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Cultura e consciência: a “função” do Racionais MC`s | de Jorge Nascimento

1- INTRODUÇÃO

Ainda existem discordâncias quanto aos conceitos de raça e etnia. De uma maneira abrangente, poderíamos dizer que tais termos foram moldados a partir da nomeação do diferente. A dificuldade de apreensão da diferença, ou da diferença não-catalogada, das culturas ditas minoritárias, é uma constante em práticas conservadoras e/ou colonialistas. Segundo Lívio Sansone 2 , no Brasil: “Se a identidade étnica não é entendida como essencial, é preciso concebê-la como um processo, afetado pela história e pelas circunstâncias contemporâneas e tanto pela dinâmica local como pela global.”

E, hoje, as Culturas Oficiais e os próprios veículos de comunicação de massa ainda apresentam dificuldades ao se relacionarem com as culturas chamadas periféricas. A inserção das minorias independentes no sistema de representação simbólico-cultural na sociedade há de ser feita através da crítica e requer uma prática que privilegie o papel constitutivo da diferença na formação cultural de uma comunidade. Assim sendo, o papel da chamada cultura de massas como veículo das dispersas vozes sociais é um fator de importância fundamental em nossa forma de pensar os discursos dispersos na sociedade. Vejamos algumas ponderações do professor Muniz Sodré 3:

Da sociedade global das nações ricas excluíram-se os povos das sociedades colonizadas. O movimento de integração (…) é excludente em termos de economia e política. Mas também de cultura: ao perder a singularidade de sua diferenciação e reduzir-se às constantes repetitivas de sua experiência, a cultura perde a vitalidade do encontro com o outro e de regeneração de si mesma.

O processo de marginalização da cultura é um filtro ideológico já gasto, mas ainda muito eficiente, porém, os novos meios estão aí, as informações burlam sistemas de vigilância e guetização, circulam. Se temos um histórico elitista, excludente e colonialista, sabemos hoje das potencialidades das ditas culturas minoritárias e suas manifestações artísticas. Vamos citar dois exemplos datados de como a mídia oficial – no caso dois jornais de grande circulação – pode ser tendenciosa, ou melhor, preconceituosa. No primeiro texto, o autor se refere a um processo ambíguo de abrasileiramento ou latino-americanização como uma maneira de assunção da barbárie ibérica novomundista, ou seja, de distanciamento do paradigma saudável, através da contaminação das ondas caribenhas que vêm do norte do país. Há a enumeração das características negativas que parecem apoderar-se de um paradigma utópico mineiro-britânico, o que, inclusive, embranquece civilizadamente o nosso Machado de Assis. Vejamos:

Aos poucos o Brasil vai se tornando mais uma grande república do Caribe, outro México, uma inchada e paciente Jamaica ou Guatemala de dimensões continentais. Vem do Norte uma crescente e irresistível onda que vai lambendo o país, tomando de assalto sua cultura, sua política. (…) Estaria nascendo, enfim, um novo Brasil mais brasileiro, vale dizer, mais latrino-americano, cucaracho, caliente, orgulhoso e assumidamente negróide, cubano (…) A mineiridade, o humor quase britânico (civilizadíssimo) de Drummond e Machado já eram (…) Dois Brasis: um país, digamos, cone sul (…) e outro caribenho (…)4

O segundo fragmento trata de uma demonstração dos nossos governantes de seu equivocado populismo, quando deixam de tratar de um assunto moderno, civilizado, em troca de um apoio a uma digna representante da barbárie afro-brasileira. É interessante notar o aspecto evolucionista na abordagem da diferença. Partindo da máxima de que o Brasil é um país de contrastes, e utilizando um behaviorismo conservador, o articulista traça uma antítese entre uma tradição pré-civilizatória e a informatizada modernidade latente.

O Brasil é um país de contrastes. Enquanto diplomatas do Itamarati pretendiam explicar aos americanos do Departamento de Estado como funcionava a reserva de mercado de informática, políticos ilustres (…) reuniram-se num ato público impressionante: o enterro de Mãe Menininha do Gantois (…) era a mais famosa sacerdotisa de cultos espíritas de origem africana (…) A importância exagerada dada a uma sacerdotisa de cultos afro-brasileiros é a evidência mais chocante de que não basta ao Brasil ser catalogado como a oitava maior economia do mundo, se o País ainda está preso a hábitos culturais arraigadamente tribais (…) Enquanto o mundo lá fora desperta para o futuro, continuamos aqui presos a conceitos que datam de antes da existência da civilização5.

Sem entrar no mérito da discussão dos objetivos dos textos, já que temos fragmentos, é importante notar o nível de autodepreciação nos argumentos apresentados, e se digo que é um processo auto-referente é porque o autor põe em questão a ideia de homogeneização já tão fora de propósito nos anos 80, e mais ainda hoje no chamado mundo globalizado. Sete anos depois, o mesmo jornal é envolvido na discussão acerca de uma campanha publicitária sobre o lançamento do novo, bonito e moderno projeto gráfico de seu Caderno 2. No filme publicitário, um reconhecido ator branco faz elogios à beleza do periódico e compara com a forma gráfica do “outro” jornal e ergue uma folha com a foto de Tião Macalé, ator negro, sem dentes, de programas humorísticos (Nojento!!!). Sobre o veículo, os exemplos demonstram sua “linha editorial”, mas quanto ao pretenso discurso isento da propaganda, o texto mostra como ele vai lidar com esse tipo de ridicularização, ou estigmatização, de uma diferença que é a identidade de muitos. Segundo Mario Vítor Santos:

Sabe-se de algumas peças publicitárias (…) caracterizam-se por apelar aos preconceitos adormecidos, explorar com “habilidade” e sutileza seu potencial de despertar empatia (…) se o comercial do “Estadão” fosse veiculado nos EUA, por exemplo, o “Estadão”, a agência e até o ator teriam dificuldades políticas e comerciais. A tolerância da sociedade brasileira é tal que um jornal de expressão chega a julgar que um anúncio desse tipo possa contribuir para sua imagem.6

Acreditamos que, passados os anos, o discurso “politicamente correto” afeta os meios de comunicação. Pretendem-se cotas para negros nas universidades e nas novelas televisivas, políticas de reparação são discutidas, os negros inseridos no mercado, hoje, já são considerados uma fatia importante do bolo. Porém, na prática das relações sociais, parece-nos que o preconceito continua presente. Vejamos: os jovens atores (negros) do filme Cidade de Deus foram acusados de vândalos e expulsos de um shopping, em São Paulo, quando operavam uma máquina de banco. Sabemos o quanto a sociedade brasileira delegou aos negros somente representações artísticas tidas como aquém da produção de elevado valor simbólico. O compositor Carlos Cachaça, fundador da escola de samba Estação Primeira de Mangueira, dá seu testemunho.

Antigamente tinha a censura do Getúlio Vargas, o DIP, o Departamento de Imprensa e Propaganda. Eu fiz o samba campeão de 1933 e disse (…) que era muito temeroso sair com aquele samba que falava de Castro Alves, Olavo Bilac e Gonçalves Dias. A polícia não ia gostar (…) Naquela época era muita ousadia a negrada contar a história do Brasil em samba (…) era até motivo de ganhar porrada.7

Nos anos 40, a revista Cultura Política, elogiava as ações do governo, através do DIP. Os sambas associados à malandragem eram execrados, a linguagem, as gírias – a desvalorização do trabalho – eram tidas como exemplos de uma prática poética popular que ia contra as ideias trabalhistas de Getúlio Vargas. Nas rádios, maior meio de difusão da música popular na época, a prática da censura e a imposição de letras ideologicamente condizentes com a política eram procedimentos que tentavam inibir a índole popular que sempre, ironicamente, questiona as normas de condutas sociais impostas:

No Brasil, a Divisão de Rádio do Departamento de Imprensa Propaganda vem realizando, sem desfalecimentos, uma obra digna de encômios. Proíbe o lançamento das composições que, aproveitando a gíria corruptora da linguagem nacional, fazem o estúpido elogio da malandragem. E, não querendo limitar a sua ação ao campo da censura, distribui pelas estações dos Estados gravações de música fina, com noticiário de interesse coletivo.8

Se em outras partes, o racismo tem um histórico arianista que diz que as relações entre raças são condenáveis, baseando-se no axioma de que a mistura de raças é pior que os malefícios causados pelas sub-raças isoladas, no Brasil tal postura convive com a forma do racismo hierarquizado étnica e socialmente. Um samba, composto por Haroldo Barbosa e Janet de Almeida nos anos 40, brinca com os males causados pelo samba, que afligem tanto à Madame:

Madame diz que a raça não melhora
Que a vida piora por causa do samba
Madame diz que o samba tem pecado
Que o samba, coitado, devia acabar

Madame diz que o samba tem cachaça
Mistura de raça, mistura de cor
Madame diz que o samba democrata
É música barata sem nenhum valor

Vamos acabar com o samba
Madame não gosta que ninguém sambe
Vive dizendo que o samba é vexame
Pra quê discutir com Madame?

A ironia da letra é a resposta a uma visão eurocêntrica, aristocrática (a Madame), conservadora e excludente. A Madame não pode gostar da inserção no clima democrático do samba: mistura de raças e cor e, consequentemente, mistura social e, logicamente, execra a cachaça irmã. Assim, ironicamente se revela o movimento de troca e simbiose – perniciosos – contidas no espaço simbólico do samba. Nos últimos decênios do século passado, a partir da década de 70, uma reação à composição ideológica da cultura branca surge, no rastro dos movimentos afirmativos norte-americanos, e, principalmente, através do movimento black power. Em 1988, nos festejos em “comemoração” aos 100 anos da Lei Áurea, a escola de samba Unidos de Vila Isabel venceu o desfile com o enredo Kizomba: festa da raça, idealizado por Martinho da Vila. O samba-enredo, composto por Jonas, Rodolpho e Luiz Carlos da Vila, traz o afro-profano como força geradora e veículo da festa-mensagem, faz-se enquanto grito afirmativo e desejo que reivindica o fenômeno Palmares e a figura de Zumbi como propulsores da Liberdade, conceito acima das leis dos homens. A festa (Nossa kizomba) é nossa Constituição – era o ano da Assembleia Nacional Constituinte. Os valores ancestrais, forças de deuses são postos em cena, jogo de cintura, cultura, bravura, sublimação daquilo que poderia ser anedótico ou grotesco, segundo a tradição excludente brasileira.

