens-livros de Fahrenheit 451, Alice pode ser entendida enquanto corpo destoante, que se nega a aceitar passivamente a opressão. Nesse sentido, aos olhos dos dominantes, um “corpo distópico”, não enquadrável nos padrões desejados e impostos à força mediante o aparato jurídico-político do Estado. O corpo de Alice perturba a lógica do tribunal – e a mudança de tamanho da personagem não é um efeito narrativo à toa. Contra a univocidade dos sentidos, a personagem questiona o posto e desvela o imposto, utilizando da inversão carnavalesca enquanto estratégia desconstrutivista.
A partir de tais apontamentos, pode-se expandir a leitura e pensar a problemática em diálogo com Joãosinho Trinta, artista que levou a inversão aos limites máximos, uma vez que desenvolveu narrativas carnavalescas com o fim de denunciar as históricas mazelas brasileiras. Seguramente, o carnaval do nosso país, em suas múltiplas facetas, é uma manifestação cultural em que a noção de “docilidade” dos corpos é relativizada ao extremo. No Rio de Janeiro, fervilham os corpos indóceis pelos quatro cantos da cidade, das drags de Ipanema aos bate-bolas de Campo Grande, passando pelos históricos cucumbis e, é claro, pelas pernadas ligeiras dos passistas das escolas de samba. No desfile assinado em 1991, Alice no Brasil das Maravilhas, não seria diferente.
Alice no Brasil das Maravilhas
Em 1989, o renomado carnavalesco Joãosinho Trinta (que já havia conquistado sete títulos de campeão do Grupo Especial do Rio de Janeiro, dois à frente da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro e cinco à frente da Beija-Flor de Nilópolis) apresentou, no Sesc Pompeia, em São Paulo, a exposição intitulada Alice no Brasil das Maravilhas, assim descrita pelos pesquisadores Fábio Gomes e Stella Villares:
Dirigida principalmente às crianças, a mostra reúne 42 quilômetros de samambaias de plástico, quatro mil metros de plumantes imitando nuvens, um gigantesco Chacrinha, brilho em profusão de purpurina e brocal, animais gigantescos de pelúcia, centenas de espelhos e 14 aparelhos de televisão, numa instalação fantástica que congrega videoarte, desenho, pintura, computador, literatura, happening, escultura, performance, luz, sombra, cor. Tudo inspirado no universo prodigioso, lúdico e mágico do romance de Lewis Carroll, obra-prima da literatura infantil, cujo título foi muito oportunamente adaptado para Alice no Brasil das Maravilhas (Gomes; Villares, 2008, p. 165).
A exposição, considerada um sucesso de público e crítica, serviu de estopim reflexivo para o que o artista desenvolvesse, dois anos mais tarde, um enredo carnavalesco de mesmo título, Alice no Brasil das Maravilhas, a penúltima narrativa apresentada ao público sob as cores da agremiação nilopolitana (após o carnaval de 1992, quando falou sobre a televisão, Joãosinho Trinta se desligou da Beija-Flor e ficou um ano afastado dos festejos de Momo, retornando à folia em 1994, à frente da escola de samba niteroiense Unidos do Viradouro). Mais do que delirante, o enredo de Joãosinho se propunha a rever criticamente os problemas crônicos do Brasil, como a crise habitacional, a concentração de renda, os jogos de privilégios, os preconceitos sociais como um todo. Segundo o também carnavalesco Milton Reis Cunha Júnior, em sua tese de doutorado em Teoria Literária, há, em Alice no Brasil das Maravilhas, o “núcleo temático da desgraça brasileira”, marcado por “egoísmo, desamor, corrupção, sem-vergonhices, negociatas, ‘politiqueiros que estão construindo a triste história deste país’” (Cunha Júnior, 2010, p. 159).
O fato que mais chamava a atenção, no início do desfile da Beija-Flor, era justamente a caracterização da protagonista da história a ser contada. Assim como o defendido no texto apresentado à imprensa e ao corpo de jurados, a Alice do “Brasil das Maravilhas” não era branca nem tinha cabelos louros. Interpretada pelo ator (homossexual assumido) Jorge Lafond, que se notabilizou nacionalmente ao dar corpo e voz à personagem Vera Verão, a Alice de Joãosinho Trinta sintetizava, a um só tempo, preconceitos e inversões. Lafond era figura carimbada nos carnavais da Beija-Flor e havia causado polêmica, no ano anterior, ao se apresentar completamente nu sobre a alegoria de um vulcão. Tratava-se de um inteligente protesto de Joãosinho Trinta, revoltado que estava com a proibição da “genitália desnuda” e com o suposto “encaretamento” dos festejos: mostrou ao júri um destaque (Lafond) com o corpo despido porém coberto de purpurina, alegando que os órgãos genitais não estavam desnudos, mas decorados. A argumentação foi aceita e a escola não perdeu pontos regulamentares; no ano seguinte, no entanto, o texto do regulamento foi alterado e a regra estrangulou as possibilidades: estava proibida a “genitália desnuda, pintada ou decorada”. Em 1991, Lafond usaria sapatos de salto, minissaia azul, mangas bufantes (o torso nu à mostra), rufo no pescoço e laçarote na cabeça. Nas mãos, uma máscara de coelho branco.
Não é possível pensar a representatividade da Alice de Joãosinho Trinta, interpretada por Jorge Lafond, dissociada de uma reflexão sobre as estreitas relações entre sexualidades não-normativas e carnaval. O antropólogo Fabiano Gontijo, no início do livro O Rei Momo e o arco-íris: homossexualidade e carnaval no Rio de Janeiro, afirma que “mais do que feminizar parece que o carnaval estaria operando atualmente uma verdadeira ‘homossexualização’ do mundo, servindo cada vez mais de cenário para certa forma de ‘liberação homossexual’” (Gontijo, 2009, p. 20). Ainda segundo o antropólogo, é possível mapear as territorialidades carnavalescas do Rio de Janeiro, a partir da década de 1990 (período em que se insere a apresentação da Beija-Flor de Nilópolis), por meio de critérios ligados às identidades LGBTQI:
No Rio de Janeiro da década de 1990, apareceram as imagens identitárias que retraduziram e “tropicalizavam” o queer movement norte-americano, associadas ao que temos chamado, ainda que precariamente, de “cultura GLS”: barbies e drag queens brincam com as aparências – fake – criando novos espaços de sociabilidade (socialidade?) e de reprodução identitária, como no caso carioca, representado pelo eixo Teixeira de Melo-Farme de Amoedo, em Ipanema; as rave-parties realizadas em locais insólitos e nas quais se escuta música eletrônica (como X-Demente, B.I.T.C.H. e outras); as festividades ditas off e “alternativas” do carnaval; as bandas Carmen Miranda e Simpatia É Quase Amor; as escolas de samba São Clemente e Mangueira; ou onde estiverem Milton Cunha e Rubinho Barroso (Gontijo, 2009, p. 29).
Porém, não se pode minimizar a ideia de que, na visão de Gontijo, a despeito da estreita relação entre carnaval e homossexualidade que permeia a geografia cultural do Rio de Janeiro, a aceitação dos “corpos homossexualizados” pode não ser das mais tranquilas quando vencidos os limites (espaciais e temporais) dos festejos momescos. Nos termos dele, “a expressão das homossexualidades é permitida e difundida dentro de certos limites, em particular no universo lúdico do lazer e das festas, como propôs O. Guasch-Andreu (1997)” (Gontijo, 2009, p. 193). Também fala disso o pesquisador Marcelo Santana Ferreira, que teceu reflexões sobre as subjetividades vivenciadas no interior de uma boate gay do subúrbio carioca. O autor revisitou o clássico A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, de Mikhail Bakhtin, e concluiu que no interior de espaços de mediação como uma casa noturna de Jacarepaguá ocorrem trocas simbólicas e jogos subjetivos análogos aos que são vistos durante o carnaval: “na dança vertiginosa ao som de um funk, o corpo ‘grotesco’ (…) e o carnaval se fazem presentes como expressão do antidogmatismo, da fisicalidade e da superação do corpo puro ou mesmo idealizado através dos discursos científicos e sociais dominantes” (Ferreira, 2010, p. 266). Enfatiza-se a ideia de que o carnaval (desde os tempos medievais, conforme os escritos de Rabelais analisados por Bakhtin) é o período em que as dogmatizações do corpo caem por terra, sendo permitido o exercício público de subjetividades e sexualidades não-submissas aos padrões heteronormativos dominantes.
A antropóloga María Elvira Díaz Benítez apresenta ideia semelhante em pesquisa etnográfica realizada na boate Buraco da Lacraia, localizada no bairro da Lapa, no coração do Rio de Janeiro. Segundo ela, a aceitação das identidades homossexuais está condicionada a inúmeras questões, figurando as boates enquanto microcosmos onde as sexualidades “não-heteronormativas” podem ser exercidas com liberdade. No entanto, mesmo no interior desses espaços “liberais” e carnavalizantes podem existir segregações – entre elas, aquelas motivadas pelo poder aquisitivo e pela cor de pele. Ou seja: no “espaço carnavalesco” de uma casa noturna como o Buraco da Lacraia, celebrado pelas “excentricidades”, podem estar albergados diferentes preconceitos, o que, num primeiro momento, soa contraditório. Aqui, entram em cena as reflexões (necessárias para se pensar a figura da Alice de Lafond e da Alice de Bqueer) sobre as sociabilidades e subjetividades homossexuais dos corpos negros. Conclui a antropóloga, ao questionar o porquê de alguns interlocutores se referirem ao Buraco da Lacraia como uma “boate suja” que reunia muita “gente feia”:
Apesar de a heterossexualidade ter se construído como uma normatividade que se legitimou como modelo “correto” de acordo com a moral ocidental e que tem convertido as sexualidades alternativas em desvio, só o fato de ser gay não faz alusão ao feio e sujo se não estiver intersecionado com as características de cor negra e classe baixa. O negro e a “inferioridade” negra construíram-se a partir da criação do branco como modelo social e estético preponderantemente, e no emprego deste mesmo modelo – através de práticas de ação e ideologias sociais – na busca pela essencialização da “superioridade” branca. (…) A relação aparência/cor deve ser enfatizada. Embora os encontros inter-raciais aconteçam habitualmente, é de se ressaltar que, nos universos homossexuais cariocas que pesquisei (além do Buraco), os homens negros atuam como pontos de convergência de preconceitos em torno de sua aparência. Para se inserirem satisfatoriamente neles, especialmente em suas elites, os negros precisam se aproximar do padrão de beleza ideal, do seu estilo e classe. “O negro precisa ser muito mais bonito”, escutei em várias ocasiões do trabalho de campo (Benítez, 2007, p. 134-135).
A autora destaca, ainda, que não raro ouvia a definição de que o Buraco da Lacraia era um espaço frequentado por “mecânicos” e “porteiros”, visão profundamente estereotipada, afinal, “também se está fazendo referência à orientação de gênero dos indivíduos, que neste caso espera-se que seja máscula ou masculinizada” (Benítez, 2007, p. 136). Brota o entendimento de que existe “uma ideia hegemônica quanto à ‘identidade’ sexual do homem negro. (…) É como se o verdadeiro pecado do homossexual negro fosse ‘dar pinta’, mostrar passividade” (Benítez, 2007, p. 138).
Obviamente, a Alice de Jorge Lafond se choca contra a “quase obrigatória” masculinidade (pode-se dizer “macheza”) negra – os autores Fábio Gomes e Stella Villares enfatizam, por exemplo, que a personagem-título foi interpretada por um “negro cheio de trejeitos”, o que põe em evidência o estranhamento que a construção de Lafond causou entre os espectadores. A visão de um homem negro, alto, forte e com trejeitos afeminados é algo que, na visão de Benítez, aciona um misto de preconceitos que revelam jogos hierárquicos: um homossexual branco que usa as roupas da moda, coleciona carimbos no passaporte e discute artes com desenvoltura, independentemente do grau de “feminilidade”, será socialmente mais aceito que um homossexual negro, tanto mais se o homossexual negro for afeminado. Há, portanto, uma “escala de aceitação” enraizada na cartela de preconceitos oriundos de um passado escravocrata e machista – passado este que permanece a sangrar no presente: sangrava em 1991 e sangra em 2016. A releitura proposta por Rafael Bqueer exemplifica isso.
Alice e o chá através do espelho
Em 2 de julho de 2016, o estudante Diego Vieira Machado, de 29 anos, foi assassinado no campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Ilha do Fundão. Negro e gay, tão logo foi divulgada a notícia de que um crime chocante havia ocorrido no interior da universidade, com mais do que evidentes marcas de racismo e homofobia, Diego foi novamente violentado: não foram poucos os comentários, nas redes sociais e nos portais de notícias, de que relacionar a morte a “supostos motivos racistas e homofóbicos” era algo forçado, vitimista, até mesmo irreal – uma “apelação” desmedida em tempos em que “tudo é racismo e homofobia”.
Exemplos como o relatado acima demonstram o quão urgente é o debate acerca da efetivação dos direitos humanos enquanto ferramentas de proteção à vida das populações negras e LGBTQI. É o que discute, com extrema brevidade, um artigo de Djamila Ribeiro para a Carta Capital, em 2015:
Se o pluralismo é próprio da vida em sociedade, é preciso trazer à tona temas centrais que compõem essas várias ideias: a existência de homens e mulheres gays, negros e pobres. Escamotear isso é negar a diversidade (que muitas vezes oculta e invisibiliza) e asseverar a política da homogeneização ou padronização dos corpos e sujeitos. O corpo negro é constantemente objetificado e personagem do imaginário como o viril, o forte, o másculo; prova disso é uma busca rápida pelo mundo virtual com as palavras gays + negros. Saindo do campo do fetiche, o que cabe é o ocultamento e a constante adjetivação com a justificativa “…não tenho nada contra, mas…”. Combater a homofobia é também combater o racismo e o sexismo, são lutas indissociáveis. Ser negro impõe barreira, ser negro e homo ou transexual é o fim (Ribeiro, 2015).
Ciente dessa problemática, o artista Rafael Bqueer decidiu revisitar criticamente, em 2014, a construção de personagem que Jorge Lafond apresentou no carnaval de 1991. Utilizando figurino inspirado na roupa de Alice desenhada pelo ilustrador John Tenniel para a primeira edição da obra de Lewis Carroll, o performer paraense, com a cabeça raspada e longos cílios postiços, numa clara citação a Lafond, percorreu territórios como o lixão do Aurá, em Belém, a favela Santa Marta e a estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro, e a Avenida Paulista, em São Paulo. Os trajetos, durante os quais bebia chá e oferecia a bebida aos passantes, foram documentados em fotografias e vídeos. O trabalho fotográfico, de forte apelo imagético, rendeu ao artista o 1º prêmio no Edital LGBT de Artes Visuais: Gênero e Identidade, da galeria Transarte Brazil, localizada na capital paulista (lugar onde as fotos foram expostas, no primeiro semestre de 2016). Sobre o trabalho, disse o artista em entrevista concedida à repórter Lais Azevedo, do jornal Diário do Pará:
“É o resultado de uma vida inteira tendo que viver e existir a partir das intolerâncias do outro. (…) Decidi levar meu manifesto para a rua, levando também a minha memória e a estética dos desfiles das escolas de samba. A exposição tem fotos do Rio de Janeiro e do lixão do Aurá, em Belém. As fotos da Alice no lixão são bastante significativas, porque quando retornei para Belém eu busquei habitar lugares e realidades que refletissem a minha percepção pessoal sobre o cenário político brasileiro” (Azevedo, 2015).
Na fala do artista, observa-se a palavra “manifesto”, que automaticamente nos remete às proposições de Luis Alberto Warat. Assim como o teórico argentino, Bqueer abraçou as ideias de nomadismo e transdisciplinaridade, transitando por universos distintos e ressignificando politicamente a Alice de Lewis Carroll e a Alice de Joãosinho Trinta, interpretada por Jorge Lafond. Isso fica bastante claro no seguinte trecho da reportagem de Lais Azevedo:
Armando Sobral, dono do Atelier do Porto, galeria que recebeu a primeira exposição individual de Rafael, tem a sua visão sobre a Alice construída pelo artista: “Com a criação desta personagem, o Rafael constrói uma série de performances e registra as reações do público também, que podem ser até xingamentos como ‘preto, viado, filho da p…’, que depois são transformados em frases postas em cartazes e retornam ao público como um espelho do pensamento conservador e reacionário, o que remete novamente à história da personagem”. Negro, alto, vestido de Alice, o performer toma um posicionamento crítico transitando por questões como a homoafetividade, a marginalização, o racismo, o pensamento conservador. Com seu personagem arquetípico, senta-se para tomar chá em meio ao lixão do Aurá, “criando uma linguagem poética, criativa e crítica”, afirma Sobral (Azevedo, 2015).
Seguramente, a imagem de um lixão sendo sobrevoado por corvos (figura 1) nada tem de “maravilhosa”. O “Brasil das Maravilhas” de Bqueer, assim como o “Brasil das Maravilhas” de Joãosinho Trinta, é um cenário distópico, marginalizado, em ruínas (figura 2), onde os corpos negros que expressam sexualidades e perspectivas de gênero não-dominantes precisam sobreviver aos mais agressivos preconceitos – os tantos xingamentos proferidos contra o performer, conforme relatou Armando Sobral, bem ilustram tal ideia. Nas fotos, observamos a sujeira, a pobreza e o repúdio à “invasão” do capital estrangeiro – é o que se pode deduzir a partir da frase “FIFA GO HOME” pintada em uma escadaria da favela Santa Marta, no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro (figura 3). O performer percorreu as vielas da favela no período em que o Brasil sediava a Copa do Mundo FIFA, em junho de 2014. Na contramão das manifestações festivas relacionadas ao futebol, esporte celebrado nacionalmente, o que se vê é o protesto e o entulho (figura 4) – a denúncia dos abismos sociais existentes no maior país da América do Sul. No texto do portfolio apresentado ao edital da galeria Transarte Brazil, o artista assim sintetizou a proposta:
Alice transita pelo avesso, pela borda, pelos restos, pelas contradições políticas e sociais que tangenciam uma “cidade maravilhosa” em plena Copa do Mundo de 2014. Não satisfeita, cruza o Brasil, expondo um corpo distópico, lúdico, negro, gay e absurdo aos olhos do cotidiano. Alice reage, provoca as contradições do tempo, das ações ao seu redor, ultrapassa o abismo e vai questionar as marcas e intolerâncias impostas pela herança colonial. Reescreve seu conto de fadas e brinda com os loucos da rua o chá da realidade.
Pode-se afirmar, ainda, que o corpo negro e afeminado da Alice de Bqueer é produto de uma sobreposição de discursos, sendo que as textualidades de Lewis Carroll e Joãosinho Trinta são apenas o começo. Quando apresentou o “Brasil das Maravilhas” ao público e ao corpo de jurados, em 1991, Joãosinho Trinta retratava um país recém-saído de uma ditadura militar de 20 anos, uma República Federativa que reaprendia, aos poucos, a participar da vida democrática. A Constituição de 1988, dita “Cidadã”, ainda engatinhava; as reflexões sobre os direitos humanos careciam de musculatura. Em 2014, contexto em que a Alice de Bqueer caminhou pelo Santa Marta, as políticas de ações afirmativas eram uma realidade solidificada; da mesma forma, discussões acerca de direitos igualitários e programas de proteção aos homossexuais ganhavam as esferas jurídicas. No estado do Rio de Janeiro, o Programa Rio sem Homofobia, de março de 2007, estampou, no edifício da Central do Brasil, outro lugar percorrido pela Alice do performer, a necessidade de se proteger a vida de cidadãos e cidadãs não inseridos nos “padrões heteronormativos”, estimulando as denúncias e contribuindo para o crescimento de eventos como as “paradas do orgulho gay”. Em âmbito nacional, há que se destacar o julgamento encerrado em 05 de maio de 2011, quando o Supremo Tribunal Federal reconheceu por unanimidade a união estável homoafetiva. No mesmo julgamento, “a condenação da discriminação e de atos violentos contra homossexuais também foi unânime” (Haidar, 2011).
Desnecessário é dizer, porém, que, apesar dos avanços em termos institucionais (o que ainda é muito pouco, frise-se), o preconceito e a discriminação continuavam a fazer inúmeras vítimas quando Bqueer vestiu a roupa de Alice e ofereceu o seu chá aos transeuntes da Central do Brasil e aos moradores da favela Santa Marta. O estudante Diego Machado é um triste exemplo recente, o que mostra que as provocações de ambas as Alices permanecem acesas – tanto mais em um contexto de intensa crise política, quando o conservadorismo dá estrondosos sinais de fortalecimento. Em 2016, Bqueer aumentou o teor crítico e, reatualizando a proposta, com a mesma roupa utilizada no lixão, na favela e nas avenidas das maiores cidades do país, realizou a performance Alice, na Casa França-Brasil, centro do Rio de Janeiro (figura 5). Munido de balde e panos de chão, o artista esfregou, durante longas horas, de joelhos, as escadarias do pavilhão de exposições. Após o ato, a água suja acumulada no balde foi utilizada para a feitura do chá, servido em uma xícara aos espectadores (alguns beberam a infusão).
A performance jogou novas luzes sobre a personagem, trazendo à tona as reflexões tecidas por María Elvira Díaz Benítez a partir da imersão no Buraco da Lacraia. Ao corpo negro afeminado, tão discriminado cotidianamente, somava-se a invisibilização do subemprego – a discriminação pela pobreza, com a inevitável memória dos corpos escravizados. A “Alice faxineira” mostrava aos passantes que a escravidão ainda ecoa pelas ruas, algo denunciado pela antropóloga ao constatar que muitos frequentadores se referiam à boate da Lapa como “navio negreiro” (Benítez, 2007, p. 134). Não estivesse vestido de Alice, o corpo de Bqueer teria sido visto pelos visitantes do Pavilhão?
Fato é que ao fazer das ruas de grandes cidades brasileiras o seu espaço discursivo, o corpo do performer materializa as discussões do ativismo queer, objeto de análise de Leandro Colling. Para o autor, enquanto o dito “movimento LGBT institucionalizado” direciona as suas forças para os tribunais, apostando “quase que exclusivamente na conquista de marcos legais, em especial o matrimônio ou outras leis, como as de antidiscriminação, identidade de gênero e normativas (…)” (Colling, 2015, p. 239), o ativismo queer
prioriza as estratégias políticas através do campo da cultura, em especial através de produtos culturais, pois os ativistas entendem que os preconceitos nascem na cultura e que a estratégia da sensibilização via manifestações culturais é mais produtiva, mas desde que elas também confrontem as normas de gênero e sexualidade que já estão instituídas. Por isso, além de produtos culturais mais conhecidos, as performances políticas, realizadas diretamente nas ruas, ganham grande espaço nesses coletivos (Colling, 2015, p. 239).
O pesquisador relata que, durante a investigação feita em países como Brasil, Portugal, Espanha, Argentina e Chile, ficou clara a percepção de que o “movimento LGBT institucionalizado” por vezes não dialoga com o ativismo queer, considerando-o contraproducente e radical – dada a necessidade, defendida por muitas lideranças dos países visitados, de que “para conquistar direitos, as pessoas LGBT precisam criar uma ‘representação respeitável’, uma ‘boa imagem’, o que significa, no final das contas, uma aderência à heteronormatividade” (Colling, 2015, p. 241). Ainda nas palavras do autor, “o movimento LGBT possui poucas ações que promovam o respeito às diferenças de gênero e sexualidade através do campo da cultura, apesar de, a cada dia, crescer a percepção de que apenas as leis não modificam as práticas preconceituosas” (Colling, 2015, p. 239-240). Nesse sentido, não parece descabida a afirmação de que as performances de Rafael Bqueer contribuem para a descolonização de certas mentalidades observáveis mesmo dentro do “movimento gay” (Colling chega a afirmar que o “movimento LGBT institucionalizado” é majoritariamente gay, branco e masculino, ou seja, hierarquizado e reprodutor de outros preconceitos sociais), questionando, todo o tempo, quais os limites dos corpos, das sexualidades, das identidades LGBTQI. E contribuem, também, para que os direitos humanos sejam pensados para além das letras das leis, algo defendido com fervor no manifesto de Luis Alberto Warat.
Figura 1: Fotografia da série “Alice e o chá através do espelho”. Lixão do Aurá, Belém – PA. Crédito: Paulo Evander Castro, 2014
Figura 2: Fotografia da série “Alice e o chá através do espelho”. Lixão do Aurá, Belém – PA. Crédito: Paulo Evander Castro, 2014
Figura 3: Fotografia da série “Alice e o chá através do espelho”. Favela Santa Marta, Rio de Janeiro – RJ. Crédito: João Henrique Menezes, 2014
Figura 4: Fotografia da série “Alice e o chá através do espelho”. Favela Santa Marta, Rio de Janeiro – RJ. Crédito: João Henrique Menezes, 2014
Figura 5: Fotografia da performance “Alice”. Casa França-Brasil, Rio de Janeiro – RJ. Crédito: PV Alcântara. 2016
Considerações finais
Alice talvez seja um dos personagens mais multifacetados da literatura universal, hipótese que salta aos olhos diante da multiplicidade de discursos que se entretecem em fatos como a aparição de Jorge Lafond, no alto de uma alegoria carnavalesca, no Sambódromo do Rio de Janeiro, e as performances de Rafael Bqueer, em ruas, vielas, escadarias, lixões. O texto de Lewis Carroll, utilizado para se pensar a carnavalização do direito e a busca radical pela humanização da justiça (o que passa, indubitavelmente, pela visibilidade de corpos condenados à margem – o foco da pesquisa de María Elvira Díaz Benítez), foi transformado em discurso político por artistas como João Trinta e Bqueer, o que justifica a mais festejada proposição de Warat em seu Manifesto do Surrealismo Jurídico: a inserção da arte na vida do direito traz a possibilidade de, a partir de tal diálogo transdisciplinar, florescer uma nova consciência jurídica e cidadã, atenta aos apelos das ruas e preocupada com a efetiva proteção da diversidade.
Warat escreveu, em seu manifesto, que “os discursos carnavalizados não se podem deter, eles não podem ser transformados em fetiches nas prateleiras de uma biblioteca; o seu movimento constitutivo é a travessia” (Warat, 1988, p. 84). A partir do carnaval, o teórico acena para a necessidade de compreensão das identidades enquanto construções móveis, transitórias, cambiantes, uma vez que, para ele, a efetivação dos direitos humanos não passa apenas por canetas e togas, mas pelo reconhecimento do outro seja ele quem for, em um jogo de espelhamentos marcado pelos afetos. Construir uma ponte entre tais entendimentos de Warat e as reflexões de Leandro Colling a partir do ativismo queer é mais do que possível – e mostra que a transdisciplinaridade é um caminho necessário para a edificação de novas epistemologias (afinal, o antiquado saber normativo, bancário e profundamente hierarquizado, é incapaz de compreender as pluralidades sexuais e de gênero contemporâneas). Como afirma Judith Butler, empoderar e dar visibilidade aos “corpos que ainda importam” (Butler, 2016, p. 21) é a pauta mais do que urgente.
O incômodo causado pelos corpos negros e afeminados das Alices de Jorge Lafond e Rafael Bqueer é prova de que sobram preconceitos e aversões para com a diversidade: mesmo dentro de uma boate gay ou de um cortejo de escola de samba, há quem não se reconheça naqueles corpos indóceis (ou se negue a isso) e reaja de maneira violenta. Nesse sentido, também são manifestos a clamar por direitos o desfile da Beija-Flor de 1991 e as performances de Bqueer: por meio da carnavalização desestabilizadora (e assumidamente provocativa), artistas distintos escancaram as desigualdades e falam sobre a inadiável busca por garantias. Nos termos de Colling, “nas performances, demais manifestações de rua, vídeos e outras produções culturais, o corpo, em geral bastante sexualizado, vira o principal instrumento da política” (Colling, 2015, p. 243).
Se o carnaval e as “sexualidades dissonantes” são em parte indissociáveis, como propõe Fabiano Gontijo, também é fato que a violência não poupa corpos negros e gays durante a grande festa popular – o que é denunciado, com vigor poético, no conto Terça-feira gorda, de Caio Fernando Abreu, presente na coletânea Morangos mofados. Tensões e preconceitos também permeiam os espaços festivos, bailes de carnaval ou boates. Marcelo Santana Ferreira é bastante claro ao dizer que “a violência contra as minorias encontra distintas respostas na história, e uma das suas faces é o confronto explícito (extraordinário). Mas a tensão dos encontros no interior de uma boate também está carregada de violência, desejo, ambiguidade e intensidade” (Ferreira, 2010, p. 275).
Conclui-se que o respeito à diversidade de que fala Warat em seu Manifesto do Surrealismo Jurídico é algo a ser buscado não apenas nas esferas jurídicas, mas nas vivências sociais como um todo. O nomadismo de Alice, a transeunte questionadora inserida em um universo de opressões e contradições, muito pode ensinar, para além das páginas literárias. Contra as violências, ameaças e subjugações, manifestações artísticas como o desfile de Joãosinho Trinta e as performances de Bqueer se convertem em archotes reflexivos, descolonizadores e humanizadores em sentido amplo. Espelhos invertidos que refletem o que não queremos: preconceitos, exclusões, docilizações, hierarquias. O empoderamento dos “corpos distópicos” e a busca pela visibilidade são degraus importantes para as novas travessias.
* Leonardo Augusto Bora é doutorando em Ciência da Literatura – Teoria Literária (bolsista CNPq) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Mestre em Ciência da Literatura – Teoria Literária (bolsista CNPq) pela mesma instituição; Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR); Licenciado em Letras Português-Inglês pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).
Referências
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BENÍTEZ, María Elvira Díaz. Buraco da Lacraia: interação entre raça, classe e gênero. In: VELHO, Gilberto (org.). Rio de Janeiro: cultura, política e conflito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008, p. 128-155.
BORA, Leonardo Augusto. O direito pego pelo rabo. Aliceando Themis. Monografia (Bacharelado em Direito). Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2010.
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Resumo: Este artigo parte das disputas entre diferentes expressões artísticas no campo da arte britânica contemporânea, para entender a relação entre o artista inglês Grayson Perry e seu alterego Claire, posicionando-os no campo das criações artísticas que tomam os temas do corpo e do gênero como significantes de uma prática política. Happenings, ações, performances, experiências sensoriais são criações que apontam para transformações importantes sobre a percepção que os artistas têm tido de seu corpo e seu eu, o que nos leva a entender a arte contemporânea não como um movimento artístico, mas como um novo paradigma na história da arte.
Palavras-chave: Arte; gênero; corpo.
Abstract: This article presents a reflection on the relationship between the English artist Grayson Perry and his alterego Claire, positioning them in the field of artistic creations that understand the themes of the body and the genre as expressions of a political practice. Happenings, actions, performances, sensory experiences are creations that point to important transformations about the artists’ perception of their body and their selves, which leads us to the comprehension of contemporary art not as an artistic movement but as a new paradigm in the history of art.
Keywords: Art; gender; body.
Apresentamos, neste artigo, uma pequena reflexão acerca da relação entre o artista inglês Grayson Perry (figura 1) e seu alterego Claire (figura 2), posicionando-os no campo das criações artísticas que tomam os temas do corpo e do gênero, como expressão e prática política.
Figura 1: Grayson Perry, 2014Figura 2: Claire, 2014
Desde a segunda metade do século XX, a arte tem revelado uma transformação importante na percepção que o artista tem tido de si, seu corpo e seu “eu”. Happenings, ações, performances, experiências sensoriais são criações artísticas que apontam para transformações importantes no campo da arte. A partir destas novas percepções e procedimentos, dois movimentos podem ser sentidos no campo artístico contemporâneo. Primeiramente, a singularidade do corpo na arte; e, em segundo lugar, o modo pelo qual os artistas têm tomado o corpo como uma das principais arenas para debates em torno das políticas de identidade de gênero e de pertencimento, transformando-o em lugar, onde os fenômenos políticos, culturais e filosóficos se unem em diferentes contextos.
Partindo das discussões atuais nos estudos de gênero, entendemos que o corpo e o gênero são categorias sociais construídas (Butler, 2015, p. 25; Bourcier, 2001, p. 14; De Lauretis, 1987, p. 24). Segundo Anne McClintock (1995, p. 35), o corpo é lugar onde a identidade é definida por questões de gênero, raça e sexualidade, e também onde essas questões se situam, se interpretam e se desafiam. Os artistas, por seu lado, vêm cada vez mais utilizando-se de inscrições ou de linguagens corporais de identificação para projetar estereótipos de gênero. Uma destas inscrições mais potentes é o vestuário, acompanhado de artifícios de embelezamento, como a maquiagem e os adereços corporais, os quais, juntos, tornam-se suportes que sustentam as percepções do “eu” e da identidade de gênero, revelando o modo como os artistas criam uma versão identitária que aponta para a ambiguidade dos papéis sexuais tradicionais, e, por extensão, do binarismo de gênero: sistema de percepção dos sexos que encerra implicitamente a crença numa relação mimética entre gênero e sexo, na qual o gênero reflete o sexo ou é por ele refletido.
Tomando esses pressupostos, entendemos que a ideia do “eu” físico e mental como uma forma estável e finita corroeu-se no transcorrer do século XX e na contemporaneidade, registrando, desde então, novos avanços nos campos da psicanálise, da filosofia, da antropologia, da medicina e das ciências: campos de estudo que buscam compreender essas novas configurações identitárias. Paralelamente, os artistas vêm investigando a temporalidade, a eventualidade e a instabilidade do corpo e do gênero e explorando a ideia de que a identidade é performática, indicando não parecer possível a existência de uma única identidade, de ordem metafísica, mas identidades pensadas no plural e não no singular (Bourcier, 2001, p. 18).
O artista britânico Grayson Perry e seu alterego, Claire, representam uma dessas novas configurações artísticas na arte contemporânea. Grayson Perry tem sido visto pela crítica de arte britânica como um dos mais provocativos artistas que emergiram no cenário artístico internacional desde a década de 1990, fazendo sucesso como ceramista, tapeceiro e também escultor e desenhista. Perry é ainda escritor e, sobretudo, um ícone alternativo da moda. Perry é, no momento, um dos maiores artistas britânicos, desde Lucian Freud, David Hockney e Damien Hirst, segundo o crítico de arte britânico Jack Klein (2013, p. 15), posição que o levou a fazer parte da Royal Academy of Arts, em 2002, quando recebeu o maior prêmio de arte inglês: o Turner (Klein, 2013, p. 15). Contudo, Perry tem dividido o establishment de curadores, artistas e críticos de arte britânicos, despertando dúvidas, em certos seguimentos da arte contemporânea, em relação à sua obra e, também, em relação à pessoa do artista.
Sua obra concentra uma mescla de tradições artesanais, incluindo a cerâmica, a tapeçaria e a arte popular, em uma colagem visual de ícones para criticar as hipocrisias da sociedade, por intermédio de uma grande variedade de temas históricos e contemporâneos (Thornton, 2014, p. 328). Por essa razão, seus trabalhos têm sido considerados por uma parcela dos críticos de arte britânicos como extremamente acessível (Klein, 2013, p. 35), e a acessibilidade é muitas vezes vista por esse universo como banal, sendo, em contrapartida, a impenetrabilidade intelectual e a abstração extremamente valorizadas. Verificamos, de partida, uma divisão política no campo da arte contemporânea inglesa, no qual um conjunto de práticas e instituições cria um contexto conflituoso e hierárquico. Movimento considerado pela socióloga da arte Nathalie Heinich (2008, p. 22) como prática intrínseca à arte contemporânea.
Confirmando a posição descrita acima, a artista Tracey Emin – a enfant terrible do grupo conhecido como YBA (Young British Artists) –, que desponta nos anos 1990, e também ganhadora do prêmio Turner com a instalação (figura 3) My Bed, em 1999 afirmou, com um sorriso irônico, em entrevista à rede BBC, logo após a premiação de Perry, que: “Grayson Perry é bastante popular com as massas”[1]. Tracey Emin, que vendeu sua obra My Bed, ano passado, por 10 milhões de dólares, segundo o jornal inglês The Guardian, é uma das artistas contemporâneas inglesas que compõem o renomado grupo de artistas britânicos que se formaram no Goldsmith College of Arts, nos anos 1990, do qual também fazem parte, dentre vários outros, a artista feminista Sarah Lucas, que discute os mecanismos de representação visual sobre gênero. Em uma de suas obras mais representativas, Sarah Lucas cria o corpo de uma mulher, representado por um sofá, com duas abóboras que simbolizam um par de seios, expostos no encosto, e uma vulva, de carne crua, no centro do assento, e convida o espectador a sentir o corpo feminino, nominando a obra: Try it, You’ll Like it (figura 4).
Figura 3: Tracey Emin, My Bed, 1999Figura 4: Sarah Lucas, Try it, You´ll Like it, 2002
Já Damien Hirst, o mais afamado artista contemporâneo britânico atual e também ex-participante do grupo YBA, criou, em 1991, a obra Natural History: the Phisical Impossibility of the Death in the Mind of Someone Living (figura 5). A obra revela sua pesquisa estética: a morte. No detalhe, vemos uma vaca morta dependurada por um gancho, espetada por várias flechas, parte de criação maior composta por vários animais mortos cortados e mantidos em formol. Para Damien Hirst, a obra, sendo uma representação da morte, procura falar de alguma coisa que não estava lá, mas, de fato, estava. O jornal Sunday Times, em setembro de 2005, calculou a fortuna de Hirst em 370 milhões de dólares. Verificamos, por meio dos exemplos acima, que os artistas provenientes do Goldsmith College parecem conformar o grupo hegemônico do campo artístico inglês.
Figura 5: Damien Hirst, Natural History – the Phisical Impossibility of the Death in the Mind of Someone Living, (detalhe), 1999
Retomando a observação da artista Tracey Emin sobre a premiação de Grayson Perry, a pergunta que se coloca é: por que e como Grayson Perry é popular com as massas e impopular entre certos segmentos do campo artístico inglês?
Antes de entrarmos em uma digressão sobre o artista e sua obra é importante salientar que a inserção de Grayson Perry no campo da arte, em muito se difere daquela dos artistas que constituíram a geração YBA. Grayson Perry nasceu em 1960, em Essex, e é proveniente de uma família da classe operária inglesa. O artista não cursou escolas de Belas Artes, como a Royal School of Arts ou o Goldsmith College of Arts, mas estudou em uma politécnica – Portsmouth – nos anos 1980, sob a orientação de um grupo de escultores britânicos, o que possibilitou que o artista compartilhasse das vivências e práticas artísticas desse grupo, do qual veio a fazer parte.
A partir de 1983, o artista muda-se para Londres e lá passa a frequentar outros círculos sociais – incluindo cineastas, poetas e coletivos de arte. Na Londres da década de 1980, Perry diz que sua vida estava focada em torno de seu pequeno apartamento, no bairro de Camdem Town. Sua vida era de grande sociabilidade, mas também de grande pobreza. Grayson qualifica esse período de “dickseniano”, já que vivia de trabalhos mal pagos, que garantiam apenas a sua sobrevivência. Assim, para a elaboração de sua cerâmica, o artista utilizava a sala de seu apartamento como ateliê. Apartamento dividido com o poeta Augst Cook e os atuais diretores de cinema Cerith Evans, Sophie Mulller e Derek Jarman. É nesse momento que Perry entra em contato com a contracultura neonaturista Punk (figura 6). Este coletivo boêmio proto-feminista fazia performances nudistas em boates, como a famosa Fridge, na Londres, da década de 1980. Perry regularmente tomava parte nessas performances neonaturistas, o que ele via como provocação, advinda da exposição corporal, como a prática do nudismo.
Figura 6: Grayson Perry em performance Neonaturista, década de 1980, Londres
É importante sublinhar na trajetória de Perry, que, mesmo sendo proveniente das classes operárias, o investimento no capital cultural (Bourdieu, 2009, p. 202) a partir de seus estudos em arte na Politécnica de Portsmouth e o investimento no capital social (Bourdieu, 2009, p. 202), por meio de seu pertencimento a círculos sociais e culturais distintos, propiciou ao artista definir sua significação social e cultural, através da identificação de valores compartilhados, afeição pessoal e prazer estético (Williams, 1999, p. 24), os quais possibilitaram a Perry criar um estilo único e pessoal, que o fez ocupar uma posição de destaque na geração atual de artistas ingleses. Contudo, Perry tem dividido o establishment de curadores e críticos de arte britânicos, despertando dúvidas, em certos segmentos da arte contemporânea, em relação ao seu trabalho, e também em relação a sua pessoa. Ambos são vistos pelo mundo da arte como “coisas” estranhas. Quais seriam os fatores dessas visões divergentes, quais seriam os desconfortos e estranhamentos em relação à pessoa do artista e sua arte?
Dois fatores são bastante significativos nesta divisão de opiniões: (figura 7) Perry, além de ser um ceramista, é também um cross-dresser – um travesti. A cerâmica representa uma afronta ao mundo da grande arte, já que é vista como artesanato: uma arte menor. Perry, para muitos críticos, é um artista que se situa entre o punk e o artesão. Além disso, os trabalhos do artista são vistos como excessivamente decorados (figura 8), lembrando certa domesticidade, instigando o mundo da arte a perguntar-se sobre o que é e o que não é arte contemporânea. Por outro lado, podemos entender a cerâmica de Perry se a relacionarmos com as práticas burlescas que consistem em elevar ao cume o que é rebaixado, em virar do avesso, em inverter. Ou ainda, uma vontade de deixar-se livrar pela valorização da “alta” cultura contra a “baixa” cultura. Sua cerâmica parece ser a expressão de uma cultura artística que não quer fazer parte da arte com A maiúsculo, que segundo ele, finge o esteticismo.
Figura 7: Claire em frente ao British Museum, Londres, 2015Figura 8: Grayson Perry, Barbaric, 2012
A imaginária decorativa dos objetos de Perry aborda uma crítica severa à cultura consumista, à cultura de massa, e uma exploração do sexo bizarro (figura 9). Seus objetos são repletos de cenas sadomasoquistas, apresentando imagens de indivíduos desérticos em paisagens insólitas e pornográficas, centrando-se na representação da imaginária sobre a felação e a masturbação, mostrando essas práticas sexuais como usuais, encontrando-se muito além do domínio da cultura polida e cortês da sociedade.
Figura 9: Grayson Perry, Women of Ideas, 1990
Ao tentarmos posicioná-lo em uma genealogia da história da arte, vemos que Grayson não descende da linhagem de antepassados da arte contemporânea, que remonta a Marcel Duchamp, Joseph Beuys e Andy Warhol, mas de uma linhagem diferente: a dos grandes artistas satíricos britânicos, como os artistas caricaturistas do século XVIII, William Hogarth e George Cruisbank, e a arte dos caricaturistas do início do século XX, como Aubrey Beardsley (figura 10). A narrativa de suas peças, ao remeterem-se aos comentários sociais, eróticos e grotescos, dialoga também com as obras dos artistas alemães, Otto Dix e George Gross, e, por fim, com a estética Expressionista alemã da Berlim dos anos de 1920. Por fim, é claro, cada um dos elementos utilizados em seu trabalho pode ser visto como parte de sua biografia em representações que remetem às fantasias sexuais relacionadas à sua infância. Perry fala de si em seu trabalho. Podemos dizer que seus vasos são autorretratos.
Figura 10: Grayson Perry, Twenty Years Old Boy, (detalhe), 2006
O segundo aspecto, relaciona-se ao cross-dressing de Perry: Claire – seu modo de vestir extravagante sugere uma perigosa mistura de limites entre masculino e feminino, intelectual e sensual, sério e cômico. De modo que a sua condição sexual, junto ao seu trabalho, são elementos que têm deixado os críticos de arte curiosos, apresentando, sobretudo, a condição sexual do artista como uma diversão engraçada, no melhor e no pior sentido, ou, ainda, uma estratégia de publicidade.
Sobre seu alterego, o artista diz que é “um tipo de mulher que come refeições prontas e mal consegue costurar um botão” (Jones & Perry, 2007, p. 45). O artista diz gostar de se vestir como uma menina desde os sete anos (Jones & Perry, 2007, p. 46). (Figura 11) Perry é casado e tem uma filha de 23 anos. A questão a ser colocada, a nosso ver, é se a masculinidade e a feminilidade da pessoa Grayson Perry, evocadas por Claire e sua parafernália feminina (indumentária, cabelo, maquiagem etc.), são mecanismos que juntos atuam na construção de sua arte ou se Claire é simplesmente uma recriação, um fetiche desconectado do processo artístico de Perry? Claire parece ser mais que um alterego do artista, parece incorporar a expressão de seu mundo sensível, ou, ainda, ser o artista em confronto com suas fantasias eróticas, expressão de sua relação com o corpo e sua sexualidade?
Figura 11: Grayson Perry e sua esposa, Philipa Perry, 2014
Do ponto de vista dos estudos de gênero, Claire parece um dispositivo-criativo que subverte os marcadores de gênero, por intermédio da manipulação de alguns sinais diacríticos, como roupas, ornamentos, corpo, gestos e performance, os quais, juntos, compõem uma identidade híbrida, onde feminino e masculino estão justapostos. Nesse sentido, podemos afirmar que Perry tem utilizado seu corpo numa construção performática que desarma as convenções tradicionais, em diálogo com uma tradição de identidade de gênero feminina que estimula provocações em torno das construções de gênero e da expressão da sexualidade, entendendo que uma identidade implica o estabelecimento de uma diferença que se constrói com base numa hierarquia.
Perry diz que na vida como na arte o fetiche é experiência constitutiva da construção de seu “eu”, daí sentir-se intoxicado pelos aspectos mais desviantes do comportamento sexual: como o sexo pervertido e o sadomasoquismo. A roupa de Claire, seu modo de se comportar, seu penteado e maquiagem configuram uma construção performática que desarma o binarismo tradicional de gênero, através do abandono de significados socialmente aceitos, criando, a partir desta nova identidade, dispositivos que estimulam as provocações em torno do gênero e da sexualidade.
A contestação e a subversão evocadas por Claire parecem traduzir uma oposição não só aos códigos de gênero, mas também à normatividade, aproximando, assim, a arte da política. A persona Claire é em si um dispositivo político que, de um lado, aponta para uma reconfiguração de paradigmas que tocam o mundo da arte, e, de outro, chama a atenção para uma ruptura nos mecanismos de representação da figura na própria arte. O protesto contido em Claire – especialmente em seu corpo em performance – surge como forma de confronto aos preceitos artísticos e aproxima-se de movimentos políticos e sociais – nesse caso, os movimentos queer.
A construção de Claire foi se dando progressivamente e remonta à infância do artista, quando ele afirma em sua autobiografia ter usado todo tipo de espaço público, como parques, banheiros públicos e até mesmo alamedas de cemitérios, para vestir-se com as roupas de sua mãe e sua irmã (Jones & Perry, 2005, p. 50). Na década de 1980 – quando Grayson já está em Londres – Claire encarna uma crítica ao caráter conservador das donas de casa burguesas londrinas. Em Claire fotografada na estação de Saint Pancras (figura 12), em Londres, vemos uma mulher vestida em indumentária dos anos 1960, com um tailleur preto, luvas, bolsa vintage e lenço na cabeça. Essa crítica ao conservadorismo da mulher burguesa passa a incidir-se posteriormente nas imagens públicas da então Primeira Ministra da Grã-Bretanha, nos anos 1980, Margaret Thatcher, e, também, sobre Camilla Parker-Bowles, duquesa da Cornualha e atual esposa do Príncipe de Gales (Jones & Perry, 2005, p. 62). Claire ridiculariza a estética feminina burguesa, fazendo uma crítica às personalidades, de Margaret Thatcher e Camilla Parker, através da construção imagética de uma mulher com cabelo arrumado, como saído do cabeleireiro, vestindo um casaco cerimonioso, lenço no pescoço e brincos de pérolas (figura 13).
Figura 12: Claire na estação de Saint Pancras, Londres, 1985Figura 13: Claire em Bournemouth, 1999
Mas uma grande mudança em seu visual ocorreu nos anos 2000 quando Perry criou um vestido ícone para Claire (figura 14) – reenfatizando a importância da indumentária na construção da identidade de seu alterego. Nesta época o artista diz ter vivido certa epifania, ao perceber que travestir-se não tinha necessariamente a ver com ser mulher. Vestir-se de mulher, para ele, vinculava-se ao fato de apenas vestir-se com roupas de mulher, mais que pretender ser uma mulher. Para o artista, o vestido de Claire tinha a ver com a sensação de ser querido, despertar calor humano e sentimentos que falassem de objetos ornamentados. Para Perry, um vestido clássico de menina é definitivamente a encarnação da feminilidade – a antítese absoluta do macho.
Figura 14: O vestido de Claire, seda, rayon e laço, 2000
Perry, em O vestido de Claire, borda o membro masculino como um símbolo simples, para ele, charmoso e decorativo, popular e inofensivo como uma flor. Para o artista, o membro masculino representado no vestido é um esforço de recuperação do símbolo da masculinidade, não no seu potencial agressivo, mas como um símbolo inocente (figura 15). Diz ele:
Figura 15: O vestido de Claire, (detalhe), 2000
(…) as imagens que o vestido contém são imagens da minha infância: meu urso de pelúcia, as borboletas estranhas, símbolos de um travesti nascendo do casulo da puberdade. A imagem do pênis pretende descriminalizar o pênis. Um pênis vermelho é visto como uma ameaça, então eu quis fazer uma imagem agradável, bonita, atraente, como um pássaro doce ou como um motivo que pode ser visto em um vestido de criança, como um par de cerejas. O vestido em si mesmo tem algo de muito bonito e encantador, as cores são doces criando uma mistura de estereótipos de gênero (Klein, 2009, p. 62).
O artista organizou uma cerimônia para o nascimento da nova Claire que aparecia sob um arco com balões coloridos em torno da porta da famosa Saatchi Gallery, em Londres. O nascimento da nova Claire, em sua nova indumentária, foi performance irônica, segundo o próprio artista. A partir de então, Claire passou a surgir como indumentária de uma menininha. Seus vestidos têm mangas bufantes, com colares Peter Pan, sapatos Mary Jane e faixa da personagem Alice – criação do artista que remete a personagens das histórias infantis da literatura inglesa. Para Perry, Claire é objeto de afeição pública. Podemos perceber, através da indumentária de Claire, que o artista performatiza o gênero feminino, a partir de uma estrutura de repetição que contém nela mesma a possibilidade de subversão, pois “se alguém é uma mulher ou homem, isso certamente não é tudo o que esse alguém é; os termos não logram ser exaustivos” (Butler, 2015, p. 42).
Para a construção da parafernália feminina de Claire, Perry fez uma pesquisa profunda sobre a história do travestismo na Londres vitoriana: tomou como elementos de pesquisa artística os famosos cross-dressers ingleses do século XIX, como Ernest Boulton (alcunhado “Stella”) e Frederick Park (alcunhado “Fanny”) (figura 16). Boulton e Parker foram representados em dois pratos comemorativos criados por Perry. Os travestis vitorianos londrinos eram conhecidos como impersonators: ou seja, uma classe de artistas de teatro relativamente grande na Inglaterra vitoriana, que viviam de papéis em que interpretavam o sexo oposto. Ernest Boulton e Frederick Park foram alvos de perseguições legais e sofreram punições. Acusados de homossexualidade (crime pela lei britânica até praticamente o final do século XX), foram conduzidos à prisão, mas absolvidos devido à fragilidade dos argumentos da Promotoria.
Figura 16: Ernest Boulton, à esquerda, e Frederick Park, à direita, c. 1869
Atualmente, Claire aparece com regularidade em trajes de baby doll e em conjuntos Bo Peep. Em The Artful Dresser (figura 17) – que significa aquele que usa a vestimenta artificiosamente –, Claire posa no pórtico do British Museum, após realizar a exposição The tumb of Unknown Craftsmam, em fevereiro de 2011. A exposição é obra-memorial aos artesãos, na qual Grayson justapôs 30 objetos criados por ele a 170 peças das coleções históricas do British Museum. Em The Artful Dresser o artista relaciona a indumentária de Claire com uma criação que dialoga com a artesania. Os artesãos, para Perry, são artistas a serviço de sua religião, de seu mestre, de sua tribo e de sua tradição cultural.
Figura 17: Claire, The Artfull Dresser, British Musuem, 2011
Percebemos que duas perspectivas se unem na construção de Claire. Tomando a imagem Claire em Carnaby Street (figura 18), em 2015, percebemos que ela se refere à construção de um alterego do artista, que, por meio de seu dressing-up parece zombar da fixidez da identidade de gênero, chamando atenção para a multiplicidade dos usos do corpo ao caminhar pelas ruas de Londres. Por isso, alguns críticos de arte britânicos têm visto Claire como uma obra de arte em si mesma.
Figura 18: Claire em Carnaby Street, Londres, 2015
Já na imagem de Claire no portão de entrada da Tate Gallery (figura 19), o artista ridiculariza o mundo da arte ao vestir-se como uma das sufragistas inglesas da década de 1910, levantando a bandeira: “No More Art”. Nessa imagem, o artista ironiza a arte com A maiúsculo, parecendo querer expor ao ridículo a arte produzida pelos grupos hegemônicos da arte contemporânea inglesa. Em nossa compreensão, essas duas imagens posicionam Claire como expressão do político, ao criticar, simultaneamente, os cânones artísticos e os mecanismos sociais opressivos.
Figura 19: NO MORE ART!, Tate Gallery, Londres
Acreditamos que essas duas perspectivas transformam-se em elementos que fazem de Grayson Perry um artista transgressor, polêmico, que desperta divergências e dissensões, em parcelas do mundo da arte que o acusam ainda de ser “um pseudo intelectual voltado para um mundo que está muito ocupado para olhar e muito distraído para sentir: um artista para pessoas que não podem ser incomodadas com a verdadeira arte”, como afirmou o crítico Jonathan Jones, no jornal inglês The Guardian, em 10 de outubro de 2016. A despeito das críticas, Grayson Perry e Claire são amados pelo público: Grayson é atualmente considerado um national treasure, o que significa consagração nacional, orgulho do povo britânico.
Conclusão
À guisa de conclusão, entendemos que as obras de Grayson Perry e seu alterego Claire são amados junto às massas – respondendo à ironia de Tracey Emin – porque são expressões artísticas que transgridem e denunciam as normas estabelecidas pelo mundo da arte e pelo universo social, apontando para novos paradigmas da arte, como chama atenção Nathalie Heinich, quando diz que:
(…) “pós-modernismo”, “pós-vanguarda”, “artes plásticas” no lugar de “belas artes”, “plasticiens” no lugar de “artistas” são novos nomes que emergem para designar não só novos estilos ou movimentos artísticos, mas um novo período de arte ou um novo modo de praticá-la. Indicam uma mudança paradigmática (Heinich, 2014).
Assim, as críticas e sorrisos irônicos lançados contra a arte e a pessoa de Grayson Perry, por certos críticos e artistas, parecem apontar para uma disputa de poder acirrada no campo da arte contemporânea inglesa. Finalmente, Claire, como obra e como expressão do alterego do artista, não é somente uma identidade híbrida, mas um objeto artístico gestual, que se desprendeu da moldura e se lançou nos contextos sociais, rompendo com categorias estáticas e sugerindo novas expressões artísticas.
* Cláudia de Oliveira é doutora em História Social (UFRJ) e professora do Departamento de História e Teoria da Arte e membro do PPGAV (Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais) da Escola de Belas Artes / UFRJ.
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Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar testemunhos autobiográficos de vítimas de estupro, que vão a público narrar suas experiências traumáticas. Tendo como objeto empírico de estudo o projeto fotográfico Unbreakable, que reúne imagens de vítimas de violência sexual, discutimos como a exposição do trauma nas redes sociais é apresentada como algo que possui dimensão terapêutica e curativa, inaugurando uma nova forma de dar sentido ao sofrimento.
Abstract: This article aims to analyze autobiographical testimonies of rape victims, who go public to narrate their traumatic experiences. Having as an empirical object of study the Project Unbreakable, a photographic project that gathers images of victims of sexual violence, we discuss how the exposure of trauma in social networks is presented as something that has a therapeutic and curative dimension, inaugurating a new way of giving meaning to suffering.
“Me dê um beijo de boa noite”;“Isso fica entre nós”;“Pare de fingir que você é um ser humano”; “Você é bonita demais pra ser lésbica”; ”Ninguém vai acreditar em você. Sou seu marido – é a sua palavra contra a minha”[1]. As frases que iniciam este artigo fazem parte do Project Unbreakable, desenvolvido pela fotógrafa norte-americana Grace Brown, no ano de 2011, e que reúne fotografias de pessoas vítimas de violência sexual, segurando cartazes com as falas de seus estupradores. Inicialmente, o projeto reunía imagens de mulheres e homens que haviam sido vítimas de estupro. Em seguida, o projeto passou a agregar também imagens de pessoas que sofreram abuso sexual na infância ou que passaram por situações de violência doméstica[2]. O foco deste trabalho é a discussão da auto-proclamada dimensão curativa dos testemunhos, que fica clara já em seu título: “Project Unbreakable – The art of healing”. Investigamos mais pontualmente os depoimentos que estão reunidos no site do projeto (http://project-unbreakable.org/), já que eles nos parecem bastante elucidativos a respeito da proposta de cura emocional divulgada.