E é como fruto da exclusão e logicamente como busca de espaço afirmativo que vai se constituindo o movimento Hip Hop brasileiro e o RAP, herdeiro dos cantos falados por jamaicanos e americanos dos bairros pobres, surge como um movimento estético popular que se desenvolveu, ganhou a mídia americana e, consequentemente, o mundo. Surge saído da precariedade, do pouco, utilizando velhos toca-discos que são transformados em produtores de ritmos sobre as quais epicamente constituem-se rimas, frases e histórias.
A grande mídia brasileira tardou a dar importância à produção de jovens negros, com suas “letras” gigantescas e simples, que tratavam de temas comuns à população das periferias das grandes cidades. Aí surgem os Racionais MC’s 9 que, mesmo sem tocar nas rádios populares, lotavam galpões e centros comunitários e que, em 1997, conseguem a proeza de vender em torno de 500.000 cópias (originais e piratas) de um disco independente. Segundo Regina Novaes, em seu artigo Hip-Hop: o que há de novo:

Há muito que investigar para saber como e por que a periferia tornou-se um produto altamente vendável. O depoimento da antropóloga Marta Jardim é instigante. Ela fala de um contexto em que os jovens das periferias das grandes cidades também se tornam criadores de moda e estilo incorporados por muitos jovens de classe média. Não são estilos que buscam diluir a condição social periférica com uma roupa insuspeita do centro. Ao contrário, acentuam os traços socialmente associados à marginalidade, fazendo da roupa uma espécie de denúncia, de caricatura da imagem associada à periferia. Certamente, a diferença, imagens e falas fora do lugar, têm valor comercial no mercado.

E é como fruto desse mundo/mercado, saída das frestas sociais, que surge a palavra poética de jovens de periferia que (por estilo) sorriem pouco, falam com a linguagem cifrada provinda de penitenciárias e favelas, e que reivindicam bens de consumo questionando a ética conservadora antiga do “mais vale ser mendigo que ladrão”. Porém, a própria relação com o “mercado” é questionada. A postura político/ideológica os faz esquivos, reticentes. As aparições em TVs são raríssimas, e há o episódio da saída de uma gravadora multinacional em que um integrante da banda foi questionado sobre a oferta em dinheiro oferecida e recusada: “Você sabe de quanto dinheiro estamos falando.” “Sei, mas não quero”. Sem falsos purismos, há algo de diferente, estética e eticamente falando10 . Acreditamos que o movimento Hip Hop e especificamente, o RAP brasileiro seriam exemplos daquilo que hoje se discute: a absorção de modelos culturais globais juntamente com a incorporação de temáticas e práticas locais. Assim sendo, alguns grupos, mesmo utilizando formas muito parecidas com as norte-americanas, essencialmente tratam de assuntos típicos de nossas sociedades e, além de tudo, incorporam posturas políticas próprias.

Porém, o que fundamentalmente nos interessa é como vozes periféricas, palavras proferidas por jovens negros conseguem, pouco a pouco, burlar uma das maiores formas de exclusão social, principalmente nas nossas sociedades urbanas constituídas de cidades partidas: o estigma 11. Sabemos que o termo estigma compõe-se numa duplicidade de sentidos potencializadores da exclusão daquele que é desacreditável e desacreditado. Porém, muitos Manos e Minas estão ligados, ouvem as mensagens provindas de vozes que lhes parecem familiares, em maior ou menor grau.
É ilustrativo um fato veiculado na mídia impressa quando das eleições para presidência, em que o então candidato à reeleição Fernando Henrique Cardoso teria comentado sobre uma foto do então adversário Lula junto aos integrantes do grupo de RAP: de que não entendia o porquê de uma foto de um candidato ao lado de “jovens com ares de marginais”12 . O sociólogo, que também se autoproclamou como “tendo um pé na cozinha”, ignorava que aqueles jovens com aparência de marginais eram, essencialmente, a voz de mais de “cem mil manos”, representavam a exteriorização dos anseios, dúvidas e críticas de uma parcela importante do eleitorado, ou melhor, do voto tão desejado
Como vozes de estigmatizados conseguem romper barreiras e redefinir sujeitos emissores de discursos que pulam muros que tão fortemente separam ideias e visões de mundo? Temos conhecimento das barreiras impostas a discursos que teimam em manter uma essencialidade utópica. Pois tal busca utópica e, para muitos, anacrônica, de pureza e a consciência de ser um produto rentável, porém independente, a princípio afastou esse tipo de produção dos meios de comunicação. Porém, a força das histórias cantadas pelos rapazes criou seu público, redefiniu parâmetros básicos da indústria cultural.

2 – A FALA
Uma apreciação completa das dimensões estéticas de um rap exigiria não só que o escutássemos, mas que também o dançássemos, sentindo seus ritmos em movimento. (Richard Shusterman)

Vamos agora pensar analiticamente o RAP dos Racionais MC`s através apenas da poesia feita palavra escrita, o que representa mais que um risco, pois parte-se já de um pressuposto parcial que, inegavelmente, transforma uma manifestação complexa em texto. O RAP é fundamentalmente uma forma de estetização do real na qual à polifonia discursiva somam-se efeitos sonoros, rítmicos e as vozes, com suas entonações e formas expressivas provindas da fala. A palavra cantada ou canto falado do RAP possui, por si só, efeitos significativos que expandem e realizam o texto através de outras possibilidades que revigoram performaticamente os vocábulos. O RAP é palimpsesto, há camadas significativas a serem descobertas e posteriormente assimiladas para que, num conjunto em que forças expressivas irradiam possibilidades em ondas de diversas camadas, os fragmentos de sonoridades múltiplas produzam algo em que as partes signifiquem o todo.

Outro problema pode ser pensado como um agravante: como interpretar textos orais que brotam de poetas pouco escolarizados? Com que ferramentas podemos trabalhar? Se o aparato conceitual acadêmico é moldado para pensar manifestações poéticas tradicionais, cultas, como podemos encarar a produção popular e massiva produzida por artistas periféricos de um país periférico como o Brasil? Tal problemática foi, de certa forma, abolida pelos chamados Estudos Culturais, mas o ranço acadêmico ainda perdura. Na pesquisa deparamos com um bom número de trabalhos que abordam o RAP, mas, comumente, por via das Ciências Sociais e, em menor, número, pela Análise do Discurso. Aqui pensamos, de forma transdisciplinar, abordar o RAP como fenômeno literário, mas também como produto da cultura de massa e como manifestação cultural na qual o estético e o político dialogam. O RAP trabalha a palavra e, dessa forma, já emerge com um potencial de possibilidades interpretativas e analíticas inerentes ao próprio ser do discurso, Borges já disse que não há palavras simples, pois todas postulam o Universo, cujo atributo maior é a complexidade. O RAP, além de “apresentar um desafio às condições artísticas”, apresenta-se como um desafio duplo, pois também desafia uma outra condição: é poesia que deseja ter uma participação ativa dentro dos espaços socioculturais. Como pondera Shusterman 13:

Devemos sentir o poder artístico e estético de uma obra impressionar nossos sentidos e nossa inteligência. (…) Mas a justificação teórica pode ajudar a criar este espaço e ampliar os limites da arte pela assimilação de formas antes rejeitadas na categoria honorável da arte. Uma estratégia incontestável para tal assimilação é mostrar que, apesar do evidente afastamento em relação às convenções estabelecidas, uma forma expressiva ainda atende aos critérios mais decisivos para garantir o reconhecimento de sua legitimidade artística ou estética.

Entendemos que pontes entre o RAP e a crítica literária e cultural é possível. Enquanto expressão poética performática, essa manifestação estética popular contemporânea é digna de um olhar atento no qual suas possibilidades expressivas e suas carências ou virtudes formais e estilísticas possam ser analisadas a partir de diversos campos teóricos do saber. A própria constituição da poética do RAP é baseada num ethos no qual o posicionamento discursivo cria personas ficcionais tão próximas dum real pleno da periculosidade que tanto amedronta. A caracterização de uma poética bélica, juntamente ao fato de se assumirem como “guerreiros da selva de pedra”, já nos traz uma forma de compreensão do real que só pode ser considerada como um processo de estetização do mesmo, ainda que, fundamentalmente, pautado pela experiência da violência. Insistir numa conexão arte e vida pode parecer um disparate se tomarmos como base as doutrinas de não-interferência de uma certa pós-modernidade. Mas o movimento Hip Hop se espalhou pelo mundo, provocou intervenções na música pop mundial e, fundamentalmente, em muitos casos, manteve aceso o facho, pois pensa em trabalhar consciências a partir da palavra e das atitudes. Diz o próprio Mano Brown: “Eu não sou artista. Artista faz arte, eu faço arma, sou terrorista.” A frase, radical, utópica, revela a ideia da posse de um poder que a palavra comporta que pode parecer risível aos espíritos pós-utópicos com seus ares blasé. Para Shusterman 14, ocorre uma aproximação entre a visão e prática do RAP e o pragmatismo:

A teoria da catarse, de Aristóteles, embora focada na piedade e no medo, apresenta a solução estética padrão: a arte é valiosa porque permite que emoções perigosas, contudo gratificantes, sejam desfrutadas, mas depois exorcizadas por expressá-las em mundo seguro, pois fictício, de mimese; um reino claramente distinto do real. Aristóteles, mesmo defendendo a arte, junta-se a Sócrates, Platão e à principal tradição da estética que opõe arte à vida real e procura mantê-la em um reino à parte. Pragmatismo e a estética do RAP não podem aceitar essa solução, uma vez que insistimos na profunda conexão da arte com a vida, seu uso como instrumento para a construção da ética e do estilo de vida de uma pessoa, um meio de engajamento político para aumentar a consciência e promover mais liberdade.

Luiz Tatit, situando historicamente o aparecimento do RAP no Brasil, após o rock dos anos 80, revela uma relação interessante entre forma e função social da música popular, vinculando o primeiro à orfandade que vitimou a juventude, traçando o caminho para a abertura de outras possibilidades dialógicas entre a música popular brasileira e a música pop norte-americana:

Enquanto isso, o espaço de rebeldia da juventude excluída, órfã do rock de “atitude”, começa a se recompor em torno de um canto que radicalmente eliminava as durações vocálicas próprias da face melódica da canção, anunciando assim um rompimento com as formas de expressar lamúrias e desventuras amorosas. Nem passional, portanto, nem propriamente temático, esse canto recuperava a entoação pura, não pelo breque do samba nacional, mas pelo break da cultura hip hop oriunda de Nova York. Na verdade, as articulações entrecortadas e ritmadas do rap brasileiro inauguravam uma outra via de aproximação com a sonoridade norte-americana: em vez da influência pop habitual, mantida desde os tempos de Frank Sinatra, agora na exposição crua de toda canção popular: a fala.15

Dessa forma, ou seja, privilegiando o que se fala no RAP, podemos então abordar essa manifestação poética popular que possui ancestrais antigos nas formulações expressivas do homem. Os narradores benjaminianos aqui vêm travestidos de experiências vivenciadas na luta urbana e inclusive afirmam: “Eu ontem era caça e hoje, pá! Sou o predador” (Otus 500). Sua fala é plena de autoridade. Aqui, então, será privilegiada a palavra oral, transformada em signo para que assim possamos, de alguma forma, apreendê-la, mesmo com todas as ressalvas expostas. Mas a palavra oralizada, potencializada tecnologicamente, aqui possui um “alcance social” e, mesmo privada de seus outros atributos perfomáticos, possui ainda, em nosso entendimento, uma força comunicativa que desvela interessantes revisões da realidade. Como observa Paul Zumthor: “habituados que somos, nos estudos literários, a só tratar do escrito, somos levados a retirar, da forma global da obra performatizada, o texto e nos concentrar nele.” Concordamos, mas note-se, porém, que aqui lidamos não com o escrito, mas com o transcrito, ou seja, trabalhamos com palavras que foram proferidas, e aqui utilizamos o verbo proferir de forma ampla, também em seus sentidos primários de “estender para diante, exercer publicamente”. Sabemos que tais palavras só se tornaram notação gráfica simbólica por obra da própria indústria e pelos meios de comunicação digitalizados. Diríamos que o RAP seria um estilo oral performático, mas trataremos da palavra que, diríamos, brotou letra falada, mediada agora pela escrita. Resumindo: vamos nos ater no texto e não na obra, já que, ainda segundo Zumthor, o texto “designa uma seqüência mais ou menos longa de enunciados, e a obra seria tudo que é poeticamente comunicado”.