Se, em situações de violência sexual, a cultura de culpabilização do sujeito agredido ainda é muito presente, a exposição do fato e a revelação do indivíduo enquanto vítima parecem ser compreendidas como elementos que colaboram com a cura. O que está em jogo aqui não é apenas a dimensão catártica que existe em narrar um evento traumático, mas o movimento catártico e curativo que se dá na performatividade de retratos difundidos nas redes sociais. Dito de outro modo, investigamos como a ida ao espaço público é apresentada como um elemento que pode operar transformações no sujeito no sentido da superação de um trauma.
Nossa hipótese é de que existem condições sociais que possibilitam que tais relatos públicos de vivências traumáticas façam sentido, o que pode ser exemplificado pela grande quantidade de movimentos com propostas estéticas similares às do projeto Unbreakable, como veremos ao longo deste trabalho. Discutimos também a compreensão dos depoimentos como breves autobiografias calcadas no testemunho, tipo de narrativa que vem ocupando com mais frequência o espaço público, por meio da literatura e dos meios de comunicação (Radstone, 2006). Contemporaneamente, esses testemunhos de vítimas passam por um movimento de ascensão e se apoiam, de maneira geral, na legitimidade da experiência, estando inseridos em um contexto cultural de valorização da figura da vítima (Davis, 2005), como veremos.
É também no espaço das redes sociais que se dá a elaboração identitária, a constituição de um self empoderado, o que parece mudar a compreensão das vítimas a respeito de si próprias, fazendo com que elas passem a se definir como vitoriosas ou “inquebráveis”. Incluímos nesta análise o conceito de vergonha reflexiva, que nos parece útil para compreender a forma como os testemunhos de sofrimento ocupam o espaço público. Segundo Vaz, “(…) a vergonha reflexiva significa coragem de vir a público revelar seu segredo, elevando sua autoestima pela valentia demonstrada e por ajudar a todos aqueles que ainda sofrem em silêncio por dependerem afetivamente de preconceituosos” (2014, p. 42).
Nesse sentido, percebemos que a identidade se constrói a partir do acionamento e da reapropriação de uma memória traumática. Um dos trechos dos depoimentos é exemplar: “Antes da minha participação, eu me sentia como um monstro escondido debaixo da cama. Hoje, com o segredo da minha história de abuso lá fora para que o mundo todo veja, me sinto forte e empoderada. Isso significa muito pra mim” (Jemesii).
A valorização do lugar social da vítima
A estética do projeto norte-americano Unbreakable – a fotografia de uma pessoa que segura um cartaz – foi reapropriada por diversos grupos, entre eles o movimento “Não mereço ser estuprada”, criado pela jornalista brasileira Nana Queiroz, em abril de 2014. A iniciativa surgiu após a divulgação de uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), que afirmava que 65% dos brasileiros (de ambos os sexos) concordavam, total ou parcialmente, que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. Dias depois, o IPEA divulgou nota em que alterava o resultado da pesquisa. O número correto (porém não menos alarmante) era de 26% da população e não 65%. Nesse intervalo de tempo, contudo, a iniciativa obteve grande repercussão nas mídias sociais e recebeu milhares de imagens de mulheres com placas e os dizeres “Não mereço ser estuprada”[3].
Algo similar em termos conceituais e estéticos também foi feito pela campanha “I, too, am Harvard”, projeto de alunos negros da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Nas fotografias que compõem a campanha, os estudantes seguravam placas com falas racistas já escutadas por eles no campus da universidade, tais como “Você tem sorte de ser negra… tão fácil entrar na faculdade”[4]. Outra série fotográfica com o mesmo mote foi realizada em 2015, na Universidade de Brasília (UnB), reunindo imagens com a hashtag #AhBrancoDaUmTempo[5].
Essa semelhança entre as ações nos leva a refletir acerca do lugar social contemporâneo da vítima, que parece estar em permanente disputa entre diferentes grupos. A valorização desse lugar social opera, obviamente, efeitos positivos, entre eles a redução do estigma, o reconhecimento do sofrimento e a diminuição da culpabilização da própria vítima.
Não podemos deixar de lado a discussão a respeito do que o sociólogo Joseph Davis (2005) chamou de “cultura da vítima” para se referir a um contexto cultural que oferece vantagens simbólicas a vítimas de diversas experiências, mas concomitantemente cria novas técnicas de lidar com o sofrimento e com a cura, entre elas, práticas terapêuticas (grupos de apoio e literatura de autoajuda, por exemplo) e a própria medicalização dos tratamentos por meio de psicotrópicos.
O posicionamento de Davis é compartilhado pelo historiador Peter Novick (2000), que investigou a maneira como a comunidade judaica foi alçada à condição de vítima primordial do Holocausto e obteve maior visibilidade do que grupos também vitimados pela política de extermínio nazista, como ciganos, homossexuais e oponentes políticos do regime. Por meio de uma análise histórica, Novick identifica uma grande transformação na compreensão a respeito da vítima no contexto norte-americano e no tratamento que é conferido a suas narrativas. “Houve uma mudança na atitude em relação à condição de vítima, de um status de ser universalmente evitado e desprezado, para um de ser frequentemente acolhido. […] Alega-se que dar voz à dor e à raiva é ‘fortalecedor’, assim como terapêutico” (Novick, 2000, p. 8).
Obviamente, discutir a questão do abuso sexual à luz da “cultura da vítima” é um tema controverso e Joseph Davis alerta para os mal-entendidos que podem surgir daí. A respeito da construção social de categorias como “abuso sexual infantil” ou a noção de “adulto sobrevivente”, ele diz:
É difícil imaginá-las como conceitos novos, e tomá-las como algo construído parece errado. Discutir mudanças em conceitos e categorias pode ser facilmente lido de maneira equivocada, como se duvidássemos ou diminuíssemos a realidade de adultos tendo relações sexuais com crianças, questionando o sofrimento pessoal das vítimas, ou introduzindo um relativismo moral diante da prática (Davis, 2005, p. 7).
Note-se que o que está em debate neste trabalho não é a veracidade dos testemunhos, tampouco questionamos a validade das exposições enquanto instrumentos de luta política. O que investigamos é a associação entre exposição do sofrimento e cura, e o modo como estar no espaço público opera mudanças na constituição de subjetividades contemporâneas que “tendem a se projetar na visibilidade e na performance” (Sibilia, 2011, p. 649).
Conceber e reconhecer determinada prática como um problema social deriva em grande parte da atuação de grupos organizados e interessados. A noção de violência sexual enquanto algo socialmente construído e a grande relevância dada ao tema podem ser relacionadas à atuação do movimento feminista, sobretudo a partir das décadas de 1960 e 1970. O New York Radical Feminists’ (NYRF), primeiro encontro feminista que tratou especificamente da questão do estupro, aconteceu em 1971. Na conferência, discutiu-se a importância dos relatos públicos a respeito dos abusos sexuais e foram problematizados trabalhos já realizados sobre o tema, mas que ainda continham elementos morais que culpavam a vítima no lugar de seu agressor. É dentro desse contexto social, de intensas disputas no campo das políticas de identidade, que é criado um terreno fértil para o aumento no número de testemunhos e relatos públicos, como afirma Davis:
Antes da década de 1970, a compreensão sobre crimes sexuais e suas vítimas não incitava ou justificava relatos públicos (isto é, contados a desconhecidos). Também não se fornecia uma estrutura narrativa por meio da qual as vítimas podiam formular relatos públicos sobre molestação sexual ou incesto que elas e sua audiência acreditassem ser intelegíveis, críveis e relevantes. Não havia histórias públicas de vítimas, em suma, pois não havia uma história coletiva de vitimização (2005, p. 28).
Além da mudança na compreensão a respeito da relevância social da vítima, o entendimento coletivo sobre a prática do estupro passou por intensa transformação nas últimas décadas. É isso que discutimos adiante, através de uma perspectiva cultural e histórica.
Estupro: silenciamento e culpa
No livro História do estupro: violência sexual nos séculos XVI a XX, o historiador francês Georges Vigarello analisa as transformações nas concepções a respeito da violência sexual, discutindo os múltiplos significados sociais de práticas como o estupro. Na obra, Vigarello (1998) afirma que a violência sexual é a violência de nosso tempo. Esse ponto de vista é compartilhado por Davis, que afirma: “Na esfera pessoal parece justo dizer que o abuso sexual se tornou nosso caso paradigmático de vitimização (a nível coletivo, o genocídio é provavelmente o paradigma)” (2005, p. 3).
Mas o que isso significa? Obviamente, não quer dizer que essa prática não existia ou que ela seria uma mazela tipicamente contemporânea. O que os pesquisadores sugerem é que a violência sexual é hoje um problema social que possui grande repercussão e mobiliza a opinião pública. Porém, diferentemente do que acontece hoje, os desvios no âmbito da sexualidade eram, sobretudo, morais. No caso do estupro, havia sim a dimensão do atentado à moralidade, mas não a concepção de que aquela violência se dava contra o sujeito em sua individualidade. Isso só vai mudar na segunda metade do século XX, como veremos adiante.
A violência contra mulheres era socialmente tolerada, sobretudo quando não havia sinais físicos de agressão, o que favorecia o entendimento de que a vítima não tinha tentado resistir. Veremos ao longo deste trabalho que ainda hoje tal suspeita se manifesta de formas diversas. Na verdade, há uma desconfiança em relação ao sofrimento de uma maneira geral. Para que ele gere efeitos como o sentimento de compaixão, devem existir alguns elementos e requisitos, sobretudo morais, entre eles a própria “credibilidade” daquele que sofre (Boltanski apud Illouz, 2003, p. 123).
Outros elementos da moralidade então vigentes nos séculos XVI e XVII operavam para a definição do nível de condenação do ato: se a vítima era virgem ou não, a que classe social ela pertencia, em que situação a agressão havia se dado etc. Porém, dentro desse contexto, era a mulher que sofria a violência que ficava estigmatizada de forma permanente, como diz Vigarello: “É primeiramente um gesto de lascívia. Isso focaliza o olhar sobre a luxúria e o pecado, agravando sub-repticiamente o comprometimento da vítima, um estado de indignidade que a sentença penal não consegue apagar” (1998, p. 36).
A noção de violência sexual surge somente após o Iluminismo. Desponta então uma nova sensibilidade social relativa ao estupro. A partir desse momento de mudanças sociais e políticas, e devido a uma multiplicidade de fatores (entre eles o aperfeiçoamento dos exames médicos), as denúncias aumentam significativamente, transitando de uma “passagem histórica de um silêncio relativo para uma visibilidade ruidosa” (Vigarello, 1998, p. 7).
Apesar disso, aspectos da moralidade dominante ainda impediam o reconhecimento da violência. No Brasil do século XIX, a violência doméstica, por exemplo, era facilmente justificada e legitimada, como aponta a historiadora Michelle Perrot: “Bater na mulher e nos filhos era considerado um meio normal, para o chefe de família, de ser o dono da sua casa – desde que fizesse com moderação. Tal comportamento era tolerado pela vizinhança, principalmente nos casos em que as esposas tinham reputação de serem donas-de-casa ‘relaxadas’” (2008, p. 77).
A discussão sobre a violência sexual no âmbito político internacional começa a partir da forte atuação dos movimentos feminista e homossexual, nas décadas de 1960 e 1970. Nesse mesmo período surge a ideia de consentimento que, apesar de poder ser problematizada (quem pode consentir? Em que momento e condições?), se torna central para a legitimação de determinadas práticas sexuais. Dentro das transformações no campo da sexualidade, algumas práticas antes consideradas doentias, como a homossexualidade, o sadismo e o masoquismo, obtiveram legitimidade. Isso, porém, não se estendeu a todas as práticas sexuais, como explica Vaz: “(…) se um ato sexual for consentido e os parceiros forem socialmente considerados capazes de consentir, não importará mais a forma que toma. Inversamente, dois atos passam a ser vistos de modo muito negativo: a pedofilia e o estupro” (2014).
No contexto brasileiro é no mesmo período que o corpo feminino se torna “o centro das lutas públicas” das mulheres, manifestando-se pelo aumento de denúncias de casos de violência (física e sexual) e pela demanda de descriminalização da prática do aborto (Perrot, 2008). É também nesse momento que surge a noção do trauma causado pela experiência de violência e a própria gravidade do ato será medida em relação ao dano psicológico que foi causado.
A referência ao trauma interior, alusão psicológica mencionada por alguns eruditos no começo do século, por muito tempo ausente das declarações feitas pelas vítimas e pelos defensores ou peritos, se torna umas das referências maiores para qualificar a gravidade do crime. Não mais o peso moral ou social do drama, não mais a injúria ou o aviltamento, mas a desestabilização de uma consciência, um sofrimento psicológico cuja intensidade é medida por sua duração, ou até por sua irreversibilidade (Vigarello, 1998, p. 213).
A cura por meio da visibilidade do testemunho
O Project Unbreakable possui perfil em diversas redes sociais, entre elas Facebook, Twitter e Tumblr. Desde seu lançamento, o projeto contou com ampla adesão e foi noticiado por vários veículos jornalísticos. Atualmente, ele reúne cerca de 4 mil fotografias, entre imagens realizadas pela fotógrafa norte-americana Grace Brown e registros enviados pelas próprias vítimas, vindos do mundo todo.
Algumas imagens escondem o rosto da vítima ou trabalham com performatividade como a escrita das frases no próprio corpo, mas a grande maioria delas segue o mesmo padrão: uma pessoa de pé segura a placa com os dizeres na altura do tórax, deixando seu rosto exposto. Apesar de continuar sendo atualizado, a fotógrafa idealizadora do ProjectUnbreakable já anunciou que irá pausar as atividades do projeto, que já existe há quatro anos[6].
Mulheres vítimas de violência sexual fotografadas por Grace Brown
Optamos por focar esta investigação nos 25 relatos testemunhais disponíveis na página oficial do projeto na rede (http://project-unbreakable.org/) para que a discussão ficasse condizente com as limitações espaciais deste trabalho. Nos depoimentos reunidos na aba Testimonials, as vítimas narram suas impressões a respeito do projeto e as modificações operadas nelas após a participação no mesmo.
Percebemos que há certa similaridade nos testemunhos, em seus modos de narrar. Quais elementos surgem com mais frequência? As ideias de diminuição da culpa e do sentimento de solidão são recorrentes. Uma das mulheres diz: “Antes de descobrir o projeto Unbreakable eu vivia todos os dias em meio ao silêncio e à solidão” (Kacee). Outro elemento bastante presente nas narrativas é o aspecto terapêutico e transformador da participação no projeto, como surge em uma das falas: “Ser fotografada pela Grace foi um enorme passo para mim na minha recuperação. Isso me ajudou a continuar me curando e a reafirmar que o abuso NÃO me define” (Eileen).
A recorrência de alguns elementos na fala acontece porque as narrativas de experiências de vida, que reconfiguram o passado e dão sentido ao presente, estão ligadas aos próprios modos possíveis de existência que são oferecidos por nossa cultura, como diz Sibilia: “Assim como toda subjetividade é necessariamente embodied, encarnada em um corpo, ela também é sempre embedded, embebida em uma cultura intersubjetiva” (2008, p. 16).
Nos casos em que o estupro se dá no interior de uma relação afetiva, por exemplo, a leitura de vivências alheias faz com que o indivíduo se identifique enquanto uma vítima. A incerteza por parte da vítima a respeito do que aconteceu com ela faz com que tenha dificuldade em dar sentido ao ocorrido, já que muitas vezes não há violência física e sim psicológica. Um dos depoimentos é representativo:
Encontrei o site logo após ter sido estuprada por um namorado. Ver tantas pessoas segurando placas com as mesmas palavras que ele disse pra mim me fez perceber que aquilo foi um estupro real. Me ajudou a ter forças para prestar queixa e eu também escrevi as palavras que meu agressor me disse. Obrigada! (Cassie)
A leitura de outros depoimentos, assim, ajudaria a reelaborar e significar uma experiência anterior dentro dos parâmetros da narrativa lida. “O testemunho exposto no espaço público, por conter essa nova forma de compreender o estupro e um nexo preciso entre evento passado e sofrimento presente, pode ser usado por outras pessoas para pensar suas vidas (…)” (Vaz; Santos; Andrade, 2014, p. 16).
Essa espécie de pedagogia das emoções, porém, não é algo determinado, como diz Davis: “O modo como compreendemos a nós mesmos e narramos nossas experiências é um processo interacional e habilidoso, moldado não apenas pelas narrativas-modelo disponíveis, mas também por nossas experiências, contexto social e objetivos pessoais” (2005, p. 16).
A maioria dos testemunhos enfatiza a dimensão de empoderamento dada pela exposição da imagem e do “segredo”. O simples fato de tornar público algo tão doloroso e íntimo já faria com que as mulheres (e também alguns homens) mudassem sua compreensão a respeito de si mesmos e passassem a se ver enquanto indivíduos vitimados, mas também como sobreviventes corajosos. Dar sentido ao trauma, ao sofrimento psíquico implica também a construção identitária do sujeito. As mulheres e homens que participam do projeto se apresentam como vítimas que sofreram algo terrível mas, concomitantemente, como indivíduos vitoriosos por terem superado o trauma. Um trecho de um dos testemunhos é esclarecedor: “O projeto Unbreakable me ajudou a aceitar o que aconteceu e a aceitar que sou uma sobrevivente” (Ray Kayle).
Após ter analisado narrativas de sofrimento e superação em talk shows norte-americanos, Illouz (2003) concluiu que esse tipo de produto midiático é bem-sucedido por apresentar não apenas histórias de sofredores, mas, sobretudo, relatos de transformação pessoal. Outro testemunho exemplifica a dimensão identitária do projeto: “Eu sigo o projeto Unbreakable no Tumblr. Me inspira a força dessas mulheres, de várias partes do país, de se levantarem e serem fotografadas assim. É empoderador. O projeto Unbreakable está transformando vítimas em sobreviventes” (Megan).
Quando mulheres e homens que sofreram abuso ou violência sexual vão a público narrar suas experiências traumáticas, eles buscam deixar de lado a culpa, que parece ser agravada pelo silêncio. Vir a público estimula inclusive que a vítima conte o que aconteceu a seus amigos e familiares, como diz uma das mulheres: “E depois de mais de 10 anos de silêncio sobre o abuso, eu usei minhas fotos do Unbreakable para dizer à minha família sem vergonha ou medo, o que mais que tudo, verdadeiramente me deu liberdade para seguir em frente” (Emily).
O distanciamento desse sentimento de culpa por meio da exposição do sofrimento está em sintonia com o modo contemporâneo de produção subjetiva. Segundo Vaz (2014), os indivíduos contemporâneos temem ser associados à figura do preconceituoso e aqueles que passaram por situações traumáticas sabem hoje que não devem se envergonhar ou sentir culpa.
O que parece surgir aqui é o fenômeno da vergonha reflexiva: o indivíduo tem vergonha de um dia ter sentido vergonha. Os testemunhos discutidos sugerem que os sujeitos se envergonham por um dia terem se sentido responsáveis pelo episódio de violência sofrida e por terem mantido em segredo essa experiência de violência, como afirma Vaz:
A vergonha reflexiva implica, sim, um observador no presente questionando e se distanciando do observador que foi no passado, ou ainda, o indivíduo experimenta atualmente vergonha por ter um dia sentido vergonha de quem era e do que fazia. O questionamento do observador que se envergonhava promove e supõe um orgulho atual de ser o que se é e uma atitude de desafio e sedução em relação a todos aqueles que podem julgar seu desejo e comportamento (2014, p. 41).
Livrar-se da toxicidade do segredo, entretanto, não quer dizer que deixem de existir constrangimentos de ordem individual e coletiva. Quando falamos na dimensão terapêutica da visibilidade, certamente não queremos dizer com isso que a cura se dá única e exclusivamente no espaço público. O que parece acertado afirmar, porém, é que o “tornar visível” é um dos modos contemporâneos de dar sentido e reelaborar determinadas experiências, entre elas aquelas traumáticas e dolorosas. Isso é sugerido por um dos depoimentos: “Demorou um pouco para que eu tomasse coragem, mas eu finalmente participei de uma sessão de fotos para o site. Para mim, tirar a foto foi apenas metade da batalha. A outra metade foi compartilhá-la – arriscando, na realidade, mais vergonha com o objetivo de combater a vergonha” (Maria).
A vergonha reflexiva está diretamente ligada ao princípio da autenticidade (Vaz, 2014), tão em voga no contemporâneo. Desde meados da década de 1960, momento de grandes transformações políticas e comportamentais no mundo ocidental, somos convocados a sermos nós mesmos, a agirmos conforme nosso próprio desejo. Essa onda de reivindicações por reconhecimento identitário sugere que não há porque termos vergonha daquilo que somos. O que devemos é, ao contrário, afirmar nossa própria identidade (Vaz, 2014).
Mas, se o princípio da autenticidade identitária rege a sociedade como um todo, percebemos aí um paradoxo. Como ser diferente e autêntico se todos são estimulados a serem eles também diferentes e autênticos? A mesma questão é levantada por Sibilia: “Não é fácil compreender para onde aponta essa estranha conjuntura, que, mediante uma incitação permanente à criatividade pessoal, à excentricidade e à procura constante da diferença, não cessa de produzir cópias e mais cópias descartáveis do mesmo” (2008, p. 9).
No caso dos testemunhos de sofrimento no ambiente virtual, a semelhança das formas narrativas é clara. As pequenas narrativas brevemente discutidas demonstram como o testemunho, que ocupa o espaço público necessariamente, passa a ser primordial para a produção das subjetividades contemporâneas, disseminando-se tanto na literatura quanto na mídia em geral, como afirmou Radstone (2006). Cabe notar que a forma de expressão testemunhal não é mero reflexo do self, mas antes a própria forma de construção dele. “Pelos elementos que as compõem e pelos modos específicos com que são ordenadas e enunciadas, cada uma dessas narrativas autobiográficas produz diferentes modos de ser” (Vaz; Santos; Andrade, 2014, p. 2). Apesar de guardar semelhanças em relação a narrativas confessionais, o testemunho possui distinções importantes.
A confissão é endereçada a um interlocutor, seja ele padre ou analista, que ocupa um lugar de autoridade e tem o poder de exigi-la e de determinar se ela foi suficientemente verdadeira. Adicionalmente, quando se trata da confissão com função de salvação ou cura (e não como elemento de um processo judiciário), ela é secreta. O testemunho, por sua vez, supõe um duplo endereçamento. De um lado, é endereçado ao indivíduo qualquer. Ao invés de pressupor a diferença na capacidade de se conduzir na vida, o testemunho pressupõe a igualdade entre os interlocutores e posiciona o indivíduo qualquer como tolerante e compassivo. De outro lado, o testemunho se apresenta como desafio endereçado àquele que fez o indivíduo sofrer (Vaz et al., p. 3).
Dentro de uma cultura de valorização dos testemunhos, a autoridade da experiência é fortemente valorizada. Apesar de o testemunho pressupor igualdade entre os interlocutores, há certa hierarquia no sentido do direito à fala, de sua legitimidade enquanto narrativa. Só têm voz aqueles que viveram a experiência. Isso fica claro no trecho de despedida da fundadora do projeto, ao tratar de uma das críticas que recebeu: “Um pessoa disse que por eu não ser uma sobrevivente, não tenho o direito de manter esse projeto (…)”[7]. Outra distinção entre a prática terapêutica confessional e os testemunhos é que, na primeira, existe alguém (padre ou pastor) que possui o poder de perdoar e extinguir a culpa. Já no caso dos testemunhos, a libertação da culpa acontece entre indivíduos semelhantes, ambos situados em um contexto de visibilidade. O objeto daquilo que é relatado também é essencialmente distinto no caso de confissões e testemunhos, como afirma Radstone: “Na confissão é o self que é examinado e envolvido — o self é o tema e o objeto de confissão. O objeto do depoimento testemunhal, por outro lado, é sempre um evento ou o Outro, exterior à testemunha” (2006, p. 169).
A questão é não apenas narrar seu sofrimento, mas vencê-lo, superá-lo por meio da performatividade no espaço público. Como foi dito, essa nova forma de lidar com o sofrimento causado por um evento traumático é distinta de práticas terapêuticas modernas. Se a ida ao espaço público possui dimensão terapêutica, podemos concluir que o segredo por si só pode ser algo tóxico. Livrar-se do segredo e falar sobre a experiência traumática traria dois benefícios: além de dar sentido ao trauma, como vimos, ele ofereceria a possibilidade de ajudar outras pessoas que tenham vivenciado a mesma experiência em um espaço de solidariedade (Illouz, 2003).
Sobre a ajuda a outras pessoas que viveram experiências similares, ela é usada tanto como argumento para a exposição individual (vou a público para ajudar os outros) quanto como narrativa da pessoa que foi ajudada. Em um dos testemunhos, lemos: “A bravura dela me ajudou a ser corajosa também”. A veracidade dos relatos é tida como algo a priori. Afinal quem iria a público para contar algo tão doloroso se este nem sequer existiu? A medida da veracidade está justamente na dificuldade da revelação. Quanto mais difícil for falar, mais o testemunho ganha credibilidade e veracidade: “(…) um critério adicional de verdade é a dimensão de desafio implícito no próprio fato de ter tido a coragem de dar testemunho de sua vitimização” (Vaz; Santos; Andrade, 2014, p. 4). Também desponta aí uma das justificativas para as construções identitárias vencedoras e corajosas.
Considerações finais
O movimento de rápida e intensa adesão ao Project Unbreakable é sinal do potencial viral das redes sociais. Porém acreditamos que a notoriedade e a ampla participação de sujeitos no projeto também podem ser compreendidas como indícios de um novo modo de subjetividade contemporânea, que se constrói na visibilidade e na exposição da intimidade.
Buscamos neste artigo relacionar os dispositivos midiáticos com novas formas contemporâneas de subjetivação. Por isso, tratamos, além da questão da visibilidade, daquilo que Joseph Davis chamou de “cultura da vítima”, abordada no início deste artigo. Nossa intenção é que esse trabalho seja lido não como uma tentativa de diminuir ou relativizar o sofrimento de homens e mulheres que vivenciaram experiências dolorosas, mas sim como um esforço de compreensão dessas novas práticas testemunhais que surgem no espaço público e são entendidas como terapêuticas, práticas evidenciadas em nosso modo de ser e estar contemporâneos.
* Bruna Rodrigues é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/Pós). Mestre em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), com auxílio da Bolsa Faperj. Possui Especialização em Gênero e Sexualidade pelo Instituto de Medicina Social (IMS) da Uerj e graduações em Rádio e TV pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (2010) e em Jornalismo pela Uerj (2009).
Referências
DAVIS, Joseph. Accounts of innocence: sexual abuse, trauma, and the self. Chicago: University of Chicago Press, 2005.
ILLOUZ, Eva. Oprah Winfrey and the glamour of misery: an essay on popular culture. New York: Columbia University Press, 2003.
NOVICK, Peter. The Holocaust in american life. Boston: Mariner Books, 2000.
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2008.
SIBILIA, Paula. A técnica contra o acaso: os corpos inter-hiperativos da contemporaneidade. Famecos (Porto Alegre), v. 18, nº 3, p. 638-656, set./dez. 2011.
SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
RADSTONE, Susannah. Cultures of confession/cultures of testimony. In: GILL, Jo. Modern confessional writing: New critical essays. New York: Routledge, 2006. p. 166-179.
VAZ, Paulo. Na distância do preconceituoso: narrativas de bullying por celebridades e a subjetividade contemporânea. Galáxia (São Paulo), nº 28, p. 32-44, dez. 2014.
VAZ; Paulo; SANTOS, Amanda; ANDRADE, Pedro Henrique. Testemunho e subjetividade contemporânea: narrativas de vítimas de estupro e a construção social da inocência. Lumina (Juiz de Fora), v. 8, nº 2, dez. 2014.
VIGARELLO, Georges. História do estupro: violência sexual nos séculos XVI-XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
Este livro[1], como defesa da legalização do aborto, é uma calamidade: desativa os argumentos para legalizar o aborto como direito humano e repudia – não desautoriza – suas razões. Sob a mesma pauta se congregam distintas lutas cujos objetivos transcendem o do aborto na lei. Porém, confluir em uma medida não significa compartilhar os mesmos valores; certamente sabemos que uma coisa é coincidir em uma reforma jurídica pontual, e outra é comungar com o espírito com todos os aliados nessa conjuntura. E não deveríamos nos confundir. Se, para sermos operativos, me somo a quem diz que o embrião é como intruso ou uma mera célula, todo o sentido da minha luta se perde neste argumento.
Então, em vez de buscar acordos, melhor encontrar e consolidar afinidades. Porque calamidade é acreditar que um acordo consegue determinar um “nós” sem saber se há um nós ou de qual constelação fazemos parte.
Calamidade é confiar que o direito pode resolver as tragédias da vida.
Calamidade é supor que não deve haver dor e que se existe há alguém culpado.
Calamidade é pensar que viver é sempre bom e que morrer é sempre mau ou que seria melhor a vida sem a morte.
Calamidade é sentir que o passar do tempo é uma maldição.
Sartre escreveu no prefácio de Os condenados da terra: este livro é perigoso, não fala a seus inimigos, mas a seus companheiros. Fanon é perigoso: aumenta a distância entre os condenados e seus opressores, quebra esse diálogo sempre repressivo. Muitos dos modos em que se apresentam as defesas do aborto legal não são perigosos: tentam convencer o inimigo, pegá-lo em flagrante contradição, demonstrar sua má fé.
Em 1994, em um programa de televisão, um grupo de profissionais discutia veementemente sobre o aborto. Uns opinavam que era um crime, pois os não nascidos são tão humanos como os nascidos e com igual direito de vida, deste modo não haveria diferença entre abortar e assassinar. Outros replicavam que não é a biologia que outorga valor à vida humana, e que abortar não é equiparável a matar uma pessoa. O debate era áspero, mas com fundamentos; os convidados mostraram um grande lastro de conhecimentos científicos, dados de investigação sociológica e interpretações políticas e éticas.
Em segundo plano, separadas do centro da mesa, algumas mulheres calavam e escutavam. Eram as que iriam testemunhar sobre seus abortos. Elas tinham sido convidadas também para falar, mas não para dizer o que pensavam, senão para testemunhar o que haviam feito. Com o tom da controvérsia já elevado, a apresentadora do programa se dirigiu a essas mulheres e perguntou a elas o que opinavam a respeito do que se estava discutindo. Uma delas respondeu, enquanto as outras assentiam: “Não entendo do que estão falando”.
Não entendo do que estão falando: a frase reflete mais perplexidade do que incompreensão. Essas mulheres se negavam a reduzir sua experiência aos termos com os quais os especialistas pretendiam explicá-la. Para elas o conflito não era definir o ser humano, mas sim decidir se teriam ou não um filho. Cada uma, em distinta circunstância, havia tido relação com um homem, havia engravidado e havia decidido abortar. Os interesses políticos ou as definições da ciência nesse momento ficam eclipsados. É que a experiência de abortar está tão longe do debate de ideias, que as mulheres que abortam não se reconhecem nos termos dessa controvérsia onde uns as acusam de criminosas e outros as perdoam por serem ignorantes. Desse modo, aquelas que poderiam, com a razão que é dada pela experiência, ser chamadas de “especialistas” não são consideradas assim por ninguém nem sequer por elas mesmas.
Pensar o aborto é sempre se mover um uma zona fronteiriça. Se um embrião tem direito a viver ou se uma mulher tem ou não o direito de escolher ser mãe é uma forma de canalizar tematicamente o escuro magma da reprodução sexual e da morte. Não se pode falar ou entender o aborto sem refletir sobre a maternidade. A maioria das mulheres que abortam são ou serão mães, uma altíssima porcentagem delas estão casadas, são de meia idade e já tem filhos. Como dizer então que abortar é a via para ocultar uma sexualidade ilegítima ou para desobrigar a maternidade?
Abortar é uma experiência complexa que tem que ser pensada no singular e seu sentido é ambivalente, inclusive para quem se decidiu por ela. A pergunta pelo sim ou pelo não ao aborto não convida à reflexão. Qualquer resposta deixa de fora a experiência definida pelo conflito entre não querer abortar e não querer ter um filho. Sobre essa problemática, hoje, cada um toma uma posição pessoal e todos nos sentimos – e estamos – autorizados a opinar. Saber de ninguém, matéria para todos, no cruzamento das verdades da moral, da ciência, do direito, da filosofia, abortar nos fala de sexo, de vida e de morte. Legal ou clandestino, abortar significa decidir sobre uma possível vida, não dá-la à luz. É nesse sentido que todos somos sobreviventes do aborto.
Não há ninguém que não teve em sua vida ou próximo um caso de aborto, e teve que se enfrentar, portanto, com a rigidez de suas próprias posições ideológicas e encontrou razões para matizá-las. Histórias e opiniões, produto pessoal da experiência, são falados em casa ou no mercado, mas não são levados ao cenário da opinião pública. As pesquisas de opinião não revelam esses matizes, os excluem pela raiz do interrogatório. Ao perguntar “a favor ou contra?” consideram o aborto uma questão de princípios e não como uma experiência. Em muitos casos, a enorme diferença entre a quantidade de pessoas que realizaram ou participaram de um aborto e as que apoiam sua legalização é interpretada como hipocrisia. No entanto, esse juízo é algo apressado; muito frequentemente essa disparidade se deve ao fato de que cada qual considera o seu próprio caso como excepcional enquanto mantêm para o resto a regra geral. Em tais condições, que os princípios resistam à experiência não diz nada contra os princípios, mas sim contra a experiência.
Se vivemos os acontecimentos de nossas vidas de uma maneira um pouco diferente de como supomos que o fazemos e persistimos em acreditar que coincidimos com nós mesmos ainda que a angústia nos devore a alma, pior para a vida: apropriar-se da própria experiência é mais difícil e doloroso que desprender-se da própria imagem.
Nas últimas décadas, o debate sobre o aborto cresceu: o tema se globalizou em toda a sociedade, se converteu em uma problemática sobre a qual cada um toma uma posição, mas, ao passar para a cena pública, o antagonismo parece passar apenas por um lugar: como conseguir ou impedir que o aborto se legalize.
Você é contra ou a favor do aborto? A pergunta é à queima-roupa e nem sempre queremos responder. É pedido um sim ou não sem voltas. Além disso, essa não é uma pergunta; não há ninguém “a favor” do aborto. Todos estão “contra”, quem o condena se opõe ao aborto legal – e favorece, de fato, sua clandestinidade – e quem defende sua legalização, se opõe ao aborto clandestino. Neste livro chamaremos o primeiro de antiabortista e o segundo de pró-abortista, deixando claro que esta convenção responde à pergunta real do debate: a favor ou contra o aborto legal?
O debate sobre o aborto já não tem a forma clássica de moral sexual, agora está colocado como um conflito entre o direto à vida ou o direito à liberdade. A pergunta crucial, então, parece ser se é possível falar de assassinato, isto é, se existe pessoa desde antes de nascer. Seja qual for a resposta, esse debate se esquiva do centro do problema, o afasta de nós e da experiência. Porque todos conhecemos, ainda que seja de ouvir falar, alguma mulher que abortou, mas muito poucos conhecem alguém que já matou alguém. Assim mesmo, todos sabemos que, inclusive em países onde abortar é totalmente proibido pela lei, qualquer um consegue o telefone ou o endereço de alguém que faça um aborto clandestino. Mas são muito poucos (e estão, sobretudo entre os marginais ou os poderosos), em troca, os que têm a possibilidade de entrar em contato com um assassino de aluguel, um profissional desconhecido, que em troca de dinheiro, está disposto a nos prestar o serviço de matar um inocente.
Tomemos nota, então, ao começar este livro (que não tenta convencer nem desautorizar ninguém, não convida a concordar, mas sim a pensar), destas especiais características que privam o aborto de nossas experiências no mesmo momento em que se propõem a encarar sua discussão.
Perturbações
O aborto é uma matéria moralmente problemática, pastoralmente delicada, legislativamente espinhosa, constitucionalmente insegura, ecumenicamente conflituosa, sanitariamente confusa, humanamente angustiosa, racialmente provocativa, midiaticamente explorada, pessoalmente tendenciosa e amplamente executada.
John Mc Cormick
O aborto se converteu em uma peça chave no xadrez político de muitas nações. Nos Estados Unidos, “a guerra entre os grupos antiabortistas e seus adversários – assevera Ronald Dworkin – é a nova versão americana das terríveis guerras de religião da Europa do século XVII. Os exércitos enfrentados marcham pelas ruas e se aglomeram para protestar nas clínicas onde se praticam abortos, nos tribunais e na Casa Branca, gritando, insultando e odiando uns aos outros. O aborto está lacerando os Estados Unidos” (Dworkin, 1998, p. 312). O aborto é talvez a conduta mais discutida e polêmica do Direito Penal. Em 1973, no caso Roe vs Wade, o mais famoso da história jurídica norte-americana, a Corte Suprema interpôs a Constituição no debate. O caso era o de uma jovem garçonete de Dallas que, não podendo custear os gastos da viagem a outro estado para abortar sem violar a lei, questionou diante do Supremo Tribunal a legislação do Texas que somente permitia o aborto se a vida da mulher estivesse em perigo. A demora do veredicto obrigou a Jane Rose a prosseguir com a gravidez e quando deu a luz entregou à adoção o seu filho. Mas o resultado do seu caso mudou a vida de milhões de mulheres; dois anos depois, a lei era modificada, proibir o aborto foi declarado inconstitucional em todos os estados da União.
Em 1992 o aborto foi um ponto essencial nas plataformas eleitorais de Clinton e Bush. E no ano 2000, o primeiro pacote de medidas tomadas por Bush filho foi retirar os subsídios das fundações que apoiaram esta prática no resto do mundo. Antes da reunificação alemã, o aborto livre era um método comum de controle de natalidade na Alemanha Oriental, enquanto na Ocidental sua prática era mais restrita, e exigia às mulheres a apresentação de um certificado médico que as autorizassem. Depois da queda do muro, esta divergência entorpeceu a tal ponto o processo de reunificação, que se decidiu manter transitoriamente as velhas condições em cada território.
A questão do aborto é uma espécie de fissura nos alinhamentos políticos convencionais, as posições a favor ou contra legalizá-lo excedem o marco de coincidências ideológicas que caracterizam as alianças entre os grupos de direita ou os de esquerda, entre as potências imperialistas e as instituições religiosas. O debate sobre o aborto trava a homogeneidade no seio de cada postura frente à sociedade: ideologias políticas, decisões legislativas, instituições religiosas, movimentos sociais, disciplina científica etc. As tendências de conservadores e liberais se confundem aqui, e dentro de cada partido político existem ácidos desacordos mas também conciliadoras estratégias. Reagan, expressamente a favor da cruzada antiaborto, nomeou em 1981 como juiz do Supremo Tribunal uma mulher, Sandra Day O’Connor, conservadora em outros aspectos, mas decididamente liberal na questão do aborto. Também dentro do bloco comunista se viu a crescente ambiguidade poderosa do aborto. Se a Alemanha Oriental manteve o aborto legalizado até a queda do muro, a Romênia de Ceaucescu o castigou com a morte. Lênin o havia legalizado em 1922 e Stalin voltou a proibi-lo em 1936. Na Argentina, o ditador Videla e o democrata Alfonsín apresentavam posições inversas às esperadas (Villalobos, 1994): o militar era mais flexível na hora de condenar o aborto de uma mulher que engravidou após uma violação – é uma questão de honra – enquanto o político da democracia não tolerava exceções ao direito à vida. As mesmas leis que o proíbem autorizam, segundo a reforma trabalhista de 1999, os empresários a realizar um teste de gravidez antes de contratar uma mulher,que se estiver grávida ficará fora da concorrência no mercado de trabalho.
Os motivos pelos quais o aborto foi proibido ou permitido em distintos países e em distintos momentos são também diversos, quando não contraditórios. Francisco Carrara, o penalista mais importante do século XIX, o tipifica como “delito contra a ordem da família”. Com o mesmo argumento de defesa da família se procedeu a despenalizá-lo em 1934 no Uruguai: reduzir o número de nascimentos significava “no contexto de uma sociedade ameaçada pelo desemprego e pela crise econômica”, proteger a “mulher e a família”. De maneira alguma isto significava sua aceitação moral, segundo afirma o mesmo redator da lei de despenalização uruguaia, o aborto é “um dos atos mais repulsivos, vexatórios e contra a natureza” que se pode cometer; e ainda que não fosse “juridicamente um delito”, o homem que o comete deixa de ser um homem de honra e a mulher se rebaixa ao nível de “uma prostituta” (Goyena, 1937). Na China o aborto legal também não foi uma conquista das liberdades individuais, se impôs frente ao risco de superpopulação um estrito controle de natalidade penalizando as famílias que tivessem mais de um filho, fazendo do aborto não um direito, mas quase uma obrigação.
O “aperfeiçoamento da raça” ou “eugenia” serviu tanto para proibir o aborto em geral como para permiti-lo. Hitler o condenou severamente entre os arianos, mas era indiferente frente ao aborto de judias ou ciganas. O código fascista italiano retirou o aborto dos delitos comuns contra a vida e colocou-o entre os cometidos “contra a integridade e a saúde da espécie”. E ainda que resulte inacreditável, o “aperfeiçoamento da raça” foi na Argentina de 1913 o motivo para excetuar (por meio do Inciso 2 do art. 86 do Código Penal argentino) de penalização os abortos realizados em mulheres com deficiência mental.
Na Argentina tenta-se que a condenação obtenha um fundamento na letra da Constituição Nacional. Os Estados Unidos, ao contrário, obteve sua credencial legal como assunto constitucional. Foi evocando em sua defesa a emenda 14 da Carta Magna que estabelece o direito de todo o indivíduo a sua vida privada, e, portanto ao sexo e à reprodução, que o uso de contraceptivos e a liberdade de escolha entre o aborto e a maternidade foram considerados assuntos privados sobre os quais são os indivíduos e não o Estado os que têm direito de julgar.
Até mesmo no seio da Igreja Católica não há consenso, nem entre teólogos nem entre crentes. Ao longo da história do cristianismo as posturas sobre a imoralidade do aborto sofreram mudanças radicais. Até 1869 o embrião não era considerado vida humana até os 40-90 dias da concepção – quando a alma animava o corpo – e a principal culpa do aborto não consistia em matar, mas sim em fornicar. Hoje o Papa condena o aborto apelando aos direitos humanos e afirma que este respeito pela vida se nota na origem do cristianismo. Por outro lado, o grupo Católicas pelo Direito de Decidir, surgido nos Estados Unidos e que se expandiu por todo o mundo, destaca que a posição do Papa sobre o aborto não constitui “doutrina infalível” na Igreja. Apoiam-se em uma interpretação não sexista dos Evangelhos para mostrar que abortar deve ser uma decisão pessoal e nunca um crime ou pecado em geral.
Ante o caos de opiniões, pede-se à ciência que julgue. Mas nem os cientistas conseguem chegar a um acordo. As disciplinas científicas que rodeiam o aborto – medicina, biologia e genética – apresentam o mesmo campo de conflitos internos. A partir dos conhecimentos mais avançados da embriologia e da genética não se depreende uma posição unívoca a respeito de como se define a vida humana, a “verdade objetiva” parece ser difícil de encontrar a respeito do aborto, ainda que os dados sejam precisos. Frente a essa situação, alguns juízes optaram, às vezes assumindo que são arbitrários e outras se amparando na objetividade da ciência, por uma ou outra posição. Por exemplo, Harry Blackmun, o juiz que presidiu a Corte Suprema dos Estados Unidos quando na sentença de 1973, disse que “o feto não é uma pessoa”. Enquanto que, em uma medida sem precedentes, um fiscal italiano reconheceu a personalidade jurídica de um feto em um processo por indenização de danos e preconceitos. Em cada um de nós se reproduz de alguma maneira esta dissonância.
Em outro nível, muitos que se opõem publicamente ao aborto legal, no seio de sua vida privada aplicam princípios menos contundentes ou absolutamente opostos. Durante a campanha presidencial de 1992 tanto o presidente Bush como o vice-presidente Quayle, havendo expressado suas opiniões contrárias à legalização do aborto em termos mais ortodoxos e duros, disseram que apoiariam sua própria filha ou neta se decidissem abortar. Em 1999, depois de propor ao Sumo Pontífice a ideia de fazer de 25 de março o Dia da Criança por Nascer, Carlos Menem lançou sua campanha parlamentária acusando a oposição de “pró-abortista” e teve que abandonar essa causa quando sua ex-esposa, Zulema Yoma, declarou à imprensa ter sido apoiada e induzida por seu marido a abortar. No outro extremo, Pier Paolo Pasolini, cujas obras e escritos subversivos incentivaram muitos jovens a se oporem à sociedade de consumo e à lógica capitalista de uma moral sexual reguladora e triunfante, resistiu às pressões de seu próprio espectro ideológico com as seguintes afirmações, que valem a pena citar por extenso:
Está no meio da vida humana – falo dessa vida humana, essa individual e concreta vida humana – que nesse momento se encontra no ventre da mãe… Em sonhos e no comportamento de todos os dias – como se passa com todos os homens – vivo minha vida pré-natal, minha feliz imersão nas águas maternas: sei que existia ali. Me limito a dizer isso porque, sobre o aborto, tenho coisas mais urgentes a dizer… É popular estar com os abortistas de modo acrítico e extremista? Não tem nem que dar explicações? Se pode passar por cima de um caso de consciência pessoal que afeta a decisão de fazer ou não fazer vir ao mundo alguém que quer vir (ainda que logo será um pouco mais que nada)? Há que se criar a todo custo o precedente incondicional de um genocídio só porque o status o impõe?… considero que o aborto é uma culpa, mas não moralmente, isto não se pode discutir. Moralmente não condeno nenhuma mulher que recorra ao aborto e nenhum homem que está de acordo com isso. Não trato de fazer nem fiz disso uma questão moral, mas jurídica. A questão moral afeta somente os ‘atores’, é um assunto entre quem aborta, entre quem ajuda a abortar, entre quem está de acordo a abortar com a própria consciência. No que não quero entrar e, se o fiz, escolhi sempre o mal menor, ou seja, o aborto. Ou seja, cometi uma culpa. Na vida, no pragmático, a moralidade é prática, não há mais alternativa… Não há nenhuma boa razão prática que justifique a supressão de um ser humano nem nas primeiras etapas de sua evolução. Sei que em nenhum outro fenômeno da existência há uma vontade essencial de vida tão furiosa e total como no feto. Sua ânsia de exercer sua própria potencialidade, recolhendo nova e fulminantemente a história do gênero humano, tem algo de irresistível e por isso também de absoluto e de alegre. Ainda que logo nasça um imbecil… o aborto é uma culpa ainda que a prática aconselha despenalizá-la” (Pasolini, 1983).
Diz-se que abortar é ruim e em consequência deve proibir-se. Ou se diz o contrário, que se deve legalizá-lo uma vez que nada tem de imoral. Em ambos os casos o conflito fica suprimido. O que diz Pasolini é que o aborto é uma culpa, um homicídio, e que apesar disso ele deve ser legal. Poucos admitem isso? A separação entre moral e direito. O suposto comum é que as leis são – ou deveriam ser – uma medida de moral social, apoiar o bom e condenar o mau e o prêmio significa ausência de castigo. No entanto, todos sabemos que o fato de um ato ser imoral não implica que seja punível. Exemplos sobram: a exploração capitalista com toda a sorte de apoios legais, a traição de um amigo etc. Tampouco legalizar um ato garante sua justificação ética; o foi, então, anistiar a todos os genocidas? Nem todo ato penalizado pela lei resulta necessariamente imoral; Simón Wiesenthal “caçava” nazis, as Mães da Praça de Maio surgiram como tais violando os regulamentos da ditadura militar. Que um ato seja imoral não implica que deva sancionar-se como ilegal: esta é a base do sistema democrático, isso significa liberdade de culto, de opinião e de pensamento. Ainda que a premissa fundamental da democracia diga que o que está mal pode ser legítimo e o que está bem, criminal, o piso social teme e treme. Que um ato não seja imoral tampouco implica em que seja bom. Bom e mau talvez não sejam, ao fim e ao cabo, questões de categoria geral.
Atualmente, o debate se moveu para o terreno dos Direitos Humanos. Mas também estes são ambíguos. Na Argentina se dá por sensato que entram em oposição o direito à vida (do feto) e o direito à liberdade (da mulher). Nos Estados Unidos ou na França se legalizou o aborto pelo direito individual à privacidade ou à livre escolha. Mas onde está proibido, esse mesmo direito se move das mulheres para os embriões e se recicla o conflito a partir da perspectiva da mulher como cidadã e ser moral, entendida como direito à qualidade de vida e à dignidade humana. Aqui é onde o debate sobre o aborto alcança seu paradoxo. Em tal terreno se enfrentam a morte, a vida e a liberdade. Dito de uma maneira mais íntima de enlace, o direito do feto à vida e o direito da mulher à livre escolha sobre sua própria vida. Os reclamos que nos interpelam desde ambos os dramas são justos. O conflito é tão irresolúvel como inesperado. Como compreender que o mesmo fundamento sirva para avalizar proibição e legalização do aborto? Opor-se à imoralidade do inimigo não é se opor ao inimigo.
A esfinge dos direitos humanos
Em geral, os defensores dos direitos humanos são também defensores da legalização do aborto. Esse duplo pertencimento é conflituoso. Contra o aborto legal, se esgrime o descobrimento das qualidades sem dúvida humanas do embrião, como prova concluinte de sua dignidade e se denuncia que o direito a matá-lo legitima a violação do direito à vida. Frente a essa acusação, toda posição a favor do aborto legal se encontra em um conflito: como defender o direito a destruir a vida humana sem impugnar automaticamente o “Não Matarás”.
Lutar por despenalizar o aborto força a enfrentar o ônus de violar o direito à vida. A alguns, isso parece um sofisma, a outros um mal-entendido, a uns terceiros uma carga injusta e infame. No entanto, a simultânea denúncia contra o terrorismo de Estado e contra a opressão das mulheres leva a um dilema autêntico. Não se trata de um obstáculo argumentativo que pode ser resolvido por lógica. Trata-se de um desafio do pensamento, um desafio que implica um tremendo risco político.
Para fazer falar a Esfinge, há que se interrogar a lógica discursiva dos direitos humanos. Em um país como a Argentina isso é difícil. Qualquer tentativa de questioná-los pode ser lida ambiguamente como uma justificativa dos genocidas. Mas sua interrogação é necessária, precisamente, para que os direitos humanos deixem de ser um discurso da derrota. Onde buscar o gérmen que justifica abortar sem violar os direitos humanos? Paradoxalmente, nos mesmos direitos humanos. Mas esse recurso implica compromissos que a experiência do aborto recusa suportar. Os direitos humanos não têm sexo nem idade. Não toleram os matizes que o senso comum reconhece entre perder uma gravidez e perder um filho. Esses princípios não têm “mãe”, são o motor imóvel do Estado. Sob sua mira, ser humano antecede a ser filho, a vida como direito não supõe nem o sexo nem a morte.
Aqueles que desejam fundir em um mesmo nó a liberdade política e a liberdade sexual ficam enredados em argumentos nos quais não acreditam. Lançam mão de categorias liberais como liberdade pessoal, autonomia individual ou vida privada; e por uma espécie de mimetismo de jargões acabam acreditando nelas. Acabam excluindo o corpo, o sexo e a morte, as coordenadas essenciais do aborto, e se veem obrigados a separar o ato de abortar do ato de matar.
A tentativa com frequência se dobra diante da Esfinge, porque apelar aos Direitos Humanos implica dizer que abortar não ataca a vida. Trata-se de persuadir a quem? Não às mulheres que abortam, mas aos que as acusam. Os que defendem a legislação do aborto como direito humano são advogados das mulheres que abortam, não seus aliados. Justificam-nas (como vítimas de uma lei sexista, pouco democrática ou classicista), as representam (elaboram projetos de lei e traduzem a termos políticos experiências que os excedem). Não fazem perigar o sistema, querem ser reconhecidos por ele. E então?
*Laura Klein é poeta e ensaísta argentina. Publicou os livros de poemas A mano alzada, Vida interior de la discordia, Bastardos del pensamiento, La bruta bruz e La comédia de los panes. Em 2016 recebeu o segundo prêmio Ensayo Fondo Nacional de las Artes com o livro Las máscaras de Descartes.
**Mariana Teixeira é mestre em História Social pela UFRJ e doutoranda em Estudos da Literatura na UFF, com pós-graduação em estudos da tradução pela Estácio de Sá.
Referências
DWORKIN, Ronald. El dominio de la vida. Una discusión acerca del aborto, la eutanasia y la libertad individual. Barcelona: Ariel, 1998.
GOYENA, José Irureta. Diario de Sesiones de la Cámara de Representantes, Año 1937. Montevideo, Uruguay.
VILLALOBOS, Enrique Veras. La política del avestruz. Buenos Aires: La Nación, 19/8/1994.
Nota
[1] Prefácio de Laura Klein a seu livro Fornicar y matar – el problema del aborto, Buenos Aires: Planeta, 2005; reeditado e ampliado com o título Entre el crimen y el derecho, Buenos Aires: Booket, 2013; La Paz, Bolivia: Plural Editores, 2013. Este artigo faz parte de uma edição que está sendo preparada pela editora Circuito sob o título Tentativas de fuga das prisões binárias, com publicação prevista para maio de 2017.
Resumo: Neste artigo, examinamos os papéis butch-femme em dois produtos culturais do pop contemporâneo indiano: Strange Obsession (1992), o romance best-seller de Shobha Dé, e o filme de Bollywood, Girlfriend (2004), de Karan Razdan. A patir dos conceitos de performatividade de gênero, de Judith Butler, e de masquerade, argumentamos que ambos os autores retratam o lesbianismo a partir de um sistema de gênero binário. Os termos que indicam masculinidade (butch) e feminilidade (femme) dependem, no caso, da estabilidade da dicotomia homossexual/heterossexual, apresentando uma compreensão binária e heteronormativa da feminilidade e da masculinidade.
Abstract: In this essay[1], we examine the butch-femme roles in two contemporary Indian pop cultural products: Shobha Dé’s bestseller novel Strange Obsession (1992) and Karan Razdan’s Bollywood film Girlfriend (2004). Following Judith Butler’s gender performativity and the concept of the masquerade, we argue that both authors portray lesbianism in terms of a binary gender system, whose masculine (butch) and feminine (femme) terms depend on the stability of the dichotomy homosexual/heterosexual, displaying thus a binary and heteronormative understanding of femininity and masculinity.
Girlfriend and Strange Obsession[2] portray two single women who are aspiring models and are caught, unwillingly, in a tormented relationship with their same-sex ‘best friends’ in Bombay. These mannish female characters happen to be paranoid, manifesting a violent obsession towards their innocent villa-mates whenever the latter try to initiate a heterosexual relationship. Both love triangles construct a task-roles continuum: the naïve, feminine and vulnerable femme (Sapna in G, and Amrita in SO), the possessive and sexually dominant butch – the only one who is presented as a lesbian and seems to have an obsessive-compulsive disorder – (Tanya in G, and Minx in SO), and the superhero (Rahul in G, and Rakesh in SO). In the end, the butch is condemned to fail both as a woman and as a lover and, as dueto her ‘unhealthy’ obsession, violently dies so that the femme is liberated and can live a happy and conventional heterosexual marriage.[3]
Connnell defines hegemonic masculinity as the configuration of gender practice which embodies the currently accepted answer to the problem of the legitimation of patriarchy, and which guarantees (or is taken to guarantee) the dominant position of men and the subordination of women (1995, p. 77). Femininity is, on the other hand, defined as a lack, an absence of masculinity (Kessler & McKenna, 1978). Tanya and Minx are sporty masculine women who harbour an obsessive feeling for Sapna and Amrita, respectively. The one playing the butch in the dichotomy is represented as a ‘mannish’ lesbian. She is later seen as violent abnormal ‘other’ as against a more acceptably dormant, ‘normal’ ‘feminine’ heterosexual woman. Sapna in G is, on the other hand, portrayed as the innocent girl who is helplessly dependent on Tanya, as in a ‘normal’ heterosexual relationship. This binary opposition, as Connell himself admits, does not allow “the usage in which we call some women ‘masculine’ and some men ‘feminine,’ or some actions and attitudes ‘masculine’ or ‘feminine,’ regardless of who displays them” (p. 69). Here, we find extremes that need to be balanced (hyperfemininity and masculine femininity). According to Connell, lesbian relationships should offer a way for protagonists to deconstruct their own status as those who rely on heteronormative patriarchy. By definition, lesbian relationships have the potential to be a site of critique of resistance to, and a disengagement from the very premises of the category ‘woman.’ But our protagonists are not portrayed this way, as they fail to shift femininity from its position as the negated Other of hegemonic masculinity and to break through the dualistic relation in order to have a more equal construction. Butler furthers questions that:
if there is a masculinity at work in butch desire, that is, if that is the name through which that desire comes to make sense, then why shy away from the fact that there may be ways that masculinity emerges in women, and that feminine and masculine do not belong to differently sexed bodies? Why shouldn’t it be that we are at an edge of sexual difference for which the language of sexual difference might not suffice, and that this follows, in a way, from an understanding of the body as constituted by, and constituting, multiple forces? (2004, p. 197‐8).
According to Jagose, queer theory suggests we understand identities as arbitrary fictional constructs which are ideologically motivated (p. 130). Butler states that “gender is the repeated stylization of the body, a set of repeated acts within a highly rigid regulatory frame that congeal over time to produce the appearance of substance, of a natural sort of being” (1990, p. 43-44). If gender is constituted performatively through repeated acts, we can understand Tanya’s and Minx’s masculinity as a repetition of the constituent practices of masculine femininity, and not as the masculine mind in the female body found in sexual inversion.
Using the concept of the masquerade, and Butler’s gender performativity, Jagger argues that the butch-femme roles may demonstrate that “the very idea of an original heterosexuality is a myth (…) [and that] the route to change in this area is through repetitions that subvert dominant gender norms in the hope of destabilizing and displacing these regimes” (p. 32-34). Jagger explains that in Butler’s later work, that she has given a more thorough explanation of citationality, as when analyzing Lacan’s theorization of heterosexuality:
On the one hand, if the ‘being,’ the ontological specification of the Phallus, is masquerade, then it would appear to reduce all being to a form of appearing, the appearance of being, with the consequence that all gender ontology is reducible to the play of appearances. On the other hand, masquerade suggests that there is a ‘being’ or ontological specification of femininity prior to the masquerade, a feminine desire or demand that is masked and capable of disclosure, that, indeed, might promise an eventual disruption and displacement of the phallogocentric signifying economy (1990, p. 60).
However, the butch-femme roles portrayed in G and SO do not displace and do not expose the myth that heterosexuality is the ‘original’ form. Rather the opposite is true as both authors reinforce the heteronormative system. In G and SO, the butch-femme roles enacted by the lesbians are, following Sullivan, simply a “harmless exotic spectacle for the (…) liberal-minded viewer” (p. 96). In SO and G, we find this binary played out by two women. Supermodels Sapna and Amrita enact a hyperfemininity, as exemplified by Butler’s drag queens – a form of dramaturgical, glamorized femininity that bears little relation to those activities conventionally given over to women, and reflected in the popular media (2004, p. 213), and the other enacts the hegemonic masculinity, played out by the hypermasculinized females Tanya and Minx, conforming to the stereotypical butch-femme model.
In both works, Razdan and Dé focus repeatedly on outward appearance, treating gender as fundamentally about how one is perceived and recognized by others. In G, Tanya has been depicted as a man hater, with an urge, though, to be ‘like men.’ This is revealed by her style of dressing, walking, riding a motorcycle, urinating anywhere (considered in Indian culture as masculine behavior). She cuts off her hair to shed the last vestiges of femininity, as if mimicking a male. The same thing occurs in SO with Minx, who smokes Cartier, wears Armani cologne, jeans and jacket, drives a black jeep, and hangs out with “local dadas,” who look like drug dealers, loyal to her (p. 9). And in this case, she has her breasts removed by a plastic surgeon, leaving in her body jagged scars which began under her breasts and went under her armpits, because as she tells Amrita:
I got the feeling that you didn’t like them (…) When I was a teenager, I used to try my best to tie them down. But … my father …yes…that pervert…he used to fondle them constantly and tell me how beautiful they were…I began to really hate my breasts after that. Maybe I blamed them for whatever was happening between me and my father. I used to curse myself and think that had they been smaller this horrible thing would never have happened. (…) I thought I saw revulsion in your eyes when you looked at me, especially when I thought I saw you staring at my ugly enormous breasts. (…) And then I knew I had to do it. And I knew you’d like that I’d done. Like me, also” (134-135). (…) And then I met you…fell in love (p. 134-135).
It seems that characters Tanya and Minx have been inspired and informed by the works of Havelock Ellis (1859-1939), who popularized the term ‘sexual inversion’ with a book of the same title (1897). He defined a lesbian as a sexually inverted woman with a degree of masculinity, that is, sudden and energetic movements, different attitude, walk and voice inflections, direct gaze, and, above all, her unintimidated way of sexually being with a man. This stereotypical portrayal of the lesbian as an ‘invert’ (a man trapped in a woman’s body) harks back to the theories of Western late-nineteenth-century sexologists. It still lies in the sexual discourse of Indian society, and is attributable to the influence of the Victorian era in the country. Thus, both works examine the sexological model of the female ‘invert,’ which demonstrates how theories of inversion fail to distinguish between cross‐gender identification and same‐sex desire. Razdan and Dé share the stereotypes of the popular imagination about lesbians, as they consider binary role plays as an unavoidable part of lesbian relationships. Nineteenth-century British sexology differentiated between two types of women homosexuals: the ‘inverted congenital’ male-oriented, and the ‘pseudolesbian’ who could have been heterosexual had she not succumbed to the wiles of the true reversed and who has the appearance and behavior of the feminine heterosexual woman of her time.[4] Lesbian sexuality is constructed along the lines of a heterosexual male’s sexuality (even confused with transgenderedness). The implication here then is that lesbians are women who want to act as men, and in the male-dominated world of mainstream films and popular fiction, lesbian relationships can only be introduced if they are constructed along this rhetoric, and these lesbian relationships are then condemned later on.
As explained above, it has been interpreted by several academics and reviewers that Amrita’s sexual encounters with other characters in the novel are a clear instance of the New Woman[5] who refuses just to be a toy in the hands of tradition in which man has total control. Dé tries to depict Amrita as self-reliant. Her brother Ashish admires her ability to be apparently independent: “Amrita is capable of looking after herself. We all know that. When she decided to go to Bombay, nobody tried to stop her because we had full faith in her” (p. 147). Except for the protagonists’ mothers, none seems to play the role of the stereotypical feminine. Distancing oneself from this prototypical femininity may be interpreted as a claiming of power, hence the reviews relating Amrita as the New Woman. For example, Gupta states that in doing so, Amrita disrupts the myth that a woman should maintain her virginity and indirectly be the ‘slave’ of man who would marry her, because she never wants to be a victim or commodity to be sold or bought (p. 27). However, the message the reader gets from Amrita’s behavior is a totally different one, as she feels powerless with every lover. All her homosexual encounters are described by Dé as a sexual urge that cannot be controlled and whose consequences are regretful.
We can argue that Amrita and Sapna are victims of other women bought with the expensive gifts and lifestyle that Minx and Tanya offer, and in need of being rescued. Instead of being the New Women, they continue to embody the weaker sex, the innocent and hyperfeminized supermodel femme. Thus, these relationships replicate the same gender stereotypes that are considered oppressive in the heterosexual system, butch and femme, as mutually exclusive. In that line, Lee argues that butch, like masculinity in males, requires the feminine as its Other. Without femininity, masculinity makes no sense; and the butch needs to reject femininity, so women who identify as butch emphasize their difference from other women. De Lauretis explains that in some films “whatever women may feel toward other women cannot be sexual desire, unless it be a ‘masculinization,’ a usurpation or an imitation of man’s desire” (p. 112). She has linked the notion of a ‘perverse desire’ for (masculine) fetishism with butch/femme role-playing in lesbian relationships. Elizabeth Grosz criticized her, demanding the need for lesbian analysis to move beyond concepts of Freudian phallic desire. Grosz rejects the notion that one must necessarily conceive of desire as a ‘lack’ or ‘absence’ or even ‘hole’ that seeks to be filled, whereby this ‘ontology of lack’ is then dangerously refigured in feminine-masculine terms (1997, p. 296). According to Sue-Ellen Case, “the butch is the lesbian woman who roundly displays the possession of the penis, while the femme takes on the compensatory masquerade of womanliness” (p. 300). In SO, we find a direct allusion to this stereotype in the dialogue between Minx and Amrita, as the first one announces: “OK, I’ll become a man, just to satisfy you. Is that what you want? I’ve been thinking about it myself. I’ve met a couple of surgeons too… the ones who reshaped my breasts. (…) I’m planning to undergo a sex-change operation. Yes, darling. I’ll do it for you. You want a prick to enter you — I’ll go out and get one” (p. 160), to which Amrita replies: “You may be able to get some quack to stitch on a plastic dick. But will that make me pregnant? Will you be able to fill my womb with a child?” (p. 160).
In the course of their butch/femme lesbian relationships, the tropes are consistently heterosexual.[6] This has important implications especially in the butch-femme scenario been played out. The bodies of these ‘lesbian’ women are co-opted into the heteronormative gaze because both the butches as well as the femmes are governed by commodity aesthetics. Furthermore, when considering the lesbian body in relation to patriarchal heterosexual discourses, certain stereotypes become prevalent, for example that of the tomboy and the stereotype that the lesbian is really a man trapped in a woman’s body (Faderman, 1985, p. 317). In both works, after Tanya’s and Minx’s ultimate proclamation that they are lesbians, they go on to say that they hate men (because of child abuse) and that they are men trapped in the body of a woman. As Barbara Creed analyzes in her “Lesbian Bodies: Tribades, Tomboys and Tarts,” the proper lesbian had short hair, wore sandshoes, jeans or boiler suit, flannel shirt and rejected all forms of make-up. In appearance, she hovered somewhere between the look of the butch lesbian, who wore men’s clothes and parodied men’s behavior and gestures, and the tomboy (p. 123),[7] but for Butler, the butch community cannot really be seen as antifeminine, as many butches “are deeply, if not fatally, attracted to the feminine, and, in this sense, love the feminine” (2004, p. 197). Rahul in G, calls Tanya ‘shaitansahela’ which might be translated into ‘devilish butch,’ as Rahul made up that word out of the feminine saheli,[8] which means she-friend. Thadani points out that the term saheli (along with sakhi) have historically described women who love women but have been purged of their eroticism over time and reshaped into simply female friendship.
Dé and Razdan deploy the urban setting of Bombay, not as a tolerant place where individual liberties can be performed, but as Sukthankar puts it, a cityscape decadent enough for women to love other women (xxiv).[9] Lesbianism is, thus, associated with the modeling world of Bombay, where luxury, wealth and access to the West can corrupt an innocent’s mind and body. Against the backdrop of this exotic locale, representations of the lesbian bodies circulate in both works as commodities available for commercial exploitation for its exoticism and eroticism, but with a huge load of morality in that the voyeurism and sensationalism of lesbian eroticais predominantly exercized by and for a heterosexual male gaze. They fall into the stereotype that heterosexual authors use lesbian sexual encounters for commercial pornography. Ashwini Sukthankar states about lesbian representation in the media that they “were fetishized, made the symbol of Western debauchery, of feminist independence. (…) Again and again, our lives were boiled down to pornography or caricature” (xxii).[10]G and SO warn young women against lesbians in particular, and against evil in general, as the first ‘evil condition’ is simply a consequence of wandering around a big metropolitan city like Bombay, and mingling with Anglos without the protection of the traditional extended family. The implicit message underlying both works is a warning against the insanity of a non-familiar relationship produced by a westernized, urban and modern setting, showing that the consequences of deviating from the heterosexuality are harsh. The gender binary is maintained because it has been challenged with no success. Razdan and Dé have portrayed lesbianism in terms of a binary gender system, whose masculine (butch) and feminine (femme) terms depend on the stability of the dichotomy homosexual/heterosexual, displaying thus a binary and heteronormative understanding of femininity and masculinity.
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Notes:
[1] The author wishes to acknowledge the funding provided by the Spanish Ministry of Economy and Competitiveness (Research Project “Bodies in Transit”, ref. FFI2013-47789-C2-1-P) and the European Regional Development Fund for the writing of this essay.
[2] From now on, references to Strange Obsession and Girlfriend are given in abbreviations (SO and G).
[3] In spite of all the similarities, Girlfriend is not a filmic adaptation of the novel Strange Obsession. The writer/director has claimed in an interview with Jha (2004) that the script is completely original.
[4] This would make a homophobic classification, which has a Western origin, as in Hinduism there is a long tradition of the third sex. An example could be the divinity Ardhanarishvara (androgynous form depicted as half Parvati and half Shiva), whose images are found starting first-century.
[5] The ‘New Woman’ emerged as an emancipatory ideal female character in the nineteenth century in Europe and North America, as a reaction to the limited role assigned to women during the Victorian era. In the India literary context, it refers to post-independence literature where the ‘New Woman’ has greater freedom, autonomy and individuality, challenging traditional gender roles.
[6] According to Judith Butler, heterosexuality always fails in its approximation of its ideal. She asks to reconsider “the homophobic charge that queens and butches and femmes are imitations of the Heterosexual real” because “if it were not for the notion of the homosexual as copy, there would be no construct of heterosexuality as origin” (1993, p. 313).
[7] For tomboys (Reay, 2001), rejection of the feminine goes along with identification with boys, with the adoption of a form of hegemonic masculinity and a claiming of a share of male power through acting as an honorary boy. For butch women, or at least for butch lesbians, the situation is possibly more complicated.
[8] There is an important association in India called Saheli (https://sites.google.com/site/saheliorgsite/gender-sexuality), which centers its campaigns around issues of control of women’s sexuality by the family, community, social structures and the law, and since the furore generated by the screening of the film Fire in the 90s, it has also been engaged with the rights of the LGBT community. As part of the Campaign for Lesbian Rights (CALERI) in 1999, Saheli worked to visibilize the issue and generate public debates. It is also a member of the coalition of NGOs “Voices Against 377.”
[9] It is well-know the LGTBQI activism in Bombay. The first queer magazine, Bombay Dost, was published there in 1991. For more on the city, see Parmesh Shahani’s GayBombay: Globalization, Love and (Be)Longing in Contemporary India (2008).
[10] Sohomjit Ray explains, when discussing film Dostana, that in a neoliberal narrative same-sex desire becomes another aspect of urban life that the neoliberal consumer-subject may encounter while trying to achieve the dream of making it in the big city and living a luxurious life marked by conspicuous consumption (p.160).
O extermínio, obra não da morte, mas do Mal.
(Paul Ricoeur)
Resumo: Este texto tem por objetivo analisar as considerações tecidas sobre morte e Mal, epidemia, extermínio, e “salvação” por meio da literatura, pelo filósofo francês Paul Ricoeur (1913-2005), em livro póstumo, Vivo até a morte, seguido de Fragmentos (2012), em diálogo com os testemunhos homossexuais do cubano Reinaldo Arenas (1943-1990), Antes que anoiteça (2009), e do francês Pierre Seel (1923-2005), Eu, Pierre Seel, deportado homossexual, em relato oral ao jornalista Jean Le Bitoux (2012).
Abstract: This text aims at analyzing issues of death and Evil, epidemics, extermination, and “salvation” through literature, formulated by the French philosopher Paul Ricoeur (1913-2005), in his posthumous book, Living up to death (published in Brazil by WMF Martins Fontes, 2012), in dialogue with the homosexual testimonies of the Cuban Reinaldo Arenas (1943-1990), Before night falls (published in Brazil by Record, 2009) and the French Pierre Seel (1923-2005), I, Pierre Seel, deported homosexual (published in Brazil by Cassará, 2012), in the oral report given to the journalist Jean Le Bitoux.
Keywords: Arenas; Seel, Ricoeur; death; Evil.
Introdução: um fragmento de voz
Este artigo tem por intenção analisar os testemunhos de vida e morte de dois autores homossexuais, perseguidos ao longo do século XX, por conta de suas sexualidades, que fizeram da escrita um caminho para tentar compreender o Mal que os assombrava. Deseja-se compreender o modo pelo qual ambos se utilizaram da e problematizaram a linguagem como forma capaz ou não de salvar o indivíduo do que ele é incapaz de compreender e, portanto, passível de aniquilá-lo. Deste modo, estudar aqui Reinaldo Arenas e Pierre Seel é tentar entender e comparar uma engrenagem macabra de aniquilamento de sujeitos, considerados não passíveis de luto, que precisaram lutar para ter seus gritos não apenas ouvidos, mas sentidos pelo outro, por esse leitor de seus textos homossexuais, que nos fazem chorar com a perseguição sofrida por eles, em um processo de compaixão, de “sofrer-com” o outro. Enquanto leitores de Reinaldo Arenas e Pierre Seel, nós também, neste artigo, nos tornamos sujeitos na luta a que esse sofrimento convoca, transformando-nos em ouvidos para esses sussurros que gritam, mais dois soldados nesta batalha de esperança e amor. Nas palavras de Ricoeur:
Compaixão, você disse? Sim, mas há que entender bem o sofrer-com que essa palavra significa. Não é um gemer-com, como a piedade, a comiseração, figuras de deploração, poderiam ser; é um lutar-com, um acompanhamento – na falta de um compartilhamento identificante, que não é nem possível, nem desejável, continuando a justa distância a ser a regra tanto da amizade como da justiça (Ricoeur, 2012, p.16).
Tomando para nós esse sentido de “compaixão”, desentranhado por Ricoeur, teremos algo como: nós, enquanto estudiosos de Reinaldo Arenas e Pierre Seel, “lutamos-com” eles. Não nos sendo possível e nem recomendável estar no lugar deles, não sendo possível sofrer o sofrimento do outro (já que apenas lemos seus sofrimentos, em um tempo qualquer no futuro) e nem recomendável ter que sofrer o sofrimento equivalente do outro, só assim, nessa “luta-com” temos a chance de compreendê-los. Nós, portanto, aqui, em compaixão, dizemos as dores destes nossos dois escritores.
Reinaldo Arenas, Paris, 1986 (imagem: Sophie Bassouls)
Reinaldo Arenas, nascido em Cuba, em 1943, foi perseguido pelo governo de Fidel Castro por ser considerado um escritor contrarrevolucionário e portador de um “vício burguês”, a homossexualidade. Exibindo sua sexualidade em seus textos e não aderindo completamente às ideias do que seria uma revolução comunista, Arenas e sua relação literária com seu país nos fazem lembrar o que já havia dito Benjamin sobre a União Soviética: “O Estado soviético não expulsará os poetas, como o platônico, mas lhes atribuirá tarefas” (Benjamin, 1994, p. 131). Arenas, por não ter desejado realizar as tarefas a ele impostas, foi perseguido e enviado a campos de trabalhos forçados de cana-de-açúcar – “O trabalho faz o homem” – e à prisão, antes de se exilar nos Estados Unidos, em 1980, vivendo naquele país por dez anos, e lá se descobrindo portador do vírus do HIV, em 1987.
Imaginando uma morte próxima, Arenas finaliza e deixa editorialmente encaminhados todos os seus textos, assim como seu testemunho, Antes que anoiteça, que é terminado em agosto de 1990, e se suicida em dezembro daquele mesmo ano. O livro é publicado, então, em 1992, na Espanha, chegando ao Brasil em 1994. Arenas foi um escritor prolífico, ainda que perseguido, além de exercitar o texto de conteúdo homossexual na maior parte de seus escritos, apesar de sofrer a mais dura perseguição justamente por essa homossexualidade. Publicou clandestinamente, no exterior, dezenas de romances, como também contos, poesia e peças teatrais. Ainda que, ao longo dos anos 1970, enquanto esteve preso na prisão de El Morro (1974-1976), seu nome nem chegasse a constar da lista oficial de escritores de seu país e também de nenhuma prisão, Arenas conseguiu certo reconhecimento principalmente na Europa e, a partir dos 1980, nos Estados Unidos, quando já estava refugiado naquele país. Em sua carta de despedida, enviada de Nova York para alguns de seus amigos, antes de seu suicídio, Arenas proíbe que sua obra seja publicada oficialmente em Cuba até a morte de Fidel Castro (que ocorreu em novembro de 2016, enquanto finalizávamos esse artigo). Deste modo, há uma inversão simbólica em relação à perseguição castrista: de autor proibido, ele passa agora a proibidor. É o autor quem se recusa a ser lançado na Ilha, até a morte de seu algoz, o que pessoaliza (e dramatiza) a vingança pela perseguição sofrida. No testemunho Antes que anoiteça ou em seus diversos livros com forte carga autoficcional, Arenas transforma em literatura os sofrimentos advindos da perseguição política em seu país natal, mas é no diagnóstico da doença que o autor encontra seu grande silêncio, seu mistério, o trauma que sua própria linguagem foi incapaz de traduzir de modo completo. Percebe-se que Arenas, ao falar de sua infecção pelo vírus do HIV, se depara com o grande enigma capaz de silenciá-lo. É este silêncio misterioso vindo de um escritor que tanto gritou que almejamos problematizar neste artigo.
Pierre Seel, Paris, 1997 (imagem: Orion Delain)
Já Pierre Seel foi um alsaciano (região atualmente francesa na fronteira entre França e Alemanha) que foi enviado para um campo de concentração, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), por ser homossexual. Nascido em 1923, Seel era um adolescente quando, tentando dar vazão ao seu desejo sexual, frequentava um parque da cidade onde havia encontros de homossexuais. Vivendo em segredo dentro de sua própria casa e na sociedade, Seel foi “desmascarado” de maneira torpe e inesperada. Neste parque, ele teve um relógio seu, que havia sido presente de família, roubado, por volta de 1939. Acreditando que o melhor a ser feito seria se encaminhar à delegacia e denunciar o roubo, Seel descobriu, quando a Alemanha nazista invadiu a França (1940-1944), que a polícia francesa o havia fichado, na ocasião da denúncia, como “homossexual”, visto que os oficiais sabiam que naquele determinado local havia encontros sexuais entre homens. Embora no Código Napoleônico, datado do fim do século XVIII, não houvesse objetivamente nenhuma lei criminalizando a homossexualidade na França, a prática não era vista de modo condescendente pela sociedade. Em 1941, então, os nazistas tem acesso ao arquivo policial onde Seel havia sido notificado como homossexual, e o prendem em um campo de concentração, já tendo como base a lei germânica conhecida por “Parágrafo 175”, que equiparava o sexo entre pessoas do mesmo gênero com o sexo de humanos com animais: “Entrei na delegacia como cidadão roubado, saí de lá como homossexual envergonhado” (Seel, 2012, p. 30). Passando cerca de seis meses em um campo de concentração nazista, Seel é liberado e, por ser alsaciano, obrigado a fazer parte do exército nazista. Passando por situação semelhante a de Blanchot, relatada em O instante de minha morte, e a de Dostoiévski, que por pouco também não morreu fuzilado, Seel, enquanto servia ao exército nazista, é pego pelos soviéticos e perfilado para ser fuzilado, mas ao cantar a Internacional, consegue se libertar. Após o fim da guerra, ele se obriga a manter silêncio e segredo sobre sua condição homossexual, forçando-se a viver uma vida heteronormativa.
O segredo é apenas quebrado quando, no final da década de 1970, Seel descobre a existência da peça de teatro Bent, que narra a vida de homossexuais alemães nos campos nazistas[1]. É só então que o segredo é quebrado e, já idoso, Seel presta testemunho e assim sai do silêncio aterrador em que viveu até então, tornando-se assim, post factum, a primeira vítima homossexual francesa do nazismo a testemunhar sobre sua deportação, no relato oral feito ao jornalista francês Jean Le Bitoux, apenas em 1994, ano da publicação de Eu, Pierre Seel, deportado homossexual na França. O livro foi lançado em 2012 no Brasil, em tradução de Tiago Elídio, que realizou uma dissertação de Mestrado (Elídeo, 2010) sobre a obra, na Unicamp, sob a orientação de Márcio-Seligmann-Silva. É apenas após décadas de silêncio, de vida homossexual encoberta pela heteronormatividade, que Seel irá dizer sua dor, e por meio do testemunho encontrar uma espécie de salvação, redimindo-se parcialmente das décadas passadas em mudez. Como se descobre pela leitura do livro, é pela memória de seu amor assassinado diante de seus olhos, comido vivo por cães de guarda no campo de concentração, que Seel denuncia nos anos 1990 as atrocidades vividas durante a guerra. O testemunho de Seel é dedicado em epígrafe a Jo, seu amigo e amante assassinado em 1941 no campo. É este fato que o impede, já no fim do século XX, de esquecer o passado e o impulsiona a denunciar as atrocidades nazistas perpetradas pelo preconceito. Seel diz, sobre a morte de seu amor: “Há mais de cinquenta anos, essa cena passa incansavelmente diante dos meus olhos. Eu não me esquecerei jamais” (Seel, 2012, p. 58).
Como comparar e entender dois homossexuais que viveram realidades ao mesmo tempo tão díspares e tão semelhantes em suas consequências catastróficas? Como entender um autor como Reinaldo Arenas que sempre escreveu, ainda que sofresse das mais diversas dificuldades e empecilhos externos, e que encontrou, no entanto, na doença chamada AIDS, seu maior silêncio, seu maior entrave, seu maior mistério? Como entender este mesmo autor, que sempre viveu e praticou sua homossexualidade de forma potente, apesar de sofrer e ser podado por cada passo dado? “La vida es riesgo o abstinencia”, escreve ele (Arenas apud Olivares, 2013, p. 1). Como entender Arenas, que nunca expressou ter vivido um grande amor específico por um homem, mas que corporificou o amor ao sujeito homossexual em cada palavra? Por outro lado, saindo da América, saindo de Cuba e dos Estados Unidos e chegando à França, tem-se Seel. Como entender alguém que nunca escreveu, que sempre viveu em silêncio, que sempre escondeu sua condição homossexual da sociedade, e que por ela sofreu de modo atroz, que teve seu amor assassinado, comido vivo por cães, diante de seus olhos, e que apenas quarenta anos depois começa a testemunhar e viver um misto de querer contar e de não conseguir dizer, tão característico do testemunho e da representação da experiência-limite? Como entender alguém que viveu o interdito da homossexualidade dentro da própria casa e na sociedade, que viveu a experiência de aniquilação sistemática do sujeito nos campos nazistas, dos quais saiu vivo? Como entender alguém que décadas depois ainda vive por uma vela que arde o amor da adolescência assassinado, que em nenhum fragmento de seu testemunho faz supor outro amor homossexual ao longo da vida, e que encontra, em sua velhice, nessa revelação de sua homossexualidade, uma condição fundamental para manter-se vivo?
Como comparar um Arenas que diz sempre viver sua homossexualidade, que semeia seu amor sexual em vários e nunca em um só, mas que no fim se cala sobre o enigma da doença e se mata, com um Seel, que nunca pode dizer, mas que no fim sempre diz, e nisso encontra sua vida, uma vida que tem por base fundamentalmente um amor morto? A teoria do testemunho, as diversas teorias sobre a homossexualidade, a teoria queer, a teoria da doença como metáfora, seriam capazes de ajudar nessa empreitada de maneira eficaz? Sim, sem dúvida, estas ou outras teorias poderiam ser aplicadas para se entender estes dois testemunhos-problemas, mas assim fazendo perderíamos algo de essencial: o nosso olhar sobre eles e o olhar deles sobre nós. É necessário deixar-se afetar e sensibilizar, pelo que está diante de nós, nos enfrentando: “O que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha” (Didi-Huberman, 2010, p. 33). O que desejamos aqui é fazer com que nossas vozes emerjam, sem o engessamento da teoria pré-estabelecida, e que haja espaço para que as vozes de Arenas e Seel sejam ouvidas por meio do nosso texto. Não ignorar a base teórica, mas saber instrumentalizá-la, saber qual teoria utilizar, para que ela não eclipse o trabalho da literatura, da voz sensível. Não se trata de ignorar cada uma dessas teorias, todas elas extremamente válidas e necessárias, mas sim de chegar ao texto literário de modo mais desarmado, para que ele possa nos surpreender. Como esquecer a lição de Rosana Kohl Bines, professora do Programa de Pós-graduação em Literatura, cultura e contemporaneidade da PUC-Rio, ao dizer, durante disciplina ministrada por ela e Leïla Danziger (UERJ) sobre literatura de testemunho, no segundo semestre de 2016, quando perguntada sobre o interesse de utilizar Sol negro – depressão e melancolia, de Julia Kristeva, para analisar o livro A dor, de Marguerite Duras? Ela disse que achava o livro bom, mas que a leitura poderia fazer com que perdêssemos o nosso olhar subjetivo, a nossa leitura de A dor, trocando-os por uma teoria cristalizada pelo saber científico-teórico do que viria a ser a melancolia para Kristeva. Reencontrar, portanto, a sensibilidade do susto de ler o texto literário ao invés de adotar o olhar semicerrado da leitura teórica pré-formatada.
Ao tentar entender aspectos tão sensíveis da escrita-vida-morte de sujeitos homossexuais, como se pode ter algum tipo de certeza sobre a engrenagem do texto literário, sem cair em interpretações exageradas e descontextualizadas? Como embasar uma escrita e uma leitura feita a partir de fragmentos do sensível? É possível encontrar objetividade em meio ao subjetivo que sempre nos coloca diante de um choque com o real? O que se quer é encontrar um sentido possivelmente inexistente ou demonstrar a inexistência que é encontrar algum sentido no fazer-texto? Ou, como escreve Lacan: “(…) não se procura um sentido oculto, que não há, mas acha-se o funcionamento do não-saber exposto na linguagem literária” (Lacan apud Aires; Trocoli, 2012, p. 12). É do fragmento que nos vê, do fragmento que nós olhamos, que se busca encontrar um entendimento, a partir dos espectros fragmentários contidos nesses “textemunhos”, poderíamos dizer recorrendo a um neologismo. Esta é a operação descrita por Ricoeur: “Você não tem acesso à vivência do agonizante em si e por si, se ouso dizer, a não ser através da interpretação de sinais recolhidos pela testemunha que você convoca ao tribunal de sua argumentação” (Ricoeur, 2012, p. 15).
Epidemia e extermínio: a morte, o Mal, a massa indistinta
No que podemos, então, nos embasar, para sentir-ler os textos de Arenas e Seel, dois homossexuais que vivem a doença e o extermínio enquanto experiências-limite? Nossa tentativa de resposta: no texto fragmentário de Ricoeur, Vivo até a morte, seguido de Fragmentos (2012). Entendamos que não se trata aqui do Ricoeur totalizante, de livros como A memória, a história, o esquecimento e Tempo e narrativa, tomos I, II, III, para destacar os mais conhecidos. Mas do Ricoeur do fim da vida, aquele que está ainda vivo, mas já quase morto, aquele que, na iminência de sua morte, escreve em fragmentos, certas vezes quase incompreensíveis. É, a nosso ver, deste pequeno livro, em diálogo com os fragmentos de Arenas e Seel – que se pode extrair grandes, novos ensinamentos sobre a questão do contágio da epidemia e do extermínio, da morte relacionada ao Mal e, por fim, e por que não, da esperança.
Em seu livro, Paul Ricoeur tece uma comparação fortuita entre Primo Levi e Jorge Semprún, cujas trajetórias de vida podem ser equiparadas superficialmente – ainda que nada seja equiparável, posto que cada vida é única em suas especificidades – respectivamente, às trajetórias de Arenas e Seel: os primeiros se matam e os últimos sobrevivem, Semprún e Seel são sobreviventes, Levi e Arenas sucumbem ao suicídio. Mas o que aqui mais chama atenção não é simplesmente a “equiparação” entre os que vivem e os que se afogam (para retomar a alternativa de Primo Levi) no suicídio, e sim vislumbrar a forma peculiar com a qual Ricoeur faz uma equivalência entre as experiências de extermínio e as da doença epidêmica, onde “a própria morte [torna-se] um personagem ativo” (Ricoeur, 2012, p. 20).
Citaremos trechos de Antes que anoiteça, de Arenas, e de Eu, Pierre Seel, deportado homossexual, de Seel, fundamentais para se compreender o cerne dramático dos dois textos: o enigma da AIDS, para Arenas (maior que o do testemunho de sua perseguição, prisão e exílio); e o testemunho pelo amor morto no campo de concentração, no caso de Seel, que perdura ao longo do livro, onde se percebe que é o amor morto na juventude, no campo de concentração, que faz com que Seel ainda se mantenha lembrando, como que ainda vivendo (e morrendo) no campo de onde de certa maneira nunca saiu.
A seguir, quatro trechos do livro de Arenas, sendo os dois primeiros situados na abertura do testemunho, e o último o que fecha o livro. Todos eles giram em torno da AIDS: os dois primeiros falam sobre a AIDS como razão de ser do testemunho, e os dois últimos sobre a “moral” da doença concebida como punição, cujo “pagamento” é a sua morte iminente, a sua “condenação”:
Eu pensava que ia morrer no inverno de 1987. Havia meses vinha tendo febres altíssimas. Consultei um médico e o diagnóstico foi AIDS (Arenas, 2009, p. 7).
Percebo que estou quase chegando ao fim desta apresentação, que na verdade é o meu fim, e não falei da AIDS. Não posso fazer isso, pois não sei o que é. Ninguém sabe, com toda a certeza. Visitei inúmeros médicos, e para todos eles, ela representa um enigma (…). A AIDS é um mal perfeito porque está fora da natureza humana, e sua função é acabar com o ser humano da maneira mais cruel e sistemática possível. Realmente, nunca se conheceu uma calamidade tão invulnerável. Tamanha perfeição diabólica nos faz pensar na possibilidade de algum tipo de interferência humana em sua invenção (p. 15).
(…) mas o fato é que o prazer sexual se paga quase sempre muito caro; mais cedo ou mais tarde, por cada minuto de prazer que vivemos, passamos depois anos de sofrimento; não se trata da vingança de Deus, é a vingança do diabo, inimigo de tudo que é belo. O belo, porém, sempre foi perigoso (p. 236).
Mas agora algo muito mais poderoso, mais misterioso e sinistro do que tudo o que acontecera antes parecia assumir o controle da situação; não havia salvação. O copo quebrado era o símbolo da minha total condenação. Condenação; foi assim que interpretei o fato poucas semanas mais tarde; infelizmente, estava certo (p. 374).
É de noite (p. 375).
Do texto de Seel, citaremos três trechos: o primeiro, a dedicatória ao seu amor (por vezes referido como “amigo”), o segundo é o que ele narra a sua morte comido vivo por cães, e o terceiro é onde faz referência a este mesmo amor homenageado na dedicatória. No livro, temos a narrativa dos anos em que Seel vive casado com uma mulher, se divorcia, e em seguida assume por vinte anos a sua homossexualidade, não havendo no texto referência a outro amor masculino:
Ao meu amigo Jo, assassinado em 1941, e a todas as outras vítimas da barbárie nazista (Seel, 2012, p. 5).
Haviam trazido um jovem para o centro do nosso quadrado, escoltado por dois SS. Horrorizado, reconheci Jo, meu querido amigo de dezoito anos.
Não o havia visto antes no campo. Havia chegado antes ou depois de mim? (…) Congelei de terror (…). E ele estava ali, diante dos meus olhos impotentes que estavam se embaçando de lágrimas (…). O que havia acontecido com ele? Do que esses monstros o estavam acusando? Por causa da minha dor, eu me esqueci totalmente do conteúdo do ato de execução.
Em seguida, os alto-falantes difundiram uma barulhenta música clássica enquanto os SS o despiam. Depois, enfiaram violentamente um balde de lata na sua cabeça. Soltaram na sua direção ferozes cães de guarda do campo, pastores-alemães que, primeiro, morderam seu abdômen e suas coxas, antes de devorá-lo diante dos nossos olhos. Seus gritos de dor foram ampliados e distorcidos pelo balde onde estava presa a sua cabeça. Firme e cambaleante, com os olhos estarrecidos diante de tanto horror, com lágrimas escorrendo no meu rosto, eu rezava ardentemente para que ele perdesse rapidamente a consciência.
Desde então, ainda me acontece frequentemente de acordar à noite aos berros. Há mais de cinquenta anos, essa cena passa incansavelmente diante dos meus olhos. Eu não me esquecerei jamais desse assassinato brutal do meu amor. Diante dos meus olhos, diante dos nossos olhos, pois centenas de nós fomos testemunhas. Por que todos se calam ainda hoje? (…)
E quanto a mim, depois de décadas de silêncio, decidi falar, testemunhar, acusar (p. 57-58).
Quando termino a minha errância, volto para casa. Então, reacendo a vela que queima permanentemente na minha cozinha quando estou sozinho. Essa chama frágil é a minha lembrança de Jo (p. 148).
Para Seel e Arenas, a morte é tão viva que chega a ser um personagem mais relevante que os próprios personagens vivos. No entanto, é o sobrevivente quem escreve. Por mais que exista a “massa perdita”, como destaca Ricoeur, onde não há distinção entre mortos e moribundos, é o ser que ainda consegue um resquício de luz, de vida, que pode dizer algo sobre sua experiência enquanto vivente. Retomando Derrida (2004), é, portanto, o testemunho em si uma promoção de vida, já que quem testemunha o faz a partir de uma condenação de morte e, no testemunhar, deseja em todo momento travar uma batalha contra esta sentença, contra este desejo de aniquilação do outro, contra este intuito do outro-algoz de aniquilar sua vítima impossibilitando-a de “testemunhar”. Este, portanto, o trabalho do aniquilador: destruir totalmente a realidade do sofrimento para tornar impossível o grito por meio da fala da vítima, traumatizada. Testemunhar é, assim, lutar contra a morte. Deseja-se, ao testemunhar, impedir a morte, a partir de um imperativo do morrer, o “ter-de-morrer” (Ricoeur, 2012, p. 10). A vida vem, aqui, por meio da morte, e este texto ganha mais vida pelo fato de a morte estar mais perto. Trata-se de refutá-la como último ato de vingança da vítima contra seu algoz. Às vezes é a “ordem de morrer” que impede de morrer. Como escreve Derrida sobre o testemunho de Maurice Blanchot, No instante de minha morte:
Entendemos bem: o que lhe acontece não é morrer, mas antes não morrer. Trata-se de não morrer, mas a partir de um veredicto que é uma ordem para morrer: morre, estás morto, vais morrer. É a ordem para morrer que o vem impedir de morrer (“impedido de morrer pela própria morte”), e é essa divisão, tanto no seu dividendo como no seu divisor, que será contada de algum modo pelo testemunho. Ele é impedido de morrer pela própria morte (Derrida, 2004, p. 54).
Podemos relacionar este imperativo de morrer à doença epidêmica, em Arenas, que sobrevivera à morte de outros companheiros seus homossexuais, durante uma década de epidemia (Arenas se mata “apenas” em 1990), enquanto outros sucumbem logo no início dos anos 1980, não tendo a oportunidade de lutar minimamente contra o imperativo de morte de seu algoz. Por outro lado, temos na experiência do “fantasma” do passado que é ainda viver tendo como mola propulsora a morte de outro, em Seel, outra versão desta “ordem de morrer”. Pois Seel denuncia as atrocidades nazistas tendo como base a lembrança de seu amor morto, que ainda sobrevive nele por meio de uma vela que acende todos os dias em sua intenção. Tem-se, assim, um campo comum que une as experiências de Arenas e Seel, a morte subjetiva como impossibilidade de abandonar os excessos de realidade – o trauma como o excesso de real – que são o campo de extermínio e a epidemia. O sobrevivente vive em si mesmo a morte dos outros a quem sobreviveu. Ricoeur coloca deste modo o problema da sobrevivência:
Porque minha relação com a morte ainda não ocorrida é obscurecida, obliterada, alterada pela antecipação e pela interiorização da questão da sorte dos mortos já mortos. É a morte de amanhã, no futuro anterior de certo modo, que eu imagino. E é essa imagem do morto que serei para os outros que quer ocupar todo o espaço (…).
A questão da sobrevivência é, assim, primeiramente uma questão de sobreviventes que se perguntam se os mortos também continuam existindo, no mesmo tempo cronológico ou pelo menos num registro temporal paralelo ao dos vivos (…).
Mas essas respostas são respostas a uma questão formulada pelos sobreviventes acerca da sorte dos mortos já mortos” (Ricoeur, 2012, p. 9-10).
Ricoeur destaca que morrer não é necessariamente uma questão problemática, ou algo ruim. O problema surge quando a morte é associada ao Mal e dele torna-se indistinta. É quando se equiparam no imaginário os já mortos aos que vão morrer que a morte torna-se “personificada, ativa e destrutiva” (p. 21). Essa é a morte maligna, a que promove a “massa perdita”, a “massa indistinta de mortos e moribundos” (p. 21). Esta morte-Mal, quando mesclada a todo tipo de morte, é a que faz com que, agora, “nenhuma morte seja mais banal” (p. 25). “Agora”, ou seja, com o que Ricoeur chama de disseminação da teologia do sofrimento, “toda morte extermina” (p. 25): “não é a morte que se escreve com maiúscula, mas o Mal, quando o contágio é extermínio, isto é, programa de morte organizada pelo Maligno” (p. 24). Então, a “maiúscula da Morte é tomada de empréstimo do Mal absoluto, o Inimigo da fraternidade” (p. 26). Isso é crucial para entender que se fala do Mal e não da morte. Para Arenas e Seel há uma personificação do Mal:
Não é necessário então que o Mal seja nomeado para que a morte o seja e, nomeada, avance ativa contra nós? Sem o cimento do mal, a ameaça da morte não confundiria os moribundos com a morte, numa horrível epidemia da morte. Aqui, o vivido transforma em assombração a imagética da Morte armada com sua Foice (p. 23).
É a partir de uma massa indistinta formada por já-mortos/moribundos, Mal/morte, formada no imaginário, que podemos pensar o texto da AIDS em Arenas e o do campo de concentração em Seel:
É o caso das grandes epidemias (…) e foi o caso dos campos de concentração, nessa situação extrema em que o sobrevivente provisório é rodeado, cercado, submerso pela massa indistinta dos mortos e dos moribundos e habitado pelo sentimento da enorme probabilidade da sua morte próxima, da iminência dessa morte. Então, ele se imagina, se percebe como já fazendo parte dessa massa indistinta dos mortos e dos moribundos. Insisto no efeito de massa e no efeito de indistinção. Ele é efetivo somente nas situações-limite de que falei: epidemia, extermínio (p. 21).
Paul Ricoeur tece comentários, em seu pequeno texto, acerca do italiano Primo Levi e do espanhol Jorge Semprún, ambos deportados em campo de concentração e ambos escritores da experiência traumática que foi o nazismo. No entanto, enquanto Levi se utiliza da escrita como um modo de expurgar o Mal, é no fim de sua vida que se consegue perceber os limites do texto para a salvação do ser humano. Ao se matar no final dos anos 1980, Primo Levi se encontra e, portanto, ainda se mata no campo, como destaca o comentário já conhecido de Elie Wiesel, que ao saber de sua morte afirmou: “Primo Levi morreu em Auschwitz quarenta anos depois”. Em paralelo, há Jorge Semprún, que com seu livro A escrita ou a vida (1994) aborda a necessidade de não lembrar para conseguir seguir vivendo frente a uma experiência abissal. Segundo Ricoeur, ele realiza, ao não se matar, uma trajetória distinta em relação a Levi. Como entender o “fracasso do livro” (p. 34) frente à experiência traumática? Como pensar, aqui, o suicídio de Reinaldo Arenas, em 1990, aos 47 anos, e a sobrevivência até a “morte natural” de Pierre Seel, em 2005, aos 82 anos? Aqui, evidentemente, não se deseja fazer especulações sobre os motivos que levam alguém a se matar, que fugiriam do campo da crítica literária em que este artigo se insere, mas sim pensar em como Arenas e Seel compreendem a escrita e o dizer como formas de salvação e/ou de fracasso em salvar do abismo.
Há que refletir sobre as considerações de Shoshana Felman sobre a relação entre testemunhar e a cura possível para o trauma: “a capacidade de testemunhar e o ato do testemunho envolvem em si mesmos uma qualidade curativa e já pertencem, por caminhos obscuros, ao processo de cura” (Felman, 2000, p. 17). Assim como Ricoeur fala sobre a escrita como forma de aclarar conceitos: “a clarificação conceitual já tem valor terapêutico. É aqui como em outros casos a tarefa mínima da reflexão filosófica: analisar, clarificar” (Ricoeur, 2012, p. 8).
Enquanto Arenas escreve ao longo da vida, entendendo este gesto como fundamental para a manutenção de sua existência, é nos Estados Unidos, onde supostamente seria mais livre para exercer sua profissão, que encontra o grande silêncio e a impossibilidade de traduzi-lo em linguagem. É neste momento, em AIDS, que o escritor finaliza sua obra e afirma ser incapaz de continuar fisicamente escrevendo e, portanto vivendo. E é se matando que Arenas dá uma resposta aos seus algozes: queriam vê-lo morto da AIDS, o “câncer gay”, mas ele tirou deles essa prerrogativa, ao se matar, por suas próprias mãos.
Seel, por sua vez, passa a maior parte de sua vida em silêncio. Logo que sai do campo de concentração, é capaz de relatar explicitamente sua experiência como homossexual, de forma fragmentada, apenas à sua mãe, que logo falece. Ao casar-se com uma mulher e adentrar uma vida heteronormativa, silenciando qualquer relato de outras experiências homossexuais, Seel internaliza uma repressão petrificante, que o impede de rememorar as experiências que lhe provocariam angústia. Ao longo de seu relato, é possível perceber que, no entanto, este silêncio moralizante torna-se cada vez mais pesado com o passar dos dias. Divorciado e longe dos filhos, Seel descobre, então, entre o final dos anos 1970 e começo dos 1980, a peça de teatro Bent. É esta experiência de empatia que faz surgir o terreno fértil para que ele conte a sua experiência, é ela que o faz encontrar, já idoso, uma razão de viver. É falando e escrevendo sobre seu passado, que Seel irá sobreviver, revertendo a opção de encerrar seus dias sem enunciar esta memória pesada do passado, que mantivera todos esses anos em silêncio. Este silêncio supostamente tranquilizador, no entanto, é aquele onde a morte Maligna se instala, enquanto o dizer possibilita uma forma de expurgar as mazelas do passado. É esta memória dolorosa que faz com que seus contemporâneos não persistam na amnésia.
No momento em que Arenas se mata, não há definitivamente terreno fértil para a recepção acolhedora da escrita de um doente homossexual em AIDS, nos Estados Unidos. Seu testemunho de opressão e luta em Cuba pode ser ouvido, e o é, mas seu testemunho em AIDS, enquanto vítima do preconceito em qualquer sistema, seja ele comunista ou capitalista, já não o é, e ainda não o é. Por outro lado, Seel se mantém vivo, ainda que carregando nas costas as mortes dos moribundos/muçulmanos do campo de concentração, carregando a morte de Jo, seu amigo/amor e, é ao longo dos anos 1980, que encontra energia vital para poder dizer, pela primeira vez, e assim encontrar sua vida. Em 1980, ele faz o seu primeiro testemunho, anônimo, a uma revista gay europeia (Seligmann-Silva, 2012, p. 16), e em 1994 lança o seu livro, oficialmente o primeiro testemunho de uma vítima homossexual francesa do nazismo. Enquanto isso, Arenas sempre disse e escreveu, e encontra a morte por não poder mais ser ouvido, em sua doença. Já Seel nunca pode falar, e foi o fato de poder, no fim da vida, ser ouvido, que o fez manter-se vivo. Enquanto o testemunho de Arenas termina com “É de noite”, ou seja: escureceu e não posso mais escrever, o testemunho de Seel termina com uma vela ainda acesa.
Arenas exige que anexem ao fim do livro sua carta de despedida, que diz, já no seu fim: “Minha mensagem não é uma mensagem de derrota, mas sim de luta e esperança” (Arenas, 2009, p. 377). Esperança essa de que um dia os homossexuais possam viver livres e de que as vítimas do passado da AIDS, que sucumbiram, sejam honradas pelo encontro da vida digna em AIDS, hoje e no futuro. Mas haverá esperanças, hoje, para Arenas? A edição brasileira de seu testemunho suprime, em todas as suas edições (desde a primeira, de 1994, até a última, de 2009), a última frase da edição original, de sua carta de despedida: “Cuba sera libre. Yo ya lo soy”. De acordo com a Editora Record, em mensagem enviada em novembro de 2015 aos autores deste artigo, o erro (que perdura há duas décadas) se deveu a um problema de diagramação e a frase suprimida será inserida na próxima reimpressão.
Seel, corajosamente, inicia a luta de ser um homossexual idoso, deslocado em relação aos homossexuais de outras gerações, que viviam outras histórias, outros momentos, e testemunha para lutar, para se enlutar (luto e luta) pelo passado, e na esperança de um futuro melhor. É assim que ele formula o mandato do testemunho: “testemunhar (…) exigir reabilitação do meu passado, desse passado que é também o de muitos outros, esquecidos, ocultos nas horas negras da Europa. Testemunhar para proteger o futuro, testemunhar para acabar com a amnésia dos meus contemporâneos” (Seel, 2012, p. 137).
À guisa de conclusão, podemos dizer que Ricoeur, assim como nós, se perguntou: será que o grito de Levi não foi ouvido? (2012, p. 36) Nós nos perguntamos, por nossa vez: será que o grito de Arenas não foi ouvido? Ou: o testemunho de um sobrevivente como Seel, foi ouvido? Perguntas sem respostas, porque somos nós, os vivos, que projetamos a realidade dos mortos, em meio aos escombros de palavras. “Eis o nó: trabalho da memória é trabalho de luto. E ambos são palavra de esperança, arrancada do não dito” (p. 36). O testemunho como, diz Ricoeur, é a luta entre o Mal e a fraternidade, entre o Mal e o outro, entre a destruição e a nossa empatia, nós, leitores, diante da dor dos nossos mortos.
* Guido Arosa é mestrando em Teoria Literária, pelo Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ, com especialização em Literatura pelo Departamento de Letras da PUC-Rio (2016) e bacharelado em Jornalismo pela ECO-UFRJ (2014).
** João Camillo Penna é professor da UFRJ, vinculado ao Departamento de Ciência da Literatura da Faculdade de Letras, com pós-doutorados no Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC-UFRJ; 2002) e na Universidade Paris Diderot-Paris VII (2012). É autor, dentre outros, do livro Escritos da sobrevivência (7Letras, 2013).
Referências
AIRES, Suely; TROCOLI, Flavia. Literatura e psicanálise: de uma relação que não fosse de aplicação. Terceira Margem, Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, ano XVI, nº 26, p.11-16, jan-jun 2012.
ARENAS, Reinaldo. Antes que anoiteça. Trad. Irène Cubric. Rio de Janeiro: Record, 2009.
BENJAMIN, Walter. O autor como produtor. In: Magia e técnica, arte e política, obras escolhidas I. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 120-136.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2010.
ELÍDIO, Tiago. A perseguição nazista aos homossexuais: o testemunho de um dos esquecidos da memória. Dissertação (Mestrado em Teoria e História Literária). Universidade Estadual de Campinas, Campinas – São Paulo, 2010.
FELMAN, Shoshana. Educação e crise, ou as vicissitudes do ensino. In: NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (orgs.). Catástrofe e representação. Trad. Cláudia Valladão de Mattos. São Paulo: Escuta, 2000, p. 13-71.
OLIVARES, Jorge. Becoming Reinaldo Arenas: family, sexuality, and the cuban revolution. Durham and London: Duke University Press, 2013.
RICOEUR, Paul. Vivo até a morte, seguido de Fragmentos. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
SEEL, Pierre; LE BITOUX, Jean. Eu, Pierre Seel, deportado homossexual. Trad. Tiago Elídio. Rio de Janeiro: Cassará, 2012.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Pierre Seel, um sobrevivente da dor e do silêncio. In: SEEL, Pierre; LE BITOUX, Jean. Eu, Pierre Seel, deportado homossexual. Trad. Tiago Elídio. Rio de Janeiro: Cassará, 2012, p. 11-17.
TÓPICOS AVANÇADOS EM TEORIAS E CRÍTICA CONTEMPORÂNEAS V – EXPERIÊNCIAS-LIMITE NAS ARTES E NA LITERATURA: ABRIR DOSSIÊS. Disciplina ministrada pelas professoras Rosana Kohl Bines (PUC-Rio) e Leïla Danziger (Uerj), no Programa de Pós-graduação em Literatura, cultura e contemporaneidade, do Departamento de Letras da PUC-Rio, no segundo semestre de 2016.
Nota
[1] Peça de teatro, escrita pelo americano Martin Sherman, com estreia em Londres, no West End, em maio de 1979, que trata da perseguição de homossexuais no Terceiro Reich, na Alemanha, durante a Segunda Guerra Mundial. “Bent” é um termo pejorativo com o qual algumas regiões da Europa se referem aos gays. À época de sua estreia, era ínfima a pesquisa sobre a perseguição nazista aos homossexuais e a peça foi fundamental para impulsionar o estudo da questão ao longo dos anos 1980 e 1990. Em 1980, a peça foi encenada na Broadway, em Nova York e, em 1997, Martin Sherman a adaptou para o cinema.
Resumo: Este texto tem por objetivo traçar um panorama da literatura produzida no Brasil abordando o tema do HIV/AIDS, destacando a importância da obra de Herbert Daniel e Caio Fernando Abreu na desconstrução dos discursos sensacionalistas e folhetinescos construídos nos textos jornalísticas dos anos 1980 e 90, bem como o ressurgimento, nos últimos anos, de uma literatura sobre o HIV/AIDS, como reação ao emudecimento imposto por setores conservadores a partir da introdução dos medicamentos antirretrovirais, e que busca se desvencilhar de imagens datadas da doença, retratando o que significa, hoje, descobrir-se soropositivo.
Palavras-chave: HIV/AIDS; epidemia; literatura pós-coquetel; sobrevivência.
Abstract: The objective of this text is to present an overview of the literature produced in Brazil regarding HIV/AIDS, stressing the importance of the works produced by Herbert Daniel and Caio Fernando Abreu for the deconstruction of the sensationalist speeches arising from journalistic texts in the 80’s and 90’s, as well as the resurgence, in the last years, of an HIV/AIDS literature, as a reaction to the silencing imposed by conservative sectors with the introduction of the antiretroviral therapy (ART), seeking to depart from dated images of the disease and portraying what means to be HIV seropositive today.
Introdução: como sobreviver numa epidemia discursiva[1]
Desde que os primeiros casos de AIDS começaram a ser noticiados no início dos anos 1980, surgiu uma corrente literária que veio a ser conhecida como “literatura da AIDS”. De um ponto de vista acadêmico, poderia haver a impressão de que este seria um novo gênero literário. Entretanto, quando analisamos esses textos, fica claro que envolviam uma gama muito ampla e diversa de estilos, gêneros e propósitos. Dito de outra forma, não havia unidade estilística clara que conectasse tais obras. Como bem coloca Marcelo Secron Bessa (2002, p. 9), o principal ponto em comum entre elas era que todas abordavam, sob um viés explícito ou implícito, o tema da AIDS.
No Brasil, o crescente número de casos de AIDS nos anos 80 revelou aos poucos que a situação ia muito além de uma epidemia sob um ponto de vista médico-científico. Para usar a expressão de Bessa, a AIDS deu origem a uma “epidemia discursiva” (1997, p. 19).
Aqui, como também no exterior, um ponto chave para entendermos essa “epidemia discursiva” pode ser encontrado nos textos jornalísticos, que reportavam em tons folhetinescos, de forma sensacionalista e muitas vezes preconceituosa, os casos de AIDS. Até o ponto em que Herbert Daniel chegou a afirmar que “ninguém poderá escrever a história da doença no Brasil sem recorrer ao noticiário da imprensa” (Daniel apud Bessa, 2002, p. 21).
Naquele momento, não se sabia as causas da doença, que por longo período foi referenciada como “câncer gay”, havendo muita especulação sobre a sua origem. Mesmo quando as notícias da mídia eram aparentemente envoltas numa roupagem científica, havia claros elementos melodramáticos e preconceituosos: falava-se em peste homossexual, vírus produzido em laboratório, em guerra bacteriológica entre potências mundiais (estávamos ainda na guerra fria), doença misteriosa da África, sangue, saunas gays e darkrooms, promiscuidade, sexo anal, oral e grupal, drogas injetáveis e inaláveis (p. 23), dentre muitos elementos que povoaram o imaginário popular da época.
Jornal Notícias Populares de 12 de junho de 1983
Essas matérias jornalísticas exerceram influência sobre textos literários que abordaram a AIDS, tendo contribuído para a formação de um público fiel dessas narrativas melodramáticas e sensacionalistas. Tais textos contribuíram para instaurar uma onda de pânico sexual e preconceito no Brasil e deram ao público as primeiras histórias e faces dos “doentes de AIDS”, trazendo imagens chocantes de indivíduos à beira da morte, que ajudaram a construir o estereótipo do doente de AIDS, mais tarde personificado na figura de Cazuza na capa da Revista Veja de 26 de abril de 1989.
A reação literária
Em meio a essa proliferação de representações midiáticas da doença, aos poucos começou a surgir uma produção literária relacionada à AIDS que se opunha à visão do discurso dominante. Uma das primeiras vozes da doença no Brasil foi Herbert Daniel, um importante militante de esquerda e precursor no país da defesa dos direitos LGBT. Daniel foi um dos primeiros autores a tratar do tema num ensaio publicado ainda em 1983, intitulado “A Síndrome do Preconceito”. Já nesse momento, Daniel deixou claro seu descontentamento com a forma pela qual a mídia tratava a epidemia da AIDS, buscando em seus textos se contrapor enfaticamente aos estereótipos amplamente difundidos.