Em uma entrevista recente16 , o escritor/cantor/compositor Chico Buarque expõe algumas considerações sobre o fenômeno do RAP no Brasil. Vejamos um trecho da entrevista:

Folha – Você parece estar descrevendo um esgotamento histórico…
Chico – A minha geração, que fez aquelas canções todas, com o tempo só aprimorou a qualidade da sua música. Mas o interesse hoje por isso parece pequeno. Por melhor que seja, por mais aperfeiçoada que seja, parece que não acrescenta grande coisa ao que já foi feito. E há quem sustente isso: como a ópera, a música lírica, foi um fenômeno do século 19, talvez a canção, tal como a conhecemos, seja um fenômeno do século 20. No Brasil, isso é nítido. Noel Rosa formatou essa música nos anos 30. Ela vigora até os anos 50 e aí vem a bossa nova, que remodela tudo – e pronto. Se você reparar, a própria bossa nova, o quanto é popular ainda hoje, travestida, disfarçada, transformada em drum’n’bass. Essa tendência de compilar e reciclar os antigos compositores de certa forma abafa o pessoal novo. Se as pessoas não querem ouvir as músicas novas dos velhos compositores, por que vão querer ouvir as músicas novas dos novos compositores? Quando você vê um fenômeno como o RAP, isso é de certa forma uma negação da canção tal como a conhecemos. Talvez seja o sinal mais evidente de que a canção já foi, passou. Estou dizendo tudo isso e pensando ao mesmo tempo que talvez seja uma certa defesa diante do desafio de continuar a compor. Tenho muitas dúvidas a respeito. Às vezes acordo com a tendência de acreditar nisso, outras não.

Folha – E o RAP? Sem abusar das relações mecânicas, parece que estamos diante de uma música que procura dar conta, ou que reage a uma nova configuração social, muito problemática.
Chico – Eu tenho pouco contato com o RAP. Na verdade, ouço muito pouca música. O acervo já está completo. Acho difícil que alguma coisa que eu venha a ouvir vá me levar por outro caminho. Já tenho meu caminho mais ou menos traçado. Agora, à distância, eu acompanho e acho esse fenômeno do RAP muito interessante. Não só o RAP em si, mas o significado da periferia se manifestando. Tem uma novidade aí. Isso por toda a parte, mas no Brasil, que eu conheço melhor, mesmo as velhas canções de reivindicação social, as marchinhas de Carnaval meio ingênuas, aquela história de “lata d’água na cabeça” etc. e tal, normalmente isso era feito por gente de classe média. O pessoal da periferia se manifestava quase sempre pelas escolas de samba, mas não havia essa temática social muito acentuada, essa quase violência nas letras e na forma que a gente vê no RAP. Esse pessoal junta uma multidão. Tem algo aí.

Não se sabe se o RAP vem definir uma nova tipologia artística que substituiria o que se conhece por canção popular no Brasil, o próprio Chico somente especula sobre a questão, mas é notório que, além das temáticas, o fenômeno apresenta uma nova configuração do que seriam letras e músicas das canções. Usando várias espécies de apropriações de bases sonoras, com suas “letras” quilométricas, e o estilo mais recitado que cantado – o canto falado –, o RAP revela-se como caminho de acessibilidade das populações periféricas das cidades para uma forma de expressão estética produzida a partir do próprio lugar. Utilizando-se da tecnologia mais facilmente disponibilizada atualmente, os pobres incultos estão dando um salto entre o seu mundo violento e problemático e o mundo das mídias. O tradicional “versar” soma-se às possibilidades de corte e colagem de sonoridades diversas – eletrônicas, além dos tradicionais vocais – e criação de formas expressivas próprias. A voz do rapper é a voz poética que traz um ethos discursivo marcante, que reitera o lugar do discurso e o faz sensível ao ouvinte decodificador, que “lê” as palavras proferidas numa ambientação na qual se mesclam elementos vários, criando um clima que o insere num mundo representado, que é a simulação de dados de uma realidade que lhe é familiar. Podemos tomar como exemplo o início do cd duplo Nada como um dia após o outro, a faixa introdutória Sou + você. As primeiras sonoridades são: uma freada de carro, rajadas de tiros, latidos de cães, mais tiros, som de uma motocicleta pondo-se em movimento, depois de uma pequena pausa silenciosa, um galo que canta, som de pássaros, ruído de um despertador digital, então iniciam-se acordes musicais e, finalmente, entra o chamamento, através da voz de Mano Brown, como se iniciassem as transmissões de um programa radiofônico:

Bença, Mãe
Estamos iniciando nossas transmissões,
essa é a sua rádio Exodus
Vamo acordá, vamo acordá, porque o sol não espera
demorô, vamo acordá, o tempo não cansa
ontem à noite você pediu, você pediu….
uma oportunidade, mais uma chance,
como Deus é bom, né não nego?
Olha aí, mais um dia todo seu
que céu azul loko hein?
Vamo acordá, vamo acordá
agora vem com a sua cara
sou mais você nessa guerra
a preguiça é inimiga da vitória
o fraco não tem espaço e o covarde morre sem tentar
Não vou te enganar, o bagulho tá doido
ninguém confia em ninguém, nem em você
os inimigos vêm de graça, é a selva de pedra
ela esmaga os humildes demais
você é do tamanho do seu sonho
faz o certo, faz a sua
vamo acordá, vamo acordá
cabeça erguida, olhar sincero
tá com medo de quê?
Nunca foi fácil, junta os seus pedaços e desce pra arena
mas lembre-se: aconteça o que aconteça
nada como um dia após o outro dia.