Daniel se insurgiu contra o uso do termo aidético, sempre empregado de forma pejorativa e condenatória. Sobre o tema, ele disse certa vez: “(…) quando se tem AIDS, dizem as más e poderosas línguas que a gente é ‘aidético’. (…) Eu, por mim, descobri que não sou ‘aidético’. Continuo sendo eu mesmo. Estou com AIDS” (Daniel apud Bessa, 2002, p. 71). Ao seu descolar da personagem criada pela mídia, e ao reforçar uma condição transitória e instável, Daniel deixa claro seu desejo de se contrapor ao discurso dominante e tomar as rédeas da sua própria narrativa.
Daniel é autor, ainda, do romance Alegres e Irresponsáveis Abacaxis Americanos (1987), um dos primeiros a ter a AIDS como tema. Embora tenha inicialmente optado pela ficção, Daniel se afastou dela após tomar conhecimento de sua soropositividade, passando a buscar uma produção mais ensaística e não-ficcional. Daniel passou a priorizar, então, uma linguagem mais direta e informativa, por vezes pedagógica, com o objetivo de desmistificar a doença e combater a visão preconceituosa difundida pela mídia.
Importante destacar, ademais, que Daniel, além de participar da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), foi um dos fundadores do Grupo Pela Valorização, Integração e Dignidade do Doente de AIDS (Grupo Pela VIDDA) (p. 86). A ideia foi criar um grupo no qual as pessoas com AIDS não fossem apenas destinatários de um serviço, mas sim forças ativas nas decisões e ações a elas relacionadas, o que estava em consonância com a filosofia adotada em seus escritos.
Além de Daniel, falar desse momento da literatura da AIDS no Brasil é impossível sem mencionar Caio Fernando Abreu. Caio foi um dos primeiros autores brasileiros a citar a palavra AIDS em sua obra, na novela “Pela noite”, incluída no livro Triângulo das águas, de 1983, mesmo ano em que foi diagnosticado o primeiro caso da doença no Brasil.
Na obra de Caio, é recorrente a ideia de dificuldade ou mesmo impossibilidade de consumação da realização amorosa. Para o autor, a AIDS teve um papel importante em estabelecer esse contexto de paranoia sexual, como demonstrava, perplexo, em 1985:
Não quero falar de podres poderes. Há coisas mais graves no ar. São Paulo atualmente é uma cidade tomada pela paranoia da AIDS. Pelo menos na faixa de gente-como-a-gente: essa parcela mínima da população que não só come e mora (coisa rara), como ainda por cima lê, vai ao cinema, essas coisas. Conheço pessoas que não se tocam mais. O que é que se faz quando aquilo que era possibilidade de prazer – o toque, o beijo, o mergulho no corpo alheio capaz de nos aliviar da sensação de finitude e incomunicabilidade – começa a se tornar possibilidade de horror? Quando amor vira risco de contaminação (Abreu apud Bessa, 2002, p. 120).
É nesse contexto que Caio entendia a doença como uma dupla epidemia: a “AIDS do corpo” e a “AIDS psicológica”. Esta última é evidenciada pela onda de paranoia, preconceito e isolamento que foi causada pela doença física. Por assim dizer, a AIDS representou o momento em que, nas palavras do autor, “o amor vira risco de contaminação”, o que Bessa bem qualificou como um “estado de sítio afetivo-sexual” (p. 120). Como decorrência, é possível notar na sua obra um claro tom de desesperança e pessimismo em relação à realização amorosa, adiada por prazo incerto pela epidemia, bem como uma nostalgia pela época em que o prazer sexual não era visto como perigo de vida.
Na novela “Pela noite”, por exemplo, dois homens se encontram na noite paulistana e acabam no apartamento de um deles, onde passam longas horas conversando. Não revelam para o outro seu nome verdadeiro, assumindo pseudônimos: Pérsio e Santiago. Ao mesmo tempo que a conversa deles mostra um claro jogo de sedução, também transparece uma inquietação em relação ao sexo, reveladora de um contexto em que se aproximar do outro se torna perigoso, representando, até mesmo, um risco de vida.
Ao final da novela, contudo, ainda parece haver algum resquício de esperança para o desenlace amoroso, já que, ao final, Pérsio e Santiago se libertam de seus codinomes inventados, tornando-se mais abertos a uma aproximação, driblando a onda de paranoia instalada com o advento da epidemia:
– Resolveu aceitar aquele chá, Santiago?
– Eu não me chamo Santiago – ele disse.
Não afastou o corpo para que o outro entrasse. Mas ele entrou. Fechou a porta às suas costas. Estendeu as duas mãos. Tocou-o nos ombros. De frente.
– Eu também não me chamo Pérsio. Portanto não nos conhecemos. O que é que você quer?
Ele sorriu. Estendeu as mãos, tocou-o também. Vontade de pedir silêncio. Porque não seria necessária mais nenhuma palavra um segundo antes ou depois de dizerem ao mesmo tempo:
– Quero ficar com você.
Provaram um do outro no colo da manhã.
E viram que isso era bom (2012, p. 216).
A temática da AIDS continuou surgindo na obra ficcional de Caio produzida após a novela “Pela noite”, com destaque para Os dragões não conhecem o paraíso, coletânea de contos publicada em 1988, e seu único romance, Onde andará Dulce Veiga?, de 1990.
É interessante notar que, apesar de a temática da AIDS estar presente em tais obras, a sua produção literária é marcada por poucas menções expressas às siglas HIV e AIDS, que quase sempre aparecem de forma elíptica e sugerida. Tal recurso, como defende Bessa (p. 115), consistia numa forma de conferir à doença novas percepções e imagens, afastando-se dos estereótipos e preconceitos então correntes.
Esse recurso à elipse pode ser encontrado nas “Cartas para além dos muros”. Essa série de quatro crônicas em forma epistolar foi escrita durante sua internação no hospital de infectologia Emilio Ribas, situado na capital paulista, e publicada no jornal O Estado de São Paulo entre 1994 e 1995. Foi a partir delas que Caio tornou pública a sua soropositividade, e buscou, pelo gênero epistolar, uma comunicação mais direta com seus leitores. Não significa dizer, contudo, que há assertividade e clareza nas cartas, que se valem de linguagem velada e cifrada para atingir novas formas de falar sobra a AIDS, como deixa claro o início da primeira delas:
Alguma coisa aconteceu comigo. Alguma coisa tão estranha que não aprendi o jeito de falar claramente sobre ela. Quando souber finalmente o que foi, essa coisa estranha, saberei também esse jeito. Então serei claro, prometo. Para você, para mim mesmo. Como sempre tentei ser. Mas por enquanto, e por favor, tente entender o que tento dizer (1996, p. 102).
Caio só deixa de lado esse recurso à elipse na “Última carta para além dos muros” (que, na verdade, é a terceira epístola). Nesta, Caio adota um tom mais confessional, colocando de forma expressa a sua sorologia, e, distanciando-se da abordagem sensacionalista e preconceituosa existente na época, assume a narrativa da sua condição de sujeito assumidamente homossexual e soropositivo.
Outras obras que têm o HIV/AIDS como tema publicadas no Brasil nesse período incluem Risco de vida, de Alberto Guzik (1995), A doença, uma experiência, de Jean-Claude Bernardet (1996) e Depois daquela viagem, de Valéria Polizzi (1997).
O livro de Polizzi teve um forte impacto na época de seu lançamento. Em 1997, a AIDS no Brasil passava por uma mudança do perfil epidemiológico, com estatísticas que revelavam a crescente infecção por mulheres e heterossexuais (p. 325). O livro de Polizzi foi importante para desmistificar, ainda que parcialmente e de forma limitada, a ideia da AIDS como uma doença circunscrita aos gays. Seu livro, assumidamente autobiográfico, teve grande repercussão num contexto de campanhas de prevenção, sendo inclusive adotado como paradidático em colégios do ensino básico e médio (p. 326), e expandiu a discussão sobre o tema no Brasil para setores da sociedade que ainda não tinham se aproximado da questão.
A literatura pós-coquetel
Por volta da época de lançamento de Depois daquela viagem, mudanças importantes no cenário da epidemia estavam ocorrendo. Em 1997, já havia começado a ser implementado o coquetel antirretroviral, que conferiu aos doentes de AIDS um tratamento eficaz e a possibilidade de sobrevivência. Aos poucos, a AIDS e a sua percepção começou a se modificar, passando de uma sentença de morte a uma doença crônica, que se não pode, ainda, ser curada, na maioria dos casos pode ser mantida sob controle.
Paradoxalmente, a partir desse momento, as discussões públicas sobre AIDS começam a diminuir, encaminhando-se para a periferia do discurso. As notícias, antes constantes e numerosas, se tornam esparsas na mídia, pondo fim à espetacularização das histórias dos soropositivos iniciada ainda nos anos 1980. De maneira similar, as obras literárias que abordam a AIDS diretamente começam a se tornar cada vez mais raras.
Uma hipótese é que o controle da doença proporcionado pelo coquetel antirretroviral poderia ter dado a ideia de que o HIV não seria mais um problema digno de atenção. Trata-se de uma visão muito questionável, uma vez que o referido controle é circunscrito àqueles que têm acesso e aderem ao tratamento antirretroviral, o que infelizmente está longe de ser a totalidade dos casos. Não por coincidência, a mídia começa a se afastar do tema, e as campanhas de prevenção, antes diversas e ousadas, tornam-se cada vez mais tímidas, o que pode ser, em parte, explicado pelo lobby conservador e do fundamentalismo religioso exercido com cada vez mais força na esfera política.
Nesse contexto de desaparecimento de esforços governamentais e campanhas de conscientização, três situações bem demonstram esse emudecimento forçado. Em 2011, houve a suspensão da divulgação de material educativo para as escolas, parte do Programa Brasil Sem Homofobia (divulgado pela imprensa como kit anti-homofobia ou kit gay); em 2012, foi cancelada a campanha de prevenção de carnaval voltada ao público de jovens gays; e em 2013, vetou-se a campanha voltada a profissionais do sexo, que buscava unir prevenção com autoestima na prostituição (Seffner e Parker, 2016, p. 29).
É diante desse cenário que as estatísticas mais recentes divulgadas no Boletim Epidemiológico HIV/AIDS-2016 do Ministério da Saúde revelam que a infecção entre homens jovens de 15 e 19 anos triplicou, e dobrou entre aqueles de 20 a 24 anos, entre 2006 e 2015, dentre outros dados alarmantes.
Taxa de detecção de aids (/100 mil habitantes) em homens segundo faixa etária e sexo. Brasil, 2006 e 2015. Fonte: Boletim epidemiológico HIV/AIDS-2016
Essa situação tem levado, nos últimos anos, a uma reação da sociedade a esse novo levante conservador, que tem se tornado cada vez mais intenso, com atitudes que visam a promover uma discussão atual e contemporânea sobre o HIV/AIDS. Colocado de outro modo, a imposição de um emudecimento discursivo, em contraste com a epidemia discursiva que se verificou nos anos 1980 e 90, tem gerado um ressurgimento da discussão sobre o HIV/AIDS. As repercussões são sentidas também no campo da literatura, o que se revela pelo aparecimento de uma nova geração de autores que tratam do tema, em sua maioria jovens. É essa literatura que vem sendo chamada de “pós-coquetel” (Sousa, 2015).
Além dos recentes dados que mostram aumentos nos níveis de infecção e o desaparecimento de campanhas de conscientização imposto por setores conservadores, um dos motivos que pode ser identificado para isso é que o discurso criado nos anos 1980 sobre o HIV/AIDS, muito marcado pela questão da morte, pela conexão com a homossexualidade e a promiscuidade, e pelo reforço de estereótipos através de, por exemplo, imagens como a foto de Cazuza à beira da morte, ainda é muito presente nos dias atuais. Apesar de todas as evoluções da doença, da constatação de que o vírus atinge a todos independentemente de orientação sexual e da introdução do coquetel antirretroviral, esse discurso preconceituoso e nocivo ainda é dominante no país.
Nesse contexto, nos últimos anos há alguns exemplos marcantes de livros publicados que abordam a questão do HIV de uma forma moderna e contemporânea. Buscam trazer a questão para os dias atuais e se desvencilhar de imagens já datadas da doença. Um exemplo desse contexto são alguns livros que têm sua origem numa forma de comunicação fruto das evoluções tecnológicas das últimas décadas: os blogs.
Os livros de Rafael Bolacha, Uma vida positiva (2012), e de Gabriel Abreu, pseudônimo de Salvador Corrêa, O segundo armário: diário de um jovem soropositivo (2016), são exemplares desse caso. Ambos têm sua origem em blogs publicados na internet, iniciados imediatamente ou logo após a descoberta da soropositividade por seus autores, e possuem um viés assumidamente autobiográfico. Os relatos são valiosos para se tentar entender o que significa no Brasil de hoje se descobrir soropositivo.
Uma questão que atravessa esses relatos é a confrontação inicial com as imagens e visões do HIV/AIDS dos anos 1980 e 90, que, como venho afirmando, ainda é muito forte. O medo da morte e o sentimento de culpa, que são marcas do discurso inicial da AIDS, atravessam ainda hoje as vidas de quem se descobre soropositivo e representam um obstáculo importante a ser superado.
As questões que perpassam esses relatos são as mais diversas: o confronto e a desvinculação dos estereótipos e imagens da doença, o relacionamento afetivo e sexual após o diagnóstico, o medo do preconceito, como contar aos familiares, a busca pelo tratamento adequado, a relação com os médicos, que nem sempre é fácil, os efeitos colaterais dos remédios, a espiritualidade, a autodescoberta, dentre outros.
Tais questões revelam uma mudança de paradigma em relação à doença, também presente na literatura pós-coquetel. O foco deixa de ser a iminência da morte e um inevitável senso de urgência e imediatismo, e passa a ser como encarar a vida com HIV, em suas mais diferentes facetas. O coquetel antirretroviral, que representou a possibilidade de sobrevivência e de construção de um porvir com o vírus, torna-se uma presença marcante nos textos, que passam a se debruçar em planos para o futuro, o que muitas vezes era impensável nos anos 1980 e 90.
Outro exemplo marcante dessa literatura é o livro de poesia de Ramon Nunes Mello, Há um mar no fundo de cada sonho (2016). Ramon tornou pública a sua soropositividade em artigo publicado na coluna de Jean Wyllys na Carta Capital no Dia Mundial de Luta Contra a AIDS, em 2015, intitulado “O sentido de urgência: a necessidade de se conversar sobre o HIV”.
Nesse artigo, fortemente inserido num contexto que o autor descreve como “viver de forma política”, ele fala sobre a importância de levantar a voz contra visões preconceituosas e retrógradas sobre o HIV, reconhecendo que a grande cura da AIDS é o combate ao preconceito. Ramon reconhece a luta daqueles que vieram antes dele, inserindo-se na tradição daqueles que chama de seus “irmãos de luta”, dentre os quais Cazuza, Herbert Daniel, Caio Fernando Abreu, o sociólogo e ativista Herbert de Souza (Betinho) e o poeta português Al Berto.
Nesse intento, nenhuma arma é mais poderosa do que a linguagem, como Ramon coloca em seu poema “diálogo com william s. burroughs”:
ser
extraplanetário
eu sou o outro você
in lak’ech ale k’in
transformo
objeto em sujeito
a linguagem
o verdadeiro
vírus (2016, p. 68)
Se a linguagem é o vírus, como afirma Ramon, nada mais importante do que tomar a linguagem para si, tirando o seu monopólio dos institutos de saúde, do governo e da grande mídia, permitindo que novos significados sejam conferidos ao HIV, e dessa forma subvertendo e desconstruindo o discurso dominante, numa atitude de desconstrução de traços marcantemente queer.
Em seu livro, Ramon nos convida a um mergulho sem proteção na sua lírica, marcada por uma jornada de autocompreensão, como ele coloca no poema “kundalini”[2] (2016, p. 19), de forte espiritualidade, que pulsa ao longo das páginas, de estreitamento da relação com a natureza, de amor e de contemplação. No poema “luz”, Ramon fala sobre essa jornada:
quando a saúde é um grito ao sol
tudo é possível
até mesmo vencer o medo que silenciosamente destrói minhas defesas
enxergar apenas um filete colorido
guia de passos
tortuosos
existir é um grito mudo e constante
aprende-se aos tombos
a ser grato por tudo
o que dói (2016, p. 58)
É importante mencionar, ainda, outras duas obras recentes relevantes que abordam a questão do HIV nesse momento pós-coquetel. A primeira é o romance Mamãe me adora (2012), do autor Luís Capucho. Capucho é também cantor e compositor, e publicou outros dois romances: Rato (2007), e o seu transgressor romance de estreia Cinema Orly (1999).
Em Mamãe me adora, que tem toques autobiográficos, o narrador, soropositivo como o autor, narra uma viagem que fez com a sua mãe à Aparecida do Norte. Numa certa passagem, ele fala sobre a presença marcante dos medicamentos na sua rotina e na sua vida, e da relação de amor e ódio que trava com eles:
Desde que comecei a tomar os terríveis remédios do coquetel para Aids, ouço dizer que a tecnologia médica é rápida, que logo surgirão remédios melhores e tudo, mas engulo, todos os dias, nos mesmos horários, há anos, essas ratazanas nojentas.
E, desde então, tenho sido terrivelmente domesticado por elas, por seus horários.
É certo que estou aproveitando a liberdade da viagem sem tomá-los, mas não saberia mais estar fora de sua disciplina, fora de sua grade.
Não tenho medo do vírus HIV.
Tenho medo é de não saber administrar o meu tempo e medo de me perder em sua grandeza.
Os remédios deram-me determinação. Através deles, fragilizado, determino meus dias, o tempo, meu cotidiano. E são bons (2012, p. 80).
Capucho explora em sua obra a centralidade e o destaque das medicações na vida de um soropositivo, que parece ser uma marca da literatura pós-coquetel. O narrador afasta o medo do vírus, e levanta o medo da domesticação e controle do tempo imposto pelos medicamentos, dos quais não pode se libertar inteiramente. Não é a morte física que perpassa as preocupações do narrador, mas sim a morte da autonomia, de um certo controle do corpo imposto pelos rígidos e inafastáveis horários dos antirretrovirais.
Outra questão importante dessa literatura do HIV/AIDS mais recente são os relacionamentos sorodiscordantes. Um autor também jovem, Felipe Barenco, escreveu sobre essa questão em seu romance de estreia, intitulado Fake (2014). De acordo com o que consta na própria orelha do romance, o livro faz parte da literatura Young Adult, voltada para adolescentes e jovens adultos. O romance de Barenco fala com muita leveza e bom humor sobre questões relevantes, como sair do armário e o processo de descoberta da sexualidade. Seu romance, escrito numa linguagem acessível e moderna, é importante por trazer a discussão do HIV para as gerações mais novas, que não conviveram com o período da epidemia dos anos 1980 e 90.
Considerações finais
O tortuoso caminho trilhado no âmbito da epidemia do HIV/AIDS desde os anos 1980 sempre passou, de uma forma ou de outra, pelas diferentes formas de apropriação da linguagem. No seu início, o total desconhecimento sobre a doença e suas causas, o desejo de apontar culpados e o imenso número de mortes, que tornava impossível ignorar a questão, levou ao que se chamou de “epidemia discursiva”. Cristalizou-se, a partir da predominância de uma forma de linguagem pretensamente científica, sensacionalista e folhetinesca, estigmas e estereótipos ainda hoje muito fortes.
Com a introdução dos medicamentos antirretrovirais, contudo, veio não apenas a possibilidade de sobrevivência, mas também a reação dos setores mais conservadores da sociedade, cada vez mais representados na esfera governamental, com a imposição do emudecimento das campanhas de conscientização e da discussão ampla e aberta sobre o vírus e seus riscos, possivelmente contribuindo para os dados alarmantes refletidos nas estatísticas mais recentes.
Em um momento como em outro, a literatura se viu num cenário de confrontação com discursos retrógrados. Paradoxalmente, apesar das diversas mudanças atravessadas pela epidemia, com destaque para a introdução do coquetel antirretroviral na segunda metade dos anos 1990, muitas das questões iniciais se mantiveram. Se Herbert Daniel se insurgia contra a forma pela qual os doentes de AIDS eram retratados, e Caio Fernando Abreu falava da “paranoia sexual” e buscava fugir dos estigmas construídos em torno do vírus, as obras mais atuais revelam que essas visões datadas ainda hoje impõem sua força.
Por outro lado, questões que nos anos 1980 e 90 eram presentes, porém eclipsadas pelo espectro da morte e pela improbabilidade de um futuro de longo prazo, passaram a ser mais destacadas no âmbito da literatura pós-coquetel. Desse modo, a vida com o vírus do HIV, e não mais a morte por AIDS, passa a ser o enfoque dessas obras, que passam a se debruçar sobre questões como a presença e importância dos medicamentos antirretrovirais nas vidas dos soropositivos, os relacionamentos sorodiscordantes, a autodescoberta e a espiritualidade, dentre tantas outras.
Nessa busca por novas abordagens e por conferir novos significados ao HIV, a literatura não tem sido o único veículo utilizado, contando também com o auxílio de outras formas de expressão, como, por exemplo, os blogs e os canais do Youtube. Pode-se citar, nesse contexto, o canal “Chá dos 5”, do qual participa Rafael Bolacha, que já produziu alguns vídeos sobre o HIV, e o “HDiário”, de Gabriel Comicholi, que se descobriu soropositivo e começou a relatar a sua experiência em vídeos postados em seu canal. Tanto as obras literárias como os testemunhos nos blogs e os canais do Youtube são exemplos de ressignificação dessas experiências e de desconstrução do discurso dominante sobre o HIV/AIDS. Assim, com a apropriação da linguagem, abre-se a possibilidade de modificar o próprio vírus.
* Danilo Rodrigues Melo é mestrando em Literatura Comparada, pelo Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ, com bacharelado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ (2012).
** João Camillo Penna é professor da UFRJ, vinculado ao Departamento de Ciência da Literatura da Faculdade de Letras, com pós-doutorados no Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC-UFRJ; 2002) e na Universidade Paris Diderot-Paris VII (2012). É autor, dentre outros, do livro Escritos da sobrevivência (7Letras, 2013).
Referências
ABREU, Caio Fernando. Triângulo das águas. Porto Alegre: L&PM, 2012.
ABREU, Caio Fernando. Pequenas epifanias. Org. Luiz Arthur Nunes. Porto Alegre: Sulina, 1996.
ABREU, Gabriel de Souza. O segundo armário: diário de um jovem soropositivo. Rio de Janeiro: Autografia, 2016.
BARENCO, Felipe. Fake. Petrópolis: Umô – Usina de Criação, 2014.
BESSA, Marcelo Secron. Histórias positivas: a literatura (des)construindo a AIDS. Rio de Janeiro: Record, 1997.
BESSA, Marcelo Secron. Os perigosos: autobiografias & AIDS. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.
BOLACHA, Rafael. Uma vida positiva. Rio de Janeiro: Cidade Viva, 2012.
POLIZZI, Valéria Piassa. Depois daquela viagem: diário de bordo de uma jovem que aprendeu a viver com AIDS. São Paulo: Ática, 1997.
SEFFNER, Fernando; PARKER, Richard. A neoliberalização da prevenção do HIV e a resposta brasileira à AIDS. In: Mito vs realidade: sobre a resposta brasileira à epidemia de HIV e AIDS em 2016. Rio de Janeiro, Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), julho de 2016. Disponível em: <http://abiaids.org.br/wp-content/uploads/2016/07/Mito-vs-Realidade_HIV-e-AIDS_BRASIL2016.pdf>. Acesso em: 18/12/2016.
SOUSA, Francisco das Chagas Alexandre Nunes de. Literatura e cinema pós-coquetel: da epidemia discursiva aos silenciamentos nas narrativas. Minicurso no II Seminário Internacional Desfazendo Gênero, realizado na Universidade Federal da Bahia, em 6 de setembro de 2015.
Notas
[1] Agradecimento especial a Alexandre Nunes de Sousa (UFCA), de quem ouvi pela primeira vez a expressão “literatura pós-coquetel” num ambiente acadêmico, e cujas considerações sobre o tema no II Desfazendo Gênero (2015) serviram de inspiração para esse texto.
[2] “(…) serpente / das águas divinas / nagayana / unifica as energias / dos corpos nessa jornada de / autocompreensão”
Resumo: Este texto é um exercício para pensar o que é habitar uma fronteira sem deixar de lado o feminino que está, historicamente, enclausurado e silenciado dentro da mulher. Um movimento no sentido da batalha da linguagem, um gesto de investigação d’O livro das comunidades, de Maria Gabriela Llansol, e sua interlocução com uma outra que podemos ser, um outro também.
Abstract: This paper is an exercise to think about inhabiting a border, not forgetting the feminine that is, historically cloistered and silenced within the woman. A movement towards the battle of the language, a gesture of investigation of The Book of the Community, by Maria Gabriela Llansol, and its dialogue with the other that we can be.
Keywords: Border; feminine; woman; language.
0.
O exercício de tentar percorrer, com o dedo, a Fita de Moebius, explicita seu mistério. A sinuosidade da linha mobiliza o corpo num impasse, um não poder seguir enquanto a imagem ali afirma uma ambivalência do que é dentro e do que é fora. A Fita tem sido, talvez de modo mais contundente depois de Caminhando, exercício-obra de Lygia Clark, de 1964, um argumento no sentido do que está para além das dualidades e oposições – que não dão conta das muitas formas de existência.
Essas dualidades, no entanto, continuam sendo a fórmula encontrada nos muitos discursos com os quais nos deparamos: esquerda versus direta, homens/mulheres, homens/bichos, crianças/adultos, “cidadãos de bem” x “bandidos”, nós versus eles, enquadramentos, enfim. Como a existência se faz possível quando é costurada por tantas limitações? Mas, do mesmo modo, como evidenciar a violência cotidiana sofrida por quem não se enquadra nas normas? Como respirar nesse desconforto? Impedir o sufocamento? Habitar a imprecisão e a fronteira? “Havia pensado antes de fazer esta psicanálise em me tornar analista, mas agora quero continuar na ‘fronteira’, pois é isso que sou e não adianta querer ser menos fronteira”, escreve Lygia em carta para Hélio Oiticica (1998, p. 254). O ano era 1974 e a artista, morando em Paris, executava seus experimentos em que grupos compartilhavam situações na beira arte-psicanálise. Ser artista ou psicanalista já não era uma escolha.
1.
Lygia e outras de suas obras continuam, neste momento, a percorrer o caminho proposto por este trabalho, que intenta uma interlocução com outra artista, a escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol. Mantenho Lygia por perto, depois de um pequeno preâmbulo, em que fica anunciado o solo mesmo em que pisa esse texto, por conta de seus Bichos e suas engrenagens de ferro, manuseáveis dado a junção de suas partes por dobradiças. Os Bichos não têm avesso, escreve Lygia (1960), e não tendo avesso não têm direito. Requerem do pensamento uma disponibilidade para o outro – a outra – que podemos ser.
A outra, no feminino, principalmente – esse feminino violentado, silenciado, vilipendiado. Um feminino entendido aqui na borda do gênero, na beira, que habita muitos mundos e que é, também, inventor desses mundos: o feminino que gera – não (apenas) filhos, mas cosmogonias. É dessa porção dos seres, numa conversa com O livro das comunidades (2014) de Llansol, que se encarregam as páginas que seguem. Uma tentativa no sentido de conversar com as obras e montar perguntas que orbitam essas categorias. Que feminino é possível? Que animal é o bicho-mulher? Que existência?
Por isso a lembrança aqui dos Bichos, de Lygia: o manuseio das suas partes, das suas placas de metais, é produtor de uma terceira coisa. Se transforma pela ação de quem o movimenta, mas, ao mesmo tempo, o Bicho não se entrega à passividade, e o que vem a ser depende de ambos – quem manuseia e ele próprio: “Acontece um tipo de corpo-a-corpo entre duas entidades vivas” (Clark, 1960). A batalha, o enfrentamento, o texto, o feminino, todos presentes n’O livro das comunidades (LC), aqui se encontram na ativação de um pensamento pelas beiras, sobreposições, fragmentos. Mais uma vez: que feminino é possível? Que animal é o bicho-mulher? Que existência?
2.
Durante a tempestade, uma mulher e ser vivo sentou-se no solo arenoso por detrás do cavalo; tinha todo o comprimento das pernas tapado por uma longa saia, o busto assente num supedâneo de pedra preta ou ardósia. Com o primeiro relâmpago, a saia abriu-se numa rosa: a pétalas multiplicaram-se tantas quantas as areias do deserto. (…)
Enquanto cozinhava sobre as brasas, o mestre na arte de pensar experimentou o sentimento de ser rosa, de constantemente se abrir em pétalas e perfumes, de ser dama onde a fome monstruosa se acaba e de poder com rapidez ter filhos, tirá-los debaixo da saia, um instante apenas entre fazer amor e lançar crianças (Llansol, 2014, p. 38).
Essa mulher vestida de rosa é também feita de carne e pedra, articulando imagens já conhecidas. Llansol joga também com os artigos definidos: entre os dois parágrafos aqui demonstrados, ela escreve: “o homem deve abdicar do poder e a mulher do homem, pensou a mulher que cozinhava na areia e era mestre na arte de pensar” (p. 38) – sendo ela, portanto, o mestre da arte de pensar. E então o texto apresenta uma inflexão: as crianças são lançadas, tão logo o amor é feito. Uma ideia de jogar ao mundo esse texto que é vida, autônomo em sua força. Llansol dá ainda a medida do fim da fome monstruosa, esse radical do corpo que leva ao aniquilamento: é a dama esse fim, o feminino que faz a comida. Silvina Rodrigues Lopes sugere: “não é apenas como ideia (como símbolo) que devemos ver a mulher. Porque é aquela e não outra” (Lopes, 2014, p. 76). Llansol está a dizer, portanto, que o exercício não é tomar um pelo outro, mas encarar o texto como ele é, a apresentação da própria forma.
O livro se inicia (depois de um prólogo que chama Eu leio assim este livro, assinado por A. Borges, que não conhecemos) com a imagem de uma mulher que não queria ter filhos do próprio ventre, mas que pedia aos homens os filhos de suas mulheres, “para educá-los numa grande casa de um só quarto e de uma só janela” (p. 11). Não fica bem claro quem é essa mulher. De alguma forma, porém, ela continua a povoar o texto, dado que duas de suas figuras (termo que Llansol prefere para se referir ao que mais frequentemente se chamaria personagem), Ana de Peñalosa e Ana de Jesus, habitam o texto também como mães – as que geram e estão presentes. Ao longo do livro, Llansol organiza cenas como Lugares, e tudo se dá neles: “tudo se passa no ‘agora’ da efabulação, aquele em que se está a escrever-ler, pois nada importa pelo seu ‘foi’ ou ‘será’, mas pelo ‘é’ em que se cumpre, para sempre, pelo indizível confronto entre palavras, memórias e silêncios” (Lopes, 2014, p. 63).
São João da Cruz e Tomás Muntzer, principalmente, são outras de suas figuras. Mas também Ana de Peñalosa, Ana de Jesus, Copérnico, Giordano Bruno, Nietzsche, a cadela Maya, o cavalo Pégaso (que depois se transforma no Coração de Urso), Mestre Eckhart, entre outros. Tais figuras atravessam o livro no constante jogo que é escrever, transformar a existência em texto, deslocando referências e revirando o solo mesmo pelo qual caminham. O que Ana de Jesus escreve, sem caneta ou papel, é texto, é existência. Assim como as pegadas do cavalo e o desenho que a quilha do barco faz na água. As imagens que Llansol apresenta são um exercício para pensar a existência por texto e escrita, aquela que se pode fazer, que vem da mão, mas também das marcas deixadas no e pelo corpo dos viventes.
Todas as figuras ocuparam a história ocidental em algum momento, e são retirados dessa história para compor outra pelas mãos de Llansol. Eles foram rebeldes – LC faz parte de uma trilogia que tem por nome Geografia de rebeldes[1]. Não se encaixaram e tentaram mostrar um outro mundo aos que os podiam ler ou conviver.
As figuras criadas no LC ajudam-nos a ver o inacabado do mundo, os seus vazios ou presenças sem imagem. Uma figura tem algo a ver com uma imagem, mas distingue-se dela radicalmente. Na imagem prevalece a analogia. (…). A figura é um todo múltiplo que não é “figura de” (Lopes, 2014, p. 68).
É o que acontece também a Giordano Bruno e Copérnico, mencionados n’O livro. Copérnico medita e a luz do dia entra pela janela: “E ao meio de tudo repousa o sol” (Llansol, 2014, p. 44). Sabemos que tal frase era uma heresia. Depois é São João da Cruz “que medita, o Sol de Copérnico batendo-lhe nos olhos e prendendo-lhe a cabeça de Müntzer entre as mãos” (p. 45). O sol que Copérnico, perseguido como Bruno, também posiciona “ao meio de tudo”. Duas esferas – o sol e a cabeça decapitada – o meio de tudo, a cabeça do homem moderno, a centralidade posta à prova – movimento necessário ainda hoje quando pensamos em toda necessidade de desfazer os centros.
3.
E por isso a urgência de pensar o feminino, historicamente enclausurado e silenciado. Foi esse o feminino oprimido, e com ele o corpo e as possíveis fabulações da mulher, diretamente conectada com ele. Mas não há, também, feminino no homem? O feminino, portanto, para além dos gêneros. Entender o lugar fronteiriço que habitamos faz parte do exercício de abrir brechas nos encadeamentos normativos impostos. Espaços de respiros. Ensaios de percepção do lugar que ocupa a mulher na literatura e no campo da arte.
Pela conexão direta do feminino com a mulher, e dado esse lugar de silenciamento, Llansol, à semelhança de suas figuras e as histórias que a elas estão conectadas, não ocupa lugar de destaque no mercado literário (talvez num restrito circuito acadêmico, ou de leitores). Não é largamente conhecida nem recomendada, como não o são outras autoras mulheres – ao contrário de muitos dos nomes de homens que se apresentam ao lembrarmos dos nossos autores preferidos.
Por que não houve grandes mulheres artistas?, então? A professora de arte moderna Linda Nochlin, que intitula o pequeno ensaio de mesmo nome, faz a pergunta. Considerada historiadora da arte feminista, Nochlin nos sugere não cair na armadilha de tentar responder à pergunta da forma como ela é colocada – montar as tais listas se mostra importante em outro contexto – mas, “ao tentar respondê-la, elas tacitamente reforçam suas implicações negativas” (2016, p. 4). Outro ímpeto, aponta a autora, é destacar as diferenças, na arte, entre homens e mulheres, selecionando temas caros ao que está referenciado como feminino e masculino. Outra armadilha: “a mera escolha por determinado tema, ou a restrição por determinados assuntos, não pode equiparar-se a um estilo, muito menos a um estilo feminino quintessencial” (p. 6).
Neste contexto, que parte da questão como está colocada, a estratégia é outra: desmontar essa estrutura mesma que a forja. Quem a está formulando? De onde ela parte?, o que está sendo chamado de grande? Nochlin sugere pensar não só sobre a “questão feminista”, mas outras, de outras minorias, também oprimidas e silenciadas: “em nossos tempos de comunicação instantânea, as questões são rapidamente formuladas para racionalizar a má consciência daqueles que detém o poder” (p. 9). Dessa maneira, a “questão da mulher” é manuseada pelo patriarcado, assim como a “questão da pobreza” é de manipulação das elites, e a “questão branca” a ironia que distorce a “questão negra”.
A dita “questão da mulher”, como todas as questões humanas (e chamar tudo o que é humano de “questão” é uma ideia bem recente[2]) não é passível de nenhuma “solução”, já que o que envolve as questões humanas é uma reinterpretação da natureza da situação ou de uma alteração radical de posição ou programa por parte das próprias questões (p. 9).
Em outras palavras: rever a história, remontar a memória. Pelas mãos dos grupos oprimidos, por óbvio. É contra as estruturas institucionais que precisamos nos erguer, nos diz Nochlin, e a naturalização dessas estruturas, que posiciona os seres e os nomeia, silenciando neles (em nós) a experimentação da linguagem. É, de modo semelhante, o que também diz Virginia Woolf quando escreve Um teto todo seu, em 1928.
Logo nos primeiros capítulos, Woolf descreve o dia em que recebeu duas mensagens importantes: a herança de uma tia, que a beneficiava com um valor fixo mensal, e a aprovação do decreto que incluía as mulheres nos processos eleitorais com o voto. Para ela, a notícia da renda fixa era infinitamente (e ela usa esse advérbio) mais importante. Naquele momento, não depender de um homem, não estar subjugada aos seus mandos por ser mantida por ele, foi libertador.
É impressionante a mudança de ânimo que uma renda fixa promove. Nenhuma força no mundo pode arrancar-me minhas quinhentas libras. Comida, casa e roupas são minhas para sempre. Assim, cessam não apenas o esforço e o trabalho árduo, mas também o ódio e a amargura. Não preciso odiar homem algum: ele não pode ferir-me. Não preciso bajular homem algum: ele nada tem a dar-me (Woolf, s/d, p. 48).
A herança recebida da tia desmontava, conta a escritora, o posicionamento previsto para uma mulher no começo do século passado (curioso pensar que a autonomia financeira ainda é um passo pungente da luta – mas mesmo essa autonomia não nos livra da opressão). Antes dela, antes da herança, antes de Virginia Woolf ser a escritora requisitada para falar sobre mulheres e literatura, a presença das mulheres nas listas de artistas era ínfima. O capítulo terceiro de Um teto todo seu conversa intimamente com o ensaio de Linda Nochlin, e também percorre a pergunta: por que não houve grandes mulheres artistas? “Pois é um enigma perene a razão por que nenhuma mulher escreveu uma só palavra daquela extraordinária literatura, quando um em cada dois homens, parece, era dotado para a canção ou o soneto”, se indaga Woolf (s/d, p. 53). Ela recorta o período elisabetano, tempo de Shakespeare, mas nós podemos, com pouca dificuldade, estender o argumento para outros tempos e territórios: “A indiferença do mundo, que Keats e Flaubert e outros homens de gênio tiveram tanta dificuldade de suportar, não era, no caso da mulher, indiferença, mas, sim, hostilidade” (p. 66). Quem de nós não passou por isso?
Vale ainda um outro argumento de Linda Nochlin, ampliando um problema já apontado por Virginia Woolf: a ideia que temos do que é ser um artista. Por muito tempo o imaginamos grande e iluminado, atrevido e impertinente, descolado dos problemas prosaicos e cotidianos. Não o alcançamos, e essa é a motivação da imagem que se constrói sobre ele – aumentar tal fosso.
Encorajar uma abordagem desapaixonada, impessoal, sociológica e institucionalmente orientada, revelaria toda uma subestrutura romântica, elitista, de mérito próprio, monotemática na qual toda a carreira da arte está baseada (Nochlin, 2016, p. 13).
Fica, assim, evidente que a ausência de “grandes mulheres artistas” aponta, na verdade, para o problema de uma estrutura montada e institucionalizada, de categorias estanques. Aponta, portanto, para o problema de se haver perfilado, categoricamente, quem é aceito e quem não é. Quais os caminhos possíveis para desestabilizar essa estrutura? Quais desvios possíveis, tendo em vista que não interessam novas estruturas? Como habitar a fronteira?
Essa batalha, para Maria Gabriela Llansol, se dá na escrita, no manuseio da linguagem, num outro modo de dizer. A batalha não se distingue da caminhada que fazem as figuras, elas se atravessam e se perfazem, nos dizendo da indissociação do movimento e da luta. “Ana de Peñalosa e Ana de Jesus nessa noite não dormiram um instante. Vestiram os vestidos que melhor as exprimiam; e esperaram sentadas uma em frente a outra, vendo sempre no mesmo espelho o que se passava” (Llansol, 2014, p. 46). Um jogo de reconhecimento, de correspondência entre uma e outra, assim como correspondência entre o texto e o mundo. Jacques Rancière, em La palabra muda (2009), também aponta uma correspondência: que as leis da linguagem são as leis do mundo – o que pode ser lido como a abstração de um fim: leis infinitas. Experimentar a linguagem é mover essas leis. É, assim, a mesma chave de disponibilidade que vem sendo investigada aqui, já que infinitas são as combinações das imagens de Llansol, montadas a partir desses fragmentos, de curtas sugestões conectadas a outras, num encadeamento também infinito. O fragmento é, afinal, o modo como a realidade se apresenta. Caso assim não fosse, seria impossível sustentar a intensidade que ela carrega em si (Llansol, 2011). Rancière é preciso sobre este ponto:
El fragmento es la unidad en la cual toda cosa fijada vuelve a introducirse en lo movimiento de las metamorfosis. Desde un punto de vista filosófico, es la figura finita de un proceso infinito. Desde un punto de vista poético, es la nueva unidad expresiva que reemplaza a las unidades narrativas y discursivas de la representación (Rancière, 2009, p. 80).
Por todo o livro é vívido o estar junto como acontecimento, o que se dá ali, mas não se instaura nem se cristaliza. O texto é um exercício de abandono, afinal: “Tinham a impressão de caminhar através do tempo, o espaço não era nada; deixaram a casa, a janela, o rio, o deserto, o bosque, as regiões polares e concentraram-se na palavra” (Llansol, 2014, p. 46). A concentração na palavra também se dá ao jogo do abandono e do desfazimento. O texto do qual se compõe o mundo não permanece: “a escrita não se deixa caracterizar por uma só comparação. Era isto que estava escrito e que rapidamente se apagou” (p. 58).
Llansol apresenta um texto e com ele nós, os legentes (termo com o qual a escrevente se refere aos seus leitores) constituímos sua intervenção no mundo. Estar em contato com um texto que se fragmenta e que assim perscruta uma totalidade é de um estranhamento ímpar. O convite que ela nos lança (do mesmo modo como as suas mulheres fazem amor e lançam crianças?) é quase incômodo, mas continua sendo poético. “A fecundidade do dom é a única retribuição do dom” (p. 42), ela nos diz. Um ciclo, talvez? Uma engrenagem de seres, todos juntos, compondo essa totalidade, atuando nos dentro-fora? O avesso de uma identidade, que não a exclui, mas também não se fecha nela: “o ser humano é o único que pode arriscar sua identidade”, responde Llansol em janeiro de 1995 ao jornal público (republicada no livro de 2011, Entrevistas).
Ler O livro das comunidades provoca um rebuliço, são muitas vozes que se entrecruzam. Llansol sabe disso, e por aí procura fazer com o que o legente perceba o enfrentamento que está a encarar: “abalos sísmicos”, “abalos energéticos”, chega ela a descrever, “em que eu pressinto que esta terra onde nós estamos pode ser utilizada de outra maneira” (2011, p. 55), em trecho de resposta para uma entrevista de 1997. O feminino do qual somos constituídas – constituídos – também pode ser manuseado de outra maneira?
Essa outra maneira, assim, tem a ver com o nosso feminino exposto, constituindo um comum com as outras ordens dos seres. Feminino criador de cosmogonias, que faz nascer, portanto, mas que “não é ele próprio nem um determinismo biológico nem uma Lei da Comunidade” (Lopes, 2014, p. 83). Que provém o texto e a escrita, um feminino propositor de uma totalidade em que os seres se completam e estão abertos às combinações possíveis – que não se enclausura, enfim. Uma compleição que não se diz harmoniosa, mas se vincula a uma correspondência no estar juntos. “O vínculo deve respeitar o ritmo das mudanças e perceber em potencialidade a forma assumida por aquilo que a precede” (Bruno, 2012, p. 34), assinala Giordano Bruno, uma das figuras d’O livro.
Giordano Bruno sugere um encadeamento e fala em ritmo, que na leitura de um texto é algo muito particular – ditado apenas por quem lê. O ritmo que se dá numa entrega, sem opressão, idiorrítmica, como entendia Roland Barthes (2003, p. 12) – sua fantasia era a idiorritimia: “Uma fantasia (ou pelo menos algo que chamo assim): uma volta de desejos, de imagens, que rondam, que se buscam em nós, por vezes durante uma vida toda”. A fantasia da qual fala Barthes pressupõe um cenário, um lugar, que é, afinal, como se organiza O livro das comunidades. Quanto ao ritmo, próprio, Llansol pergunta, em seu segundo diário publicado, Finita: “Por quanto tempo lês um pequeno período extenso?”. A frase vem entre aspas, mas sem referências. A resposta, sem aspas, é uma outra pergunta: “Por um segundo, um minuto, um ano, toda esta noite, toda esta vida? Ler estende-se pelo tempo e quer o espaço do dia-a-dia para projetar a sua sombra. Ler estende-se por vertentes desconhecidas, e eu leio pouco, mas infinitamente” (2011, p. 116).
As sugestões da escrevente sobre como ler o próprio texto são importantes também para quem se dispõe a estar diante da folha em branco, da pungência da página não escrita. Se o que ela convida é a um modo de leitura infinita do mundo, dos seres ao redor, dos livros ao redor, leitura para o pensamento, pelo pensamento, leitura que monta, como já foi dito aqui, um “correspondente do mundo” (2011, p. 15), é possível estender esse modo como chave de leitura de sua escrita. Ou uma sugestão de como entender o feminino em sua obra. Qual a forma da escrita de quem faz a leitura de modo “infinitamente”?
5.
Antes de findar essa conversa, longe de qualquer tentativa de conclusão, vale contar a história de uma pintora de séculos atrás. No final do XVI, quando não havia Itália, mas Vaticano, que violentamente expandia seu território em nome de Deus, a pintora Lavínia Fontana ocupava o lugar de uma bem-sucedida artista no alto clero e na alta aristocracia da Bolonha. Incentivada pelo pai, Próspero Fontana, “agenciada” pelo marido, um pintor que não chegou a conhecer fama, e com quem teve 11 filhos, Lavínia deixou para a história uma série de pinturas e desenhos que atestavam o que era ser mulher naquele tempo – ainda hoje uma existência que causa incômodo.
Lavínia deixa entrever, em alguns de seus quadros, um cão negro. Há também um outro, branco, explícito. E o negro: ou ao fundo do quadro, longe da cena, ou no canto, muito próximo do objeto central da pintura, mas não tão exposto (como em Portrait of a Bearded Man e Nun or Young Woman with a Veil). Ademais, Lavínia deixou para a história o retrato e a vida de Tognina Gonzalez – a garota que sofria de uma enfermidade que fazia crescer cabelo por todo o corpo, inclusive no rosto, chamada hypertrichosis. Eram tratados como aberrações Tognina, seu pai e as duas irmãs, que sofriam da mesma doença. Mas Lavínia a pinta como uma garota comum – com um semblante sereno, uma postura de menina e cores amenas. A pintora, mulher num ambiente dominado por homens, talentosa na profissão que havia adotado para si num mundo em que mulheres não costumavam ter profissões de modo algum, lança uma centelha fumegante na estrutura perversa que já aí hierarquizava práticas e seres. É como se dissesse: “não tenho o rosto coberto de pelos, mas sou igualmente um ser estranho”, como se afirmasse a humanidade presente na criança.
* Júlia Lopes é doutoranda do Programa de Literatura, Cultura e Contemporaneidade da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Desenvolveu dissertação de mestrado sobre comum e comunidade tendo como objeto o projeto de ocupação urbana Lotes Vagos, de Breno Silva e Louise Ganz, na Universidade Federal do Ceará. Desenvolve pesquisa com esse mesmo escopo teórico, mas agora na trilogia Geografia de rebeldes, de Maria Gabriela Llansol.
Referências
BARTHES, Roland. Como viver junto. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BRUNO, Giordano. Osvínculos. Trad. Eliane Sartorelli. São Paulo: Hedra, 2012.
CLARK, Lygia; OITICICA, Hélio. Cartas. 1964-1974. Org. Luciano Figueiredo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998.
LLANSOL, Maria Gabriela. Entrevistas. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011a.
LLANSOL, Maria Gabriela. Finita. Diário II. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011b.
LLANSOL, Maria Gabriela. O livro das comunidades. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2014.
LOPES, Silvina Rodrigues. “Poética do desprendimento”. In: FENATI, Maria Carolina. Partilha do incomum. Florianópolis: Ed. UFSC, 2014.
NOCHLIN, Linda. Por que não houve grandes mulheres artistas? Trad. Juliana Vacaro. São Paulo: Edições Aurora, 2016.
RANCIÈRE, Jacques. La palabra muda. Trad. Cecília Gonzáles. Buenos Aires: Eterna Cadencia Editora, 2009.
Resumo: Este artigo realiza a leitura de algumas fotos de Claude Cahun, artista e escritora conhecida hoje principalmente por seus autorretratos. A sua obra é interessante não só por estar ligada de alguma maneira às questões do surrealismo, mas também pela forma em que utiliza o seu corpo para cruzar as linhas de gênero.
Palavras-chave: Claude Cahun; gênero; autorretrato; estudos Queer.
Abstract: This paper offers a reading of a few photographs by Claude Cahun, an artist and writer best known today for her self-portraits. Her work is interesting not only because it is somewhat tied to the themes of surrealism but also because she utilizes her body in interesting ways to cross the limits of gender.
Keywords: Claude Cahun; gender; self-portrait; Queer studies.
It’s good to be neuter
I want to have meaningless legs
Anne Carson
Claude Cahun (Lucy Schwob 1894-1954) publicou apenas uma foto enquanto fotografia em vida – muitas outras apareciam em suas colagens. O restante do seu vasto arquivo de fotos, quase todos autorretratos, só foi descoberto depois da morte de sua companheira Marcel Moore[1] em 1972, quando os objetos da casa em que haviam vivido juntas desde 1937, na Ilha de Jersey no Canal da Mancha, foram colocados à leilão. As fotos foram redescobertas na década de 1980, quando François Lepellier, pesquisando o surrealismo, encontrou menções esparsas a Claude Cahun – algumas bastantes elogiosas por parte de André Breton – e, levando a cabo sua investigação, deparou-se com um universo imagético profícuo, decidindo publicar um livro. O livro foi lançado em 1992, junto com a primeira exposição das fotos de Cahun em Nova Iorque. Se por descobrir entendemos o processo de conceder visibilidade àquilo que estava antes invisível, pelo menos desde a perspectiva de quem está olhando pela primeira vez, e que esse processo também acolhe o ímpeto inventivo-fundador, no sentido de inventar ali uma origem, é importante algum cuidado para não atribuir à obra de Claude Cahun a origem de uma teoria que a sucedeu, não tanto por temer o anacronismo (a fotografia nem existiria se o risco fosse o anacronismo), mas por considerar restritiva a associação direta, sem nuances e modulações, entre a obra de Cahun e a teoria queer (ou os estudos de gênero no geral). De fato, é irresistível ler sua obra desde essa perspectiva – e tenho certeza que eu também não resistirei –, mesmo que a sua obra preceda inclusive o conceito de gênero tal qual o utilizamos hoje, terminologia proposta por John Money em 1955, médico pediatra que deu início às cirurgias de mudança de sexo, com enfoque principalmente em bebês intersexuais, visando à sua normativização. Claude Cahun está em busca de uma palavra inexistente; em seu livro/diário Aveux non avenus (1930), ou Disavowals: or Cancelled Confessions na edição em inglês (2008), ela diz: “Shuffle the cards. Masculine? Feminine? It depends on the situation. Neuter is the only gender that always suits me. If it existed in our language no one would be able to see my thought’s vacillations.”[2]Gender, ela diz, futuristicamente, embora a palavra em francês, “genre” tivesse à época apenas o sentido de “tipo” ou de classe morfológica gramatical. Não ao acaso as fotografias de Cahun ganham visibilidade a partir do início da década de 1990, quando da publicação de livros como Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity, de Judith Butler. Igualmente, por outro lado, é possível compreender que se tal palavra existisse, não haveria obra, não haveria a possibilidade de observar a sua oscilação: “I’d be a worker bee for good”.[3] Claude Cahun precede a cartografia identitária ligada à guerra das palavras, o que não quer dizer que desconsidero a importância de discutir a tensão interna a cada conceito; o que não quer dizer que não haja uma guerra e que essa guerra também se dê nas palavras, mas significa apontar apenas para a sua dissidência sexual em detrimento, por exemplo, da palavra queer, que por ser uma categoria negativa – a categoria daqueles que não têm categoria – parece poder se universalizar a despeito do fato de que já deveríamos saber melhor a essa altura[4]. Não posso afirmar que Cahun fosse lésbica, transgênero ou genderqueer, pois não há evidência de sua autoidentificação nesses termos. Talvez o mais importante seja evitar atribuir ineditismo excessivo à obra de Claude Cahun, que, ainda que seja desde certa perspectiva espantosa (e mesmo que ela se pareça, em algumas fotos, embora não as escolhidas para o texto presente, com David Bowie ou Tilda Swinton), está também bastante em sintonia com certo panorama cultural de sua época. Além do surrealismo, que impactou e foi impactado pela obra de Cahun (e, claro, aqui fica também a questão de seu esquecimento diante da consagração de seus amigos e colegas homens), o início do século XX, principalmente em Paris, se configurava como um território de intensa discussão e perfomatização de gêneros e sexualidades, como indicam, por exemplo, a circulação de Gertrude Stein e Alice B. Toklas, talvez o casal homoafetivo mais famoso da época, pelos altos círculos artísticos, que contavam com os incentivos de outro casal famoso, Sylvia Beach (dona da editora e livraria Shakespeare and Company) e Adrienne Monnier (dona da livraria La Maison des Amis des Livres); e mudanças decisivas na moda, como a crescente utilização de calças e cortes de cabelos curtos por mulheres. Em 1919, na Alemanha foi produzido um dos primeiros filmes a discutir a homossexualidade, Anders als die Andern (Diferente dos outros), coescrito e coestrelado pelo sexólogo Magnus Hirschfeld. Claude Cahun ajudou a traduzir alguns livros de outro sexólogo da época, Havelock Ellis, que não considerava aquilo que ele denominava de inversão sexual como crime, depravação ou doença – embora fosse, ao mesmo tempo, um defensor da eugenia –, e discutia narcisismo e autoerotismo, elementos que seriam muito importantes para a obra de Cahun. Em 1929, Joan Riviere publica Womanliness as Masquerade, uma obra que propõe que a feminilidade seria uma máscara utilizada por mulheres para sobreviver em um mundo masculino. Máscaras eram itens bastante utilizados por Cahun em suas composições, embora muitas vezes fosse o seu próprio rosto que servisse de máscara – sua máscara preferida, dizia, era a carne. Àquilo que chamamos hoje de gênero, Cahun já sabia há muito de que se tratava de pura performance e encenação. Em uma de suas colagens mais famosas (1929), vemos seu rosto multiplicado sobre um mesmo pescoço, com intervenções que dão a ele um caráter de máscara; é possível ler aí: “Embaixo de uma máscara uma outra máscara. Eu nunca vou terminar de tirar todos esses rostos”. No canto da colagem, Cahun, a parte de cima de sua roupa simulando um torso masculino, avisa: “Estou em treinamento; Não me beije”. Em uma foto encontrada em seu arquivo, de onde ela recortou sua figura, vemos que ela carregava halteres. Talvez treinasse contra a santa família. Talvez burlasse com a virilidade atribuída aos homens. Ao mesmo tempo fazia um comentário sobre a suposta delicadeza feminina. Na parte de cima da colagem, em traços construtivistas, bonecas russas – matryoshkas – grávidas e uma família ligada pelo ventre parecem indicar para a reprodução serial como norma da existência humana. Mais para baixo, um corpo estendido cede a região do seu ventre à produção de outras formas de existência.
Colagem, 1929
No mesmo ano de 1929, Virginia Woolf publica A Room of One’s Own (em 1928 publicara Orlando) e parece importante dizer que Claude Cahun, sobrinha do escritor Marcel Schwob, tinha um quarto todo seu, não só para escrever, mas também para explorar a sua dissidência sexual. Diz Virginia Woolf: “Then I may tell you that the very next words I read were these —’Chloe liked Olivia…’ Do not start. Do not blush. Let us admit in the privacy of our own society that these things sometimes happen. Sometimes women do like women. ‘Chloe liked Olivia,’ I read. And then it struck me how immense a change was there. Chloe liked Olivia perhaps for the first time in literature”[5]. Em seu diário/livro, Claude Cahun, cujo senso erótico era muito menos delicado e contido do que o de Woolf, descreve assim o seu encontro amoroso, como se duas medusas tivessem se conhecido: “Our hair became so entangled that night, that in the morning – to end it – we had to have our heads shaved”[6].