Neste RAP introdutório estão presentes, de certa forma, muitas das temáticas características presentes na poética dos Racionais: o caráter pedagógico, a religiosidade como apoio, a exortação ao enfrentamento positivo da realidade da selva de pedra que esmaga e inferioriza os “humildes demais”, o chamado para a atividade, para a luta. Essa poetização energética e bélica é uma tônica (ou um tônico), processo de ritualização suburbana (ou periférica) da realidade, do dia-a-dia. E aqui utilizamos a palavra exortação em mais de uma acepção, abrindo o campo semântico que passa por encorajamento, estímulo, incitação, mas também conselho, advertência, além da conotação jurídica do termo como “apelo que o juiz faz aos jurados para que tomem suas decisões de acordo com a própria consciência e com os ditames da justiça”. Pois dentro da guerra diária redefinida na poética dos Racionais é primordial a ideia de que a consciência (o quarto elemento da cultura Hip Hop) é um dado fundamental perante os tribunais humanos e divinos (Em outro RAP – Vida Loka II – está dito que “O promotor é só um homem, Deus é o juiz”). Assim sendo, na introdução desse livro sonoro que é o cd, há a convocação de um processo de passagem: a saída da passividade sonolenta para a entrada na atividade guerreira do enfrentamento das vicissitudes. Esse despertar para um novo dia – Vamo acordá –, para os ouvintes da Radio Exodus é como um despertar de atitudes que venham trazer a possibilidade desse utópico dia solar, depois da noite de tiros que podem retirar de circulação alguns guerreiros. Um dado então é primordial: a importância dos relógios, ou seja, da marcação do tempo, que não é mais o tempo vulgar, mas o tempo em que se deve acordar – lembro de um esboço de centro cultural da Cidade de Deus chamado “Acorda crioulo”. Segundo Shusterman17 , referindo-se ao RAP dos Estados Unidos:

Certamente as verdades e as realidades que o hip hop revela não são as verdades transcendentais e eternas da filosofia tradicional, mas antes fatos mutáveis do mundo material, histórico e social. Mesmo assim, a ênfase dada à mudança temporal e à natureza maleável do real (refletidas nas datações das músicas de rap e na expressão “saber que horas são”) representa uma posição metafísica respeitável, em concordância com o pragmatismo americano.

Ainda segundo o filósofo, “essa é a noção é o tema central do disco de Kool Moe Dee, ‘Do you know what time is it?’, e encontra uma expressão no vestuário de Flavor Flav, do Public Enemy: um imenso relógio que ele usa como colar”. Sabendo da admiração dos integrantes dos Racionais pelo grupo norte-americano, inclusive fizeram abertura do show do Public Enemy em São Paulo, podemos inferir que tal filiação temática faz parte de uma forma de persuasão para que os pretos e pobres saiam da passividade e comecem a agir, ou seja, é uma característica filosófica e política do RAP “socialmente engajado” ao qual o grupo paulista é filiado. Em outros RAPs a questão da hora, do despertar para tomar conhecimento dos fatos – independente da natureza ou do âmbito a que eles se referem – está presente direta ou indiretamente.
Retomando o discurso poético de Sou + você, notamos a presença de formas verbais – demorô, iniciando, (o sol não) espera, (o tempo não) cansa, (agora) vem – que nos trazem a percepção de ações que possuem marcada dimensão temporal, tais formas verbais juntam-se a marcadores temporais – noite, dia, agora, sol – e definem a temporalidade como intrinsecamente ligada à pragmática da atividade cotidiana, porém reafirmada como discurso metafórico que clama aos seus ouvintes que o agora é o tempo de mudanças e que o mais importante é a sobrevivência em meio à “selva triste”…
Segundo Amarino Oliveira de Queiroz :18

A tradição das narrativas orais e de outras formas poéticas da oralidade, flagradas através do trabalho desenvolvido por diversos escritores africanos contemporâneos vem se constituindo, em maior ou menor grau, num dado significativo que se alia ao processo de elaboração das literaturas escritas produzidas naquele continente. Tomando-se o exemplo de alguns países africanos de língua portuguesa, poderíamos sugerir que a retomada dessa oratura e, conseqüentemente, sua reelaboração através da palavra fixada pela escrita ou performatizada pela associação entre voz, gesto, movimento, encenação e traço, como ocorre no rap, tem consistido num importante elemento capaz de viabilizar não apenas uma mais completa assimilação dessas modalidades expressivas, mas também uma contribuição efetiva no sentido de afirmar positivamente as identidades culturais daqueles países. (…)

Segundo o que se depreende do artigo, o tradicional canto falado dos africanos é um dos pilares fundadores do RAP contemporâneo, num processo de expansão e de retorno à África, através da mundialização da cultura Hip Hop, processo circular de trocas e hibridismos constantes que veio redefinir parâmetros das chamadas culturas tradicionais, fundamentalmente por intermédio na cultura massiva:

Em meados dos anos 60 do século passado, alimentando-se do canto falado da África, o discurso sobre bases musicais eletrônicas emergidos nos bailes da periferia de Kingston, Jamaica, amplificou-se, reeditando o contador/cantador tradicional em outra versão: o toaster. Este, por sua vez, acabaria por desdobrar-se no DJ e no poeta rapper dentro da cultura Hip Hop que se aproximava. No início da década seguinte, o que hoje identificamos como rap daria um outro salto: a crise econômica no Caribe, desencadeadora de novo processo diaspórico, faria com que o ritmo & poesia dos toasters chegasse ao ambiente urbano da metrópole pós-industrial estadouniudense, ali se infiltrando e a partir dali de difundindo pelo mundo inteiro, até marcar presença na África contemporânea.19

Os antecedentes da oralidade na composição do que chamamos aqui de RAP é um fator preponderante na sua formação, as relações com práticas orais tradicionais são tidas como fundamentais na própria formação do gênero nos guetos20 norte-americanos, assim, provindo da Jamaica, o canto falado, já presente no reggae tradicional, migrou para os EUA e ambientou-se numa fusão com outros estilos da black music. Segundo Goetz :21

Nos Estados Unidos, o hip hop é freqüentemente mitologizado em termos de uma dureza quase sobrenatural sustentando o “gangsta RAP” ou um passado ancestral distante envolvendo o “Griot”, um contador de histórias das sociedades africanas. Os rappers, supostamente informados por essa tradição oral africana e vocalizando os ressentimentos de afro-americanos subalternos, são transformados em uma autêntica força política de uma diáspora africana. Além do mais, o hip-hop é ligado ao destino de afro-americanos que vivem em dificuldade no cinturão de ócio urbano abandonado por uma sociedade pós-industrial.

3 – RAP: Negro drama contemporâneo

Há toda uma discussão acerca das verdadeiras fontes tradicionais do RAP, porém, acreditamos que o que ocorre é um processo de absorção de tradições transformadas histórica e geograficamente, somadas às mutações possibilitadas pela tecnologia e por particularidades e especificidades culturais localizadas. Segundo Douglas Kellner :22

O rap também depende de virtuosismo tecnológico, e o DJ, que manipula os sons eletrônicos, é parte importante da equipe. Portanto trata-se de uma forma que combina tradições orais afro-americanas com sofisticadas modalidades tecnológicas de reprodução de som. Além disso, os sons do rap muitas vezes são transgressivos, infringindo as regras de correção e do discurso aceitável. Trata-se freqüentemente de sons desordenados, com ruídos de carros de polícia, helicópteros, tiros, vidros quebrando e agitação urbana. Os sons do rap são especialmente perturbadores quando tocados no último volume em espaços públicos, anunciando que o inimigo está dentro, que a sociedade está dividida e enfrenta conflitos explosivos.

Um exemplo desses procedimentos que fundem tradição e contemporaneidade foi dado claramente no filme Sou feia, mas tô na moda, um documentário de Denise Garcia que trata, fundamentalmente, do chamado funk sensual produzido por mulheres, principalmente na Cidade de Deus, Rio de Janeiro. Ainda que tratando na maior parte do tempo da produção das mulheres, no filme há mostras do funk mais antigo, dos anos 80 e 90. Em forma de improviso, numa roda, as pessoas batem palmas substituindo as percussões eletrônicas e “mandam” os seus versos. O que se observou foi que, longe da parafernália tecnológica de bases e samplers, e sem a presença do produtor, o que havia era um grupo de jovens – quase todos negros – celebrando triste, alegre ou ironicamente a vida, cantando sobre situações coletivas e individuais.
A partir dessa observação e de outras feitas em contato com funkeiros cariocas (e através do filme Fala, tu 23 ), notamos a proximidade com o samba de roda, o jongo, ou as rodas de partido alto, além de ecos cariocas dos próprios terreiros de umbanda e candomblé. Embora, para um especialista em música, essas observações possam parecer demasiadamente simples e reducionistas, o que se percebeu foi a revitalização de procedimentos que estão presentes em culturas tradicionais, principalmente de origem tribal e da qual as populações pobres em geral são depositárias. No Brasil, a formação circular de pessoas marcando o ritmo com as mãos, dançando, lamentando ou celebrando, é forma tradicional de congregação e essas raízes se fazem presentes como substrato cultural latente e como forma de manifestação estética, corporal e ideológica 24. Inclusive o RAP brasileiro está absorvendo cada vez mais sonoridades locais, principalmente do samba com suas diferentes cadências. Como já foi dito, aqui não se está fazendo um tratado sobre música, não se tem conhecimento técnico do assunto e nem é nossa intenção. Porém, sabendo-se do caráter extremamente coletivo e grupal dessas manifestações e da precariedade dos meios para produzi-las tecnologicamente, notamos como as raízes sonoras das comunidades tradicionais estão presentes, inclusive no próprio RAP. Finalizando essas considerações acerca das características mais ou menos essencialistas do RAP, podemos trazer para a discussão as palavras de Regina Novaes 25, sobre o movimento Hip Hop, no qual o RAP se insere:

Além do RAP (com seus DJs e MCs) e do break, há também o grafite26 , compondo a trilogia sagrada de um fenômeno social que é chamado pelos próprios participantes de movimento ou cultura hip-hop. Sabe-se que nos EUA há grupos violentos, financiados pelos traficantes. Mas há também os grupos de caráter pacífico que se propõem a substituir a violência das brigas entre grupos pela competição na música, na dança e no grafite. No Brasil os grupos que se tornaram conhecidos são contra as drogas e pregam a paz. Essa postura favorece conexões entre os grupos do movimento hip-hop com instâncias governamentais, organizações não-governamentais e igrejas. (…) O hip-hop não é, portanto, um movimento orgânico que produz grupos homogêneos. Ao contrário, existem várias correntes, linhas e ênfases que os diferenciam em países, cidades, bairros e estilos, já que a circulação de bens culturais não se faz nunca em uma direção unilateral. Assim sendo, a discussão sobre as origens nunca vai acabar. Essa é uma controvérsia constitutiva do hip-hop. Na verdade, ao reafirmar ou negar raízes do passado, os grupos estão se posicionando sobre questões do presente, estão fazendo escolhas e construindo alianças e identidades.