///
Frontière humaine, autorretrato, 1930
Em 1930, Claude Cahun publica um autorretrato seu, intitulado Frontière humaine, na revista Bifur, edição de número 5. A foto, com o crânio alongado por anamorfose, o peito aplainado e coberto com um pano preto, exacerbando a tridimensionalidade da cabeça, exagerada ainda mais pela ausência de cabelo e a imperceptibilidade das sobrancelhas, centraliza o objeto fotográfico em torno do busto – uma figura sem braços – sua pele extremamente branca em contraste com o fundo escuro, dando um caráter escultórico à figura de Cahun. Diferentemente da maioria de seus autorretratos, o olhar de Cahun evita a câmera; a angulação da cabeça anamórfica, que parece pender devido ao seu tamanho e peso excessivos, pronuncia também o tamanho da orelha. A foto e a sua estranheza – as suas desproporções –, portanto, compõem o índice visível e táctil daquilo que existe entre a fronteira do que podemos chamar aqui de animado e inanimado, humano ou inumano, saudável e doente, feminino ou masculino. Cahun se desveste para se travestir, e a sua pele exposta não nos aproxima do humano, daquilo que seria o mais humano do humano, mas, ao contrário, a sua cabeça se expande, tensionando essa fronteira. É importante lembrar que a palavra “gênero” também designa aquilo que está mais-além da espécie. As dimensões de sua cabeça tornam a experiência de olhar a fotografia estranhamente tátil, mas não podemos saber o que estamos tocando.
Toda foto tem algo de espectral no sentido de que aquilo que se capta é reflexo, matéria retroprojetada em luz que interage com o nitrato de prata do filme, e revela a dimensão não-corpórea do corpo, o corpo que existe fora do corpo, o corpo deslocado de seu próprio lugar, isto que tramita entre o vivo e o não-vivo. Segundo Susan Sontag, “uma foto é tanto uma pseudopresença quanto uma prova de ausência. (…) são tentativas de contatar ou de pleitear outra realidade”. Na foto de 1928, Que me veux-tu? (O que você quer de mim?), a dupla exposição evidencia essa espectralidade, que cinde Cahun para multiplicá-la em dois. Barthes dizia que a fotografia continha em si algo da morte; sendo Claude Cahun judia, a foto – a cabeça também aqui raspada – parece evocar os horrores futuros dos campos de concentração, aos quais escapou ao mudar-se com Marcel Moore de Paris para a Ilha Jersey em 1938, só para serem presas pelos nazistas em 1944 e condenadas à morte, embora tenham sobrevivido à pena com o fim da guerra[7].
Que me veux-tu?, autorretrato, 1930
Na foto, uma Cahun está de frente para nós, seus ombros nus translúcidos, mas desvia o seu olhar, enquanto outra Cahun, de regata preta, de costas, gira em direção à câmera. O olho, cuja direção é difícil de discernir devido à maquiagem preta, nos olha de soslaio, mas olha também para a outra Cahun, que afasta o seu rosto. Quem quer o quê de quem? A ausência de recursos anamórficos não impede a estranheza da foto: algo da desproporcionalidade de Frontière humaine se mantém pela posição das cabeças carecas em contraste com o fundo escuro. A tela que serve de pano de fundo dá uma dimensão porosa à escuridão. A linha do maxilar da cabeça de perfil se alinha ao ombro da outra cabeça e parece atá-las a uma mesma base, sugerindo um ser bicéfalo composto por uma fantasmagoria. Não o corpo acéfalo de Bataille, mas um corpo com duas cabeças, em que as cabeças não parecem ser aliadas entre si, isto é, não potencializam a identidade, e sim fazem um aceno à síntese impossível: uma cabeça se impõe à outra, que retrocede, a feição vulnerável. Neste autorretrato de 1939, a estrutura de madeira que sustenta uma cabeça de gesso com um cabelo de flores e nos encara diretamente parece ter uma dimensão mais real e viva que a própria Cahun, cuja figura, ao fundo, extremamente pálida, oculta o corpo de baixo de uma capa preta, seus olhos cerrados. A sua cabeça (a cabeça de carne e osso) parece levitar, como se pudesse ser apenas uma prótese a ser inserida no outro corpo, que se faz presente como aquilo mais facilmente indentificável como corpo, com seus ombros largos e seu pescoço alongado.
Autorretrato, 1939
Em Paris, 1909, em uma sessão mediúnica realizada por Julien Ochorowicz, co-diretor do Institut Général Psychologique de Paris, e mediada pelo polonês Stanislava Tomczyk, um espírito, chamada de Little Stasia, demandou: “Eu desejo fotografar a mim mesma; preparem os instrumentos!”. Little Stasia teria dado instruções precisas com relação à distância e ao foco da lente, pedindo em seguida privacidade e algo para se cobrir. Ochorowicz abriu o obturador e retornou à sala somente quando Little Stasia avisou que havia terminado. Quando revelado, o autorretrato (que em muito se assemelhava às fotografias pictorialistas) mostrava uma mulher, aparentemente dentro dos parâmetros daquilo que convencionalmente se designa como um ser humano vivo, se desconsiderado o fato de estar aparentemente emergindo de uma matéria de textura indefinida. O espiritismo devolveu à fotografia sua relação com as ciências ocultas porque foram primeiro os alquimistas no século XV que descobriram como combinar prata com sais marinhos para transformar aquilo que era branco em preto quando exposto à luz. No final do século XX, com a descoberta dos raios-x e a sua difusão no mundo da fotografia, até mais do que na física, os usos da imagem se voltam para aquilo que não era necessariamente visível a olhos nus.
Little Stasia, 1909
Não sei se Cahun acreditava em espíritos e fantasmas, os surrealistas em geral não se interessavam por espiritismo, e não há nada em seus escritos que indique isso – apesar de que falava bastante em anjos – mas buscava, ao contrário dos pictorialistas, o insólito por meio de um olhar quase documental, um encontro com a dimensão tátil da luz e sua retradução em composições sobre si mesma. Nas suas fotos, porém, não está claro o que viria a constituir este “si mesma”, porque a instabilidade é a norma – “I’m obsessed with the exception”[8]. Apesar da pouca manipulação do negativo e a utilização daquilo que se chama – bastante ironicamente, neste caso – de straightphotography, Cahun evoca os fantasmas daquilo que são e ao mesmo tempo não são a sua pessoa. As suas fotos em geral não precisavam ser manipuladas para tensionar a fronteira em relação ao irreal ou ao sobrenatural porque era o seu próprio corpo o local desse tensionamento – o seu corpo (muitas vezes só a cabeça) em relação aos seus objetos de cena e também em relação às normas e convenções da época. Este autorretrato de 1925 faz parte de uma série de quatro fotografias em que Cahun nos oferece expressões e ângulos distintos. Diferente das fotos acima, sua cabeça está solta, não descansa sobre ombros, mas sobre a própria base da redoma de vidro (e lembremos aqui de The Bell Jar, de Sylvia Plath), seus olhos nos miram diretamente. Diferentemente de Little Stasia, Cahun interpela quem está detrás do vidro e, por meio do vidro, converte quem olha em fotógrafo – isto é, o vidro se converte em uma espécie de lente cuja mediação torna mais evidente que ela está nos olhando olhar para ela. O reflexo na redoma não revela quem está do outro lado – e por isso mesmo pode ser qualquer um –, mas cria mais uma moldura para o seu rosto, uma redoma de luz.
Autorretrato, 1925
Man Ray, amigo de Cahun, tiraria uma foto bastante similar cinco anos depois chamada Hommage à D.A.F de Sade, onde a cabeça da modelo se tornaria uma imagem perfeita de natureza morta, apoiada sobre um livro, sob uma redoma de vidro. A mulher está vendada; sua vulnerabilidade, como é comum nas fotos de Ray, é explorada por um olhar que a sensualiza, esse lugar-comum que a mulher ocupou no imaginário dos homens surrealistas. Se a redoma serve para preservar, ou seja, adiar a decomposição daquilo que se encontra lá dentro, o rosto de Cahun surge como uma espécie de morta-viva peculiar, um ser estranho que habita um terrarium. É que Cahun já parece estar em outra parte, não necessariamente morta, uma astronauta ou escafandrista, uma espécie de protótipo de um dispositivo de inteligência artificial. Na foto abaixo, de 1947, Cahun, seu rosto coberto, se converte em lápide, e as lápides ao fundo também ganham uma perturbadora expressividade humana. À frente de todos, ela parece comandar o exército de túmulos com a sua única luva preta no braço esquerdo, o outro braço simulando uma luva com a sua própria pele, pelo uso de um bracelete fino. É possível também que ela seja apenas a sentinela, uma espécie de guardiã que, entre os dois mundos, vive em meio à folhagem e oculta o seu rosto porque não é com os olhos que vê.
Autorretrato, 1947
Já na foto que segue, de 1931, chamada Le combat de pierres (A luta de pedras), uma dupla exposição, Cahun se converte em dois monolitos rochosos, um par de braços estendido ao outro par, mas sem se encontrar porque se transpassam e encenam o toque impossível (e penso aqui na escultura de Maria Martins, O impossível). As figuras totêmicas em que Cahun se converte, como se esculpindo o monolito desde dentro, animam a rocha – assim como as intempéries às quais foi exposta e o líquen que encontrou ali um substrato – transformando-a em uma espécie de divindade telúrica ou ctônica com suas pulseiras cerimoniais, um modo de existência absolutamente sem gênero: o cálcio de nossos ossos – a nossa dimensão lítica – foi feito a partir de estrelas em colapso. Escreve Jeffrey Jerome Cohen, “Queerly productive, rock does not offer the easy fecundity of soil, Gaia as mother”[9] e se houvesse algo como uma ideia rochosa do amor, isto é, a história da mutualidade não-óbvia que é possível desenvolver com a rocha, seria uma fadada ao desencontro porque a pedra, como a fotografia, muitas vezes – quase sempre – perdura em relação a quem ela afeta ou a quem é afetada por ela.
Autorretrato, 1931
Donna Haraway escreveu que o pensamento em torno de como significados, sentidos e corpos são feitos tem como força não a possibilidade de negar o sentido e os corpos, mas sim a potência de criar sentidos e corpos que contenham a chance de um futuro, sentidos e corpos em que seja possível habitar. Sem também buscar uma força transcendente, a questão seriam corporificações alternativas, alianças prostéticas – maquínicas mas também anímicas, e como vimos, tectônicas, de modo a enfatizar a natureza plástica do corpo. Com o seu corpo, a cada vez outro, Cahun revela que este mundo em que vivemos não é o melhor dos mundos possíveis. O corpo normativo também não é o melhor dos corpos possíveis. Neste autorretrato de 1930, também uma dupla exposição, dois corpos convivem. Um é feito dos detritos da praia, elementos que ao mesmo tempo são o futuro da praia – gravetos, pedras, conchas –, um corpo provisório à espera da maré, um corpo mais próximo da decomposição, da sua degradação em areia. Um graveto no meio do ventre propõe algo fálico, algo masculino – e de fato a figura humanoide já havia aparecido em outra fotografia, ligeiramente modificada, entitulada Le Père (O pai) –, mas não só. O outro corpo emoldura com as mãos a mesma região, mas ali se encontra desgenitalizada, convertido em tentáculos. Cahun está metamorfoseada em um polvo, sua cabeça ausente, e seus pés lhe seguem sendo úteis fora da água. A classe dos cefalópodes, diz Vilém Flusser em um livro dedicado a criticar a nossa existência vertebrada desde a perspectiva de um molusco, é aquela em que o rabo engoliu a cabeça, conformando um corpo que é uma boca circundada por pés. Deleuze dizia que a saúde, como a literatura, consistia em inventar o povo que falta, um povo cuja missão não seria a dominação; Cahun, sua pele brilhando ao sol, a viscosidade de seus novos membros, aqui incorpora o polvo que falta, isto é, um corpo que a cada vez dá corpo a si mesmo, expandido as possibilidades para a sua forma. Paul B. Preciado escreveu sobre a dificuldade em se acostumar com as modificações em sua voz resultantes da administração de testosterona: ela não se reconhece, e os outros muito menos; sua mãe não a reconhece ao telefone. A ruptura do reconhecimento explicita a distância que sempre existiu, a dificuldade de interpretação que sempre colocou ao outro: “en otra episteme, mi nueva voz sería la voz de la ballena o el sonido del trueno, aquí es simplemente una voz masculina”.
Autorretrato, 1930
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[A ideia inicial para este texto era converter as fotos de Cahun em cartões postais; eu pensava principalmente na primeira parte de O cartão-postal: de Sócrates a Freud e além, de Derrida, em que a teoria encontra outra forma de expressão, veiculada de maneira epistolar. Pensando que para responder a uma chamada de publicação acerca do tema de gênero seria interessante repensar também o gênero de um texto acadêmico; e pensando que muito do que se conhece da história das dissidências sexuais e relações homoafetivas, especialmente entre mulheres, se dá por cartas (por exemplo, entre Virginia Woolf e Vita Sackville-West; Margaret Mead e Ruth Benedict; Eleanor Roosevelt e Lorena Hickok), a ideia inicial era explorar o gênero do cartão-postal, isto é, da carta que não vem em um envelope e, portanto, multiplica o número de leitores para além da destinatária. Ainda que cartas possam sempre desviar-se de seu caminho, cair em mãos erradas, este parece ser a condição incontornável de um cartão-postal. Sendo o cartão-postal uma espécie de carta aberta e grande parte dessas relações de natureza secreta ou parcialmente secreta, existindo somente em uma espécie de clandestinidade, seria possível imaginar que poucos cartões-postais eram enviados por essas mulheres, ou, se enviados, seguramente contavam com algum tipo de recurso que não os tornassem completamente legíveis, como pseudônimos, signatárias anônimas, palavras cifradas, ou algo da ilegibilidade que todo diálogo íntimo carrega, e talvez até mesmo a possibilidade de disfarçá-lo em um artigo acadêmico. No entanto, pensei também que sem uma interlocutora, isto é, alguém que respondesse aos meus cartões, a empreitada toda se tornaria rapidamente insustentável ou, talvez, passasse de vez ao lado da literatura].
* Mariana Ruggieri é doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo.
Referências
BARTHES, Roland. A câmara clara: notas sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
CAHUN, Claude. Disavowals: or Cancelled Confessions. Trad. Susan de Muth. Cambridge, MA: The MIT Press, 2008.
CONLEY, Katharine. Surrealist Ghostliness. Lincoln: University of Nebraska Press, 2013.
COHEN, Jeffrey Jerome. Stone: an ecology of the inhuman. Minneapolis, The University of Minnesota Press, 2015.
DELEUZE, Gilles. A literatura e a vida. Trad. Peter Pál Pelbart. In: Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997.
DERRIDA, J. O cartão-postal: de Sócrates a Freud e além. São Paulo: Civilização Brasileira, 2007.
FLUSSER, Vilém. Vampyroteuthis Infernalis. São Paulo: Annablume, 2011.
HARAWAY, Donna. Situated Knowledges: The Science Question in Feminism and the Privilege of Partial Perspective. In: Simians, Cyborgs, and Women: The Reinvention of Nature. Nova Iorque: Routledge, 1991.
SONTAG, Susan. Na caverna do Platão. In: Sobre fotografia. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo, Companhia das Letras, 2004.
STOLOW, Jeremy. Mediumnic Lights, Xx Rays, and the Spirit who Photographed Herself. In: Critical Inquiry 42 (Summer 2016).
WOOLF, Virginia. A Room of One’s Own. Boston: Mariner Books, 1989.
WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985.
Notas
[1] Marcel Moore (Suzanne Malherbe, 1892-1972) era artista, desenhista de moda e escritora. É provavelmente responsável por colocar o dedo no disparador da câmera em grande parte das fotos de Cahun; em algumas fotos é possível ver a sua sombra. Apesar disso, o nome autorretrato não é necessariamente equivocado, já que era Cahun quem, em larga medida, compunha e dirigia a própria foto. Em 1917, a mãe de Moore se casa com o pai de Cahun.
[2] “Embaralhe as cartas. Masculino? Feminino? Depende da situação. Neutro é o único gênero que sempre me cai bem. Se existisse na nossa língua ninguém poderia ver a oscilação do meu pensamento”. Minha tradução.
[3] “Eu certamente seria uma abelha atarefada”. Minha tradução.
[4] E talvez também seja necessário considerar que fossem outras as palavras em jogo, a maioria emprestada das terminologias patologizantes. Em 1914 Claude Cahun escreve um texto chamado “Les Jeux uraniens”. “Uranien” era uma espécie de terceiro sexo segundo os escritos do alemão Karl Urichs, já para Richard von Krafft-Ebing, em Psychopathia Sexualis, o uranismo era uma das quatro categorias dadas às lésbicas, caracterizadas pela rejeição de papeis femininos sociais, e por vestimentas e aparências masculinas.
[5] “Bem, então posso dizer-lhes que as palavras que li imediatamente a seguir foram: ‘Chloe gostava de Olivia…’ Não se espantem. Não enrubesçam. Vamos admitir, na privacidade de nossa própria sociedade, que essas coisas às vezes acontecem. Às vezes, as mulheres realmente gostam de mulheres. ‘Chloe gostava de Olivia’, li. E então ocorreu-me que imensa mudança havia ali. Chloe talvez gostasse de Olivia pela primeira vez na literatura”. Tradução de Vera Ribeiro.
[6] “O nosso cabelo ficou tão enovelado aquela noite que, naquela manhã – para acabar – as nossas cabeças tiveram que ser raspadas”. Minha tradução.
[7] As Ilhas do Canal foram o único território britânico ocupado pelos nazistas. Claude Cahun e Marcel Moore organizaram a sua resistência particular na pequena Ilha de Jersey: produziam panfletos, fazendo-se passar por um soldado alemão que assinava “O soldado sem nome”, convocando os militares à dissidência ou a insurgirem contra a empreitada nazista. Foram eventualmente pegas e presas em uma prisão em Jersey, estiveram presas por 10 meses, onde Cahun escreveu um diário.
[8] “Eu sou obcecada com a exceção”. Tradução minha.
[9] “Produtiva de maneira queer, a rocha não oferece a fecundidade fácil da terra, Gaia como mãe”. Minha tradução.
Resumo: Virginia Woolf nos remete à androginia em um complexo metafórico ao final de A Room of One’s Own (1929). O presente artigo retoma o andrógino como mito fundador do humano que Woolf tenta pôr em movimento numa escrita que anule as sentenças puramente masculinas ou femininas. Desse modo, nos propomos a pensar como tal questão se faz cada vez mais urgente em nossos tempos. Traçaremos, portanto, diálogos entre Woolf e Hélène Cixous, Julia Kristeva, e outros pensadores, no intuito de iniciar um mapeamento de certa poética da androginia a partir da obra da escritora inglesa, uma empreitada que reafirma a atualidade do pensamento woolfiano.
Palavras-chave: Androginia; écriture féminine; Virginia Woolf.
Abstract: Virginia Woolf refers us back to androgyny in a metaphorical complex at the end of A Room of One’s Own (1929). This article reclaims the androgyne as the founding myth of the human that Woolf tries to set in motion in a writing that nullifies the purely masculine or feminine sentences. Thus, we engage in thinking how such a question becomes more and more urgent in our times. We shall therefore foster dialogues between Woolf and Hélène Cixous, Julia Kristeva, and other thinkers, in order to map out a certain poetics of androgyny that stems from the work of the English writer, which reaffirms the contemporaneity of Woolfian thought.
Keywords: Androgyny; écriture féminine; Virginia Woolf.
You hit off my taste in reading very well. I should have thanked you before, but writing was forbidden. I shall tell you wonderful stories of the lunatics. By the bye, they’ve elected me King (…). I had other adventures, and some disasters, the fruit of too passionate and enquiring a disposition. I avoided both love and hatred. I now feel very clear, calm, and move slowly, like one of the big animals at the zoo. Knitting is the saving of life (…).
Virginia Woolf (née Stephen) para Leonard Woolf em 05/03/1912, após voltar de uma casa de repouso. Os dois se casam em 10/08/1912.
Ao final de A Room of One’s Own, “after all this reading” (1929, p. 124), Virginia Woolf volta à janela, tropo constante em sua obra, um umbral entre as negociações internas e as projeções linguísticas do nosso olhar sobre o mundo, nossas dobras e desdobras, como diria Deleuze na esteira de Foucault. De cima, vê homens e mulheres correndo por Londres, um fluxo de corpos que estão alheios à dor do pensamento que acomete a autora. De repente, o fluxo para, ninguém vem ou vai – “nobody passes” (Woolf, 1929, p. 124). Em uma dessas pausas tão características das pequenas ruas londrinas ao redor das grandes avenidas, Woolf diz que apenas a árvore mostra sinal de vida. Como um sinal à calçada, uma folha se separa, e então ela rememora um outro fluxo: o das folhas em direção ao rio e o do rio em direção ao mar, a grande massa que nos escapa nos confins das cidades. É ali, no fluxo desse ninguém que passa na rua deserta, que Woolf nos indica a androginia.
Essa volta ao inumano, aos símbolos do silêncio da voz humana, grifa a resposta de Woolf, que, após uma pesquisa com o intuito de historicizar a exclusão da mulher do mundo público, diz que “talvez pensar (…) em um sexo como distinto do outro seja um esforço” (1929, p. 125). O esforço se revela no entendimento do feminino e do masculino enquanto as sentences que ela examina, frases e condenações à performance que a autora tenta quebrar, reorganizar. Os primeiros passos na rua suspensa no tempo, após a passagem de ninguém, são de um homem e de uma mulher que caminham em ruas paralelas em direção à mesma esquina, bem abaixo da janela da observante Virginia Woolf. Ao chegarem ao ponto em que seus caminhos se entrelaçariam, Woolf diz que o homem para, e que a mulher para; um táxi que vinha de uma terceira rua faceando a mesma esquina também para, e nele entram o homem e a mulher (Woolf, 1929, p. 126).
Após a imagem poética do carro, da coisa em si – sua peroração, “pensem as coisas em si mesmas!” – que une o homem e a mulher, Woolf conclui que uma mente “puramente masculina não pode criar, como também não pode criar uma puramente feminina” (1929, p.128) e começa a traçar o que seria o seu grande projeto inacabado em direção a uma poética da androginia.
Somente quando a fusão da sentença feminina com a masculina “acontece na mente é que ela é totalmente fertilizada e utiliza todas as suas faculdades”, afirma Woolf (1929, p. 128). Essa fusão dá origem à androginia nesse complexo metafórico para o encontro do homem e da mulher na era de Woolf. O problema da androginia se insere em uma questão que Virginia Woolf empreende em toda sua escrita: o da linguagem como representação, comunicação de sentidos que não atinge as potências da imaginação no silêncio do pensamento. De alguma maneira, anunciada em sua obra, existe uma massa humana maior que se comunica com o inumano, o cósmico, um tensionando o outro em um continuum ao infinito. É nesse nível que a junção das sentenças deveria se dar, o que seria a única possibilidade de escapar do mero feminino ou masculino. Essa volta ao mito do andrógino nos abre para uma glosa milenar na obra de Woolf: é em direção aos silêncios que nos direcionamos, então.
Como texto fundador do mito do andrógino, O banquete de Platão nos dá acesso ao pensamento de Woolf, que começou a estudar grego e a ler os diálogos platônicos aos dezessete anos. Lá, Aristófanes discursa sobre a eterna procura pelo amor do outro, seja no sexo oposto ou no mesmo,[1] como resultante da nossa divisão originária. Nós, humanos, teríamos resultado de três seres esféricos: os Andros, as Gynos, e os Androgynos. Separados pelos deuses para enfraquecê-los, nascem os Homens e as Mulheres, e nasce a procura eterna pelo outro perdido. O verdadeiro amor se daria, então, quando achássemos aquela outra cara metade cortada de nós.
Essa imagem mítica primordial do andrógino marca as seitas gnósticas nos primeiros séculos do cristianismo. Santo Hipolito diz que Simão, o Mago, denominava o espírito primordial arsenotéles, macho-fêmea. Os naasenos também concebiam o homem celeste, Adamas, como arsenotéles. O Adão terrestre seria então uma imagem do arquétipo, e por isso andrógino também. Pelo fato de cada humano descender desse Adão, o arsenetéles existiria virtualmente em cada ser humano. Por isso a perfeição seria procurá-lo e encontrar em si mesmo essa androginia. Segundo Mircea Eliade (1999), a androginia é então um drama cósmico que se divide em três momentos para os naasenos: (1) o Logos preexistente, o grande espírito; (2) a engendração e a queda de Adão – separação em dois sexos; (3) e o messias que reintegraria em sua unidade os fragmentos que constituem o universo.
Esse entendimento mítico da origem humana alcança os primeiros românticos alemães. Johann Wilhelm Ritter, médico ilustre e amigo de Novalis, diz que, como o Messias, o ser humano do futuro será andrógino. Nas palavras de Ritter,
Eva foi engendrada pelo homem sem a ajuda da mulher; o Cristo foi engendrado pela mulher sem a ajuda do homem; o Andrógino nascerá dos dois. Mas o esposo e a esposa vão confundir-se em um só e mesmo clarão. O corpo que nascer será então imortal (apud Eliade, 1999, p. 103).
É a partir dessa imagem que o andrógino chega a Virginia Woolf, leitora voraz tanto dos românticos alemães quanto dos ingleses – afinal, é Coleridge que ela cita ao final de A Room of One’s Own quando diz que “toda grande mente é andrógina” (Table Talk, 1 September 1832).
Mas se Ritter enverga a alquimia para explorar o mito do andrógino, Woolf tenta empreender o mito como o lugar da escrita, e por isso a referência aos românticos ingleses é importante. Orlando, que recebe o tempo em clarões, para usarmos a palavra de Ritter, e que foi publicado um ano antes de A Room of One’s Own, demora quatrocentos anos para escrever seu poema The Oak Tree, pois ele/a precisa viver a experiência tanto do menino inglês, quanto da cigana nas montanhas da Turquia, e por fim da mulher moderna. Ele/a é todos ao mesmo tempo, e seu corpo acompanha sua mente: nasce homem, transforma-se em mulher e termina andrógino. A preocupação de Woolf é então revelar o humano de Orlando, aquele lugar silencioso que escapa das representações das sentenças.
É interessante notar que Orlando, se é certamente homem ao nascer no Renascimento inglês, fecha o romance-biografia como uma mulher em 1928 com os seios à mostra, um convite ao seu outro, ilustrado pela figura de seu marido, Shelmerdine. Afinal, esta é a questão de Orlando, a mulher do presente cujas vidas passadas precisa afirmar: como acolher o Outro de si mesma. No silêncio poético de suas últimas imagens, quando Orlando recebe os últimos choques do tempo e se encontra a segundos do tempo simultâneo ao tempo da narrativa, Woolf parece anunciar a mulher como porta-voz da mudança.
Nos últimos parágrafos do romance, vemos Orlando de volta à árvore de carvalho, onde dizia amarrar seu coração flutuante quando menino na corte elisabetana, com seu poema que, ao contrário de seu coração de menino, não se quer raiz, mas as folhas que se desgarram dali. Orlando sente Shelmerdine chegar a quilômetros de distância e imediatamente exibe os seios para lua “para que suas pérolas brilhassem como os ovos de alguma imensa aranha lunar” (Woolf, 1928, p. 215). Orlando se opõe ao avião que paira sobre ela, símbolo para a guerra que Woolf diria ser resultante da sentença masculina apenas, de uma língua sem mãe (Woolf, 1938). Orlando é então um convite para leitores que, em 1928, como Shel, poderiam escolher não repetir os horrores da última guerra ao bater da décima-segunda hora, o presente. Mas o impasse viria mais uma vez. E em 1938, dez anos após Orlando, Woolf mais uma vez chama o ser humano a efetivar o andrógino em Three Guineas. O impasse ainda continua para as novas gerações, testemunhas das mudanças trazidas pela arte e pelos movimentos sociais que transformam a maneira que conhecemos os outros. Hoje, ainda precisamos pensar o que é o andrógino e como se ganha acesso a ele em uma linguagem que tem por princípio aniquilar o outro, objetificá-lo, ao delimitar nossos lugares de fala.
Orlando é mulher e é a chave para um mundo-linguagem de deslugares, andrógino, de ninguém. Isso porque as mulheres, na obra de Virginia, parecem estar mais perto dessa volta ao andrógino, pois são elas que, no silêncio que lhes foi imposto historicamente, intuem uma forma que funde a posição masculina de sujeito da linguagem com a feminina de objeto da linguagem. Em toda a obra de Woolf fica então a questão de como acessar essa sentença andrógina, e a questão é: como quebrar a própria palavra, os nomes, para que o silêncio histórico do feminino seja um lugar outro de enunciação.
Em “Men and Women” (1920), ela repete a frase de Bathsheba, que no romance de Thomas Hardy, Far From the Madding Crowd (1874), diz ter os sentimentos de uma mulher, mas a linguagem de um homem. A questão então é “testar as formas aceitas, descartar as inadequadas, e criar outras mais adequadas” (Woolf, 1920, p. 67). Em “Women Novelists” (1918), ela afirma que algumas escritas parecem conseguir escapar dos limites dessa linguagem destruidora que cristaliza posições de sujeito e objeto, o que em 1924, em seu artigo para a Vogue, “Indiscretions”, ela chama de uma escrita sem sexo definido. Fica claro, assim, que o percurso crítico de Woolf, que culmina nesse trânsito do sexo para o sem sexo definido, da mulher e do homem para o que ela chamaria de andrógino em A Room of One’s Own (1929) e indiretamente em Three Guineas (1938), quer transcender os limites epistemológicos de seu tempo e achar a quebra ontológica que uniria os fragmentos e nos permitiria a todos ser, para além de sujeito e objeto.
Em 20 de abril de 1937, enquanto Virginia Woolf fazia pesquisa para o seu Three Guineas, ela concede uma entrevista para a BBC intitulada “Crafsmanship”, parte de sua série simbolicamente chamada “Words Fail Me”.[2] Na única amostra existente de sua voz, a escritora parece calma mas decisivamente afirmar a liberdade que jaz na palavra, que para ela tem que ser entendida para além de craftsmanship: uma brincadeira com a palavra craft, que no inglês pode significar tanto criar coisas úteis, como no substantivo artesanato, quanto astúcia, engano, magia. Para ela, palavras estão sempre para além dos dois sentidos de craft, pois elas são a verdade completa sobre nossos silêncios se permitidas sua liberdade simbólica. Em suma, a prática de “fechá-las em um sentido, em seu sentido prático” é o motivo pelo qual Woolf diz não existir um grande poeta, um grande crítico, ou um grande escritor em seu tempo (Woolf, 1937, p. 154).
A sentença andrógina é aquela que, então, rememora a liberdade das palavras, que não as fecha em antigos casamentos, mas desfaz e refaz a costura concomitantemente. Ela é livre de seu sexo, sua nacionalidade, dos “nomes antigos”. É significativo que tanto Hélène Cixous, na década de 1970, quanto Woolf, na de 1930, enxerguem em Shakespeare essa habilidade de se retrair e nutrir, de recosturar um mundo literário que seria como um ventre sempre produtivo, de onde nascem seres humanos diversos cujas perspectivas seriam afirmadas em suas diferenças.[3] Ventre, em Cixous, é metáfora para este lugar da escrita; uma afirmação daquilo que antes era impetrado como o feminino natural, inerente ao corpo, enquanto possibilidade na linguagem, na escrita de um ninguém que permite todos, uma nova sentença. Digo ser significativa a referência a Shakespeare porque a imagem se desprende do corpo feminino, mas o usa como anunciador da volta ao que somos nos mitos, um elo entre a androginia de Woolf e a écriture féminine de Hélène Cixous.
Mas quando Woolf declara que “enquanto mulher, eu não tenho país”, e continua, “enquanto mulher eu não quero país. Enquanto mulher, meu país é o mundo inteiro” (1938, p. 313), ela ressalta o porquê da mulher ser a porta-voz da mudança em seu século, o porquê de Cixous chamar a escrita de feminina décadas mais tarde. Diferentemente mesmo de Shakespeare, nem mesmo a um país pertenciam as mulheres, o que as desligava de mais um dever que aprisiona a mente: o patriotismo. Esse seria apenas um dever pater, já que até mesmo a nacionalidade da mulher estava condicionada ao casamento pelas leis de seu tempo. Como Rachel diz para Hewet em The Voyage Out, a mulher gozava de certa liberdade por não ser representante do progresso. É em sua diferença, no legado silencioso do Anjo do Lar, que a mulher no século de Woolf encontra o lugar do andrógino. E o feminino cultural historicamente construído, o lugar à janela, é afirmado como lugar da escrita de ninguém.
O exercício da mente andrógina é então o de reabrir a linguagem, de testar a memória das palavras. “E esta é uma das principais dificuldades de escrevê-las hoje – que elas estejam tão amontoadas de sentidos, de memórias, que elas tenham adquirido tantos casamentos famosos”, diz Woolf sobre a dificuldade de ressignificar as palavras (1937, p. 157). Sua questão é, desse modo, costurar uma nova forma que desse às palavras sua liberdade para lembrar todos os seus sentidos, sem negar nenhum, mas criando novos sentidos em novos casamentos de palavras, o que as impediria de perpetuar os antigos casamentos, pois “combinar novas palavras com velhas palavras é fatal para a constituição da sentença” (Woolf, 1937, p. 157). Cixous, quando escreve seu prefácio para o The Hélène Cixous Reader (1994), organizado por Susan Sellers, diz a mesma coisa em palavras surpreendentemente parecidas:
Nós somos os cuidadores sabidos ou ignorantes de várias memórias. Quando eu escrevo, a língua lembra sem o meu conhecimento ou mesmo com o meu conhecimento, lembra a Bíblia, Shakespeare, Milton, toda a literatura, cada livro. Então, eu que escrevo, eu inscrevo uma memória adicional na língua […] (Cixous, 1994, p. xxi).
Logo, se usadas em sua liberdade, as palavras podem dizer para além dos discursos vigentes, dos limites. Nessa escrita, a palavra fala “em nome de ninguém”, o que significa dizer que o sujeito se dissolve nele mesmo através dos diálogos que tem com os outros em si (Cixous, 1974a, p. 28). A écriture féminine de Cixous se aproxima da androginia de Woolf justamente porque propõe uma efetivação dessa posição de outro, só que agora um outro que fala; um ser ninguém, ser Outro apenas. Trata-se de um “embaçar os espelhos”, como Cixous diz em seu First Names of No One (1974a, p. 33), de uma afirmação dos elos pré-linguísticos entre o self and m/other. A analogia de Cixous é entre o lugar da escrita e a mãe, esse Outro-mãe, lugar que enquanto ventre permite uma experiência de sermos mais que um. A écriture féminine é um lugar que
não está economicamente ou politicamente em dívida com toda a vileza e o pacto. Que não é obrigado a reproduzir o sistema. Que é escrita. Se há um outro lugar que consiga escapar dessa infernal repetição, ele está nessa direção, onde ele[4] escreve ele mesmo, onde ele sonha, onde ele inventa novos mundos (Cixous, 1975, p. 79).
O pacto para o qual Cixous aponta, a vileza, é o acordo velado que todo sujeito faz ao se afirmar em oposição ao outro. É contra a constatação de Freud de que “todo o progresso da sociedade repousa sobre a oposição entre gerações sucessivas” (Freud, 1909, p. 298) que Cixous vislumbra uma escrita que seja pura afirmação da diferença, já que a linguagem nunca é neutra[5] mas múltipla, e que promova a efetivação dos tempos cíclicos e monumentais apontados culturalmente como femininos. Efetivar o tempo do corpo feminino, em oposição ao tempo do progresso, significa perceber que tanto o masculino quanto o feminino contribuem para o tempo da história. É por perceber que o feminino culturalmente construído está mais próximo dessa escrita possível – escrita que Cixous enxerga claramente em Shakespeare, como vimos, mas também em Clarice Lispector[6] –, que ela propõe que a mulher efetive essa escrita das múltiplas vozes, uma escrita louca, no limiar da comunicação, que faz da arte o lugar para a afirmação desse lugar de um ninguém que fala.
Cixous aponta essa escrita como a “passagem, a entrada, a saída, a morada dos outros em mim – os outros que eu sou e não sou, não sei como ser, mas que eu sinto passando, que me fazem viva – que me rasgam, me perturbam, me mudam, quem?” (Cixous, 1975, p. 86). Écriture féminine, então, é uma ultrapassagem tanto da linguagem masculina quanto da feminina; é reconhecer o nutrir da escrita – nutrir, que antes se opusera ao conhecimento nos binários metafísicos. Está aqui a imbricação da escrita feminina com a androginia de Woolf. O verbo que no princípio era era o verbo do pai. As escritoras e escritores devem exercitar o verbo da mãe, que é a possibilidade de todos os verbos, de todas as falas. Assim, através dessa escrita de outros, nasce a mente andrógina.
Esta é a afirmação de Woolf: quero ser muitos, ao mesmo tempo, em ondas, todos costurados em mim. A própria forma do romance que Woolf revigora metaforiza esse tempo feminino, cíclico e monumental. O desditoso termo “fluxo de consciência”, em Woolf, que sempre escapa de uma mente isolada para rastrear os pensamentos complementares de personagens distintas, pode ser reaprendido como uma tentativa de quebrar o tempo masculino com o feminino, um redimensionamento temporal. Se o tempo da história se define, culturalmente, como o tempo dos grandes desbravadores, dos conquistadores, do progresso, esta outra temporalidade se define como objeto desse tempo, o tempo da permanência. O tempo matrilinear é entendido culturalmente por seu lugar fora da história, e à mulher então afixou-se o tempo cíclico – que se metaforiza corriqueiramente pelo ritmo biológico feminino –, e o monumental – tempo resultante do cíclico, que dá à eterna repetição dos ciclos femininos uma aura mística, como se ela sempre ficasse, se renovasse, permanecesse.[7] O tempo dos romances de Woolf tenta remontar esse tempo cíclico e monumental, culturalmente feminino, como ondas que nos passam por muitos outros de nós mesmos, mas que ainda assim organizam uma história. A escrita de Woolf faz da arte, da escritura de vida e obra, um lugar de possibilidade para um novo sujeito e seu novo tempo, nem masculino nem feminino, sem lugar fixo para a fala, um ninguém que acessa o nada e o tudo.
Somente em seus escritos derradeiros, Woolf nos dará sua visão organizada, sem medo de chamá-la de sua filosofia. Ela escrevia o que seria uma coleção de memoirs quando entregou-se ao rio Ouse em 1941, aos 59 anos. Moments of Being, momentos de vida/ser, foi publicado em 1974, quando Julia Kristeva, em Des Chinoises (1974), começava a discutir o suicídio de Woolf na França. Esses momentos de ser são momentos de conexão, momentos em que a superfície é perfurada e que as profundezas são aventadas. Como em um tecido que revela seus pontos quando observado de perto, Woolf nos diz que esses momentos pareciam dar a ela uma noção de que somos constituídos por conexões para além de nosso entendimento, para além da representação do corpo.
Tais momentos vêm em choques, nos diz Woolf, novamente como os de Orlando, que conectavam a escritora a uma outra temporalidade, a outros corpos e mentes, e lhe davam acesso à androginia de Shakespeare. Em meus percursos pelas imagens woolfianas, percebi que seus momentos de vida são aqueles nos quais a prosa do dia a dia é tomada pela obscuridade da poesia; momentos de troca entre êxito prosaico e fracasso poético. Chamarei então aqui esses moments of being de momentos andróginos, que acontecem entre o demônio e as profundezas do mar, para usar as palavras da autora. Eles são momentos que desafiam o Eu, o Outro, e que agrupam toda a experiência humana em um aglomerado de experiências diversas, como as múltiplas possibilidades no palco que é o mundo, uma abertura no fechamento.
por trás da lã de algodão está escondido o padrão; que nós – quero dizer todos os seres humanos – estamos ligados a ele; que o mundo inteiro é uma obra de arte; que somos partes da obra de arte. Hamlet ou um quarteto de Beethoven é a verdade sobre esta vasta massa que chamamos de mundo. Mas não há Shakespeare, não há Beethoven; certamente e enfaticamente não há Deus; somos as palavras; somos a música; nós somos a própria coisa. (Woolf, 1978, p. 84)
O andrógino fora no começo, se voltarmos aos mitos dos humanos primordiais, e será novamente no fim, se pensarmos com Virginia Woolf. Como o fim é sempre um lugar no presente, já que o futuro é uma instância da nossa linguagem no agora, que chegue a nós a androginia de Virginia, sua confusão de lugares de fala, de vida, de existência – sua forma de ver por trás da costura e reatar os pontos na escrita. A androginia se apresenta à janela, na imagem da escritora que tenta negociar um outro futuro para si mesma ao final de A Room of One’s Own. Hoje, somos nós à janela e o limiar é a nossa questão. Descosturar e recosturar: uma nota para os leitores e escritores de hoje.
* Davi Pinho é doutor em Literatura Comparada e Professor Adjunto de Literatura Inglesa no Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Autor de Imagens do feminino na obra e vida de Virginia Woolf (Appris) e co-organizador de Eros, Tecnologia, Transumanismo (Caetés/Faperj).
Referências
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Notas
[1] É importante notar que Aristófanes, o comediógrafo, faz um discurso jocoso. É Sócrates, através de Diotima, que atinge o amor, Eros, na ascese dialética de O banquete. Aristófanes, no entanto, dá uma origem mitológica para o humano que ecoa em outras organizações mitológicas pelos tempos, e é isso que nos interessa aqui.
[2] Publicada postumamente como um ensaio em Death of the Moth and Other Essays (1942).
[3] “There was that being-of-a-thousand-beings called Shakespeare. I lived all the characters of his worlds: because they are always either alive or dead, because life and death are not separated by any pretense, because all is stunningly joined to nothing, affirmation to no, because, from one to the next, there is only one kiss, one phrase of bliss or tragedy, because every place is either abyss or summit, with nothing flat, soft, temperate. There man turns into woman, woman into man – a slaveless world: there are villains, powers of death. All the living are great, more than human” (Cixous, 1974b, p. 98).
“For though we say that we know nothing about Shakespeare’s state of mind, even as we say that, we are saying something about Shakespeare’s state of mind. The reason perhaps that we know so little about Shakespeare […] is that his grudges and spites and antipathies are hidden from us. […] All desire to protest, to preach, to proclaim an injury, to pay off a score, to make the world the witness of some hardship and grievance was fired out of him and consumed. Therefore, his poetry flows from him free, unimpeded. If ever a human being got his work expressed completely, it was Shakespeare. If ever a mind was incandescent, unimpeded, […] it was Shakespeare’s mind” (Woolf, 1938, p. 63).
[5] Cixous tem um livro intitulado Neutral (1972), um de seus primeiros grandes escritos, em que discute, em prosa, poesia, ensaios e crítica, que é “impossível pensar o um sem o outro e sem tanto o um quanto o outro: o apropriado aqui empalidece, o coração escurece” (1972, p. 8). A escrita aparece ao mesmo tempo como um trabalho de neutralização e desneutralização. De neutralizar, anular, tornar imparcial, o acesso ao mundo da linguagem, e ao mesmo tempo desneutralizar, afirmar, a diferença. Isso porque os sexos, os gêneros e as nacionalidades, como tudo mais, se neutralizam na escrita da diferença, já que não existe um olhar sobre o outro, mas entreolhares, apenas outros. A escrita não é neutra porque não é indiferente a tais olhares, mas afirma a possibilidade de todos.
[6] Em seu ensaio “The Apple in the Dark: The Temptation of Understanding”, de sua coletânea sobre suas leituras das obras de Lispector, Reading with Clarice Lispector (1990), ela diz: “Clarice does not lose herself in the silliness of sublimation. She stays where love stories take place, near the body and the unconscious. Two beings never reach each other in the way of Tristan and Isolde. In Clarice, protagonists burn themselves while en route; they fall down and do all the kinds of things that signify: I do not want to. The more one wants, the more one does not want to. That is what Clarice signals. Otherwise, there would be neither love nor desire” (p. 81-82).
[7] Para uma discussão sobre matrilinearismo, conferir Stabat Matter, de Julia Kristeva (1986).
Resumo: Este texto pertence a um emaranhado de outros textos de autoras diversas e responde à demanda de um fazer ético feminista. A partir da leitura dos experimentos com orquídeas de Darwin que fazem Carla Hustak e Natasha Myers e da fabulação de Donna Haraway sobre os tempos correntes, escrevo uma história sobre o projeto arquitetônico de Carla Juaçaba para o IMPA (Instituto de Matemática Pura e Aplicada) no Rio de Janeiro que permite pensar e se responsabilizar por um possível porvir.
Palavras-chave: Poiese; Donna Haraway; Carla Juaçaba; antropoceno.
Abstract: This text belongs to an entwinement of texts, and responds to the demand of a feminist ethical doing. Starting from Carla Hustak and Natasha Myers’s reading of Darwin’s experiments with orchids and Donna Haraway’s fabulation about our times, I attempt to write a story about Carla Juaçaba’s architectural project for IMPA in Rio de Janeiro that allows me to think and be responsible for a possible future.
Keywords: Poiesis; Donna Haraway; Carla Juaçaba; antropoceno.
Quando as mulheres falam, não aparece nunca, ou quase nunca, aquilo que estamos acostumados a ler e escutar: como umas pessoas heroicamente mataram outras e venceram. Ou perderam. Qual foi a técnica e quais eram os generais. Os relatos femininos são outros e falam de outras coisas. A guerra “feminina” tem suas próprias cores, cheiros, sua iluminação e seu espaço sentimental. Suas próprias palavras. Nela, não há heróis nem façanhas incríveis, há apenas pessoas ocupadas com uma tarefa desumanamente humana. E ali não sofrem apenas elas (as pessoas!), mas também a terra, os pássaros, as árvores. Todos os que vivem conosco na terra. Sofrem sem palavras, o que é ainda mais terrível.
(Svetlana Aleksiévitch, A guerra não tem rosto de mulher, p. 12)
Carla Hustak é uma jovem historiadora. Natasha Myers é professora no departamento de Antropologia da Universidade de York in Toronto. Juntas, elas publicaram em 2012 um artigo chamado “Involutionary Momentum: Affective Ecologies and the Sciences of Plant/Insect Encounters”. O título é intencionalmente provocador, uma crítica à “evolução”, como a entendem os neo-darwinistas, e uma forte censura à narrativa dos “chemical ecologists”. Assim, começando justamente por Darwin, pela aproximação afetuosa a textos seus majoritariamente escritos desde sua casa no campo, na periferia de Londres, Hustak e Myers contam as relações nas quais o mais conhecido de todos os naturalistas se engajava.
Como muitos cientistas do século XIX, Darwin dedicou muito tempo a estudar os encontros entre orquídeas e insetos, relatos registrados sobretudo em seu livro de 1862 On the Various Contrivances by Which Orchids Are Fertilised by Insects. Nessa obra, contam Hustak e Myers (2012, p. 75), Darwin descreve “a grande variedade de cores, formas flexíveis, texturas sensuais e doces néctares que atraem os insetos polinizadores para as flores”[1]. Hoje – em contrapartida –, elas completam, “ecólogos químicos abordam as plantas com sua atenção e instrumentos voltados estritamente à pluma de atratores químicos voláteis que as plantas sintetizam e liberam na atmosfera” (Hustak; Myers, 2012, p. 75)[2]. Dentro da narrativa que estes armam sobre a orquídea Ophrys, por exemplo, as abelhas são seduzidas, enganadas e exploradas pelas orquídeas. Uma vez que os atratores liberados pelas plantas imitam o feromônio, as abelhas seriam usadas para o benefício unilateral desta espécie de orquídeas, sem que recebessem nada em troca. Nessa história, as relações entre espécies são racionalizadas de acordo com uma lógica funcionalista, além de reduzidas a metáforas economicistas, nas quais as abelhas visam, essencialmente, a economia de energia. As orquídeas, por sua vez, respondendo mecanicamente aos preceitos de adaptação que sustentam a teoria evolucionista neo-darwinista, não imitariam o feromônio muito eficientemente (“mimicry must not be too effective” p. 76) para não correr o risco de extinção dos polinizadores. O encontro seria “assimétrico”: os insetos são vítimas e as orquídeas garantiriam a manutenção da fertilização cruzada dentro de uma mesma espécie (para Darwin, as orquídeas eram um bom modelo evolutivo porque “praticavam” a variação genética). Uma economia neodarwinista, parece, não pode admitir prazer, jogo ou improvisação numa ou entre espécies (p. 77). Hustak e Myers estão interessadas em contar uma outra história, que conte (com) a improvisação, o prazer (mútuo), o jogo e a ação das e entre as espécies, plantas e insetos.
Ao iniciar sua história, a história delas, por uma visita à casa de Darwin – “we begin this analysis by visiting Darwin in his home” (p. 79) – Hustak e Myers já deslocam uma estrutura (re)conhecida das ciências naturais e se voltam ao pesquisador no seu ambiente pessoal. Mas não limitante. Elas mostram, afinal, como a casa de Darwin, seus filhos, pássaros, colaboradores, os insetos que visitam e as flores que mantém formam, todos, uma “ecologia afetiva”. Hustak e Myers dizem que quando Darwin treina sua atenção para a observação dos encontros íntimos entre insetos e orquídeas, seus relatos funcionalistas de adaptação eram silenciados, deixados em segundo plano, em favor de histórias “de afinidades, atrações e intimidades” – “of affinities, attractions, and intimacies” (p. 79) – e argumentam que esta “prática experimental e multissensorial enreda o próprio Darwin afetivamente no evento da fertilização” (p. 79)[3]. Esta hipótese se vincula à ideia de Deleuze e Guattari de formação de um rizoma. Hustak e Myers imaginam Darwin num devir com as plantas e os insetos – em um dado momento elas mostram os relatos-desabafos do cientista nas suas (muitas vezes frustradas) tentativas de indução do “ato sexual” nas flores. Toda essa atividade acontecia justamente na casa de Darwin que, assim, passa a ser exemplar, segundo Hustak e Myers, do que Isabelle Stengers chama, em inglês, de “achievement”: uma participação coletiva de agências “mais-que-humanas” num mundo em transformação.
*
Há pouco mais de um ano (setembro de 2015), a arquiteta carioca, Carla Juaçaba, apresentou seu projeto para a ampliação do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), num concurso fechado entre seis escritórios nacionais de arquitetura. Todos amplamente reconhecidos – um deles assina o projeto do novo edifício do Instituto Moreira Salles na potente avenida Paulista – e formados por homens. Carla Juaçaba já entrava no processo como um tipo de exceção.
Seu projeto não ganhou o concurso e não se conheceu publicamente o projeto do vencedor logo após o resultado, mas o que quero cogitar aqui é que sua proposta, assim como a narrativa subterrânea de Darwin que fazem emergir Hustak e Myers, é emudecida e desfavorecida em prol, possivelmente, de algo que se colocaria como domínio do humano, “adaptação unilateral” (Hustak; Myers) e lógica evolucionista. Não conhecendo o projeto que vence o concurso – ou que melhor se adapta às demandas de um júri também quase majoritariamente formado por homens (uma única mulher entre oito jurados) – minhas suposições giram em torno das perguntas que foram feitas à Carla Juaçaba seguindo sua apresentação e à sua proposição mesma. É minha hipótese que, dizendo de modo geral, aquele não era um mundo preparado para a história que ela oferecia. Não uma épica heroica, mas uma narrativa simbiótica e coletiva. Com Juaçaba, provavelmente de maneira oposta ao esperado por aquele júri, não se tratava de uma “história com um único ator real, um real fazedor de mundo, o herói … Todos os outros nesta estúpida história são acessórios, pano de fundo, enredo, espaço ou presa. Eles não importam; seu papel é obstruir o caminho, ser ultrapassado, ser a estrada, o meio condutor, mas não o viajante, não o criador” (Haraway, 2015, p. 91-92)[4]. Havia, nas perguntas e comentários que seguiram à apresentação, uma resistência e uma recusa a encarar a flexibilidade de uma resposta sua muito comum, “pode ser”. E se tratava também do espanto de ter que lidar com sua ideia de que as plantas e o terreno projetavam tanto quanto ela: “A Paineira Rosa diz ‘Aqui não pode ter edifício’”; o terreno diz quais edifícios ficam onde, “é uma decisão que não pode ser só minha”[5].
Seu discurso e, assim, sua oferta ao IMPA, respondia à questão que ela havia se colocado desde o início do seu trabalho criativo: “como habitar a mata?”, muito diferente da situação mais usual no Rio de Janeiro que é habitar ao lado da mata. O terreno doado ao Instituto é uma enorme porção de terra tomada pela Floresta da Tijuca e que “começa” a vinte e dois metros acima do mar e termina muito além dos cem metros de altura. As exigências dos matemáticos indicavam um violento adensamento de pessoas vivendo aí, aumentando o desafio de projetar algo que não destruísse, não movesse a terra e não derrubasse árvores nativas. Não satisfeita, Juaçaba queria ainda que a floresta fosse o habitat dos humanos usuários do Instituto.
Sua apresentação, de cerca de uma hora, começa mostrando a forma do primeiro edifício que imagina. No lugar de um desenho notadamente autoral, Juaçaba cola um desenho já existente em outro. Um único desenho do perfil de um edifício não construído do arquiteto dinamarquês Jorn Utzon e um outro do espanhol Alejandro de la Sota. Os dois unidos “pousam” na trave colocada entre dois pilares-postes.
Foto de Carla Juaçaba
Estabelece-se uma relação totalmente inusitada entre dois desenhos de contextos muito diversos através da necessidade e das contingências, mas também porque os dois desenhos se deixam unir. Juaçaba, neste sentido, interfere na relação, imagina um edifício seduzindo o outro e encaixando-se. Usa seus dedos, seu corpo, como Darwin, para uni-los, participando ativamente na transformação deles, seus “sujeitos experimentais”, “até o ponto em que (co)movia e era (co)movida por eles” (Hustak; Myers, 2012, p. 85)[6]. De fato, não eram raras as vezes em que, no seu discurso, Juaçaba enfatizava o quanto os edifícios, as peças ou as coisas – como ela preferia dizer –, se adequavam ao terreno, à topografia e às árvores. Era esse conjunto que ia se conformando projeto arquitetônico, um processo no qual ela era somente uma das agentes.
E o projeto, na sua concepção, era um quase nada, era o menos possível. “A intenção é que não se veja nada”, “tudo é árvore”, dizia. Quando mostrava um desenho hiperrealista em três dimensões, se ressentia, “o render é um recurso,” disse, “que eu usualmente não utilizo. Por quê? Porque ele não conta,” ela pausa, “as coisas de verdade.” É evidente que a “verdade” a que se refere é somente a narrativa que ela cria e que, como tal, ainda não existe materialmente. Mas também denota sua sabedoria intuitiva porque a engendra no processo feminista de contar, como bem sabem Hustak e Myers, mas também Donna Haraway e Marilyn Strathern: interessa quais histórias contam histórias.
O incômodo de Juaçaba com as imagens hiperrealistas se dá porque essas só podem ser uma imagem do real na medida em que nos remetem a uma realidade absolutamente reconhecível. E é isso precisamente o que Juaçaba não quer. Sua preocupação está em imaginar o que não existe, suplementar – no sentido Derridiano de também abalar – o mundo como ele se apresenta. No lugar de um projeto que evoque a presença do humano emancipador e domador da natureza, Juaçaba oferece caminhos agradáveis, encontros no chão, molhar-se com a chuva, tornar-se, em resumo, um habitante da mata.
O fim do processo arquitetônico é a construção. Não há arquitetura sem a intenção de construir. E diante do fim do mundo – “construível”, se quisermos manter alguma qualidade nas nossas vidas citadinas –, a construção se apresenta como problema. Mas Juaçaba consegue habitar responsavelmente o “olho do furacão”, ou a Cthulhucene de Donna Haraway[7] e imaginar, para além da interação de formas que já existiam sobre uma associação entre pilares, postes e traves, uma “ecologia afetiva” que compreende humanos, não-humanos e coisas. Ela explica: “Todos os edifícios, como eles estão flutuando pousados sobre essas traves, eles são a sombra que também abriga as pessoas.”
Existem árvores em uma montanha em um terreno que se configura uma propriedade. Existem homens que querem habitar – do modo como sabem fazê-lo – esse terreno. Uma arquiteta tem que mediar esses agentes. Ela conhece a área, caminha no chão, conta as árvores. Decide por uma maneira de habitar. A topografia do terreno deve se manter – ela também é agente. Entre as árvores, e quando há espaço, surgem os pilares-postes. As coisas pousam nos pilares e travas que só se tornam pilares e travas neste momento. A sombra passa a existir e a convidar as pessoas a se abrigar sob as coisas. Os postes captam a luz solar do dia e iluminam o chão dos encontros e passagens à noite.
Essa narrativa é a que conta Juaçaba, de forma mais ou menos dispersa. Sua posição de enunciação é a de uma arquiteta, mas sua resposta é inspirada (ou inspira) uma ética feminista de “response-ability” na qual uma narrativa como a de seu projeto para a ampliação do IMPA pode viver. Aí, conjugam-se atenções ao afeto, ao encontro e à ruptura (Hustak; Myers) e aí os agentes não são somente humanos. Aí, uma prática de pensamento feminista, que segundo Donna Haraway (2008, p. 7), “diz respeito ao entendimento de como as coisas funcionam, de quem está em ação, do que é possível e como atores mundanos podem, de alguma forma, ser responsáveis por e amar uns aos outros menos violentamente”[8].
*
Carla Hustak juntamente com Natasha Myers e Carla Juaçaba contam histórias que engendram outros, dão agência a atores costumeiramente suspeitos, me envolvem nos seus fazeres e me possibilitam contar uma (a minha) fábula especulativa. Atuam responsável e habilmente, com a habilidade da responsabilidade por um mundo que urge por respiro, vivo ainda, apesar dos tempos. Hustak e Myers corroboram a narrativa sobre um Darwin que “se move corporalmente na direção da alteridade” (Taussig apud Hustak; Myers, p. 93), na ênfase que dão à sedução dos insetos e das orquídeas que Darwin busca realizar, com seus dedos, suas mãos, seus lápis. O objetivo do ensaio de Hustak e Myers é precisar “o momentum através do qual organismos se lançam uns aos outros e se envolvem na vida uns dos outros”[9] (p. 96). Juaçaba mobiliza um grupo com que trabalha junto, mas também fornece essa potência tentacular que detém certas situações: “seus muitos apêndices fazem figuras de barbante [string figures]; elas me entrelaçam na poieses – o fazer – da fabulação especulativa, ficção científica, feminismo especulativo, até agora”[10] (p. 79).
A necessidade de contar histórias que sejam novas e que desafiem aquilo que é facilmente (re)conhecível se vincula não só ao passado ao que a história remete, mas a um porvir. O SF (string figures, speculative fabulation, Science fiction, Science fact, speculative femininism, so far) de Donna Haraway tem a ver com a possibilidade de conformação de novos mundos e tempos, mundos “materiais-semióticos” presentes e futuros. E isso porque esse tempo chamado antropoceno seria um tempo de urgência das e entre as muitas espécies, incluindo a humana, uma “urgência multiespécie”. Nesse contexto, é preciso ser criativa, responsável, hábil. É preciso pensar: “pensar devemos; devemos pensar. Isso significa, simplesmente, que devemos mudar a história; a história deve mudar”[11] (Haraway, 2016, p. 94).
* Carolina Correia dos Santos é doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo. Foi pesquisadora visitante na Columbia University em Nova York em 2011 e 2012. Foi professora de Filosofia no curso de Arquitetura da Universidade Santa Úrsula e professora de Teoria Literária e Literatura Comparada na UFRJ entre 2014 e 2016. Atualmente, é pós-doutoranda na UFRJ/PACC por meio do programa Pós-Doutorado Nota 10 da FAPERJ.
Referências
HARAWAY, Donna. The Companion Species Manifesto: Dogs, People and Significant Otherness. Chicago: Pricly Paradigm Press, 2008.
HARAWAY, Donna. “Staying with the Trouble: Anthropocene, Capitalocene, Chthulucene”. In: Moore, Jason (ed.). Anthropocene or Capitalocene? Nature, History and the Crisis of Capitalism. Michigan: Kairos, 2016. p. 76-151.
HUSTAK, Carla; MYERS, Natasha. “Involutionary Momentum: Affective Ecologies and the Sciences of Plant/Insect Encounters”. d i f f e r e n c e s: A Journal of Feminist Cultural Studies, vol. 23, number 3, 2012. p. 74-118.
Notas
[1] Todas as traduções são minhas. Nas notas, segue a citação no original. “The brilliant range of colors, flexible forms, sensual textures, and sweet nectars that attracted pollinators to orchid flowers.”
[2] “Chemical ecologists approach plants with attentions and instruments attuned to the plumes of volatile chemical attractants that plants synthetize and release into the atmosphere.”
[3] “Multisensory experimental practice got him affectively entangled in the event of fertilization.”
[4] “Story with only one real actor, one real world-maker, the hero … All others in the prick tale are props, ground, plot space, or prey. They don’t matter; their job is to be in the way, to be overcome, to be the road, the conduit, but not the traveler, not the begetter”.
[5] Todos os registros das falas de Carla Juaçaba foram feitos por mim durante a apresentação do seu projeto no concurso, que não era público. A reprodução, aqui, tem a anuência da arquiteta.
[6] “Darwin participated actively with his experimental subjects, to such an extent that he moved with and was moved by them”.
[7] A aranha Pimoa cthulu inspira Haraway a formular um nome para o atual estágio do planeta Terra, um nome que suplantasse “antropoceno”. Através desse nome, Haraway busca compreender uma situação de certo caos e indefinição, onde o destino do planeta não está determinado e na qual o homem perde sua centralidade. “Cthulu é derivado “dos habitantes das profundezas, das entidades abissais e elementares chamadas ctônicas. Os poderes ctônicos da Terra infundem seus tecidos por toda parte” [from denizens of the depths, from the abyssal and elemental entities, called chthonic. The chthonic powers of Terra infuse its tissues everywhere] (2016, p. 78).
[8] “Is about understanding how things work, who is in the action, what might be possible, and how worldly actors might somehow be accountable to and love each other less violently.”
[9] “The very momentum through which organisms reach toward one another and envolve themselves in one another’s lives”.
[10] “Their many appendages make string figures; they entwine me in the poiesis – the making –of speculative fabulation, Science fiction, Science fact, speculative feminism, so far”.
[11] “Think we must; we must think. that means, simply, we must change the story; the story must change”.
nesse canto, prece ou louvor
te peço força: que eu
seja tua
força infinita,
leoparda fêmea,
y que eu seja coragem:
coragem de sempre rugir contra a injustiça,
coragem de nunca me encerrar crisálida,
coragem de domar o medo pelas venta,
coragem de deitar no colo do amor y
ronronar entregue, virtude de Arcana Maior.
“Oya oriri
ekun ti nje ewe ata”
Tatiana Nascimento / Foto: Leonardo Nascimento
cuíer A. P. (ou “oriki de shiva”)
a gente vai destruir tudo que você ama
y tudo o que c chama “amor”
a gente vai destruir
porque c chama de “amor à pátria”
o que é racismo e xenofobia
c chama de “amor a deus”
o que é fundamentalismo
c chama de “amor à família”
o que é sexismo y homofobia
y transfobia c chama de “amor à natureza”
(o que vc sabe da natureza?
pra você a natureza é só alguém pra ser dominada)
o que c chama de “amor à segurança”
é militarismo
y o capitalismo c chama de “amor pelo trabalho”
MENTIRA
É PURA ADORAÇÃO PELO DINHEIRO!
c chama de “amor pela democracia”
o que é GOLPE
y especismo c chama de “amor à espécie humana”
o que c chama de “amor às escrituras sagradas”
é um caso clássico de tradução errada
que conveniente pra você chamar deus de “ele” né?
mas eu vi deus
y ela é preta!
então se liga
a gente é o seu apocalipse cuíer
y vai destruir tudo o que vc ama
o que cê chama de “liberdade”,
seu “amor pela civilização”, pela “cultura erudita”
a gente vai tacá fogo porque é genocídio y epistemicídio,
é colonização
quer matar tudo que ama,
tudo que dança,
tudo que goza,
tudo que ri,
tudo que luta,
quer matar a gente.
quer matar tudo que sente
mas a gente
que nem semente daninha
sobrevive,
invade,
y destrói
a gente,
que você amaldiçoa em nome do seu amor normativo, segregador,
doentio,
a gente é que é amante
a gente é que vive y espalha
amor
* Tatiana Nascimento, 35, brasiliense, ama a quarta-feira! Poeta, compositora, cantora. Publicou em 2016 lundu, livro de poemas, pela Padê Editorial – editora de livros artesanais criada por ela e Bárbara Esmenia. palavrapreta.wordpress.com / agua.milharal.org / facebook.com/pade.editorial
Resumo: Este texto se vincula, teoricamente e metodologicamente, à pesquisa intitulada “Literatura, Videogames e Leitura: intersemiose e multidisciplinaridade”, que foi desenvolvida no plano da Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo entre 2013 e 2015. Ao mesmo tempo, trata da análise de um corpus que não faz parte da referida pesquisa; aqui, utiliza-se a narrativa do videogame Silent Hill 2 (1999) como corpus para a análise do conceito de identidade cambiante em relação à alteridade (Hall, 2006). Conclui-se que, através da engenharia do jogo e da interação do jogador, enquanto condutor do protagonista da narrativa, constituem-se interações que cerceiam a construção de uma identidade para o personagem principal, James Sunderland.
Palavras-chave: Videogame; história cultural; identidade.
Abstract: This text is theoretically and methodologically linked to the research entitled “Literatura, Videogames e Leitura: intersemiose e multidisciplinaridade” that was developed in the post-graduation Literature program of the Federal University of Espírito Santo between 2013 and 2015. It brings an analysis of a corpus that is not part of the main research; the focus of this paper is the narrative of the videogame Silent Hill 2 (1999) as a corpus for understanding the concept of changing identity in relation to the otherness (Hall, 2006). The conclusion is that, through the game engine and the player interaction – the player being the narrative protagonist – there is a constitution of interactions that restrict the construction of an identity for the main character, James Sunderland.
Keywords: Videogame; cultural history; identity.
Pesquisamos o objeto cultural videogame em interface com a literatura, num estudo multi/transdisciplinar, que trata da possibilidade de uma leitura do objeto videogame[1] enquanto materialidade de texto. A leitura desse texto se faz viável não pelo acesso a um livro, mas através do console do videogame, que emula um software pré-programado. Esses conceitos são suscitados e discutidos, na pesquisa em questão, através da leitura de referenciais teóricos do game studies como Aarseth (1997); Frasca (2002); Jenkins (2005); Juul (2005); Sicart (2011) e Tavinor (2009), no que diz respeito aos conceitos de videogame enquanto objeto de estudo. Nossa visão sobre o objeto aqui estudado também se dá através da leitura da história cultural, de acordo com a visão do estudioso Roger Chartier (1999, 2002, 2004a, 2004b, 2012), o que nos faz compreender o videogame tanto quanto um objeto que merece um olhar específico (no tocante à análise de seu texto) quanto como uma continuação, como evolução, que tem correspondência com os avanços tecnológicos pelos quais passam e passaram as mídias de transmissão de informação, de linguagem e de texto.
Na nossa leitura de Chartier, o objeto livro se dá a ler em todas as possibilidades que existem para sua apreensão através da sua materialidade, do seu papel, da maneira como foi editado, prensado, selecionado, pensado, qualificado: o livro envolve uma produção que passa por várias mãos e, na sua materialização, vemos um resultado que leva à leitura de toda uma história, de toda uma cultura. Esse material encerra leituras, engendra hábitos, transmite posturas. O leitor tem com esse material um relacionamento físico que é fruto de uma construção social, histórica e cultural. O livro não é um objeto natural, dado: ele é uma construção tanto subjetiva quanto física.
O videogame, como objeto que materializa um texto, uma mensagem, é configurado dentro de uma série de outros objetos culturais que transmitem mensagens e que foram tecnologicamente aprimorados, desde meios mais rudimentares de transmissão de dados e ideias até aqueles providos de camadas de sentido (sincréticos/policódices), como o filme e o videogame (Galey, et al, 2011, p. 39; Paiva, 2006; Bignotto, 1998). Essas aprimorações convergiram num único intuito: melhorar a transmissão de informações entre pessoas e essas novas formas, ou seja, essas novas materialidades encerram novas leituras. Ocorre que esses avanços tecnológicos não fazem com que esta ou aquela materialidade se supere, pelo contrário, livros, CDs de música, filmes em Blue-Ray e videogames de primeira e última geração convivem culturalmente na contemporaneidade.
A narrativa na qual uma tecnologia faz com que outra desapareça (pro bem ou mal dessa), não mais se sustenta nos estudos textuais contemporâneos; ao contrário, historiadores de livros como Roger Chartier (1995), Peter Stallybrass (2002), e Adrian Johns (1998; e apud Grafton, Eisenstein, e Johns 2002), e historiadores de mídia como Lisa Gitelman (2006), tem nos levado a considerar como as tecnologias escritas se intercalam e se modificam, e como essas tecnologias estão implicadas em práticas de leitura que têm suas próprias histórias (Galey, et al., 2011, p. 39[2])[3].
Observemos o pensamento de Chartier ao falar, entre outros assuntos, dos textos eletrônicos:
Tratando-se de ordem do discurso, o mundo eletrônico cria uma tripla ruptura: ele provê uma nova técnica pra inscrever e disseminar a palavra escrita, ele inspira um novo relacionamento com os textos, e ele impõe uma nova forma de organização para esses textos (Chartier, 2004b, p. 142)[4].
Para Chartier, a leitura digital, pela primeira vez na história,
[…] combina a revolução do meio tecnológico de reprodução da palavra escrita (como a invenção da prensa móvel), a revolução na mídia da palavra escrita (como a revolução do codex), e uma revolução no uso e na percepção do texto (como em várias revoluções na leitura) (Chartier, 2004b, p. 142-143)[5].
Como já havíamos afirmado, novas leituras se originam de novos formatos, de novas configurações e de novas materialidades. Por isso,
As telas do presente não são apenas reprodução de imagens que precisam ser contrastadas com a cultura da palavra escrita. Elas, de fato, são reproduções da palavra escrita. Por isso, elas significam imagens, em ambas fixas ou móveis, sons, palavras ditas, e música, mas, acima de tudo, elas transmitem, multiplamente, talvez em um incontrolável excesso, a cultura escrita (Chartier, 2004b, p. 151)[6].
Com as exposições acima, posicionamo-nos diante do paradigma da apreciação dos jogos de videogame dentro do campo de estudos literários e, no caso do recorte deste texto em questão, os jogos de console. Sobre os estudos das narrativas, especialmente, houve dissenso entre pesquisadores entre as décadas de 1980 e 2000, já que nem todos os jogos podem ser considerados apenas ficções ou jogos. O jogo, como estrutura ergódica, permite experiências que se associam, encadeadamente, por desafios a serem superados: encontra-se uma chave para abrir um baú, abre-se o baú, encontra-se a porta, etc. Esses processos ergódicos são inseridos no código do jogo e, a partir deles, o jogo se desencadeia: se o jogador atingir as metas, ele consegue progredir; caso isso não ocorra, ele fracassa (Aarseth, 1997; Sicart, 2011). Certamente, esse é um processo vital na constituição do jogo e no seu estudo mas, ao mesmo tempo, Tavinor (2009) conclui que não há, possivelmente, ergodicidade sem ficção, já que a construção da sequência de ações que o jogador terá que resolver para obter o sucesso se sustenta dentro de uma ficção. Ou seja, mesmo que em escala bem simples, sempre há ficção e um fio narrativo através do qual o jogo se desenvolve. Portanto, apesar da dificuldade em se estabelecer limites e padrões para análises de jogos (em que se abarquem todos igualitariamente), Tavinor (2009) afirma que não é algo muito absurdo dizer que videogames são “entretenimentos digitais e visuais que empregam jogos num ambiente fictício” (Tavinor, 2009, p. 30)[7], ou, simplesmente, que os videogames são “jogos através da ficção” (Tavinor, 2009, p. 30)[8].
Dizendo isso, retomamos o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) realizado em 2012, na Universidade Federal do Espírito Santo. No trabalho inicial, o corpus foi o jogo da Konami, Silent Hill 2, e a intenção foi perceber se era possível compreendê-lo como um objeto cultural para o estudo de leitura literária de um videogame. A pesquisa de então não se estruturou com base em referenciais teóricos com os quais contamos hoje e, por isso, tornou-se – de certa maneira – menor e até mesmo ultrapassada quando comparada à leitura que podemos fazer agora. No entanto, não descartamos a possibilidade do retorno ao objeto, utilizando como corpus as falas transcritas do jogo Silent Hill 2, além da narrativa apreendida pelo jogador e do manual do jogo para Playstation 2, que funciona como paratexto. É preciso que fique claro de antemão que, para uma análise mais apropriada e aprofundada, é imprescindível que se tome como parte do corpus todos os elementos que possam ampliar os critérios de leitura, como, por exemplo: os paratextos do jogo (manuais, capa), os indícios visuais, a trilha e os efeitos sonoros, assim como elementos físicos do manejo do controle e do impacto causado pela vibração do mesmo. Neste trabalho, opta-se pela análise da narrativa e das falas dos personagens pelo recorte em questão, que focaliza as interações entre os personagens como forma de estabelecimento de uma identidade para o personagem principal.
Após a exposição do referencial teórico que nos possibilita as aproximações dadas no estudo – de ordem multi/transdisciplinar: entre a literatura e o videogame –, desejamos ler, em diálogo com outros textos, a relação da alteridade enquanto auxiliar na construção da identidade do personagem James, em Silent Hill 2, que se configura num sujeito pós-moderno, segundo uma leitura de A identidade cultural na pós-modernidade, de Stuart Hall (2006).
Silent Hill 2
A história de Silent Hill 2 é centrada em James Sunderland, que, depois de receber uma carta de sua esposa (Mary) morta, passa a procurá-la numa cidade. Na carta, Mary diz que está esperando-o no “lugar especial”, em Silent Hill. Tentando encontrá-la, percorre a cidade de Silent Hill enquanto cruza com monstros e pessoas que estão isoladas ali. É um jogo de Survival Horror produzido pela Konami e lançado em 2001. Horror de sobrevivência é um gênero que consiste, normalmente, num cenário de horror. O jogador precisa controlar um personagem para que este sobreviva, coletando itens, matando monstros etc.
Em artigo online publicado em 2014, na Eurogamer, Dan Whitehead explica por que esse jogo é ainda, depois de 13 anos, o jogo mais assustador já feito[9]. O artigo de 2015, de Andy Hartup, na Gamesradar, atesta os motivos pelos quais Silent Hill 2 é um dos 100 melhores jogos já feitos em todos os tempos. O sucesso de críticas em sítios da internet especializados como IGN[10] (90% de críticas positivas) se dá pela atmosfera do jogo e pela narrativa. Whitehead (2014) afirma em seu artigo que a manipulação provocada pelos designers do jogo funciona intimamente com o jogador, que mergulha na história de James, desejando saber mais sobre quem é aquele homem e se ele merece ou não um recomeço. Para Hartup (2015), o jogo se constitui como um mecanismo perfeito de narrativa e gameplay[11], já que o videogame parece ser a mídia que se ajustaria melhor, já que transmite ao jogador a história de maneira mais apropriada. É sobre esse aspecto que discorreremos na próxima sessão.
Uma identidade em construção
A narrativa começa com James se olhando num espelho de um banheiro sujo. No artigo “Shadowplay: simulated illumination in game worlds”, Simon Niedenthal (2005) pensa que a cena do espelho sinaliza e se relaciona com o recebimento da carta. Para o autor, o fato do personagem se olhar no espelho, logo no início, já denota que James é um protagonista de personalidade ambígua. Conforme o jogo se desenrola, a audiência é chamada a especular sobre as reais motivações do personagem e de sua participação na morte da mulher, já que a trama se complica e James parece não saber de todas as respostas – o que deixa o jogador apreensivo sobre se deve acreditar ou não no personagem que está controlando.
Do ponto de vista do gameplay, o objetivo do jogo (ou a sequência de vários elementos ergódicos que foram inseridos no código e que são postos em funcionamento conforme o jogo é rodado no console) vai mudando conforme a audiência prossegue na história. Primeiro, tenta-se reencontrar a esposa e saber de sua morte – se é real ou não; posteriormente, o protagonista se torna duvidoso e deseja entender quem ele realmente é e o que aconteceu com Mary. O jogador fica confuso com o personagem principal e com seus objetivos, e, na incerteza de se conseguirá atingir os fins propostos inicialmente (encontrar Mary), deseja apenas entender a verdade.
Ainda do ponto de vista do gameplay, ou seja, tendo a experiência de jogo como ponto de partida, entendemos a importância da verificação e da manutenção da identidade do personagem, partindo dos pressupostos já levantados por Henry Jenkins (2005) e Miguel Sicart (2011). Tomando o pensamento de Jenkins (2005) como norteador, observamos que ao narrar a sua experiência em jogo, o jogador assume a personagem e, por isso, pensa-se que o personagem do jogo é a chave de entrada do jogador nesse mundo ficcional (o personagem do jogo é um avatar para a entrada do jogador no mundo ficcional do jogo). Essa resposta emocional vem não da identificação[12] (por parte do jogador) com o personagem e com a qualidade gráfica do mesmo, em semelhança com o real, mas da relação com a facilidade que o jogador tem pra controlar o comportamento desse personagem no mundo ficcional.
Entendemos que a produção desse mundo fictício se dá numa pré-programação e que, por meio dela, assim como dito por Miguel Sicart (2011), o programador, através do código[13], transmite questões morais – o programador, nesse caso, é visto na perspectiva histórico-cultural de Roger Chartier[14] e não seria o único responsável pelo produto software do videogame Silent Hill 2, mas sim toda uma série de processos e de profissionais que o permeiam, configuram e se ensejam no jogo.
Questões morais não estão inseridas apenas em jogos de videogame, mas, para Sicart (2011), embora a ficção sempre tenha possibilitado reflexões sobre a moralidade, é com a interatividade promovida pelo videogame e pelo jogador, ao tomar parte na narrativa como um personagem, que essas questões se tornam mais intensas. É por meio das restrições implicadas pelo jogo que a audiência se insere no universo ficcional e, dessa forma, interage com ele no papel do personagem protagonista.
Quando está inserida nesse processo, a audiência constrói, com o decorrer do jogo e com as informações por ele transmitidas, uma identidade para o protagonista e para si, diante dele. E, como vemos a identidade sob a ótica de Stuart Hall (2006) – algo cambiante e móvel que se constrói a partir de experiências com os outros e com os acontecimentos –, percebemos que a identidade do personagem James Sunderland é construída num processo de descobrimento, no qual a audiência toma parte e em diálogo com todos os personagens que interagem com ele na narrativa.
James Sunderland se configura nesse processo e emerge como identidade, fragmentado e contraditório, assim problemático e em deslocamento. E essa visão de Hall (2006) do sujeito pós-moderno nos auxilia justamente na compreensão de um sujeito que narra uma história que é a própria narrativa, ou seja, a narrativa do eu. A princípio, James tenta se imbricar numa história de si mesmo que seja razoável e crível. Com o tempo, sua empreitada, inicialmente apenas ambígua, assume ares contraditórios. Ao final, depois de ser confrontado, o protagonista não tem mais certezas sobre sua credibilidade. Isto ocorre na narrativa já que James inicia o jogo como o protagonista viúvo que deseja reencontrar sua esposa Mary, mas ela já está morta. Confuso (assim como a audiência), James percorre a cidade em busca do que seria o “lugar especial” da esposa – o lago? O parque? O hotel? Enquanto tenta encontrar a esposa nos lugares pelos quais passa, ele é confrontado por suas meias-verdades: “Por que você está procurando por ela já que ela está morta?” James não parece se lembrar ao certo quanto tempo faz que Mary morreu, apenas se lembra de que ela já estava doente há muito tempo. Com o confronto de outras pessoas – e apenas graças a isso – James consegue perceber que foi o causador da morte da esposa, fato que ele procurava negar e esquecer depois do ato.
Esse jogo que se dá na tentativa de criar uma história que permeie uma personalidade plena nos faz lembrar de novo Stuart Hall, quando diz que, na tentativa de estabelecermos uma identidade una, tentamos inventar uma narrativa confortável do nosso eu (Hall, 2006, p. 13). Essa ideia de uma identidade plena, coerente e una é, na realidade, segundo Hall, uma fantasia. Essa fantasia da identidade unificada se parte diante do espelho, no reconhecimento da identidade entre o eu e o outro, porque essa identidade também se constrói com o olhar do outro (p. 37). “Existe sempre algo ‘imaginário’ ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre ‘em processo’, sempre ‘sendo formada’” (p. 38).
Essa construção, no jogo Silent Hill 2, porém, não nos parece algo que acontece de maneira direta. De acordo com Yong-Hee Seong e Jung Hwan Kim, em “A psychoanalysis of the horror game ‘Silent Hill 2’” (2006), Silent Hill 2 não é um jogo que oferece desafios simples, ao contrário, submete a audiência a um estado mental complexo – o uso da câmera sempre sem um plano mais longo faz com que o jogador não tenha uma visão ampla e clara dos acontecimentos, o que faz com que se tenha uma sensação de paranoia constante. Além disso, os save points, lugares onde o jogador pode parar o jogo salvando seu progresso, são espaçados e causam sensação de angústia constante. Para Daniel do Amaral Denardi, em sua dissertação de mestrado “Considerações sobre alucinação no jogo eletrônico ‘Silent Hill 2’: da plataforma Pc num viés semiótico-psicanalítico” (2010), James vive num estado onírico, mas que lhe parece real. Para o autor, o jogador preenche um espaço que lhe é devido, assim como o faz o leitor e a audiência de um filme, para que possa decodificar tudo aquilo que é deixado como simbólico na narrativa e na persona do protagonista, por exemplo, do jogo Silent Hill 2 (Denardi, 2010, p. 58). Assim, posteriormente e após discorrer sobre o jogo e o referencial teórico, Denardi afirma que “o game, assim como o filme, representaria, assim, uma expressão cultural de uma realização de desejo consciente, ou seja, um tipo de pulsão que já foi elaborada de forma que pôde ser concebida conscientemente” (2010, p. 83).
O problema do jogo Silent Hill 2, assim pontuado por Ewan Kirkland em “Masculinity in video games: the gendered gameplay of Silent Hill” (2009), é constituído no próprio processo narrativo, porque ele se dá através da fala do protagonista. James tenta constituir sua identidade por meio do discurso, da narrativa de sua história. Porém, através da interação com outras vozes, James perde a autoridade sobre a verdade da narrativa. No começo, James é um devotado viúvo que, ao receber a carta da esposa falecida, empenha-se em buscá-la para um reencontro. Veja como o personagem se configura, a respeito do trecho abaixo – a primeira fala de James pós ler a carta de Mary, a primeira cena do jogo. A sequência se inicia com James olhando através do espelho, sua própria imagem, posteriormente saindo do banheiro público. Ouvimos os pensamentos de James em voz alta:
James: Eu recebi uma carta.
O nome no envelope diz: Maria.
O nome da minha esposa…
É ridículo, não poderia ser verdade…
Isso é o que eu continuo dizendo a mim mesmo…
Uma pessoa morta não pode escrever uma carta.
Mary morreu dessa maldita doença há três anos.
Então por que eu estou procurando por ela?
O nosso “lugar especial”…
O que ela quer dizer?
Toda essa cidade era o nosso lugar especial.
Será que ela quis dizer o parque no lago?
Passamos o dia inteiro lá.
Apenas nós dois, olhando para a água.
Mary poderia realmente estar lá?
Ela está realmente viva… Esperando por mim?
James Sunderland no espelho, primeira cena do videogame Silent Hill 2
Aqui, parece-nos que o protagonista tem certa esperança em rever a esposa, expressa carinho ao relembrar o passado. Essa fala, porém, já indica um receio ou dúvida, expressado pela pergunta na última linha. Ele está viúvo há três anos e Mary morreu vítima de uma doença. Nota-se pelo uso da palavra “maldita”, relacionada à doença, que James lamenta essa morte.
Com a progressão da história, James se transmuta em um narrador não confiável. Assim, como posto por Kirkland (2009), por repetidas vezes James é interpelado por pistas de sua ligação com a morte de Mary, supostamente causada por uma doença terminal. Não nos atendo aqui à discussão sobre a moralidade dos atos de James – pertinente à Kirkland e à discussão, também feita por ele, sobre questões raciais ou de gênero (Kirkland, 2010) –, pensamos na construção dessa identidade que, inicialmente, era a de um homem que estava “definhando em dias vazios e sem vida de luto” (Konami, 2001, p. 11), antes de receber a carta da esposa, de acordo com o manual do jogo. Posteriormente, torna-se culpado por um assassinato que nem lembrava ou julgava existir.
Essas questões sobre a verdade de James vão sendo construídas e problematizadas à medida que o jogador vivencia a narrativa. Durante o jogo, o protagonista é levado a refletir sobre suas próprias falas e ações, com questionamentos levantados pelos personagens Angela Orosco, Maria, Laura e Eddie Dombrowski.
Antes de sair de um dos apartamentos do condomínio Blue Creek, James encontra uma menina de oito anos. Ela o atrapalha enquanto ele tenta pegar uma chave que está do outro lado de uma grade. Quando voltam a se reencontrar, eles conversam:
James: Foi você, não foi? Você é a menina que pisou na minha mão.
Menina: Eu não sei… Talvez eu seja…
James: O que uma menina como você está fazendo aqui?
Menina: Huh? Você é cego ou algo assim?
James: O que é essa carta?
Menina: Não é da sua conta.
Menina: Você não amava Mary mesmo!
James: Espere! Como você sabe o nome da Mary?
Novamente, e através da leitura do jogador, percebe-se que James é questionado sobre seus reais sentimentos em relação à sua esposa falecida. Se o jogo é motivado por um desejo do personagem principal de reencontrar sua esposa falecida (e há sofrimento pela perda), informações como essas trazidas pela menina (“Você não amava Mary mesmo!”) fazem com que haja um conflito entre o que era dito como verdade pelo protagonista e o que está sendo informado por outros personagens. De início, pode ser que as dúvidas não persistam e que os personagens, assim como a menina (que tenta atrapalhá-lo e que, por isso, pode ser mal vista pelo jogador) sejam desacreditados – mas o que ocorre é a persistência desses indícios. Por exemplo, adiante, quando James reencontra a menina que se chama Laura, eles têm uma nova discussão. Nesse momento, eles já estão no hospital, no quarto C2. Novamente, a identidade de James é colocada em questão, porque a menina diz que conheceu Mary há um ano, ao passo que James acredita que sua esposa está morta há três:
James: Laura?
Laura: Huh? Você sabe o meu nome?
James: Eddie me disse.
Laura: Que grande gordo fofoqueiro.
James: Como é que você sabe sobre Mary?
Laura: E daí?
James: Por que você não pode me dizer?
Laura: Você vai gritar comigo se eu não disser?
James: Não… Eu não vou.
Laura: Eu era amiga de Mary… Nós nos conhecemos no hospital. Foi no ano passado…
James: Sua mentirosa! Laura, eu…
Laura: Tudo bem! Não acredite em mim!
James: Mas no ano passado, Mary já estava… Sinto muito Laura. De qualquer forma, vamos embora.
James não consegue argumentar com Laura e se exaspera. Percebe-se que a verdade do personagem é confrontada e que, na impossibilidade da manutenção de uma narrativa que consiga assegurar esse eu uno, o personagem se descontrola.
Pouco antes de chegar ao hotel onde James acredita que possa encontrar Mary, ele encontra Angela sendo atacada por um monstro. Depois de matar o monstro, ele é interpelado por Angela, que o acusa:
James: Angela! Relaxa!
Angela: Não me dê ordens!
James: Eu não estou tentando te dar ordens.
Angela: Então o que você quer? Oh, eu entendi, você está tentando ser bom para mim, certo? Eu sei o que você está fazendo. É sempre a mesma coisa. Você só está atrás de uma coisa.
James: Não, isso não é verdade.
Angela: Você não tem que mentir. Vá em frente e diga. Ou você poderia apenas me forçar. Bata-me como sempre fez. Você só pensa em si mesmo de qualquer maneira. Seu porco nojento.
James: Angela…
Angela: Não me toque! Você me dá nojo! Você disse que sua esposa Mary estava morta, certo?
James: Sim, ela estava doente…
Angela: Mentiroso! Eu sei sobre você… Você não queria mais que ela estivesse por ali. Você provavelmente encontrou outra pessoa.
James: Isso é ridículo… Eu nunca…
Novamente, James não consegue responder a Angela de maneira segura, fazendo com que seu discurso mude. Essas falas estão interpelando-o e trazendo rupturas na personalidade e na narrativa que era plausível a James.
Finalmente, James chega ao quarto 312 do Lakeview Hotel, o “lugar especial” onde o casal ficou durante as férias. Ele havia encontrado uma fita cassete enquanto procurava por Laura e, no quarto, quando a coloca no aparelho de vídeo cassete e assiste à gravação, o personagem se vê sufocando Mary com um travesseiro. Quando Laura aparece no quarto, James ainda está sentado na poltrona, em frente à televisão. Este é o momento em que se descobre toda a verdade, quando a personalidade de James vem à tona:
Laura: Então você está aí, James. Você recebeu a carta? Achou Mary? Se não, vamos começar a procurar já. Ok?
James: Mary se foi. Ela está morta.
Laura: Mentiroso! Isso é uma mentira!
James: Não, isso não é verdade…
Laura: Ela… ela morreu porque ela estava doente?
James: Não. Eu a matei.
Laura: Você é um assassino! Por que você fez isso?! Eu te odeio! Eu a quero de volta! Me devolva-a! Eu sabia! Você não se importava com ela! Eu odeio você, James! Eu te odeio! Eu te odeio! Eu te odeio! Ela estava sempre esperando por você… por que?… Por que?…
James: Eu sinto muito…
O que James sente por Mary muda durante a história, ou pelo menos o que se lê através da sua narrativa. No começo, ele deseja saber se ela está viva ou não, e se está esperando-o. James sabe que é absurdo tentar encontrar uma pessoa morta e tenta se organizar em torno de afirmações sobre si mesmo, dizendo às pessoas que não está louco. Além disso, ele parece uma pessoa de bem quando tenta ajudar os outros personagens que cruzam com ele durante a narrativa, como Laura, Angela e Eddie. A única forma, porém, de chegar à verdade sobre a morte de Mary e sobre a identidade de James é pelo confronto com outras vozes. James só consegue se colocar em dúvida quando confrontado, não com fatos, mas com outras narrativas.
Laura descobre que James foi o responsável pela morte de Mary. Silent Hill 2
Através desse processo de construção de identidade, ou seja, da passagem da identidade “viúvo em luto” para a de “perpetrador da própria esposa” é que o jogo chega ao desenlace. Dessa maneira, o papel da audiência é levar o protagonista através do percurso que alterará sua identidade, que só será problematizada em contato com o outro, com outras vozes, com outras narrativas. Percebe-se, com a narrativa do jogo, que a consciência de si e dos atos se dá num processo dialógico, de construção com o outro, e em relação à alteridade, sendo, nesse caso, o jogador o responsável pela condução dos fatos.
Algumas considerações
Percebemos que o estudo da narrativa de um videogame como o Silent Hill 2 do ponto de vista do gameplay, ou seja, do jogador como aquele que revela a história, nos ajuda a compreender as relações que o designer do jogo projetou para que os jogadores interagissem, bem como o olhar do jogador em relação ao que está lendo no videogame. Transitar do papel de vítima para o de algoz pode, possivelmente, acontecer numa dinâmica dialógica na vida real, quando nossos próprios discursos são confrontados com os dos outros. A mecânica (o código, os elementos ergódicos, a narrativa imbricada no processo) do jogo Silent Hill 2 é projetada para que sua narrativa, contada aos pedaços e dúbia, possa ser interpretada e que o papel principal possa ser atuado pelo jogador. A história já está definida antes mesmo de o jogador ligar o console e rodar o DVD, assim como estão definidos os quatro finais possíveis, mas o sentido do texto narrado será atualizado todas as vezes que o jogador jogar o game.
Ainda vale ressaltar a importância da participação do jogador como aquele que, no papel de James Sunderland, vai desvendar a verdade e condenar, ou não, o protagonista. No jogo, os assassinos são postos frente a frente com a audiência, então cabe a esta pensar sobre as identidades ficcionais às quais ouviu: terão elas razão? No momento em que desliga o videogame, o jogador assume finalmente o outro lado do diálogo estabelecido com o protagonista, a fim de refletir as suas ações assim como as ações tomadas por James Sunderland, o personagem ficcional que conduz o jogador durante a narrativa. O que fazer com essas vozes assassinas culpadas é o que concerne à audiência: o que James merece, ao final do jogo? A brecha para o “final feliz” (ou para a interpretação dos atos de James) pode acontecer em possíveis finais: caso deseje, pode-se assumir a culpa de James e suicidar-se, entrando no lago com o carro (isso é possível caso o jogador olhe constantemente a faca de Angela, que James pega para tentar impedi-la de cometer um suicídio); é possível que James também assuma que fez o melhor que pôde para Mary e que, por isso, deve prosseguir com sua vida e ficar com uma outra mulher – muito parecida com ela, chamada Maria, e que parece ter desenvolvido uma tosse persistente. Por outro lado, Mary também pode perdoar James e deixar que ele vá viver a vida sendo um pai para Laura. Caso James sobreviva, ele aparece – com Laura ou Maria – caminhando num cemitério sombrio e cheio de névoa. É como se fosse um indício do delírio, apontado por Denardi (2010), de que James faz parte: não há saídas ou redenção.
* Adriana Falqueto Lemos é graduada em Letras-Inglês (2012), mestre (2015) e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professora da Secretaria de Estado da Educação (ES) e Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo (FAPES). Integrante do Grupo do Núcleo de Estudos Literários e Musicológicos da UFES.
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Notas
[1] Podendo este termo (que pode ser cunhado em separado, video game, ou eletronic game, jogo eletrônico, jogo de computador) ser aplicado a qualquer jogo para console, computador ou celular – assim, qualquer plataforma.
[2] Todas as traduções contidas neste artigo são de nossa responsabilidade, salvo indicação explícita.
[3] The narrative in which one technology drives out another (for better or worse) no longer holds much force in contemporary textual studies; rather, book historians like Roger Chartier (1995), Peter Stallybrass (2002), and Adrian Johns (1998; and in Grafton, Eisenstein, and Johns 2002), and media historians like Lisa Gitelman (2006), have prompted us to consider how writing technologies overlap and change each other, and how those technologies are implicated in reading practices that have their own histories.
[4] Regarding the order of discourse, the electronic world thus creates a triple rupture: it provides a new technique for inscribing and disseminating the written word, it inspires a new relationship with texts, and it imposes a new form of organization on texts.
[5] […] combines a revolution in the technical means for reproducing the written word (as did the invention of the printing press), a revolution in the medium of the written word (like the revolution of the codex), and a revolution in the use of and the perception of texts (as in the various revolutions in reading).
[6] The screens of the present are not screens of images that are to be contrasted to the culture of the written word. They are in fact screens of the written word. Granted, they convey images, both fixed and moving, sounds, spoken words, and music, but above all they transmit, multiply, perhaps in an uncontrollable excess, the written culture.
[7] Digital visual entertainments that employ games in a fictive setting (grifos do autor).
[11]Gameplay se refere ao jogar o jogo, ou seja, é o jogo em movimento, tendo o jogador como participante ativo para que os acontecimentos se desenrolem.
[12] Identificação esta que não é simplesmente objetiva, do ponto de vista de reconhecer-se como aquele que controla a ação; mas identificação pessoal subjetiva, no sentido de relacionar-se com o protagonista, entendê-lo, desejar “ajudá-lo”, desejar conhecer sua história e resolver seus problemas etc.
[13] A questão de código relaciona-se com a questão ergódica, neste caso. Não há narrativa sem elementos ergódicos para que esta desenrole em desafios e sucessos. Também não há elemento ergódico sem narrativa, já que os elementos se encadeiam em sequência. O código apresenta o conjunto de dados que farão o jogo ser “materializado” quando este é rodado no console; as imagens, cenas, sons e efeitos vibratórios estão todos inseridos no código programado que será posto em funcionamento com a interação do jogador. Há participação de vários agentes na produção do jogo, mas, em última instância, é o código que é ativado no processo de participação e interação do jogador, sendo, portanto, o elemento que une elementos distintos (ergodicidade, narrativa, design etc.) e gera o gameplay, ou seja, a experiência em interface com o jogador.
[14] Roger Chartier (2002) utiliza-se, por exemplo, de materialidades como os livros para tecer conceitos sobre a autoria de objetos culturais (normalmente vistos como tendo autoria única, mas que são produções de muitas mãos, como editores, tipógrafos, ilustradores etc.), mas ele atualiza seus conceitos em pesquisas mais recentes que abordam textos em formatos digitais (2004b).
Recebido em março de 2016.
Aprovado em maio de 2016.
Resumo: Este artigo tenta compreender a presença de narrativas sobre o passado nos temas abordados nos jogos digitais produzidos pelo grupo de pesquisa Comunidades Virtuais, a partir da perspectiva da teoria da história. A discussão põe em questão o significado atribuído ao passado na pós-modernidade e conclui que a linguagem dos jogos digitais pode dialogar com narrativas oriundas da historiografia e da memória coletiva.
Abstract: This article tries to understand the presence of narratives about the past in s topics covered in digital games produced by the research Virtual Communities group, from the perspective of the theory of history. The argument calls into question the meaning attributed to the past in post-modernity and concludes that the language of digital games can dialogue with narratives arising from the historiography and collective memory.
Keywords: Video game; historiography; collective memory.
Introdução
A reflexão sobre o processo de produção do conhecimento científico é necessária e importante, uma vez que, à autorreflexividade está associada a construção da objetividade científica. No entanto, essa etapa raramente é construída concomitantemente à pesquisa em si. No campo das Ciências Sociais, a publicação das Regras do Método Sociológico por Durkheim se deu tardiamente. Os diários privados de Malinowski só vieram a público após a sua morte. Há uma boa razão para que isso tenha se dado: a historiografia nos ensina que a distância oferecida pelo tempo é um elemento importante na construção do entendimento, processo de reflexão que permite compreender o passado.
Ao longo dos últimos anos, o grupo de pesquisa Comunidades Virtuais se consolidou e obteve significativo reconhecimento como um importante centro de pesquisa e produção de jogos digitais educativos no Brasil. Parte importante dessa produção foi dedicada aos jogos com base em representações do passado, jogos concebidos para oferecer suporte ao ensino de História. São ao todo quatro deles: Tríade: liberdade, igualdade fraternidade (2008), Búzios: ecos da liberdade (2010), Dois de julho: tower defense (2013) e Industriali (2013).
Captura de tela do Jogo Tríade – Comunidades Virtuais
Captura de tela do Jogo Tríade – Comunidades Virtuais
Mas por que um centro de pesquisa comprometido com o projeto de aproximar o futuro tecnológico da educação concentrou seus esforços na produção de narrativas e simulações digitais sobre o passado? Não é possível responder a essa pergunta sem entender o significado atribuído ao passado na cultura contemporânea.
Imagem promocional do jogo Búzios – Comunidades Virtuais
Para responder a isso, é preciso dar conta da reconfiguração operada no campo da historiografia pela crítica pós-moderna. A proposta deste artigo é propor uma interpretação sobre o significado dos temas abordados nessa ludografia a partir da perspectiva da Teoria da História. Não se trata, portanto, de uma análise exaustiva desses jogos, mas de um primeiro movimento que tem a intenção de suscitar estudos mais aprofundados.
A história do conceito de História
O texto clássico de March Bloch (1965) ensina ao iniciante nos estudos históricos que definir a História, seu objeto e a finalidade do seu estudo, não é uma tarefa simples. Ele se deu conta dessa complexidade ao ter de responder à uma criança que lhe perguntou: “Para que serve a História?” Da metade do século XX para cá, a magnitude do problema foi consideravelmente ampliada juntamente com a intensidade das contradições sociais e a complexidade dos processos históricos sobre os quais os historiadores se debruçam, dando origem a novas perguntas ou ressignificando antigas questões. Desse modo, a finalidade da pesquisa e do ensino de História vem sendo intensamente discutida como indica o tema da Segunda conferência internacional da Rede Internacional para Teoria da História, a se realizar em 2016: “Passados práticos: vantagens e desvantagens da História para a vida”. Esse tipo de inquérito leva ao esquadrinhamento histórico e cultural dos diversos e variados usos da História.
Referência obrigatória nessa discussão, o estudo de Koselleck (2013) sobre a história do conceito de História, revela que o significado que hoje atribuímos a ele é recente. Remonta ao século XVIII. Nasceu com a modernidade e, ao mesmo tempo, transformou-se em um dos seus conceitos mestres. A intelectualidade burguesa alemã construiu uma ciência histórica autônoma à medida em que forjava a sua própria identidade e consciência histórica. O conceito moderno de história adquiriu uma função social e política que fundia a história do Estado com a história do povo alemão. A partir desse momento, a dimensão histórica, pelo seu poder de articular estratégias que unificavam o passado e o futuro de um projeto político, passou a ser reivindicado por comunidades nacionais, classes e partidos. Essa era a época, nos diz Hartog (2014), da construção das grandes “cronosofias”, do surgimento do que conhecemos como história universal.
Correspondendo a uma nova forma de experiência diante do mundo, Koselleck (2013) afirma quem, na Alemanha, o significado moderno da expressão História foi o resultado da evolução semântica de dois termos distintos, a saber: história dizia respeito a um conjunto de acontecimentos. Aqui só era possível falar na história de alguma coisa. Já historie (as histórias) correspondia às narrativas e a um tipo de conhecimento utilizado para a formação e o enriquecimento moral. No final do século XVIII, os intelectuais promoveram uma migração do sentido individual plural para o coletivo singular, de modo que passa a ser possível falar em “a própria História”, a “História como tal”, ou simplesmente “a História em si e para si’, sem a necessidade de lhe atribuir um sujeito. Trata-se da atribuição de um sentido, de uma interpretação a um larga série de eventos. É o surgimento da noção de processo histórico expressa na noção de História da razão humana:
Uma vez descoberta a História como autônoma e autoativa, ela passa a classificar sua própria representação (…) O Direito Natural e o Direito Internacional Público se baseiam nela, liberdade e moralidade não são viáveis sem ela (…) A fundamentação do Iluminismo histórico em uma História não mais derivada, mas na História como tal, tinha se definido com sucesso. A História se eleva a algo como última instância. Ela se transforma em agente do destino humano ou do progresso social (Koselleck, 2013, p. 124).
Desse modo, no repertório semântico do final do século XVIII, a expressão História passou a ter três significados. Ela podia referir-se tanto aos acontecimentos (à situação objetiva), à representação ou narrativa sobre os acontecimentos e, por fim, à ciência que estuda e interpreta os conhecimentos sobre eventos. A História tornou-se o palco em que se desenrolam as diversas histórias e narrativas, cuja pluralidade foi assimilada pela unidade do discurso histórico. Nessa assimilação, a História passou a reivindicar um estatuto de verdade. Para dar conta dele, elementos como a poética, a literatura, a oralidade e o relato memorial foram excluídos do métier do historiador. A sobreposição de realidade e reflexão no campo histórico chegou até o pensamento científico do século XX, bem como as ambiguidades geradas por ela.
Regimes de historicidade e pós-modernidade
O conceito de regimes de historicidade foi proposto por Hartog (2014) com o objetivo de tornar mais inteligíveis as experiências humanas no tempo e entender “como uma sociedade trata o seu passado”. À maneira de um tipo ideal (e portanto não-empiricamente observável), ele não é debitário da civilização ou contido por uma época específica. Construída pelo historiador, essa categoria tem como objetivo auxiliar na compreensão de como opera a razão historiográfica, no sentido de conferir mais plausibilidade a certos procedimentos que a outros. Também ajuda a entender como se articulam os tempos (passado, presente e futuro). A importância dessa reflexão reside no fato de que a ausência de uma reflexão sistemática da historiografia sobre o tempo contribuiu para que, no século XIX, o evolucionismo o naturalizasse.
De acordo com Hartog (2004), a nossa época seria marcada por um contínuo sistemático “presentismo”. Expliquemos: fenômenos como a queda do muro e o fim do socialismo real levaram a um questionamento sobre a ordem do tempo. Trata-se de uma era de incertezas quanto ao futuro, incertezas que podem levar, por exemplo, ao mecanismo fundamentalista de reinventar tradições, como estratégia de responder à uma expectativa de um futuro incerto. Hartog recorre à noção de brecha entre o passado e o futuro proposta por Arendt (1972) para fazer referência a uma situação na qual o passado não é capaz de fornecer orientações para o presente, ao mesmo tempo em que não é possível imaginar um possível futuro produzindo a experiência de um tempo sem orientação. No “presentismo”, o tempo presente se dobra sobre os demais tempos.
Essa avaliação também é acompanhada por Lowenthal (2007) para quem o imediatismo é uma caraterística dominante na relação que hoje estabelecemos com o tempo, levando ao colapso do passado e do futuro. Se no imaginário medieval orientado por narrativas bíblicas o homem experimentava o presente e o futuro como uma continuidade do passado, o iluminismo secularizou o tempo, desenhou novas concepções do passado e do futuro. O desenvolvimento científico da geologia e da paleontologia ampliou o passado do homem de milhares para milhões de anos. Animado pelos progressos da ciências e pelo aumento do conhecimento, o homem moderno cultivou um intenso e utópico otimismo pelo futuro. Contudo, a partir da metade do século passado, uma espécie de colapso do futuro se instalou e tomou corpo e se consolidou a tal ponto que, nos anos 2000, o “futuro já era coisa do passado”. Os traços desse colapso são um crescente pessimismo quanto ao porvir, um encurtamento do tempo futuro no planejamento da ação humana, tomando como referência espaços de tempo cada vez mais breves. No caso dos jovens, pensar no futuro limita-se a imaginar o hoje, o amanhã e talvez, no máximo, o ano que vem. O encolhimento do futuro seria motivado pelo desaparecimento da crença no progresso, a insegurança quanto às possibilidades de emprego e a desconfiança crescente com os usos da tecnologia e da ciência e seus impactos sobre o meio ambiente.
No que diz respeito ao passado, Lowenthal (2007) afirma que se hoje as formas de concepção do passado foram ampliadas, muito se perdeu em ordem, consenso ou clareza contextual. A mídia tende a estreitar o passado, privilegiando a ação em lugar da reflexão, os eventos sobre a continuidade, o indivíduo sobre a coletividade. Se não existe uma desvalorização do passado, existe uma desvalorização do conhecimento do passado, levando a uma situação de perda de referências culturais comuns. Não se trata do problema do desconhecimento de fatos históricos lamentado a cada geração. O que há de novo é um certo consenso de que a ignorância do passado é algo aceitável.
Em Jameson (2011), o tema do presentismo, do encolhimento do futuro e da desvalorização do passado são tratados como o “fim da temporalidade”. Nessa abordagem, o fenômeno adquire consistência material e uma forma cultural e estética, a saber, a do capitalismo tardio com seu desdobramento cultural enquanto pós-modernidade ou cultura pós-moderna. Aqui não se trata apenas de uma supervalorização do presente, pois com o desaparecimento do futuro – entendido como o desaparecimento de projetos políticos coletivos – e do passado, o próprio presente é desqualificado enquanto um tempo significativo, desqualificação que se prolonga sobre os próprios tempos existenciais dos indivíduos.
Os impactos da pós-modernidade sobre a produção do conhecimento científico são inúmeros, tendo se generalizado a ideia de uma crise nas ciências humanas. Para Santos (2011), trata-se de um momento de ambiguidade e complexidade, do fim da hegemonia de uma ordem científica que lança indagações sobre as relações entre ciência e virtude, conhecimento científico e senso comum, sobre as contribuições positivas e negativas da ciência à realidade. Para Lyotard (2011) está em curso uma modificação substancial da natureza da ciência e da universidade, provocado pelas transformações tecnológicas sobre o saber, dando origem a um cenário essencialmente cibernético e informacional, dominado pelos estudos sobre a linguagem. A derrocada da fundamentação metafísica da ciência moderna levou com ela conceitos fundamentais ao pensamento moderno como razão, sujeito, totalidade, verdade e progresso. Ele anuncia a “crise das metanarrativas” que afirmavam o sentido da História como o progresso da razão ou o triunfo da igualdade social. De um modo geral, remonta aos anos 1980 a ideia de uma crise da razão histórica, como parte de uma crise mais ampla das Ciência Humanas (D’Assunção Barros, 2011).
Segundo Marcus (1994), o pós-modernismo radicalizou críticas internas já existentes nas ciências humanas consolidando-as, a exemplo das tendências para questionar a linguagem e suas convenções retóricas utilizadas no campo científico. Também estimulou o desenvolvimento de posições reflexivas e autocríticas que exploram as dimensões ético-políticas e epistemológicas da produção do conhecimento problematizando a construção da objetividade científica a partir da consideração da subjetividade do métier do pesquisador. A relevância do problema da reflexividade está em buscar evidenciar as razões que levam um pesquisador a assumir um determinado quadro de referência e uma perspectiva específica de avaliação (Featherstone,1995).
Na historiografia, a eclosão da reflexividade pós-moderna se manifestou de diferentes formas. Uma delas levou à problematização do estatuto científico da História a partir da sua relação com a retórica e com a narrativa. A discussão sobre a narratividade foi trazida para o primeiro plano, eliminando com isso, o cisma moderno entre literatura e história, realidade e ficção.
Outra mudança significativa foi o fim da posição hegemônica do discurso historiográfico como o detentor da verdade sobre o passado e a revalorização dos estudos sobre a memória e a oralidade. Em Vattimo (2007), falar em pós-modernidade é abandonar a ideia motriz da modernidade, a saber, a História universal e a sua contrapartida ideológica do progresso do espírito humano. Aqui, o tema do fim da História significa, não apenas o questionamento da historicidade, mas a tese da impossibilidade de sustentar uma história unitária. Ao contrário, o que surge é uma pluralidade narrativa, sustentada, em larga medida, pela disseminação planetária da mídia. No final do século XX a memória se tornou um dos objetos centrais para os historiadores do tempo presente, praticada sobretudo em países como a França, onde os atores históricos são os sobreviventes das tragédias do século XX. A história social da memória problematiza a memória através da inscrição na História. A memória tornou-se um dever do historiador num momento caracterizado por incertezas e imprevisibilidades (Silva, 2002). A política de memória é algo que se impõe ao historiador confrontado com a violência de crimes imprescritíveis (Ricoeur, 2007). Essa dimensão do passado eclodiu com as narrativas dos sobreviventes da Segunda Guerra Mundial. Se a memória havia sido excluída da História moderna, na pós-modernidade a História se torna uma subcategoria da memória, uma prática mnemônica (Tamm, 2008; Burke, 2006).
Jogos eletrônicos, representação histórica e políticas de memória
Procurando compreender os impactos epistemológicos das simulações e jogos eletrônicos sobre o pensamento histórico, Fogu (2009) afirma que o traço distintivo da mídia digital interativa é a sua capacidade de obscurecer o processo de mediação (hipermediação) e produzir um “efeito envolvente de presença”. Ele explica que na narrativa histórica tradicional, a experiência da historicidade era transmitida ao leitor através do recurso poético do presente histórico, ou seja, fazia-se uso do presente do indicativo, ao invés do pretérito. Com isso era obtido um efeito retórico de presentificação do passado conferindo-lhe vivacidade e palpabilidade e colocando o leitor no papel de testemunha dos eventos narrados pelo historiador. Mais recentemente, com o cinema de atração, a experiência da presença foi ampliada e resignificada. A experiência da “presença”, antes construída através do texto, passou a ser produzida com o recurso à imagem em movimento, processo que deu origem ao papel do espectador-testemunha de eventos ao mesmo tempo distantes e simultâneos. A chegada da tecnologia digital no cinema representou uma guinada substancial, pois nas histórias manipuladas digitalmente o efeito da tecnologia foi fazer diluir de modo intencional o limite entre o historicamente real e o historicamente ficcional. As simulações 3D, as reconstruções de realidade virtual com estímulos audiovisuais e os jogos digitais promoveram uma mudança na experiência da “presença”, que migrou da ordem da representação para a dimensão da imersão sensorial. A consequência foi a redefinição da história como “experiência prática do passado”. De acordo com Fogu (2009), quando a história é codificada em jogos de vídeo ocorrem simultaneamente dois processos, a saber: a virtualização e a espacialização da experiência histórica. Esses dois processos, conjuntamente, levam ao abandono do eixo temporal que antes caracterizava as narrativas históricas tradicionais.
Os jogos eletrônicos e a memória
Adotar a perspectiva da memória coletiva ou social implica tomar a narrativa historiográfica como uma entre possíveis representações ou usos do passado, possuindo uma lógica específica de produção discursiva. Nos termos de Lowental (1985) isso significa dizer que “a história é mais e menos que o passado”. O trabalho de Santos (2009) procura mostrar a relação entre os jogos eletrônicos a as políticas de memórias norte-americanas para a Segunda Guerra Mundial. Numa abordagem muito comum aos estudos culturais, o autor tenta estabelecer paralelos entre o exército norte-americano, a indústria de cinema e a indústria de jogos eletrônicos, procurando situar a narrativa do jogo eletrônico Medal of Honor (1999) no contexto de uma mitologia norte-americana que atribui significados heróicos às experiências de guerra. O papel do jogo é compreendido quando analisado em paralelo com outros produtos midiáticos que contribuem para a construção de uma memória heróica dos soldados que lutaram na Segunda Guerra Mundial, investindo em sua monumentalidade, descrita como a “Grande Geração”. Por outro lado, o fortalecimento mnemônico do heroísmo norte-americano está associado à uma política de esquecimento dos excessos e abusos de poder cometidos no Vietnã.
É possível citar outros exemplos desse processo memorativo. Na Espanha, o jogo Monturiol el joc, desenvolvido por Ruth Contreras na Universitat de Vic, toma por referência narrativas significativas para a identidade catalã. Como indica a instituição do United Satates Holocaust Memorial Museum e o World Memory Project, é crescente a utilização das tecnologias digitais para a consolidação de uma rede mundial mnemônica. Esses exemplos são bastante significativos para ilustrar o ponto de vista aqui defendido, a saber, o de que, no que diz respeito às representações do passado nos jogos eletrônicos, é preciso indagar tanto pela história quanto pela memória.
Considerações finais
Na trajetória do grupo Comunidades Virtuais, a reflexão sobre o tema das relações entre história e jogos eletrônicos deu origem a uma importante produção intelectual, a exemplo dos jogos com temática histórica orientados para a aprendizagem Tríade (2008), Búzios (2010), Dois de julho (2013) e Industriali (2014).
A ideia do desenvolvimento de jogos digitais voltados para o ensino da História nasceu da paixão pelo desafio suscitado por ela: a construção da compreensão do presente a partir do passado e a valorização do papel ativo do sujeito nos processos históricos e na mudança social. Assim, a escolha recaiu na Revolução Francesa, resultando no jogo Tríade: igualdade, liberdade e fraternidade, que tem como tema a eclosão do ciclo das revoluções burguesas na Europa. A circulação dos ideais libertários da Europa para o Brasil foi abordada em um segundo momento, através do jogo Búzios: ecos da liberdade, que trata da Conjuração Baiana (Revolta dos Alfaiates). O jogo Dois de julho tem como tema as batalhas travadas pelo fim do sistema colonial e pela independência do Brasil na Bahia. O último jogo, Industriali, tenta retratar a lógica da revolução industrial inglesa, através da compreensão dos impactos da modernização da produção industrial no processo produtivo.
A ideia era, através de uma mediação de linguagem midiática acessível aos alunos, desafiá-los através de missões a solucionar problemas envolvendo os fatos históricos, simulando e experimentando situações que exigem planejamento, antecipações e tomada de decisões para alcançar os objetivos propostos, além de exigir do jogador a busca por informações históricas para avançar e finalizar os jogos. Mas como entender os temas abordados nesses jogos à luz da discussão apontada previamente sobre as mudanças teóricas que tiveram lugar no campo da historiografia.
Gostaríamos de propor que o desenvolvimento desses jogos tende a refletir, em larga medida as reconfigurações operadas sobre o campo do pensamento e a experiência histórica nas últimas décadas. Nos jogos como Tríade e Industriali o tema é o nascimento da modernidade. Eles tratam dos processos históricos que fundaram a experiência moderna e a própria historiografia. Encontram-se diretamente associados à ideia de uma História Universal e ideologia do progresso da razão.
Entretanto, os outros dois jogos, Búzios e Dois de julho, ainda que tenham sido inicialmente concebidos enquanto desdobramentos da grande narrativa modernista, alinham-se com uma experiência pós-moderna de relação com o passado, uma vez que tratam de narrativas e tradições celebradas por uma memória regional. Dizem respeito a experiências culturais e identitárias bem específicas.
A Revolta dos Búzios recebeu, ao longo do tempo, várias designações como Conjuração Baiana ou Inconfidência, Revolta dos Alfaiates ou Revolta das Argolinhas, liderada pelos soldados Luiz Gonzaga e Lucas Dantas, e os alfaiates João de Deus e Manoel Faustino, todos executados em praça pública. Foi uma conspiração mal-sucedida que se deu na Capitania da Bahia, no Brasil contra o domínio português no Brasil. A pluralidade de designações reflete as diferentes leituras que o movimento recebeu ao longo do tempo, espelhando os sentidos atribuídos pela academia e pela cultura popular. Enquanto Conjuração ou Inconfidência foram utilizados predominantemente pela historiografia, a expressão Revolta dos Alfaiates, também de origem acadêmica, faz alusão à inserção social de grande parte dos participantes da conspiração. Outras expressões como Argolinhas e Búzios aludem a adereços utilizados pelos conspiradores para fins de identificação. Na Bahia, a última expressão foi consagrada pela tradição local enquanto termo que reforça as matrizes africanas e a avançada proposta igualitária do movimento.
Segundo Valim (2009), o movimento recebeu diversas interpretações pela historiografia. Os historiadores do século XIX procuraram desqualificar a relevância social e política do movimento, tanto em função da sua composição social, como pela sua inserção geográfica, posição conservadora que pode ser entendida como um reflexo dos processos de centralização política face aos conflitos regionais que atravessavam o Brasil. Com a fundação dos Institutos Históricos e Geográficos regionais, e uma consequente descentralização da produção do saber histórico, historiadores baianos da segunda década do século XX, como Francisco Borges de Barros e Braz do Amaral, revisaram as análises sobre o movimento, procurando destacar a participação da Bahia na construção do Estado Nacional. A partir dos anos 1930, essa posição foi revista por autores como Caio Prado Júnior e Affonso Ruy, que conferiram à Conjuração Baiana um estatuto nacional, enquanto movimento de afirmação das aspirações burguesas.
No século XXI, na Bahia, o caráter racial do movimento foi sublinhado por políticas de memória que resultaram na atribuição de um estatuto heróico aos insurgentes, através do projeto de lei 5.819/2009 de autoria do deputado federal baiano Luiz Alberto. Com a sanção da Lei 12.391, de 04 de março de 2011, os nomes de João de Deus do Nascimento, Lucas Dantas de Amorim Torres, Manuel Faustino Santos Lira e Luís Gonzaga das Virgens e Veiga foram inscritos no Livro de Aço dos Heróis da Pátria, depositado no Panteão da Pátria e da Liberdade, em Brasília. Nesse mesmo ano, a memória do movimento foi institucionalizada no dia comemorativo de 12 de agosto. Com base na Lei 10.639/031, o estudo do movimento se tornou obrigatório na rede municipal de ensino de Salvador. Instituições culturais como o Bloco Olodum celebram a narrativa da Revolta dos Búzios, enfatizando a sua importância para a memória afro-brasileira e para a luta contra a escravidão. Além disso, uma linha de continuidade entre Búzios e o processo de Independência do Brasil foi estabelecida, através da sua associação com um outro significativo movimento local, as lutas pela independência da Bahia, relembradas e celebradas no festejo do Dois de julho.
É preciso notar que, na Bahia, a independência do Brasil é celebrada duas vezes: a primeira comemoração, de caráter popular, é feita no dia Dois de julho. A segunda, enquanto festejo de Estado, ocorre no dia Sete de Setembro. Como aponta Viana-Telles (2008), há um embate entre a grande narrativa historiográfica da História do Brasil, que descreve o processo de independência destacando o protagonismo do Sudeste e situando o Nordeste como lugar do atraso, de resistência ao processo de independência, e a memória heróica do Dois de julho, que afirma que o Recôncavo baiano foi pioneiro na proclamação da independência, descrevendo a emancipação do Brasil como um intenso processo de lutas populares, no qual mulheres, negros e caboclos se destacam. É precisamente essa narrativa que é ilustrada no jogo eletrônico Dois de julho: tower defense.
A experiência no desenvolvimento desses dois últimos jogos sugere a importância de que, no desenvolvimento dos jogos voltados para o ensino de história, haja o acolhimento e o diálogo com tradições orais locais, memórias e micro narrativas, criando assim, um espaço para a circulação da diversidade cultural que não encontra espaço nos livros didáticos de História, ainda produzidos a partir da lógica das grandes narrativas centralizadoras como a História Universal ou a História do Brasil.
* Helyom Viana Telles é doutor em Ciências Sociais pela UFBA; pós-doutor em Educação pela UNEB; professor do IHAC-UFBA; pesquisador do grupo Comunidades Virtuais / UNEB.
** Lynn Alves é pós-doutora em Jogos Digitais e Aprendizagem pela Universidade de Turim; professora e pesquisadora do Senai Cimatec e Uneb.
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Ludografias
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Tríade: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Desenvolvedor: Grupo de Pesquisa Comunidades Virtuais – UNEB, cadastrado no CNPq, 2008.
Recebido em março de 2016. Aprovado em maio de 2016.
Resumo: Cruzamento entre performance e autobiografia ficcional, a autoficção tem pautado muitas das discussões literárias contemporâneas sobre autoria, representação e realismo. A publicação do livro Descobri que estava morto, de J.P. Cuenca, simultânea à exibição do falso documentário biográfico A morte de J.P. Cuenca, duas obras que funcionam como paródias da autoficção, insere novos elementos nesse debate ao questionar os limites e as contradições da literatura autoficcional. O texto busca entender como a obra de Cuenca ajuda a pensar esse gênero como resposta à aporia do escritor contemporâneo na era da espetacularização da personalidade do escritor.
Abstract: Combining performance and fictional autobiography, autofiction has guided many of the contemporary literary discussions on authorship, representation and realism. The publication of Descobri que estava morto, by J.P. Cuenca, simultaneously with the exhibition of his fake biographical documentary A morte de J.P. Cuenca, both works that function as parodies of autofiction, inserts new elements in this debate by questioning the limits and contradictions of the genre. This text intends to understand how Cuenca’s works help us to think autofiction as a response to the aporia of contemporary writer in the era of spectacularization of writer’s persona.
Keywords: Autofiction; performance; J.P. Cuenca.
1.
Não custa lembrar, mais uma vez, que, no início do século XVII, um grande parodista já brincava com a confusão entre as várias vozes que enunciam um simples eu num romance. No capítulo IX do primeiro livro de Dom Quixote, o narrador compra os originais em árabe da história do fidalgo da Mancha e faz o mouro traduzi-los para a “língua castelhana”. Esse eu do narrador confunde intencionalmente autor empírico (o Cervantes real) e autor-modelo (o autor hipotético imaginado pelo leitor), narrador e personagem, todos, claro, chamados Cervantes[1].
Para esse jogo funcionar, o leitor – ou leitores, porque aqui também temos um “leitor-modelo” inexistente no mundo real e vários leitores empíricos – deve ter acesso a um conjunto de informações contextuais e paratextuais: precisa saber que Dom Quixote é uma paródia dos romances de cavalaria, por exemplo, e talvez ter alguma ideia do subgênero da pseudotradução. A paródia e outros gêneros, como o roman à clef, só funcionam se o leitor tiver acesso a uma chave. Quando a comunidade de leitores perde a chave, o texto muda de gênero textual.
Em Cervantes, portanto, já havia essa piscadela moderna para o leitor, embaralhando as vozes que enunciam aquele eu, de certa forma inaugurando a história de jogos, paródias, pastiches, sátiras e pistas falsas que marca a literatura moderna.
2.
Se nos meus planos de fuga e desterro eu sempre quis ser outro em outro lugar, agora eu tinha conquistado uma prova material desse alheamento: um cadáver com meu nome (Cuenca, 2016, p. 141).
Num curioso caso em que uma ideia relê retrospectivamente toda uma série de obras, nos anos mais recentes “autoficção” – um conceito que surgiu na teoria francesa – virou moda teórica, depois ganhou os cadernos culturais dos jornais brasileiros e as editoras que publicam ficção nacional. Romances que antes seriam apenas autobiográficos, romans à clef ou jogos pós-modernistas – metaficções – de questionamento da autoria agruparam-se nessa etiqueta. A piscadela virou (mais uma vez) uma novidade.
O termo autoficção, portanto, carrega o risco de criar uma ruptura onde há continuidade, ou menos o risco de funcionar como um conceito que gera seu próprio exemplo (isto é, a moda teórica precede o fato literário). Apesar disso, tornou-se uma discussão necessária para quem deseja trabalhar com realismo na literatura contemporânea brasileira. É preciso, no entanto, distinguir ao menos três sentidos em que se pode falar em autoficção: como um outro nome para ficção autobiográfica, algo tão antigo quanto o romance; a partir da ideia nietzschiana de vida como fenômeno estético; como a já citada refutação da ideia de pacto autobiográfico por escritores teóricos franceses[2].
O primeiro sentido funciona como uma redefinição de um gênero ficcional e ressignifica todo o corpus de romances que se baseiam em maior ou menor medida em dados biográficos. É aqui que encaixamos, por exemplo, O filho eterno (2007), de Cristovão Tezza, que, devido a sua consagração (sucesso comercial, resenhas elogiosas e prêmios literários), despertou um interesse renovado na literatura brasileira pela simulação de confissão. A partir de então, todo romance que tivesse como fundo traços autobiográficos, mas que operasse estruturalmente como ficção, seria chamado de autoficção. Assim, para citar apenas um exemplo, é possível que se releia como autoficção O encontro marcado, de Fernando Sabino (Lima, 2013; Silva, 2015).
A segunda das três definições resumidas acima trabalha em um campo mais amplo do que o de gênero ficcional. Segundo ela, autoficção pode ser entendida como a experiência da existência como arte. Essa experiência pode tomar dois sentidos, ambos presentes em Nietzsche. Por um lado, a existência é aparência: “Se não tivéssemos aprovado as artes e inventado essa espécie de culto do não verdadeiro, a percepção da inverdade e da mendacidade geral […] seria intolerável para nós. […] Como fenômeno estético a existência ainda nos é suportável, e por meio da arte nos são dados olhos e mãos e, sobretudo, boa consciência, para poder fazer de nós mesmos um tal fenômeno” (Nietzsche, 2012, p. 124). Disso se conclui que a história e a memória podem ser vistas como ficção – ou, diríamos hoje, como narrativa. Por outro lado, se tivermos consciência de que a existência é aparência – diríamos hoje: de que sempre estamos atuando –, podemos “fazer de nós mesmos um tal fenômeno” (ou o tão citado “torna-te quem tu és” nietzschiano). Essa ideia é reeditada em diversos momentos na história, em experiências comunitárias – nos anos 1960, por exemplo – ou individuais de fusão entre arte e vida. Parte do teatro pós-dramático pode ser lido como essa indistinção entre performance artística e experiência vital, assim como os trabalhos de Sophie Calle.
O terceiro sentido, por fim, carrega a ideia de que todo texto com algum índice autobiográfico é, no fundo, uma ficção (um processo fictício de subjetivação): uma invenção de um eu ficcional por um autor empírico. Ou seja, não seria autoficcional apenas o texto que se coloca num ponto de indeterminação entre ficção e autobiografia, mas toda e qualquer ambição de dizer eu. Se as narrativas históricas ficcionais pós-modernistas desmascararam a nação (e seu mito fundador) como ficção, agora a ficção a ser desmascarada é o próprio sujeito que diz eu.
Nas autoficções contemporâneas mais radicais, como nos trabalhos de Ricardo Lísias (Divórcio, Delegado Tobias e Inquérito policial – Família Tobias) e J.P. Cuenca (Descobri que estava morto), esses três sentidos se encontram na recusa do autor empírico de se retirar da cena de enunciação; ele intencionalmente confunde as vozes envolvidas na enunciação do eu. Num primeiro nível, usam marcas autobiográficas (nomes próprios, intervenções na imprensa, reprodução de documentos) dentro de estruturas ficcionais; num segundo, expandem esse personagem construído ficcionalmente para fora do texto (atuando publicamente como personagens ou lançando pistas falsas sobre o que é real e o que é inventado, o que não ocorre, por exemplo, em O filho eterno); e essas estratégias se unem numa declaração de suspeição do sujeito.
Still do filme A morte de J.P. Cuenca (Duas Mariola Filmes)
3.
Ser um escritor me ocupava tanto tempo que eu já não podia escrever mais nada – o texto tinha sido substituído pelo personagem no palco de alguns festivais (Cuenca, 2016, p. 140).
Descobri que estava morto parte de uma história ao que tudo indica real: o escritor descobriu que um homem havia morrido portando seus documentos num prédio invadido na Lapa e por isso haviam registrado o óbito de João Paulo Cuenca. Obcecado com essa ideia absurda, ele tenta descobrir os detalhes do caso (qual a identidade verdadeira do morto, por que ele estava com seu documento, quem era a mulher que havia comunicado o falecimento à polícia). Enquanto realiza uma investigação um pouco frouxa, o personagem relata ao leitor como é a vida de um escritor mais ou menos conhecido em um Rio de Janeiro que se prepara para grandes eventos (a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos). Há descrições de uma festa na casa de um editor do maior jornal da cidade, de um encontro de escritores e críticos na Universidade Brown, entremeadas de análises cáusticas do Rio de Janeiro, dos jornais, dos críticos, dos outros escritores e, claro, do próprio João Paulo Cuenca. Afinal, “para um escritor é sempre bom morrer” (Cuenca, 2016, p. 102): não apenas os defeitos do morto parecem desaparecer por um passe de mágica, como também o defunto-autor pode se entregar a uma sinceridade sem limites.
O que o romancista pretende fazer aqui está bastante claro: trazer para dentro da obra, com a ajuda de uma coincidência providencial, um traço cada vez forte do campo literário: o culto do autor como performer, presente em palestras, eventos, filmes – Cuenca dirigiu e protagonizou A morte de J.P. Cuenca, mais ou menos com o mesmo enredo de Descobri que estava morto –, que substitui a leitura e a obra. É uma espécie de versão perversa da vida como fenômeno estético nietzschiana: a arte é apenas álibi para a exposição do autor transformado em fetiche (por uma operação mágica, o valor de exposição do autor substitui o valor de uso da obra). Pressionado pela demanda do mercado, o escritor J.P. Cuenca se entrega anestesiado ou eufórico a essa exploração da personalidade: se é a figura do escritor que o público deseja, é isso que ele receberá, mas junto irá uma imagem refletida da própria perversão desse público.
(Acredito que essa substituição do autor – como função-autor – pelo autor como performer é mais um sintoma do fim da autonomia do campo literário, que no Brasil parece datar dos anos 1990. Em As regras da arte, Pierre Bourdieu (1996, p. 111) lembrou uma frase de Zola: “o dinheiro emancipou o escritor, o dinheiro criou as letras modernas”. Esse período de emancipação acabou. Hoje a leitura, que tende para a impessoalidade, foi substituída pela presença do autor, sempre pessoal, e os critérios literários autônomos são substituídos pela avaliação da performance do autor “bom de palco”, do qual ele muitas vezes tira seu sustento.)
4.
Cada um daqueles arquivos […] continha narrativas cujo ingrediente era o desentendimento entre os seres humanos da minha cidade. Histórias transmitidas oralmente pelos seus habitantes e registradas por escrivães […] (Cuenca, 2016, p. 24).
O ato de tornar um texto público costuma envolver a tentativa de estabelecer um pacto, que determina algumas regras de recepção do texto, em diálogo com as regras do campo discursivo em que o texto se inscreve. O pacto ficcional supõe a suspensão da descrença; o pacto autobiográfico supõe que o enunciador tentará ser fiel a sua memória dos eventos e que o leitor confiará nessa tentativa de sinceridade. O pacto, claro, pode ser recusado por um leitor ou pela comunidade de leitores, de modo que o que era para ser lido como ficção passa a ser lido como documental, ou o contrário. O autor, por sua vez, pode tentar jogar com o pacto ou burlar suas regras – quando revela que estava manipulando o leitor, por exemplo.
O gesto capital do pacto autobiográfico – do qual deriva o pacto autoficcional – não está na estrutura interna do romance. O efeito de real barthesiano não é o que instaura esse pacto, como no romance realista clássico, mas outro tipo de efeito, talvez o que Lionel Ruffel (2012, p. 18) chama de “efeito de documento”: algo naquele texto é não apenas (ou necessariamente) verossimilhante, mas sim concreto, exterior ao texto.
Esse efeito de documento pode ser alcançado pelo uso de nomes próprios, citações, fotos, depoimentos – ou, no caso do romance Descobri que estava morto, pela reprodução do atestado de óbito em nome do autor, João Paulo Cuenca. Mesmo assim, é necessário um aparato paratextual – no caso do livro de Cuenca, textos assinados por Enrique Vila-Matas, Silviano Santiago, Gonçalo Tavares e Sergio Sant’Anna impressos na orelha e na quarta capa – e contextual – entrevistas e textos para a imprensa, palestras, participação em feiras literárias etc. – para que o pacto funcione.
5.
A queda chega e você, com certa tranquilidade, como se fosse um observador externo de si mesmo, pode ouvir o golpe (Cuenca, 2016, p. 168).
Em um comentário a O que é um autor?, de Michel Foucault, Agamben (2007, p. 59) sugere: “o autor está presente apenas em um gesto, que possibilita a expressão na mesma medida em que nela instala um vazio central”. Esse gesto é um afastamento do texto, por meio do qual o autor como indivíduo real abandona o texto e abre espaço para aquilo que Foucault chamou de função-autor. A partir daí, o autor está presente no texto somente como uma ausência, como uma função dentro da economia discursiva, e cabe ao leitor atualizar o jogo lançado pelo autor.
É esse gesto de afastamento do autor que possibilita que o leitor emerja. Barthes também expõe essa ideia no ilusoriamente simples, e talvez por isso tão mal lido, “A morte do autor”, em que defende que é o leitor, e não o autor, quem dá “unidade” ao texto (Barthes, 2004, p. 64). No processo de leitura e atualização de um texto, o receptor-leitor é o único agente “real” da obra de arte – uso aqui a terminologia de Linda Hutcheon (1989, p. 36) –, enquanto o autor é um agente potencial, cujas intenções (codificadas) são inferidas no processo de leitura.
O autor como performer, no entanto, recusa esse gesto de retirada, anulando a “impessoalidade prévia” que permite que o texto aja, “performe” (Barthes, 2004, p. 59). Num mundo em que a presença do escritor é mais importante que o texto, o autor retorna de sua anunciada morte, mas transformado, isto é, como fetiche (ainda assim, numa estranha inversão ou autonomização do mecanismo fetichista): o autor não aparece como resultado ou função da obra, mas como um ser independente da própria existência da obra.
6.
É possível citar uma série de autores que parecem inspirar o romance de J.P. Cuenca: Lima Barreto e João Antônio em sua relação com a cidade; Enrique Vila-Matas nos jogos metaliterários; Paul Auster na incerteza da identidade do personagem; Nabokov no uso particular do narrador não confiável (deve haver outros, talvez mais óbvios).
Acho, no entanto, que, ao menos na leitura que tento fazer, a referência mais relevante é a de Michel Houellebecq. Primeiro, no impulso de criar um retrato distópico do futuro imediato do Rio de Janeiro – presente principalmente em capítulos de um romance inacabado que Cuenca estava escrevendo quando descobriu que alguém havia morrido com seu nome –, há muito da mistura de diagnóstico implacável e autoescárnio que encontramos nos dois últimos romances de Michel Houellebecq, Submissão (2015) e O mapa e o território (2010) – neste, aliás, um personagem chamado Houellebecq é brutalmente assassinado. Ou seja, Cuenca parece indicar em alguns momentos que ele deseja fazer, como o autor francês, o tipo de diagnóstico forte, pessimista e realista que caberia à literatura contemporânea.
O mapa e o território, em especial, é uma espécie de romance programado para fazer o campo literário se voltar contra si próprio. Não à toa, é um livro que dialoga o tempo todo com a arte contemporânea, principalmente com Jeff Koons, sobre quem Houellebecq já escreveu – o protagonista, um artista plástico, está preparando um quadro não à toa chamado Damien Hirst et Jeff Koons se partageant le marché de l’art. O romancista deixa claro que está parodiando o projeto de Jeff Koons – e ao mesmo tempo aderindo a ele – ao usar as regras do campo artístico contra o próprio campo. Autoexposição (a série Made in Heaven, de Koons, o retrata com sua então mulher, Cicciolina, em cenas eróticas, algumas inspiradas em imagens religiosas; Houellebecq atuou no filme L’enlèvement de Michel Houellebecq, inspirado em rumores de que seria sequestrado), indiferenciação entre original e cópia (o que Koons trabalha nas séries de “balloon animais”; Houellebecq faz algo similar em O mapa e o território ao copiar trechos da Wikipédia, sem indicar que são citações e sem corrigir possíveis erros), questionamento e aproveitamento das distorções do mercado da arte (ou da literatura): todos esses são traços que Koons compartilha com Houellebecq e que Cuenca explora em seu romance-filme.
Nos três artistas, fica clara a ambiguidade de suas estratégias paródicas: quanto é crítica e quanto é “recalque e oportunismo barato” (Cuenca, 2016, p. 63); o que é transgressão e o que é adesão; ou melhor, quanto essa transgressão – que põe em questão a autonomia do campo e a autoridade da arte de falar sobre qualquer coisa além dela mesma – pode domesticar qualquer possibilidade de transgressão?
Cartaz de Made in Heaven, 1989, de Jeff Koons
7.
Gerações reproduziram a história do seu espanto quando desembarcou no Cais do Porto do Rio de Janeiro e viu um negro pela primeira vez na vida, em 1911 – apenas 23 anos depois da abolição da escravatura no Brasil (Cuenca, 2016, p. 146).
Alguns romances autoficcionais brasileiros – como O filho eterno, de Tezza, Divórcio, de Ricardo Lísias, e Descobri que estava morto – compartilham um conjunto interessante de características. Primeiro, seus protagonistas são escritores que usam a escrita como uma espécie de justificação de conduta às avessas: olhem como sou corajoso a ponto de mostrar quão execrável sou, parecem dizer. Além disso, se eliminarmos o contexto discursivo e os lermos como pura ficção são – com possível exceção de Cuenca, que em determinado momento desvia a trama para um final “imaginativo” – romances realistas clássicos, pouco experimentais, se é que ainda cabe falar nesses termos.
Há, no entanto, outra questão que parece separar o livro de Cuenca dos demais. Se observarmos com atenção, o tema autoficcional é pontuado por outro assunto insistente: o outro lado da “cidade partida”. Percebemos isso na insistência do narrador de Descobri que estava morto em qualificar os “não brancos”: o morto é “pardo” (2016, p. 25), a mulher desconhecida é “negra” (p. 27, 173, 207, 229), o homem que invade a casa do protagonista na infância é negro (p. 92), como também os “jovens negros nas favelas” exterminados “sob o pretexto da guerra contra as droguinhas” que são consumidas na festa do editor (p. 94), enquanto a “raça” da maior parte dos outros personagens permanece indeterminada. Isso fica claro também nas referências às favelas, sempre distantes, mas objeto de um desejo que emerge com bastante evidência no filme, cuja câmera voyeurística busca com insistência os morros da cidade.
É essa consciência de que há um outro a que não se tem acesso que destaca o livro da autoficção contemporânea. O romance nos diz o tempo todo que esse escritor – consciente da inutilidade da literatura, da futilidade de seu posicionamento político e de como ele enquanto escritor também se aproveita dos problemas alheios – nutre um desejo perverso por conhecer outro social, ou, em outras palavras, por ter a autoridade do discurso do despossuído. A favela provoca um misto de fascínio e horror[3].
É essa autoconsciência culpada que faz com que o romance de Cuenca revele algo sobre a autoficção que parece ficar esquecido nas discussões teóricas: seu formalismo e sua alienação narcisista.
A autoficção – fico tentado a usar o adjetivo “burguesa” – é um exercício de questionamento da autoria e do documento que usa como instrumentos justamente o documento e a função-autor. Qualquer que seja seu assunto, seu tema final vai ser o estatuto do ficcional e do documental. A autoficção não fala de nada além da autoficção. Por isso, ela precisa construir o aparato contextual cuidadosamente, para produzir o efeito passageiro de choque, que deverá lembrar a seu público – o campo literário hegemônico – que a literatura é, afinal, apenas isso: um discurso construído (algo que já sabemos há algum tempo).
A literatura periférica, discurso primeiramente comunitário, realiza uma versão muito menos formalista dessa operação: Capão pecado, de Ferréz, por exemplo, confunde personagens reais com ficcionais, mas o questionamento do documental – apesar de alguns críticos ainda lerem a literatura marginal como mero documento, o que me parece um equívoco reducionista – e do autoral transcende rapidamente a esfera formal e parte para o embate político do presente. É uma literatura que desde o princípio opera entre o ficcional e o documental, entre o textual e o contextual, sem precisar reforçar retoricamente essa indefinição. Sem anunciar e enfatizar essa indistinção, ela subverte as regras do campo literário hegemônico, justamente as regras a que a autoficção presta homenagem (mesmo que formalmente as subverta).
É nisso que está o realismo desconcertante de Cuenca: não na mímica de discurso político, mas no desvelamento de nossa impotência prática, da futilidade dessa versão sofisticada dos jogos pós-modernistas que é a autoficção, do narcisismo do campo literário e da precariedade de nossas políticas literárias.
8.
…a literatura morre um pouco cada vez que alguém levanta a voz para defendê-la num desses palcos construídos para que ainda acreditem na sua existência (Cuenca, 2016, p. 157).
Apesar de tudo que tentamos até aqui extrair do romance de Cuenca, é preciso concluir que ele muito provavelmente não passa de uma paródia (ou pastiche, como prefere Fredric Jameson).
Em Uma teoria da paródia, de 1985, Linda Hutcheon diz que “As formas de arte têm mostrado cada vez mais que desconfiam da crítica exterior, ao ponto de procurarem incorporar o comentário crítico dentro das suas próprias estruturas, numa espécie de autolegitimação que curto-circuita o diálogo crítico normal” (1989, p. 11). Essa autorreflexividade teria um de seus avatares na paródia, gênero em que ocorre a citação intencional de dois ou mais códigos ou obras com distância crítica ou irônica, invertendo, recontextualizando e/ou refuncionalizando algumas das características dessas obras e códigos, de modo a reler, criticar ou satirizar os modelos ou o nosso presente. Para funcionar, no entanto, a paródia precisa de um leitor “sofisticado” o suficiente para decodificar as alusões.
Para voltar à terminologia que adotei até aqui, a paródia – como conceituada por Hutcheon – estabelece um pacto segundo o qual o leitor deve procurar na obra quais são os dois (ou mais) pactos que serão invertidos, subvertidos ou satirizados.
O leitor de Cuenca até aqui estava dentro do pacto autoficcional, imerso num jogo em que referências documentais tinham sua autenticidade posta em dúvida (os documentos reproduzidos eram reais? Se são reais, a história em torno deles é verdadeira? Até que ponto? Qual a intenção do autor ao propor esse jogo? O que mais ele coloca em dúvida?). Mas então o livro inflete abertamente para a ficção, de uma maneira que lembra a narrativa policial pós-modernista de Paul Auster na Trilogia de Nova York: o personagem Cuenca-escritor parece assumir o papel do falso Cuenca, o sem-teto que morreu com os documentos do personagem Cuenca-escritor, numa trama parecida com a de Daniel Quinn (personagem da Trilogia que, não por acaso, tem as mesmas iniciais de Dom Quixote).
Esse desvio no enredo – que formalmente é explicitado pelo deslocamento da narrativa em primeira pessoa para uma narrativa em segunda pessoa ou, para ser mais exato, primeira pessoa com destinatário, que entendemos ser a mulher negra que estava com o sem-teto morto –, que serve para dar uma resolução aos impasses da trama, termina com a suposta morte também do Cuenca original. O livro termina com um posfácio acadêmico ficcional escrito pela fictícia Maria da Glória Prado, crítica acadêmica que já havia aparecido como personagem no romance, que explica ao leitor que o Cuenca-escritor morreu realmente e interpreta a obra usando o arsenal teórico esperado: “autoria como performance” (Cuenca, 2016, p. 233), “quebra-cabeça autoficcional” (p. 234), “fetiche exibicionista” e, claro, a morte do autor de Barthes (p. 235). Aqui também modelos não faltam: o prefácio ficcional de John Ray, Jr., em Lolita, de Nabokov, ou a longa tradição do manuscrito descoberto e da falsa autobiografia, como em Robinson Crusoé, de Daniel Defoe.
Essa estratégia narrativa, claro, funciona como um grau a mais de autorreflexividade em relação à autoficção contemporânea, mas também pode ser lida como um grau a mais de defesa da persona autoral: é como se a estratégia de usar o álibi ficcional para falar de si agora não bastasse e o autor precisasse dar mais uma volta no parafuso e expor por dentro a autoficção, mas ainda assim estivesse falando de si. Se antes, ao apontar para sua impotência diante do outro – a favela removida pela política higienista do governo, o sem-teto –, Cuenca parecia nos mostrar como a autoficção seria um trabalho puramente formal e autorreferente, aqui o livro se mostraria também autorreferente e formalista.
Mas essa conclusão também é apressada. Precisamos ver quais códigos Cuenca parodia. Primeiro, claro, o código autoficcional, com seu jogo sofisticado de referências contextuais e teóricas (a autoficção é sempre um texto que se oferece para a teoria, que pressupõe esse tipo de leitor-modelo informado). Em segundo lugar, Cuenca parodia o discurso político – que é exercido pelo Cuenca real, colunista da Tribuna da Imprensa, do Globo, da Folha de S. Paulo e agora do Intercept, além de comentarista do canal de TV Globonews por um bom tempo – da classe média letrada, o discurso teórico e, talvez o mais importante, os próprios livros de Cuenca, com sua mistura de realismo urbano e expressionismo distópico. E, por fim, parodia o código do romance policial pós-modernista.
Diante dessa leitura do romance como paródia de três códigos, acredito que podemos propor uma leitura dupla dessa aparente aporia final do romance de Cuenca, que assim se mostra mais rico do que um mero exercício autorreferente. Por um lado, o livro é um acerto de contas com a contradição inerente à função do escritor contemporâneo. Cuenca é um exemplo do autor cujo papel performático veio junto (ou mesmo antes) da efetiva transformação mágica do literato em escritor operada pelo reconhecimento do campo literário. De maneira mais simples: antes de ser um autor publicado, Cuenca era um personagem (público) do campo literário expandido (festas literárias, palestras, debates, entrevistas, cadernos na imprensa) por ter participado da primeira Festa Literária Internacional de Paraty, de 2003. Descobri que estava morto é um acerto de contas com essa situação paradoxal do escritor contemporâneo – que ganha mais capital financeiro e simbólico falando da obra do que sendo lido, e que por isso de certa forma precisa ser melhor falando do que escrevendo – e com os caminhos que o Cuenca-escritor adotou para tentar produzir uma obra apesar da futilidade dessa pretensão. Essa interpretação é reforçada pela identificação de pontos de contato – citações quase literais – de cenas do primeiro romance de Cuenca (Corpo presente, 2003) no filme A morte de J.P. Cuenca, como apontou Ieda Magri (2016).
Por outro, ao contrário de Lísias e Tezza, Cuenca busca lidar diretamente – de maneira talvez desajeitada, mas hoje há outro modo? – com temas políticos, principalmente ligados a sua obsessão desde Corpo presente: a cidade; mais que isso, às ruas da cidade, como em João Antônio, Lima Barreto e em parte da obra de Rubem Fonseca. A ideia do escritor como observador total – que às vezes se confunde com a ideia do andarilho que, na anonimidade da multidão, pode encontrar a si mesmo – cai, claro, na impossibilidade dessa utopia moderna do intelectual como representante dos despossuídos: o escritor pode apenas fantasiar a realidade daquele sem-teto que morre de toxoplasmose dentro do esqueleto de um prédio na Lapa. Diz o Cuenca ficcional: “… no fim das contas, o movimento de encarecimento da cidade e as violações dos direitos humanos me incomodavam apenas o suficiente para eu me aproveitar disso num livro antes de me mudar de cidade e de país” (2016, p. 63). O outro da Literatura, aquele que só era representado filtrado pelas lentes idealizadoras do romantismo ou pelas lentes animalizantes do naturalismo, é o grande ausente da autoficção; resta ao autor – essa talvez seja a síntese de minha leitura do romance – falar desse desejo sempre frustrado de ser outro, da certeza de que qualquer tentativa vai resultar numa fraude, que, infelizmente, será levada a sério pelo campo literário.
* Lucas Bandeira de Melo Carvalho é jornalista, editor de livros e doutorando em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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Notas
[1] Uso aqui uma das muitas conceituações possíveis da divisão do emissor em um texto, baseada na versão de Umberto Eco (2004, p. 20); poderíamos também chamar essas funções de autor externo, sujeito da enunciação e sujeito do enunciado; ou indivíduo real, função-autor e sujeito do enunciado etc.
[2] No mundo anglo-saxão os termos da discussão costumam ser diferentes: “Formas de escrita ficcionais e não ficcionais partilham uma história longa e mutuamente influente. Por exemplo, ficção autobiográfica, auto/biografia ficcional ou romance semiautobiográfico são termos que foram usados para descrever textos que, deliberadamente ou devido a sua recepção, colocam-se entre [straddle] ficção e não ficção” (Douglas apud Logan, 2011, p. 485-486); ou então se agrupam esses gêneros no rótulo de metaficção.
[3] Acredito que não seria abusivo comparar o romance-filme de Cuenca com o filme Aquarius, de Kléber Mendonça Filho: sob o discurso heroico da protagonista de Aquarius, Clara, há um baixo contínuo nos dizendo que o que permite que ela resista à especulação imobiliária é seu capital social, construído pela exploração de pessoas como a empregada negra de quem a família não consegue lembrar o nome, ou pela exclusão da juventude da periferia, como os meninos que invadem uma sessão de terapia coletiva da protagonista e de outras pessoas de classe média.
Recebido em outubro de 2016 Aprovado em janeiro de 2017
Resumo: O artigo aqui apresentado tem por objetivo analisar a presença de Exu nas obras Negros bantos, Religiões negras e Candomblés da Bahia com o objetivo de compreender, de forma inicial, o lugar desta figura no imaginário social e qual a posição de Edison Carneiro, autor das obras, em relação a esse personagem.
Abstract: The article presented here aims to analyze the presence of Exu in the works Negros bantos, Religiões negras e Candomblés da Bahia, with the objective of understanding, initially, the place of this figure in the social imaginary and the position of Edison Carneiro, author of these works, in relation to this character.
keywords: Exu; Edison Carneiro; social imaginary.
Pensar em literaturas que envolvem a temática africana pode nos remeter quase que instantaneamente à Bahia de Todos os Santos. Seja pelo lugar comum do nosso imaginário sobre a Bahia, seja pelo fato de esta terra ter gerado frutos que levantaram a bandeira da contribuição da cultura negra, tais como: Jorge Amado, Mãe Menininha do Gantois, Pierre Verger, que, apesar de francês, escolheu a Bahia como terra para viver e realizar seus estudos sobre os orixás da cultura negra; seja pelo não tão conhecido atualmente Edison Carneiro.
Se dentre as muitas opções de análise dentro dessa temática escolhe-se Exu como ponto de observação, esbarra-se com essa figura em Macunaíma, obra na qual o anti-herói de Mário de Andrade aparece como protegido de Exu.
Afinal veio a vez de Macunaíma o filho mais novo do fute. E Macunaíma falou:
– Venho pedir pra meu pai por causa que estou muito contrariado.
– Como se chama? Perguntou Exu.
– Macunaíma o herói.
(…)
Mas recebeu com carinho o herói e prometeu tudo que ele pedisse porque Macunaíma era filho (…)
(Andrade, 2013, p. 81. Grifo nosso).
Encontramos, também, a polêmica (2009) envolvendo o livro Lendas de Exu, de Adilson Martins, recomendado pelo MEC, que ao ser utilizado em sala de aula causou uma batalha em que havia, de um lado, a diretora e as mães de alunos evangélicas e, do outro, a professora, sacerdotisa de Umbanda, que decidiu utilizar o livro em suas aulas de literatura.
O imaginário social de Exu, comumente associado ao diabo, certamente é uma das razões pelas quais falar de Exu enquanto personagem mítico afro-brasileiro ainda causa balbúrdia. Outra razão é o desconhecimento da cultura e mitologia afro-brasileira.
Antes de adentrarmos especificamente nas obras que pretendemos analisar, cabe explicitar o que estamos chamando de imaginário social, e falar, ainda que brevemente, sobre a associação entre Exu e o diabo judaico-cristão, além de seu lugar no panteão africano.
Segundo Baczko (1985), até a segunda metade do século XX, associar imaginação e poder parecia algo contraditório, uma vez que a primeira se mostrava como uma “faculdade produtora de ilusões, sonhos e símbolos, e que pertencia, sobretudo, ao domínio das artes”, enquanto o segundo era reservado à realidade, às seriedades. No entanto, a partir da segunda metade do século XX, passou-se a ser percebido que qualquer poder, inclusive o político, é rodeado de representações coletivas. Assim, o domínio do imaginário e do simbólico se constitui como um lugar estratégico para tal poder, já que é através dos imaginários sociais que uma coletividade constrói sua identidade; elabora representações de si; estabelece papéis e posições sociais ao mesmo tempo em que constrói “o outro”, formando imagens de amigos e inimigos; rivais e aliados; exprime e impõe crenças comuns, tornando-se uma das forças reguladoras da vida coletiva.
Tendo em consideração essa definição de Baczko, olhemos para a informação que Reginaldo Prandi (2001) nos dá sobre o encontro do Velho Mundo com a figura de Exu. Segundo o autor, a ideia de Exu como possuidor de uma maldição se remonta à exploração da África pelos europeus através da presença de missionários e viajantes cristãos do século XVIII. Estes teriam “confundido” a figura de Exu com a do deus fálico greco-romano Príapo e com a do diabo judaico-cristão.
Essa “confusão” foi absorvida e reelaborada enquanto discurso pela sociedade brasileira, com o objetivo de demonizar as religiões de matriz africana e manter o status dominante da cultura judaico-cristã, criando assim o “outro”, o inimigo, que deveria ser combatido. É possível perceber ecos dessa “visão diabólica” em autores de destaque que se dedicaram a estudar o(s) candomblé(s) enquanto manifestação cultural dos negros brasileiros, como por exemplo: Nina Rodrigues e Arthur Ramos. Esse imaginário, mantido e ressignificado há mais de 300 anos, ainda encontra reverberações nos dias de hoje.
Em terras brasileiras, foi possível notar o aparecimento de Exu com pelo menos três roupagens diferentes. A primeira, já citada, é a comparação com o diabo judaico-cristão graças à nossa colonização. Em seguida vem o Exu-homem da rua, o catiço, representado nas mais diversas figuras, sendo algumas bem conhecidas, tais como: Exu Tranca-Rua, Zé Pilintra e as pombagiras, que seriam almas de homens da malandragem, de mulheres da “vida fácil” e de todos os tipos de marginalizados que hoje “descem”[1] nos terreiros para ensinar sobre a vida e os amores. E por último, há o Exu-orixá, menos conhecido no nosso imaginário – e por isso é importante demarcar seu lugar no panteão africano. Segundo a lenda, Exu seria irmão mais novo de Ogum (orixá guerreiro popularmente sincretizado com São Jorge, no Rio de Janeiro; na Bahia, o santo é sincretizado com Oxóssi). É apontado por Verger (1997) como o mais astuto e sutil de todos os orixás, que pode ser o mais cruel ou o mais benevolente de todos, dependendo apenas de ser agradado. É um orixá dual e voluntarioso, no entanto divino. Senhor dos caminhos, aquele que deve ser agradado antes de qualquer outro e que transita entre os dois mundos.
Assim, é possível afirmar que, apesar de Exu possuir no mínimo três acepções no imaginário social – catiço, orixá e diabo –, foi esta última que venceu a disputa de poder no imaginário social brasileiro. Tendo em consideração essas acepções, este artigo tem por objetivo realizar uma análise desse personagem nas obras Negros bantos (1991, 1937) e Candomblés da Bahia (1954, 1948), ambas de Edison Carneiro, buscando perceber qual ou quais dessas representações ganhou espaço em suas páginas.
Edison Carneiro (1912-1972) foi um importante folclorista e etnógrafo baiano. Radicado no Rio de Janeiro e fundador da Companhia de Defesa do Folclore Brasileiro, suas obras tratam da presença da cultura negra no Brasil e, especialmente, na Bahia. Conviveu com Jorge Amado, baiano de grande renome, na Academia dos Rebeldes, grupo literário fundado na Bahia nos anos de 1930. Além de conviver com Carneiro, Jorge Amado, autor de grandes obras da literatura brasileira, realizou críticas às obras de seu conterrâneo, especialmente Religiões negras (1991, 1936), dedicada ao próprio crítico e apontada por este como extremamente poética.
Em Negros bantos, Carneiro aponta que: “Chegados à Bahia, os negros bantos se espalharam (…). Essa conjectura encontra visos de verdade no folclore dessa região, onde se nota, mesmo à primeira vista, a sua marcada influência (…) esses negros do Sul detêm o monopólio do folclore negro da Bahia” (p. 129). Na sua introdução, o autor afirma que essa obra é resultado da observação dos candomblés e do folclore negro na Bahia, e, por isso, se caracteriza como um (no caso, o segundo) caderno de notas sobre os costumes negros na Bahia. A obra encontra-se dividida em duas partes e um apêndice. Para a análise, neste artigo, escolhemos o terceiro capítulo, “O homem da rua”, presente na primeira parte.
Candomblés da Bahia, por sua vez, caracteriza-se como um estudo dos candomblés, segundo o autor, um resumo de uma pesquisa de muitos anos com linguagem acessível a todos, sem notas de rodapé, com o objetivo de “ajudar meus concidadãos a compreender o mundo religioso de parte considerável da população nacional e, dessa maneira, contribuir para o exercício tão precário, de uma das liberdades civis asseguradas pela Constituição – a liberdade de culto – (…)” (p. 12). A obra encontra-se dividida em nove capítulos e mais um suplemento, e é o quarto capítulo, no qual o autor apresenta os orixás, especificamente a quinta parte, “Êxu”, que analisaremos.
Peço licença ao senhor dos caminhos
Quem guarda os caminhos da cidade do Salvador da Bahia é Exu, Orixá dos mais importantes na liturgia dos candomblés, orixá do movimento, por muitos confundido com o Diabo no sincretismo com a religião católica, pois ele é malicioso e arreliento, não sabe estar quieto, gosta de confusão e de aperreio. (Amado, 1980, p. 17).
Antes de analisarmos tais obras, cabe destacar que o trabalho de Carneiro é considerado um trabalho etnográfico, cabendo perguntas acerca da aproximação entre ficção e discurso etnográfico. Ana Maria Mão de Ferro Martinho, em seu artigo “Memória e experiência etnográfica – literatura, cultura, representações” (2010), afirma que: “A Etnografia, enquanto expressão metafórica de uma epistemologia ‘de-centrada’, é sempre ficção, embora a ficção nem sempre seja etnografia”. Pautada em Clifford Geertz e James Clifford, a autora destaca a dimensão ficcional nos trabalhos de campo. Essa dimensão poderia ser caracterizada em três tipos fundamentais, interessando-nos aqui a que Geertz chama de realist tales – com foco em descrições das culturais estudadas –, que é exatamente o trabalho feito por Carneiro nas obras aqui trabalhadas.
K. Olinto, em seu Literatura e cultura (2003), concorda com as colocações de Martinho. Citando Valter Sinder: “sugere que a literatura assim como as ciências sociais são meios de fornecer a orientação e a interpretação da civilização moderna e da realidade social” (p. 29). O autor segue apresentando a menção que Sinder faz de Geertz: “as etnografias são ficções: ficções no sentido de que são algo construído, algo modelado” (p. 32). Assim, a imparcialidade pretendida pelo cientista de alguma forma não vinga, a partir do momento em que está sujeita a um olhar que interpreta, o que pode abrir espaço para elementos ficcionais. Por mais que o etnógrafo realize anotações que se pretendam imparciais, ele escolhe o que anota, podendo assim ter sua imparcialidade questionada.
Não cabe aqui discutir a etnografia, e sim apontar aproximações possíveis com o fazer literário ficcional, justificando a escolha de nossa fonte.
Este artigo partilha dos pressupostos teóricos dos Estudos Culturais que, segundo Culler (1999), são movidos por tensões entre o desejo de recuperar a cultura popular e de dar voz a grupos marginalizados. Tal noção encaixa-se perfeitamente com a proposta presente nas obras de Carneiro, visto que o baiano recupera a cultura popular negra da Bahia através das anotações das práticas religiosas, e dá voz aos praticantes e sacerdotes (como veremos a seguir) das religiões de matriz afro, marginalizadas pela sociedade brasileira europeizada, e ao culto de Exu, o mais marginalizado e temido por essa mesma sociedade dominante.
Que família é essa? É a família do Diabo[2] – a representação diabólica de Exu
Em Candomblés da Bahia, Edison Carneiro nos mostra as razões que possibilitaram que esse sincretismo Exu-diabo se cristalizasse no imaginário social brasileiro. Segundo Carneiro: “tendo como reino todas as encruzilhadas, todos os lugares esconsos e perigosos deste mundo, não foi difícil encontra-lhe um símile com o diabo cristão” (p. 73). O autor aponta que essa é uma má interpretação da figura de Exu e que essa caricatura também foi assimilada pelos negros de outras nações[3] que não a nagô ou gêge (jejê), uma vez que eles não conheciam esse homem das encruzilhadas e que, apesar dessa correlação (Exu-diabo), os cultos nada perderam de suas características fundamentais nos candomblés de matriz nagô e gêge (jejê).
Nessa narrativa inicial de Carneiro, devemos atentar para o fato de que o autor, negro e observador da cultura baiana, chama atenção para um equívoco que cometemos até hoje: refere-se sempre ao candomblé no plural, demonstrando assim as inúmeras possibilidades de cultos e tradições que podem existir e, de fato, existem. Ele nos apresenta duas nações afro-baianas e ainda aponta a existência de outras nações com diferentes bases culturais, que não compreendem a prática cultural das nações gêge (jejê) e nagô, também oriundas de África. Mantendo o paralelo entre essa noção de candomblés plurais, trazida por Carneiro, podemos pensar também em Áfricas, cultura múltipla, e, por conseguinte, em tradições afro-brasileiras: plural e não única e hegemônica como muitas vezes pretendida.
Voltando à obra de Carneiro, temos que o autor nos apresenta Exu como um embaixador dos mortais, um intermediário entre os homens e os orixás. É importante destacar que, nessa obra, Carneiro ainda não tinha conhecimento do Exu-Orixá, algo que adquiriu posteriormente e apresenta em seu texto “o homem da rua”, trabalhado no próximo tópico.
Carneiro expõe as duas faces de Exu, sintetizando-o no esquema: se damos o que Exu pede, temos caminhos abertos (face boa); caso não, ele desencadeará todas as forças do mal contra nós (face má), isso porque ele é o senhor dos caminhos. E exatamente por dominar os caminhos, a ele é consagrado todo o início de festa e início de semana, com o intuito de que tudo ocorra bem dali em diante e não haja problemas pelo caminho.
Apesar dessa face dicotômica, Carneiro aponta a existência do Exu-compadre, familiar a todos os candomblés, que seria uma espécie de cão de guarda fiel. O autor chama atenção para o fato de tal título implicar em uma familiaridade, o que não justificaria a representação de Exu como um elemento contrário ao homem. Ou seja, apesar de Exu ser visto como o diabo, aquele que deseja o mal para o homem, pelos não praticantes dos rituais gêge (jejê) e nagô; isso não procede dentro da ritualística, Exu é, sim, um cão fiel e vigilante que protege a casa/barracão e é saudado de maneira reverente por todos os filhos e assistentes antes das festas.
Por fim, Edison Carneiro traz um “causo”, e aqui se faz importante a discussão sobre etnografia e literatura feita no início desse artigo, pois o autor diz que esse caso é o único de que ele tem notícia. Vale destacar que não é mencionada por ele a forma como obteve esta notícia, se foi em campo, observando, ou ouvindo as histórias pelos barracões e casas de santo. O que nos conta é que Exu não é um orixá, porém pode se manifestar como um, e nesses casos a pessoa não seria filho(a) de Exu, mas teria um carrego (obrigação) com ele. No entanto, e mesmo assim, ele pode se manifestar, pode dançar nas festas de candomblés, mas não entre os outros orixás. Carneiro salienta o fato de que isso só aconteceu uma vez, no Candomblé do Tumba Juçara (Ciríaco). Ocorreu de tal modo que uma filha de santo dançava jogando-se no chão, com cabelos despenteados e vestidos sujos, parecia até uma provocação – Exu sempre provocante – “Este caso do Candomblé de Ciríaco é o único de que tenho notícia acerca do aparecimento de Exu nos candomblés da Bahia” (p. 77).
Com Exu não se brinca, Exu não é de brincadeira[4]
“Senhores das potências sobrenaturais, protegidos por Exu, estes homens podem, sempre que o queiram, mandar os inimigos para a Mansão dos Mortos – o Canzuá de Kimbé, como a chamam os negros bantos da Bahia” (p. 145). Com essa colocação impactante, Edison Carneiro deixa clara a crendice dos terreiros de candomblés: com Exu não se brinca.
Nesse mesmo livro, Negros bantos, no capítulo III da segunda parte, mais uma vez Carneiro escreve sobre essa entidade, Exu. Intitulado “O homem da rua”, esse capítulo já nos mostra desde o início uma versão divergente da imagem e representação desse ente. Se no anterior, Candomblés da Bahia, Carneiro dizia que Exu não é orixá, neste, no primeiro parágrafo, ele nos diz: “A representação mais comum de Exu, orixá que simboliza as forças contrárias ao homem, trá-lo sempre armado com suas sete espadas, que correspondem aos sete caminhos dos domínios intensos do orixá” (grifo nosso); ou seja, a partir de agora Exu é percebido como um orixá. O autor segue apresentando os presentes preferidos de Exu, como fez em seu livro anterior.
No entanto, diferentemente da obra que a antecede, nesta Carneiro mostra que entrevistou pais de santo, saindo do lugar de narrador-observador e interagindo com o objeto de observação. Remetendo-se ao estudo anterior (Candomblés da Bahia), Carneiro nos conta que questionou o pai de santo Manuel Paim sobre o ponto cantado: “Sai-te daqui, Aluviá / que aqui não é teu lugá. Eu não quero ver-te aqui, na mesa de Apanaiá”. E antes de analisarmos a resposta de pai Manuel, é importante destacar a marcação da oralidade presente nesse trecho.
A marca de oralidade já se faz presente no nome do pai de santo: Manuel Paim, “Paim” seria a forma oral de “painho” (diminutivo coloquial de paizinho), e tratamento carinhoso/respeitoso até hoje presente nas casas de santo. O trecho dá sequência à transcrição da fala e segue presente no trecho “que aqui não é teu lugá”, no qual “lugá” aparece em vez de “lugar”.
Retornando com a resposta de pai Manuel, temos que, segundo o sacerdote, Aluviá seria um Exu da nação de Angola, aqui é apresentada outra nação que não havia aparecido em sua obra anterior; e Apanaiá seria um espírito de Caboclo, superior ao Exu. Aqui já é possível reparar na existência de hierarquia dentro da liturgia de matriz afro. Carneiro ainda questiona ao “painho” se existe mais de um Exu, e este lhe responde de maneira afirmativa.
Carneiro em sua observação sobre o terreiro de pai Manuel, nos diz que nele se “mesclam as influências das nações jejes e angolas, sem que possa afirmar qual seja a predominante” (p. 143). Aqui devemos nos atentar para uma mudança de grafia: se, na primeira obra, a mais antiga, a nação jejê aparecia escrita com “g”, nesta já aparece escrita com “j”, como é o comum hoje em dia. E observando mais atentamente a análise de Carneiro, é possível aproximá-la da afirmação de Stuart Hall (2001) de que o espaço do “Novo Mundo” é “em si mesmo o início da diáspora, da diversidade, do hibridismo e da diferença”. Se a diferença aparece marcada pelo uso de candomblé no plural, o hibridismo surge representado no terreiro de Manuel Paim: duas nações gerando uma nova forma de culto.
Edison Carneiro registra alguns cantos a Exu nesse terreiro, como por exemplo: “Embarabô ê môjubá / Embarabô ê môjubá / já mandei lebar ébó”. E nos ensina que Embarabô é o nome de Exu na nação Kêtu, assim como Bombonjira é o nome do Orixá na nação Congo. Com isso, fica evidente o chamado hibridismo cultural, diversas nações oriundas de África juntam-se na Bahia, formando assim um novo cosmos cultural e ritualístico, próprio do Brasil e de uma cultura afro-brasileira, não existente em África, pois em cada nação de África havia um culto específico, que se encontrou apenas no Brasil, dado o tráfico negreiro.
Em seguida, Carneiro nos conta que Exu tem características fálicas e, como prova, traz o argumento de autoridade de Nina Rodrigues, um dos grandes antropólogos do século XIX e pesquisador daquilo que ele intitulou “fetichismo dos negros baianos”. Sua obra recheada de ideias que compartilham do chamado darwinismo social[5] é passível de muitas críticas atualmente, no entanto dialoga com ideias em vigor no seu tempo.
Carneiro nos diz que na obra Os africanos no Brasil, de Nina Rodrigues, os exus são representados com “volumosos órgãos sexuais, longos peitos pendentes nas mulheres” (p. 144), e segue nos dizendo: “Sabido que Exu procede da Costa dos Escravos, não tendo similares nos povos bantos importados para o Brasil, deduz-se, com probabilidade de acerto, que os negros sul-africanos dele se apropriaram sem lhe retirar nenhum dos seus caracteres distintivos essenciais” (p. 144). Mais uma vez, confirma o hibridismo proposto por Hall, quando este afirma que o espaço do “Novo Mundo” é “em si mesmo o início da diáspora, da diversidade, do hibridismo e da diferença” (Hall, 2001).
O baiano nos traz outro culto presente na Bahia, fazendo uma oposição entre os candomblezeiros e os feiticeiros, através da figura de Exu. Para os primeiros, Exu só deve ser despachado e/ou reverenciado para não atrapalhar os demais trabalhos; enquanto que, para o segundo grupo, de acordo com Carneiro, “rendem-lhe, como é natural, um culto tenebroso, que intimida as camadas baixas da população (…) muita exploração da crendice e da incredulidade populares. ‘Atravessar para o outro lado — tal ameaça constante (…) significa, simplesmente, matar” (p. 145).
Por fim, Carneiro nos apresenta alguns nomes de pais de santo feiticeiros, comprometidos com esse “homem da rua”, Exu, e afirma que “há fatos interessantes, que demonstram o pacto firmado entre esses homens e o diabo do negro brasileiro” (p. 145). Curiosamente, o autor usa o termo diabo, mesmo tendo dito, em pesquisa anterior, que “Exu tem sido largamente mal interpretado (como diabo)” (Carneiro, 1954, p. 73).
Postado nas encruzilhadas de todos os caminhos, escondido na meia luz da aurora ou do crepúsculo, na barra da manhã, no cair da tarde, no escuro da noite, Exu guarda sua cidade bem-amada (…) o povo dessa cidade é doce e cordial e Exu tranca seus caminhos ao falso e perverso (Amado, 1980, p. 17).
Segundo Jorge Amado, Exu tranca os caminhos daqueles que pretendem ser falsos e perversos, guardando a bem-amada cidade de São Salvador. Assim, na sua visão, Exu seria o orixá protetor dessa cidade, e aqui fica evidente o lado positivo de Exu. No entanto, é sabido que no imaginário popular o que prevalece é a roupagem negativa dessa entidade mítica africana. Esse prevalecimento é mantido na atualidade especialmente pelos neopentecostais, grupo religioso que mais cresce no Brasil[7], e tem como um dos grandes nomes o bispo Edir Macedo, que, em seu livro Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios, afirma: “Os exus, os pretos-velhos, os espíritos de crianças, os caboclos ou os ‘santos’ são espíritos malignos sem corpo, ansiando por achar um meio para se expressarem neste mundo, não podendo fazê-lo antes de possuírem um corpo” (Macedo, 1980, p. 9. Grifo nosso). Adiante, a comparação é ainda mais evidente: “Na realidade são demônios. No meio de pessoas ignorantes e leigas, se manifestam como exus, caboclos ou guias” (p. 32. Grifo nosso).
Nos espaços de disputa desse imaginário popular, notamos que, de certa maneira, ainda na década de 1930 e 1940, Edison Carneiro tentou através de sua narrativa ressignificar a imagem de Exu e, mais do que isso, tentou compreendê-la dentro de seu ambiente de culto. Apresentando Exu como elemento de ligação entre os orixás e o mundo, um ser de movimento e ao qual se deve respeito. No entanto, esse respeito não deve ultrapassar os limites e virar culto, pois isso é coisa de “feiticeiros” que trabalham para o mal.
Apesar de sua tentativa, em algumas falas, o autor baiano deixa transparecer certa influência da imagem negativa de Exu, comumente perpetuada, chamando-o de “diabo dos negros brasileiros”. E dialogando com toda a mentalidade do período que buscava inserir e conhecer a cultura negra, mas estabelecendo certos limites, demonizando-a ou feitichizando-a.
Este artigo não buscou encontrar uma totalidade acerca da visão de Exu pelos olhos de Carneiro. Primeiro porque, como dito na introdução, esta tarefa seria impossível, uma vez que a presença desse ser mitológico na cultura afro-brasileira apresentaria no mínimo três acepções. Segundo porque o próprio intelectual aqui analisado apresenta visões dicotômicas, paradoxais, duais, como o próprio Exu.
Assim, a partir das análises das obras aqui citadas, foi possível perceber também que Exu é o senhor das ruas, das encruzilhadas, e essas encruzilhadas são múltiplas (assim como a própria entidade), caracterizando o encontro de diversas nações. Encontro que fez surgir, em nosso país, um culto novo, híbrido:
Da esfera do rito e, portanto, da performance, encruzilhada é o local radial de centramento e decentramento, interseções e desvios, textos e traduções, confluências e alterações, influências e divergências, unidade e pluralidade, origem e disseminação. Operadora de linguagens e discursos, a encruzilhada, como lugar terceiro, é geratriz de produção sígnica diversificada e, portanto, de sentidos plurais (Martins, 2001, p. 65).
Com isso temos que a encruzilhada é o ponto de encontro de todos os caminhos, dos quais devemos decidir qual seguir. Exu, assim como Edison Carneiro, é o mensageiro e a encruzilhada. Eles levam aos mais diversos caminhos e às múltiplas, e por vezes contraditórias, duas faces, duas mensagens.
Por fim, é possível notar que na atualidade a visão com relação a Exu se aproxima mais daquela que Carneiro defende ao propor Exu como um mensageiro, aquele que liga os dois mundos e abre caminhos. Mesmo com a ainda forte presença da visão negativa, já é possível perceber um olhar que busca entender a cultura do outro, e isso fica evidenciado em ações como a presença de Exu no desfile de 2016 da Acadêmicos do Salgueiro, que trouxe um Exu em sua Comissão de Frente abrindo caminho para a escola passar; ou ainda no desfile técnico dessa escola que trouxe sua rainha de bateria vestida de pombagira (Exu fêmea) “abençoando” os ritmistas.
* Mariana Pereira da FonsecaTeixeira é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pós-graduada em Tradução Português – Espanhol.
Referências
AMADO, Jorge. Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios. Rio de Janeiro: Record, 1980.
BACZKO, Bronislaw. A imaginação social. In: LEACH, Edmund et alii. Anthropos-homem. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985.
CARNEIRO, Edison. Religiões negras. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991 (1936).
CARNEIRO, Edison. Negros bantos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991 (1937).
CARNEIRO, Edison. Candomblés da Bahia. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editorial Andes, 1954 (1948).
CULLER, Jonathan. Teoria literária – uma introdução. Disponível em: iedamagri.wordpress.com. Acesso em 15/12/2016.
MACEDO, Bispo Edir. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios. Rio de Janeiro: Universal Produções, 1980.
MARTINHO, Ana Maria Mão de Ferro. Memória e experiência etnográfica: literatura, cultura e representações. Disponível em: www.setorlitafrica.letras.ufrj.br. Acesso em 10/12/2016.
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PRANDI, Reginaldo. Mitologias dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
VERGER, Pierre. Lendas africanas dos orixás. Salvador: Corrupio, 1997.
Notas
[1] Descer, nesse contexto, pode ser definido como a possessão. Ou seja, quando os santos vêm à terra utilizando-se do corpo dos iniciados, seu filhos. Isso nos é apontado por Prandi e Souza: “[…] os encantados ‘vêm à terra’, descem na guma (terreiro), para dançar e conviver com os mortais, estabelecendo com todos os que comparecem aos terreiros relações de afeto e clientela” (PRANDI, Reginaldo; SOUZA, Patrícia Ricardo de. Encantaria de mina em São Paulo. In:___(Orgs.) Encantaria brasileira:o livro dos Mestres, Caboclos e Encantados. Rio de Janeiro: Pallas, 2004).
[2] Cantiga – ponto entoado em cultos de Umbanda em homenagem a Exu.
[3] Termo utilizado para se dirigir às vertentes presentes nos candomblés, tomando como ponto de referência um espaço, geográfico ou sociocultural, de onde se supõe a origem do culto que nomeia (ex.: Nação Kêtu, Nação Nagô etc).
[5] Pensamento social surgido no século XIX, que, com base nos pensamentos de Spengler e Darwin, defendia a tese de inferioridade racial.
[6] Cantiga – ponto cantado para encerramento em festa de Exu.
[7] Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 2011. In: www.ibge.gov.br. Complementando a informação, temos que “O número de evangélicos no Brasil aumentou 61,45% em 10 anos, segundo dados do Censo Demográfico divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 2000, cerca de 26,2 milhões se disseram evangélicos, ou 15,4% da população. Em 2010, eles passaram a ser 42,3 milhões, ou 22,2% dos brasileiros. Em 1991, o percentual de evangélicos era de 9% e, em 1980, de 6,6%”. In: www.g1.com.br.
Recebido em dezembro de 2016 Aprovado em janeiro de 2017
Resumo: Este ensaio, fruto do relatório parcial de estágio pós-doutoral, persegue o objetivo fulcral de investigar a identidade cultural na produção poético-musical com marcas indígenas de Roraima, a fim de alargar a discussão para o campo de conceituação das identidades que não podem ser vistas somente com a tradição oral, mas com as etnias, com a construção e a ritualização dos mitos amazônicos, dos imaginários coletivos, da diversidade linguística que formam a multiplicidade do povo roraimense e, ao mesmo tempo, o singulariza com traços sui generis dentro de sua tradição local. Sob esse prisma, as análises terão como recorte analítico as canções do álbum Songbook (2015), de Zeca Preto e outros poetas, sob a ancoragem dos estudos culturais e da teoria da literatura. O ensaio provocará uma discussão em torno de autores relevantes, a saber: Arjun Appadurai (2004), Stuart Hall (1993), Alfredo Bosi (1992) Teixeira Coelho Neto (2008), Silviano Santiago (2002), Zigmunt Bauman (1999) dentre outros do projeto e discutidos no Programa Avançado de Cultura Contemporânea, os quais subsidiarão a presente pesquisa.
Palavras-chave: Identidades; Estudos Culturais; canções de Roraima; poesia.
Abstract: This paper, the result of the partial report of Post-Doctoral Internship, pursues the key objective of investigating cultural identity in poetic musical production with indigenous brands of Roraima, to extend the discussion to the identities conceptualization field not can only be seen with the oral tradition, but with the ethnic groups, with the construction and ritualization of Amazonian myths of the collective imaginary, linguistic diversity that form the multiplicity of roraimense people and at the same time, distinguishes with sui generis features within its local tradition. In this light, the analysis will have the analytical approach the songs on the album Songbook (2015), Zeca Preto and other poets, in the anchoring of cultural studies and literary theory. The test will lead a discussion around relevant authors, namely: Arjun Appadurai (2004), Stuart Hall (1993), Alfredo Bosi (1992) Teixeira Coelho Neto (2008), Silviano Santiago (2002), Zygmunt Bauman (1999) from other project and discussed in Contemporary Culture Advanced Program, which will subsidize this research.
Keywords: Identity; Cultural Studies; Roraima songs; poetry.
Introdução
Quero a minha América latina preta, branca, roxa, colorida extrenorte americano brasileiro (Zeca Preto. In: Mukama).
Ao propor este ensaio[1] doravante como objeto de estágio pós-doutoral, escolhemos a epígrafe da canção mukama, de Zeca Preto, pois as palavras contidas nela nos permitem asseverar que em muitas canções roraimenses há um banho de imagens poéticas que corroboram para a construção de identidades múltiplas e para o cruzamento de culturas (Bosi, 1992). A rigor, tais composições, ainda que nem sempre com intenção poética, assumem discursos que norteiam não uma identidade Macuxi, ou Wapixana, ou Taurepang e outras, mas um misto de marcas que formam, dentro da subjetividade individual, a coletividade.
À luz epistemológica dos estudos culturais, da teoria da literatura e dos debates textuais realizados nos encontros da Universidade das Quebradas (UFRJ), pretendemos como objetivo fulcral construir um estudo crítico-reflexivo das múltiplas identidades embutidas nas canções musicais de Roraima e com ele esmiuçar a cultura de temática indígena e regional, estudar o Movimento Cultural Roraimeira e, por excelência, explorar essas composições sob o tema cruzamento de culturas e identidades a partir da obra Songbook que reúne a música de Zeca Preto e outros compositores e poetas da Amazônia, especialmente: Neuber Uchôa, Tati Garcia e Eliakin Rufino.
A partir desse foco, concentraremos em dois eixos-temáticos: a produção crítica sobre Roraima, identidades e fronteiras; o abraço da poesia topofílica e lendária na música de Roraima e o sentimento de pertença.
Produção crítica sobre Roraima, identidades e fronteiras
Preliminarmente, situaremos o leitor à história do antigo Território do Estado de Roraima, assim conhecido até a Constituição de 1.988 que se localiza no âmbito fronteiriço, no extremo Norte do Brasil. Roraima aparece descrita como um estado inserido no contexto multicultural[2]. Stuart Hall (1996), no capítulo “A questão multicultural”, em Da diáspora: identidades e mediações culturais, expressa bem que a questão multicultural está ligada a diversas razões de migrações, isto é, muitas pessoas se mudam por “desastres naturais, alterações ecológicas e climáticas, guerras, conquistas, exploração do trabalho, colonização, escravidão, semiescravidão, repressão política, guerra civil e subdesenvolvimento econômico” (Hall, 1996, p. 99). Tratando-se dessas migrações, entendemos que em Roraima ser multicultural pressupõe carregar características de sociedades que abarcam diferentes comunidades, povos e culturas.
Além disso, pela posição de fronteira, Roraima mistura práticas culturais locais, nacionais e internacionais, sobretudo por somar culturas venezuelanas e inglesas, as quais ainda se juntam ao “tronco de índios do Karib”. Percebem-se no estado uma diversidade de portugueses, espanhóis, árabes-mulçumanos[3] e outros povos que para o estado migraram em busca de riquezas e terras, o que até hoje tem resultado em pesquisas antropológicas e demarcação de comunidades indígenas e questionamentos de separação entre índios e não índios[4] como é o caso da Comunidade Raposa Serra do Sol[5] em Pacaraima, último município brasileiro, fronteira com Santa Helena de Uairén, na Venezuela.
Sobre este processo de migração Hall (1996, p. 104) afirma que da mesma forma que a globalização coincide com a modernidade, “os processos de migração têm se tornado um fenômeno global do assim chamado mundo pós-colonial”. Neste processo global e multifacetado de culturas e migrações, destacam-se uma diversidade de línguas indígenas mais conhecidas como Macuxi, Taurepang, Wapichana, e outras misturadas aos idiomas português, inglês e espanhol, formando assim uma heterogeneidade no falar roraimense.
O multiculturalismo recheia-se com a diversidade de lendas que dão identidade aos pontos turísticos mais belos e desconhecidos por muitos brasileiros. E tais identidades aparecem nas canções de Zeca Preto, Neuber Uchôa e na poesia de Eliakin Rufino como uma valorização assaz do que denominamos identidade lendária roraimense: Tepequém, Macunaíma, Pedra Pintada, Curupira, Boiúna, Cruviana, entre tantas lendas indígenas do norte brasileiro.
Comumente notamos que a cultura e o povo roraimense vão muito além do olhar desconhecido. Não obstante, dentro de um contexto midiático, asseveramos que na pós-modernidade há resquícios de construções imagéticas em que a mídia em várias situações reproduz estereótipos do homem do Norte e do Nordeste, e continua apresentando uma paisagem assolada por um cenário nortista exótico e opulento na fauna e flora, mas atrasado e sedento por progresso e cultura. Ou melhor, o Norte, sobretudo Roraima, quando mencionada, aparece em contrato mercadológico, por exemplo, quanto aos aspectos turísticos e geográficos recentemente enfocados pela Rede Globo na telenovela Império, porém nenhum ator conheceu Roraima, tendo em vista que apenas o Monte foi o alvo do cenário. Roraima apareceu como produto de consumo turístico e as pessoas buscavam o desejo de conhecer o extremo norte do país visando o lugar de beleza mostrada pela mídia, e desconhecendo inúmeras riquezas da cultura indígena, da arte regional e da música, o que pressupõe um não lugar ou um espaço utópico simbolizando uma Roraima Pasárgada Geográfica, que em minutos cai no esquecimento como se fosse um produto descartável, o que nos permite remeter ao processo de globalização explicado por Bauman (1999, p. 86).
Sob esse prisma, a globalização arrasta as economias para a produção do que chamamos de efêmero. O que se nota é uma cultura do consumo envolvendo sobretudo o esquecimento e não necessariamente o aprendizado. Neste sentido, O Monte Roraima, que guarda a Lenda Cultural Makunaima em sua história e na poesia de Zeca Preto, foi eleito como mercadoria turística, e Roraima com sua multiplicidade de cultura de fronteira não passou de um Marketing de pacotes de Turismo e falseamento de divulgação cultural ao concentrar na divulgação de consumo, o que nos faz lembrar da obra Vida para consumo, de Zygmunt Bauman, pois vivemos numa época pós-moderna em que a identidade se mascara com uma mise-en-scéne de exposição em redes sociais, e as pessoas parecem ser muito mais mercadorias, chegando a configurar um mal-estar da civilização pós-moderna que parece ser líquida:
Corremos sobre gelo fino. Se pararmos ou diminuirmos a velocidade, o gelo se rompe e nós morreremos. Então corremos. Não importa para onde, o importante é correr. E rápido (Bauman, 2001, p. 243).
Nesta velocidade de divulgação da cultura local que foi o Monte Roraima e a lenda Makunaima, verificamos que a paisagem que assume um local de fronteira em Pacaraima parece ter durado apenas segundos no mercado geográfico da imagem midiática, o que não parecem e nunca foram as paisagens locais nas canções de Zeca Preto, isto é, nelas a paisagem assume a subjetividade banhada pela identidade lírico-amorosa e muito mais que isso: trata-se de uma identidade de topofilia[6] com a cultura e outros universos sagrados da história de Roraima.
Percebemos ainda que a divulgação da história de Roraima pode ser refletida à luz de Appadurai, na obra Dimensões culturais da globalização – A modernidade sem peias. Ele traz a discussão sobre etnopaisagem e tecnopaisagem, uma vez que pensar nisso também remete a entender que vivemos em mundos imaginados e o mundo parece criar:
(…) paisagem de pessoas que constituem o mundo em deslocamento que habitamos: turistas, imigrantes, refugiados, exilados, trabalhadores convidados e outros grupos e indivíduos que em movimento constituem um aspecto essencial do mundo (Appadurai, 2004, p. 24).
Na verdade, podemos verificar que Roraima foi vista como fantasias de deslocamento pela mediapaisagem e também Appadurai nos mostra que isso pode ocorrer pelo fato de a “(…) configuração global, [ser] sempre tão fluída […] e ao fato de a tecnologia, tanto a alta como a baixa, a mecânica e a informacional, transpor agora a grande velocidade diversos tipos de fronteiras antes impenetráveis” como, por exemplo, “o fim do mundo à margem que é o Norte”, isto é, sob o olhar periférico, ganha destaque internacional.
Tais reflexões sobre a identidade de fronteira roraimense nos direcionam para o ensaio Fronteiras do local: reverificação do conceito de regionalismo, de Paulo Sérgio Nolasco dos Santos que, por sua vez assevera: “a transformação na construção das identidades locais está regida pela tradição e pelo rito” (p. 8). E esse rito de tradição em Roraima se perpetua na subjetividade individual e coletiva porque se somam culturas de outras regiões com a cor local. Sérgio Nolasco, citando Masina (1995, p. 845), elucida que ao pensarmos nos estudos de fronteira na contemporaneidade não devemos destacar que a literatura comparada, nesse caso, contempla situação como “a migração de temas e a intertextualidade”.
Neste universo de ritualização de culturas e identidades, de fronteiras e intertextualidades elegemos a canção Roraimeira[7] que explicita essa migração de temas e intertextualiza com outras culturas além da roraimense. Sobre o conceito de cultura em Roraima, aponto-o tanto como o conjunto da produção artística e intelectual como o conjunto do falar e expressar de grupos e comunidades recheadas de seus mitos e identidades que os pluralizam[8] e ao mesmo tempo os tornam sui generis, mas sempre com a ideia de culturas cruzadas.
Tal singularidade cultural pode ser poeticamente observada nas canções musicais mescladas de historicidade, cultura e imagens indígenas, africanas e outras como é o caso da canção Casa de caboclo em que temos a cultura indígena e a africana com referências a Iemanjá, Ogum, Xangô e a mistura de ritmo indígena e do tambor de África, o que configura o ser multicultural em Roraima. Quando pensamos em singularidade cultural, remetemos a traços da tradição local específica, a roraimense.
No entanto, não a separamos de outras culturas, uma vez que adentrando em Dialética da colonização, Bosi nos mostra que a tradição da nossa Antropologia Cultural já via uma divisão do Brasil em culturas atribuindo-lhes um critério racial: cultura indígena, cultura negra, cultura branca, culturas mestiças, ou melhor, cultura brasileira e culturas brasileiras, ou ainda mesmo como culturas não europeias (as indígenas, negras, etc.) e culturas europeias. Por assim dizer, faremos uma leitura poética da música produzida em Roraima e sobre ela, a nossa Musa Pasárgada.
O abraço da poesia topofílica e lendária na música de Roraima e o sentimento de pertença
Tratando-se da diversidade cultural roraimense, podemos pensar no conceito de identidade adotada por Stuart Hall (2008, p. 8) que estaria constituída por aspectos de pertença. Este pertencimento nas músicas manifesta-se nas lendas que fundam uma tradição do local. E é esta pertença que nos faz identificar com as marcas peculiares de uma cultura, tribo, comunidade, instituição e entre diversas possibilidades de identificações. Por assim dizer, a identidade cultural se representa na relação entre os grupos à medida que se diferenciam e organizam suas trocas, por exemplo, quando se mistura a identidade do povo paraense, amazonense e roraimense nas músicas Norteando, Casa de caboclo e Roraimeira.
Inseridos na dialética multicultural, Zeca Preto, Neuber Uchôa e Eliakin Rufino projetam sentidos imagéticos da identidade do Norte brasileiro que é também plural, e formulam um discurso literário que agrega elementos culturais e estabelece a diferenciação entre o eu e o outro, isto é, a identidade e a alteridade e, sobretudo, as múltiplas identidades, de acordo com o que constatamos na obra Da diáspora: identidades e mediações culturais, de Stuart Hall (2013). Leiamos sob esse foco a canção, a saber:
Roraimeira
te achei na grande América do sul
quero atos que me falem só de ti
e em tua forma bela e selvagem
entre os dedos o teu barro o teu chão
e em tuas férteis terras enraizar
a semente do poeta Eliakim
nos seus versos inerentes ao amor
aves ruflam num arribe musical, musical
os teus seios grandes serras,
grandes lagos são os teus olhos
tua boca dourada, Tepequém, Suapi
terra do Caracaranã, do caju, seriguela
do buriti, do caxiri, Bem-Querer
dos arraiais, do meu HI-FI,
da morena bonita do aroma de patchully
da morena bonita do aroma de patchully
o teu importante rio chamado branco
sem preconceito em um negro ele aflui
és Alice neste país tropical,
de um cruzeiro norteando as estrelas
norte forte macuxi Roraimeira
da coragem, raça, força garimpeira
cunhantã roceira, tão faceira
diamante ouro, amo-te poeira, poeira.
O título da canção é o mesmo que dá nome ao Documentário em vídeo do Movimento Roraimeira[9] que, sem dúvida, expressa historicidade, poesia e identidades. O Eu-Poético enunciado no primeiro verso demarca Roraima-roraimeira em lugar de destaque geográfico América do Sul, e expressa um desejo demarcado pela exclusividade quando aponta para “Quero atos que me falem só de ti”. E os versos subsequentes assumem a identidade poética de Eliakin e sua temática amorosa, tônica de sua poesia que vai além do regional, por ser um tema universal[10], o amor.
Neste sentido, o amor em sua singularidade independe da época e localismo. Porém, na canção de Zeca Preto esse amor vem ao encontro da Terra quando compõe a tessitura lírica do desejo de querer nesta “forma bela e selvagem / entre os dedos o teu barro o teu chão / e em tuas férteis terras enraizar”. Remetemos a interpretação dos versos à imagem poética que paira na ideia tríade de corpo-terra-raiz. Ou seja, há uma sintonia entre o estar na terra e querer esse lugar, eleito como pátria regional, com a identidade que mistura não somente o geográfico mas soma a outras identidades que não recaem apenas na paisagem, mas ainda na construção do sentimento de pertença. Acerta deste ato de ser e pertencer, destacamos a análise poemática em quatro exemplos em blocos analíticos:
1º – Roraima metaforizada como uma boca dourada e depois banhada por duas terras indígenas lendárias e turísticas Tepequém e Bem-Querer;
2º – Roraima que carrega os seus encantos míticos da lenda Caracaranã;
3º – Roraima marcada com suas frutas tropicais e bebidas indígenas: Caxiri;
4º – Roraima apontada com sua beleza e exoticidade da morena indígena, com aroma que vai além desse cheiro regional, o que confere uma conotação erótica ao dizer “morena bonita do aroma de patchully”.
É exatamente esta identidade indígena responsável por atrair o olhar desde a colonização com as índias do descobrimento explícitas na carta de Caminha e parodiada na poesia de Oswald de Andrade, o que ocorre até os nossos dias, se pensarmos na fronteira entre Bonfim e Lethem, Pacaraima e Venezuela. Neste olhar, tanto a cidade como a morena bonita evocadas na canção poética aparecem como uma comparação de Alice no país das maravilhas, mas a nossa alicezinha é tropical, é do Norte, morena ou branca, ela é sem preconceitos ao somar-se com os versos “o teu importante rio chamado branco sem preconceito em um negro ele aflui”.
A poeticidade cultural da música de Zeca Preto deve ser interpretada no conjunto dos versos e em seu contexto histórico, geográfico e ainda pela ideia de fronteira quando misturam as duas palavras patchully e HI FI, influência do falar português, espanhol e inglês dos indígenas da fronteira. Ao realizar uma pesquisa além da composição, cumpre dizer que a mulher indígena desde a carta de Caminha foi vista como atrativo erótico para o europeu e essa crítica já foi feita pelo poeta Oswald de Andrade em tom de paródia no poema “Meninas da Gare”. Hoje não mudou muito o olhar malicioso e pejorativo sobre o indígena, sobretudo se referindo à mulher de Roraima.
Não obstante, na composição de Zeca Preto, a representação da identidade indígena feminina reafirma-a como selvagem e bela, mas acima de toda a erotização da carne morena reside uma mulher elevada aos contos de fadas e, além disso, forte, guerreira, “a cunhatã roceira”, simples, namoradeira, “tão faceira”, “cunhatã roceira” que vale ouro e diamante, mas que também tem coragem, raça e força do lavrado e da mulher garimpeira, capaz de exceder a força masculina e romper com o preconceito de que “índio é preguiçoso e não toma banho”.
Frente a esses aspectos analíticos da memória da mulher indígena na canção Roraimeira e outras de Zeca Preto, podemos dizer que há uma instauração da tradição da figura indígena que não se enquadra no esquecimento e sim na perpetuação da identidade local. Isso porque pensar no resgate da tradição ou memória da cultura pressupõe no mundo global de hoje uma ideia de regresso à pátria, de acordo com o que afirma Appadurai (2004) no capítulo “Disjuntura e diferença na economia cultural global”, da obra Dimensões culturais da globalização: a modernidade sem peias:
O passado deixou de ser uma pátria a que regressar numa simples operação de memória. Tornou-se um armazém sincrônico de enredos culturais, uma espécie de filme a realizar, a peça a encenar, de reféns a salvar (Appadurai, 2004, p.47).
Nesta perspectiva, o passado evocado como perpetuação da memória individual e coletiva também se verifica como culto à identidade roraimense na canção Ser índio e na lenda Makunaima, além dos textos de Norteando, Makunaimando, Cruviana e Casa de caboclo, do conjunto da obra Songbook, os quais farão parte da segunda fase deste ensaio.
Antes de vislumbrarmos o olhar sob as canções mencionadas, descortinaremos o documentário Roraimeira (1980), que é, sem dúvida, um marco importante na história da cultura musical deste lugar. O documentário Roraimeira explicita a história da música e tem como objetivo reunir os artistas da década de 1980 que integraram o movimento musical do Norte.
Para estudar tal documentário, escolhemos como aporte a obra Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde, na qual Heloísa Buarque de Holanda (p. 292) aponta que, nos anos 1960, percebe-se o diálogo imediato entre arte e sociedade pautada na efetiva mobilização que favorecia a adesão de artistas e intelectuais ao projeto revolucionário, de modo que, os anos 1970 eclodiram com a impressão de “vazio cultural”.
A esse turno, podemos trazer essa mesma assertiva para os artistas da música roraimense, pensando-se em um movimento denominado “modernismo e regionalismo tardios”. Naquela época desabrocharam músicas de imensa riqueza cultural, fundaram o Movimento Cultural Roraimeira[11], desconhecidos de diversas regiões brasileiras, como se a cultura estivesse legada ao silenciamento ou desligamento, sobretudo se tratando de uma região periférica do Brasil.
No documentário, constatamos como múltiplas identidades o trabalho de artistas voltados para a reflexão dos mitos, da religiosidade, da exaltação ao telúrico e ainda um constante diálogo com o artesanato, a culinária indígena (o caxiri, o pajuaru, jiquitais) e com a fauna e a flora amazônicas. Mostra sobretudo o contato com as crenças no pajé, com o homem regional, não deixando de destacar a figura do imigrante e o sincretismo religioso das comunidades indígenas de fronteiras, o que já nos aponta Roraima como um lugar multicultural, por excelência.
Assim, da mesma forma que no modernismo brasileiro a criação do herói sem nenhum caráter foi imprescindível para uma identidade nacional, em Roraima, o Movimento Roraimeira foi relevante para o registro de um modernismo imaginário e, sobretudo tardio, mas significativo para a demarcação de representações culturais e identidades que formam também o imaginário cultural brasileiro.
Tendo em vista ainda uma cultura nos trópicos como elucida Silviano Santiago (2002, p. 312), isto é, o imaginário nacional e cultural não se explicita somente pelas representações que ele consegue produzir, mas ainda pelo viés e múltiplas ausências de representações. Este imaginário de representações culturais recônditas pode ser encontrado na canção Norteando, Zeca Preto e Tati Garcia, que abre o leque para pensarmos na identidade do sujeito roraimense, aquele que em sua dimensão local se deflagra com os mitos e fenômenos geográficos corroborando para o imaginário plural brasileiro: o pororoca, a lenda cruviana, o Saci Pererê, o mito da Cobra que pode ser de Norato, o enredo proveniente das malocas indígenas sobre as façanhas do Jabuti e da Onça (não especificadas por etnias roraimenses, em particular, como ocorre nas canções Makunaimando e Roraimeira.
Diremos que mais enraizadamente o desdobrar da poesia musicada por Zeca Preto abre um leque de imagens poéticas que evocam as diversas identidades do norte brasileiro, que é banhado pela fronteira sem limites: Manaus, Belém, Boa Vista, Tocantins, Xapuri. Logo, não se pode demarcar com precisão que a música tem como tema e especificidade o lugar roraimense e ademais a identidade regional e nessa perspectiva podemos trazer à baila, o conceito de fronteira na identidade plural:
Norteando
(Zeca Preto/Tati Garcia)
Da minha aldeia é bom de ver
pororoca, cruviana, ubá
curupira passar, pererê a dançar
cobra grande a espiar
da maloca o vento traz cunhã
jaboti, tamanduá e o sol pra ver
Belém pra Macapá, Santarém
Porto Velho, Manaus, Boa Vista, Xapuri
sou afluente do negro, do branco, Amarari
Amazonas, Tocantins, Gurupi….
(Preto, 2013, p. 130).
Elucidamos que a construção da identidade roraimense na canção Norteando remete à ideia de comunidade imaginada, pois a narrativa da nação é contada e recontada inserindo as histórias dos mitos que banham a cultura roraimense e não se afastam dos mitos e ritos brasileiros. Mais ainda, não se desvincula de autores representativos do modernismo brasileiro que pensaram na identidade indígena e nacional, como bem garante Alfredo Bosi sobre Cultura brasileira e culturas brasileiras:
O tema do cruzamento entre culturas é proposto especificamente por alguns escritores modernistas como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Raul Bopp e Cassiano Ricardo. Fique apenas o registro de duas tendências: o nacionalismo estético e crítico de Mário de Andrade e o antropofagismo de Oswald de Andrade. Mário inclinava-se a uma fusão de perícia técnica supranacional com a sondagem de uma psicologia brasileira semiprimitiva, mestiça, fluida, romântica. Oswald pregava uma incorporação violenta e indiscriminada dos conteúdos e das formas internacionais pelo processo antropofágico brasileiro… (Bosi, 1992, p. 308).
É pensando no tema de cruzamento entre culturas que ponderamos o diálogo de culturas e mitos amazônicos, que permeiam a música roraimense ao trazer o movimento roraimeira para o campo de discussão dos estudos culturais e as identidades afro-brasileiras. Sob esse foco, leiamos a música composta por Zeca Preto e Tati Garcia:
Casa de caboclo
(Zeca Preto)
Rebenta-te, entoa um pouco mais
Defuma-te, clama os Orixás
e avisa a caboclo que cheguei
na porta as sandálias eu deixei
meu Oxalá, o meu Ogum, o meu Xangô
Me faz um despacho Xamã
Os molhe Iemanjá com teu mar
dei de comer e beber Iansã
anjos negros descansar volver
esses corpos precisam viver
O sumiço do frio fome e dor
a cantiga implorando amor
um sofrido tambor a rufar
liberdade meu Pai sarava
Ajuda Roraima meu Pai
A despeito das múltiplas identidades, não fica nenhuma dúvida de que em Casa de Caboclo a voz que rebenta e entoa a música soma pelo menos a cultura indígena e a africana. Na dissertação de mestrado Subjetividade e identidade na poesia topofílica de Zeca Preto, Cléo Amorin (2014, p.17) aponta que a população indígena tem “uma presença expressiva em Roraima; segundo dados do IBGE (2010), existem no estado, atualmente, 11 etnias sendo elas: Wai Wai, Waimiri-Atroari, Yanomami, Yekuana, Macuxi, Patamona, Taurepang, Wapixana, Ingaricó, Sapará e Maiongong”. De certa forma, não podemos encontrar somente as identidades indígenas, uma vez que o próprio convívio social miscigenado demonstra que o estado de Roraima não tem nada de homogêneo. E citando Cátia Wankler, a autora defendeu que as manifestações culturais são “tipicamente nordestinas, produto do fluxo migratório constante proveniente de estados do Nordeste, (…) outras de feição mais indígena e outras, essencialmente híbridas” (Oliveira; Wankler; Souza, 2009, p. 27).
O hibridismo cultural em Zeca Preto, referindo-se à Casa de Caboclo, presentifica, através da subjetividade individual, o rito de passagem fabulosa da rainha do mar e esse aspecto mítico, juntamente com os Orixás assumem o chamado do caboclo e metaforiza o lugar de instauração da crença em Xangô e Xamã. Casa do Caboclo realiza a poética de mitos além da homogeneidade indígena, faz o leitor assumir a identidade de África nos versos: “Anjos negros descansar volver (…) um sofrido tambor a rufar / liberdade meu Pai sarava / Ajuda Roraima meu Pai”. Por conseguinte, a crença na religião permite fundar o encontro do homem com o mito descrito pelo mitólogo Mircea de Eliade. A rigor, “de uma maneira ou de outra ‘vive-se’ o mito, no sentido de que se é impregnado pelo poder sagrado e exaltante dos eventos rememorados ou reatualizados” (Eliade, 1972, p. 18). A mitologia sagrada da religião africana aparece na música topofílica de Zeca Preto e esse diálogo traz a dimensão de que tanto a cultura escrita quanto a oral de uma geração, em diversos contextos epocais, narram a presença do sagrado nos acontecimentos. Esta narrativa poética nas canções sobre Roraima funda um encontro com a teoria de Walter Benjamin (1993), ao asseverar que as histórias se perdem quando não são mais contadas porque o narrador não pode exaurir na temporalidade.
Conclusão
À guisa de conclusão, olhamos o imaginário cultural de Roraima, por meio da música, e ele se cruza na fronteira e dialoga com o imaginário nacional, quiçá extrapolando as representações de identidade que Zeca Preto, Neuber Uchôa, o poeta Eliakin Rufino, Tati Garcia e outros autores conseguem produzir, e não deixam escapar as diversas representações do mito de Cobra Norato, do Saci Pererê, do Bumba Meu Boi, além das lendas e danças típicas sobre o céu de Roraima, trazendo para a região Norte do país outro imaginário que lemos na poética de Manuel Bandeira: o mito de Pasárgada. Tal imaginário cultural também se percebe no culto à tradição da figura indígena que não se enquadra no esquecimento e sim na perpetuação da identidade local e nacional. Portanto, inferimos nesta exegese de poéticas da identidade que pensar no resgate da tradição ou memória da cultura pressupõe no mundo global de hoje, reiterando Appadurai (2004), uma ideia de regresso à pátria em que fundamos a tradição além de um regionalismo tardio abordado por uma literatura nos trópicos.
* Rosidelma Pereira Fraga é pesquisadora visitante de pós-doutorado em Cultura Contemporânea (UFRJ), professora doutora em Estudos Literários (UFG) e professora de literatura (UERR).
** Aparecida Luzia Alzira Zuin é supervisora e pesquisadora do pós-doutorado (UFRJ) do Programa Avançado em Cultura Contemporânea e professora da Universidade Federal de Rondônia (Porto Velho).
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WANKLER, Cátia; NASCIMENTO, Cléo Amorim. Literatura regional: anacronismo em tempos de globalização? In: NASCIMENTO, Luciana Marino do; MIBIELLI, Roberto; FIOROTTI, Devair Antônio (Orgs.) Nós da Amazônia: literatura, cultura e identidade na/da Amazônia. Letracapital p. 200-2015.
Notas
[1] Parte integrante do estágio pós-doutoral que tem como premissa esmiuçar a produção de ensaios acerca do tema identidade indígena. Como parte inicial do corpus de análise do projeto pós-doutoral do Programa de Pós-Graduação em Cultura Contemporânea, visa cumprir com os objetivos do projeto Identidades e fronteiras nas canções e narrativas indígenas de Roraima.
[2] Conforme pesquisa realizada no IBGE, cinquenta por cento da população é imigrante de outros estados e países de fronteira ou não: Venezuela, Guiana Inglesa, Peru e Colômbia. Neste sentido, Roraima não pode ser pensada como comunidades isoladas e sim dentro de um contexto de hibridização das culturas.
[3] Sobre a migração de árabes-mulçumanos entre Brasil e Venezuela, sugerimos o artigo Identidade e representação na fronteira pan-amazônica: árabes-muçulmanos em contexto transfronteiriço (Brasil –Venezuela), do Prof. Dr. Jakson Hansen Marques que tem como foco investigar o intenso fluxo de migrações na fronteira pan-amazônica. Disponível no 38º Encontro Anual da Anpocs SPG07 Fronteiras: territórios, políticas e interculturalidade.
[4] Da mesma forma como os episódios de índios citadinos e índios de aldeia, polêmica gerada entre a fronteira internacional de Bonfim-RR e Lethem, na Guiana Inglesa. Sugerimos o artigo O movimento político indígena em Roraima: identidades indígenas e nacionais na fronteira Brasil-Guiana, de Stephen Grant Baines. In: Cad. CRH. vol.25 nº 64, Salvador Jan./Apr. 2012.
[5] Raposa Serra do Sol é uma área de terra indígena (TI) situada no nordeste do estado brasileiro de Roraima, nos municípios de Normandia, Pacaraima e Uiramutã, entre os rios Tacutu, Maú, Surumu, Miang e a fronteira com a Venezuela, destinada à posse permanente dos grupos indígenas ingaricós, macuxis, patamonas, taurepangues e uapixanas.
[6] Conceito de Yi-Fu Tuan (1980 apud Wankler, 2011): trata-se do sentimento de afeição a um determinado lugar.
[7] Roraimeira foi eleito o Hino Cultural do Estado Roraima, o que vem somar à beleza do Hino de Roraima. Do G1, publicado em 14 de setembro de 2015, cito a notícia: “A governadora Suely Campos (PP) sancionou a Lei que oficializa a música ‘Roraimeira’ como Hino Cultural do estado. Publicada no Diário Oficial, a Lei 1007/15 de autoria do deputado Oleno Matos (PDT), prevê a execução do hino em cerimônias públicas e eventos culturais”. A meu ver, fica evidente que a canção de Zeca Preto, ao ser cantada nas cerimônias públicas e ser ainda uma de valorização cultural nas escolas, adquire maior relevância porque o conteúdo contido na canção expressa a identidade cultural local e que define o ser roraimense e o marca com orgulho de existir em sua força, porém, o decreto vem apenas reforçar o legado do compositor que conquistou o público desde o festival realizado no Teatro do Amazonas, na década de 1990.
[8] Nelas o leitor e ouvinte deparam-se com a cultura paraense, roraimense, amazonense e têm ainda contato com imagens externas (Caribe, Pacaraima, fronteira com Venezuela, e outras culturas).
[9] Pode-se ainda pensar o movimento roraimeira como uma leitura do tropicalismo, além de ser um link para se estudar muitas obras como um modernismo tardio. Neste viés, o texto faz referência intertextual com Macunaíma de Mário de Andrade. O que faz da produção dos autores roraimenses uma tradução do espírito nacional concentrado em um Brasil indígena e mitológico.
[10] Conforme conceito do formalista russo Tomachevski (1973).
[11] O Movimento Cultural Roraimeira surgiu na década de 80 em Roraima inspirado no Movimento Modernista e no Movimento Tropicalista, tendo por finalidade promover as riquezas naturais da região, a valorização do povo e contribuir na formação da identidade cultural local.
Recebido em outubro de 2016 Aprovado em janeiro de 2017
Nascido em Catende, Pernambuco, em 1971, José Luiz Passos publicou, em 2009, seu primeiro romance, Nosso grão mais fino, selecionado para o prêmio Zaffari & Bourbon de literatura. Com O sonâmbulo amador, de 2012, foi vencedor do Prêmio Brasil Telecom de 2013. É também autor dos ensaios Ruínas de linhas puras (1998) – sobre as viagens de Macunaíma – e Machado de Assis, o romance com pessoas (2007), que interpreta a influência de Shakespeare na imaginação moral do realismo brasileiro.
Vivendo atualmente nos Estados Unidos, onde é professor na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, veio ao Brasil em novembro de 2016 para lançar seu mais recente romance O marechal de costas e, gentilmente, atendeu ao chamado de um grupo de professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) para participar de uma conversa sobre seus livros e sua trajetória no projeto Poesia, ficção e crítica. Ninguém ignora a atual situação da Uerj. No dia de sua fala houve um “piquete”, os alunos fecharam as portas da universidade logo pela manhã, numa forma de protesto contra o governo estadual pela falta de repasse das verbas de manutenção, pelo não pagamento das bolsas de permanência aos alunos e dos salários dos professores. Foi impossível realizar a conversa, mas José Luiz Passos, generosamente, concedeu uma entrevista, que publicamos a seguir.
José Luiz Passos na Flip de 2013
Como forma de apresentá-lo aos alunos do curso de Letras da Uerj, e agora aos leitores da Revista Z Cultural, pedimos que nos conte um pouco de sua carreira literária: quando começou, como, se algo especial motivou sua escrita.
José Luiz Passos: Comecei a escrever quando cursava Sociologia na UFPE. Eram, em geral, crônicas e, em menor medida, poemas e contos para as revistas universitárias editadas pelos estudantes. Sempre adorei livros. Lia pouca ficção; lia muita filosofia e história da ciência. Comecei um mestrado em Sociologia na Unicamp e, lá, morando em São Paulo, surgiu uma vontade maior de escrever ficção. Mas foi a partida para fora do Brasil, mais especificamente para Los Angeles, onde fiz o doutorado, que me levou a pensar mais seriamente em tentar escrever um romance. E me parecia óbvio que o romance deveria ser sobre Pernambuco, sobre a nostalgia; uma saga sobre a morte de linhagens familiares ligadas ao açúcar. Isso tudo me soava ao mesmo tempo tão familiar e tão distante. Nasci numa usina de açúcar, onde meu avô trabalhava como químico. Passei anos juntando coragem e material, tomando notas, para esse romance. Quando meu pai faleceu e concluí meu PhD, comecei a vida como professor, em Berkeley, com isso na cabeça: havia algumas histórias que eu gostaria de contar. Entre elas, a primeira de todas, era a relação entre Ana e Vicente; uma relação incestuosa e mediada pela triangulação amorosa. Ambos sentem pena um do outro e se recusam a abandonar os seus mortos. Dessa ideia surgiu Nosso grão mais fino (2009). Tenho imenso carinho por esse romance. Estou contente com o fato de que ele chega à segunda edição, revista e modificada, este ano.
Como se conjugam – ou se tensionam – a escrita literária, a atividade docente e crítica?
José Luiz Passos: No início, era um problema. Escrevia com medo ou com vergonha, à noite, nos fins de semana, escondido dos meus colegas, dos professores e alunos da universidade onde ensinava. Tive uma depressão, e isso me ajudou bastante. Ficou claro que precisava seguir escrevendo textos que não seriam publicados em revistas acadêmicas; que, talvez, jamais fossem publicados em lugar algum. Mas a escrita deles me trazia um alívio imenso. Só muito depois, quase quinze anos depois, com a carreira acadêmica já trilhada e mais ou menos consolidada, isso deixou de ser um obstáculo. A principal arena de disputa é o tempo. Cada minuto dedicado a tarefas acadêmicas (aulas, pesquisa, reuniões, bancas, comissões, conferências) some das mãos do escritor, cuja relação com o tempo é mais plástica e lúdica. Outro desafio é não deixar que as convicções do scholar e as teorias do professor colonizem a escrita, a ponto de ela se tornar uma vitrine para essas ideias. É preciso ter a coragem de abandonar as ideias corretas, convicções bonitas ou plenamente inteligíveis e mergulhar num poço onde estão situações e pessoas que ainda não conhecemos. E nisto há grande risco.
Ter ganhado o Prêmio Portugal Telecom (hoje Oceanos) com O sonâmbulo amador influenciou na recepção dos seus livros no Brasil? E no exterior, teve alguma repercussão?
José Luiz Passos: Acho que sim. Meu nome passou a ser associado à ficção contemporânea, tanto quanto ou talvez mais do que aos pequenos círculos de estudos machadianos. O prêmio também fez com que o romance fosse reimpresso, e que minha proposta de um terceiro romance com a mesma casa fosse levada a sério. O prêmio foi um fim de semana, após uma semana de trabalho de cinco anos. Os prêmios não tornam as obras melhores ou piores, mas são uma colher de chá para o autor. Em alguns casos, o livro passa a caminhar com pernas próprias. No exterior, a repercussão foi limitada. O sonâmbulo amador saiu em espanhol e deve sair este ano em norueguês. Os editores de língua inglesa ainda acham o romance, com ou sem o prêmio, difícil de ser traduzido.
Você acha que isso de alguma maneira criou expectativas ou angústias na escrita de seu novo livro?
José Luiz Passos: Há as expectativas próprias e as alheias. Entre as alheias está, com maior frequência, a pergunta: “E aí, quando é que vem o próximo?”. Há também, creio eu, a expectativa de que o próximo de alguma maneira continue o projeto (o tom, a forma) do anterior, mesmo que a história seja diferente. E que ele seja “bom”, tão bom quanto o outro etc. Mas a expectativa própria, com a qual me enfrentei, era de outra ordem; era parte de um bloqueio. Passei quatro anos escrevendo O sonâmbulo amador. A vozinha de Jurandir não me saía da cabeça. Foi difícil abraçar outro projeto de longo fôlego e deixar essa vozinha para trás.
Listo as epígrafes dos capítulos de O sonâmbulo amador:
O que nos leva a tentar novamente? – uma telefonista / É preciso andar com um pouco de tudo – um sorveteiro / O horror, o horror – um renegado / Tirar o pó da cara cansa – um palhaço
O tempo, o que é o tempo? – um padre / Os brutos amam brutalmente – um advogado / A sorte é o último fim das coisas – um bicheiro / Quase nos reduzimos a simples espíritos – um fiel / Bebemos sempre dos mesmos copos – uma garçonete.Aforismos, alta filosofia, saber popular? Fale dessa coleção da qual você desloca (ou apaga) o lugar de autoria.
José Luiz Passos: O sonâmbulo amador ocupou várias cadernetas nas quais ia anotando ideias, frases, citações etc. Relendo esse material, percebi que algumas das frases tinham uma força particular, como aquelas pérolas saídas dos para-choques de caminhão. Passei, intencionalmente, a colecionar pouco a pouco uma lista delas. Com exceção das duas que vêm de Joseph Conrad e Santo Agostinho, essas frases são de minha autoria. Quis expressar, em epígrafes a cada capítulo, uma ideia-síntese ou abstração enunciada por uma pessoa comum, num gesto semelhante à situação narrativa do próprio Jurandir, um homem sem educação superior que filosofa e se arrisca numa trilha psicanalítica de autoanálise.
O “Acordar fora de mim” da epígrafe de João Cabral dá mesmo o tom do livro. Como leitora me encantei pelo não-dito, pelo não-mapa do livro, por esse lugar informe, por vezes desconfortável, de estar num monólogo em que a memória, a vivência, o sonho e o trabalho do personagem aparecem misturados. Temos a impressão de estar instalados na mente de Jurandir, perdidos sem um mapa. Como foi encontrar a forma desse romance?
José Luiz Passos: Quando escrevo um texto de prosa mais longo, gosto de me impor certos limites ou desafios. Mais ou menos em 2008 comecei a trabalhar na história de um homem ao mesmo tempo culto e inculto, rural e urbano, soldado e filósofo, um tipo “quadrado”, um tio de todos nós, que, na iminência de se aposentar, passa a prestar mais atenção aos seus sonhos e se dá conta de que não viveu a vida justa que gostaria de ter vivido. A ideia do tema dos sonhos me foi dada pela descoberta de cadernetas e diários em que o meu pai anotava e interpretava os próprios sonhos dez anos antes do meu nascimento. Então me impus o seguinte método. Para que os sonhos de Jurandir não parecessem meras ilustrações dos dilemas vividos no seu dia a dia, decidi primeiro escrever todos os sonhos. Passei mais ou menos oito meses compondo, diariamente, sonhos e memórias desconectados, até ali, de qualquer vivência real do personagem. Quando cheguei a pouco mais de sessenta sonhos, passei a redigir a vida diurna de Jurandir e interpolar os sonhos e memórias que já estavam prontos. O romance exige do leitor mais atenção, mas o resultado, em minha opinião, vale a pena, porque dá a Jurandir um adensamento psicológico maior.
Ao abordar de forma concomitante a trajetória de Floriano Peixoto como vice que se torna presidente e a derrocada do mandato de Dilma Roussef, que é forçada a dar lugar a um vice, em O marechal de costas você obriga a pensar uma janela aberta de um modo em que o passado, o começo de nossa República, se conecta com o agora de uma forma nova. Como os dois perfis, as duas histórias, os dois momentos se conectam pra você?
José Luiz Passos: Vejo nos dois momentos uma situação de grande polarização política e enrijecimento no debate político. O início da nossa democracia (pós-Império) nos foi imposta. A transição pela qual passamos também é fruto de uma perda de tração entre a classe política e o povo que ela representa. Há muito desencanto no ar diante da falta, talvez, de uma visão clara daquilo que pode ser tomado como esquerda ou direita. No embaralhar das coisas, creio que em ambos os momentos houve maior espaço para certo oportunismo político, sem compromisso nenhum com a vontade popular. Comecei a escrever o romance como uma resposta a essas impressões. Não sou historiador nem cientista político. Mas posso imaginar ecos entre os períodos e me divertir com a descontextualização das vozes, dos documentos e dos eventos.
Quando leio esse romance, tenho a impressão de que você trabalhou com uma montagem: escreveu duas histórias e depois produziu uma montagem que fez dialogar uma com a outra. E que são mais que duas histórias (a de Floriano e daquele Brasil + a de Dilma e desse Brasil) também a de migrantes pobres, de famílias influentes de ontem e de hoje. Foi mesmo uma montagem? Como foi o processo de escrita desse romance?
José Luiz Passos: Montagem é a palavra certa. Quis montar um painel, a partir de leituras, vozes, impressões e opiniões desencontradas, presentes nos dois momentos. A primeira ideia para o romance surgiu de um conto chamado “Marinheiro só”, publicado na revista Granta n.13, dedicada ao tema da traição. Ali exploro a história da execução de um marinheiro mulato, pernambucano, à época da Revolta da Armada, no Rio, em 1894. Um dos personagens secundários é Floriano. Meu editor gostou e perguntou se eu não pensava em escrever uma narrativa maior, sobre o período. Eu disse que não. Mas as coisas começaram a acontecer. De 2013 a 2015, a política ocupou o noticiário e a minha imaginação. Eu já havia escrito outro conto, sobre uma cozinheira que passa por dilema trabalhista nos dias de hoje. A ideia de juntar as duas narrativas foi ganhando força. Parei de escrever o romance no qual vinha trabalhando e me dediquei a O marechal de costas.
Como é se pensar um escritor brasileiro que vive há mais de 20 anos nos EUA? Em que medida você se sente também um escritor americano? A questão da identidade na literatura ainda se coloca hoje?
José Luiz Passos: Acho que a questão da identidade se coloca de diferentes maneiras, para diferentes autores, a depender de como cada qual decide dar um sentido ou falar de sua obra. No início foi difícil. Mas, hoje, acho útil a distância que me separa do meu lugar de origem; pelo menos, no que diz respeito à escrita. Pessoalmente, me defino como um autor que escreve em português e reside na Califórnia. Por incrível que pareça, a ideia de Pernambuco ou da Califórnia é para mim mais palpável e inteligível do que a de Brasil ou Estados Unidos. O que me separa, aqui, como autor, é o fato de que escrevo numa língua estrangeira e publico fora do país onde resido. Vejo outras relações entre o Brasil e os EUA, na minha escrita e fora dela, mas isso é matéria para outras – várias – páginas.
Como o seu trabalho é influenciado ou não pela outra língua?
José Luiz Passos: Sinto grande influência do inglês e da literatura que leio em língua inglesa. William Faulkner foi fundamental para a escrita de Nosso grão. A dicção de Jurandir é baseada na do narrador-mordomo de Kazuo Ishiguro, em Vestígios do dia (Remains of the Day). Além disso, creio que a parcimônia com relação às gírias e expressões do momento; a frase mais articulada, menos oral; o uso ostensivo do pronome sujeito são, talvez, sintomas de uma longa convivência com a língua inglesa. Mas pode ser que não; que isso tudo seja apenas um traço estilístico que sempre me acompanhou. Seja como for, acho relevante o fato de serem de língua inglesa mais da metade dos livros que leio por puro prazer, no meu tempo livre.
A literatura brasileira ocupa algum lugar, tem alguma relevância nos EUA hoje? Que literatura interessa por lá?
José Luiz Passos: Ela se restringe quase que exclusivamente ao âmbito universitário, com poucas exceções. O lançamento dos contos completos de Clarice Lispector, traduzidos por Katrina Dodson, que foi minha orientanda de PhD em Berkeley, é um exemplo disso. O projeto de tradução de Clarice, editado por Benjamin Moser e publicado em Nova Iorque pela New Directions, é verdadeiramente excelente, mas não põe a literatura brasileira necessariamente nas prateleiras das livrarias e nas listas dos mais vendidos ou dos prêmios. Raduan Nassar foi recentemente publicado em inglês, após 30 anos! As traduções recentes de Michel Laub e Daniel Galera são excelentes, mas circulam pouco. A música e o audiovisual brasileiro são mais consumidos do que a literatura. E da literatura se espera que ela aborde temas e tipos semelhantes a essas mídias.
Tem algo que você considera essencial dizer aos estudantes de Letras hoje? Aos estudantes da Uerj?
José Luiz Passos: Infelizmente, as Letras vivem um momento de desprestígio institucional e sociocultural. Tenho a impressão de que a crise nas Humanidades, vivida aqui nos Estados Unidos, também se faz presente no Brasil e em Portugal. É importante lembrar a todos que o entendimento e a representação de situações humanas complexas, em toda sua minúcia e contradições, é tarefa da imaginação literária. O letramento literário e a garantia de expressão artística são direitos fundamentais nos campos da educação e da liberdade de expressão. O estudante de Letras vive hoje um período de transição potencialmente rico para a literatura: o surgimento de novas mídias e gêneros, a plataforma digital, o estoque verbal da internet, a circulação global de histórias as mais diversas; isso tudo me anima. Mas também é fundamental que os alunos e os profissionais de Letras resistam ao encantamento da validação fácil, que acompanha a troca apressada de opiniões nas mídias sociais, por exemplo. A literatura oferece uma gama variada de experiências com o tempo, e, entre elas, uma relação marcada pela pausa e pela verticalidade no trato das coisas humanas. Esse tempo de espera e condensação é uma forma de resistência. A imaginação literária é, por definição, uma recusa a satisfazer-se com o que está dado. A todos os alunos, e em particular aos da Uerj – que em tempo recente anda tão ameaçada por desmandos políticos –, faço votos de que sigam lendo e escrevendo com um justo sentido de urgência, como se disso mesmo dependesse o sol de amanhã.
* Ieda Magri é professora adjunta de Teoria Literária na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e autora dos livros Ninguém (7 Letras, 2016), Olhos de Bicho (Rocco, 2013) e Tinha uma coisa aqui (7 Letras, 2007).
Recebido em janeiro de 2017
Aprovado em fevereiro de 2017