O fato dos negros, em suas diferentes etnias, servirem à colonização como força de trabalho escravo é um dado fundamental para a introdução em qualquer assunto relativo à exclusão e ao racismo no Brasil. Buscando a brevidade, trataremos de alguns pontos considerados como relevantes para o desenvolvimento das análises, ou seja, como se instauram o discurso e a prática racistas na sociedade brasileira.
A primeira observação refere-se ao fato de o tratamento mais violento dado aos negros escravizados haver ocorrido nas colônias. Porém, o dado da exclusão se fez sempre presente. Na sociedade ibérica renascentista, as práticas excludentes refletem o ideário de formação da identidade nacional. Segundo escritos datados dos começos do s. XVI, aos negros deveria ser assegurada: “una vida soportable y humana”. Mas, ainda assim, na Espanha, a exclusão legalizada teve de ser posta em prática; aos negros e gitanos eram reservados os piores ofícios. Como exemplo, temos o caso de um

moreno que puso una modestísima escuela de niños en la Laguna, fue requerido a que mostrase la carta de examen expedida por los veedores, y el susodicho responsable la no tenía, por cuya razón, el señor teniente Mayor le notificó cierre de la escuela y no enseñase muchachos, pena de que será castigado.27

O texto oficial nos dá informações interessantes: além da liberdade e cidadania relativas, revela o discurso humanista que intervém e impede a ação de um “trabalhador não-qualificado”, o que ajudaria na manutenção de excluídos não-escolarizados. Negros poderiam (e deveriam) ser cristãos, mas não poderiam ser sacerdotes; poderiam (como impedir?) aprender, mas não estavam legalmente aptos a ensinar. O fato da exclusão legal, em confronto com a exclusão não-oficial, será uma constante nas relações inter-raciais até nossos dias. Para os negros, então: “la única via de integración total eran las uniones sucesivas que iban emblanqueciendo su piel”. Na Sevilha renascentista começa a ser posta em prática a teoria da mulatização: extinção natural do negro. Há as etapas do processo, uma tabela é, cientificamente, elaborada. Tal tabela considera como “gente blanca” o filho da sexta geração de mulato que se unisse sempre com branco. Mas o caso se complica na América com as possibilidades combinatórias entre “puros” e “mestiços”. No Brasil, tal teoria de homogeneização sociorracial desfez-se na modernidade, ou melhor, revestiu-se da capa parda da pobreza, já citada por Caetano Veloso e redefinida nos versos dos Racionais: “mais um filho pardo, bastardo sem pai”. Dada a impossibilidade de absorção do negro nos modos de produção pós-escravagistas e da inserção de brancos pobres, surge uma outra fase de relacionamento inter-racial na América, que se agravou na América Católica.

Como observa Roberto da Matta, o racismo brasileiro vem de fontes eruditas que, por sua vez, provinham das teorias evolucionistas de s. XVII, e toma forma acabada no s. XIX:
como instrumento do imperialismo e como uma justificativa “natural” para a supremacia dos povos da Europa Ocidental sobre o resto do mundo (…) Gobineau colocava a tese de que a sociedade brasileira era inviável porque possuía uma enorme população mestiça, produto indesejado e híbrido do cruzamento de brancos, negros e índios.28

As teorias raciais e racistas sempre buscaram apoio nos discursos e práticas legais, religiosas 29e científicas. Porém, no Brasil, diferentemente dos EUA, a hierarquização legalista ibérica, à qual nos referimos, funciona como no esquema discutido por Foucault, em que há exclusão dentro do próprio sistema social. A particularidade do racismo brasileiro – que se nega internamente, anti-ideológico – nos traz a figura simbólica da mulatização, que se desfaz na exclusão. A ideologia social do racismo brasileiro se renova na crise contemporânea, clímax e acúmulo de mais uma: a impossibilidade de modernização neoliberal em confronto com representações sociais tênues, característica de uma sociedade heterogênea e centralizadora de riqueza.

Se fizemos essa pequena introdução histórica de uma evolução das teorias racistas que convivem com a formação do Brasil, desde a herança humanista ibérica e das modernas e científicas teorias modernas, foi para situar o ponto focal neste momento: a relação entre racismo e violência policial. Se a violência policial no Brasil é constante contra a população em geral, o fato se complica tratando-se de pobres e pretos. Casos de violência associada à prática do racismo são constantes. A imagem do negro/pobre estigmatizado como potencial risco à sociedade é parte integrante de uma visão que, se por um lado é apoiada pelas estatísticas, por outro sugere e redefine um caráter lombrosiano 30 que mascara a complexidade de um processo histórico de exclusão social do qual os negros e seus descendentes são as maiores vítimas. As formas de estigmatização dos negros evoluem e se adaptam às próprias revisões de parâmetros sociais que se redefinem historicamente, os discursos e visões evoluem, mas as práticas discriminatórias e racistas persistem como substrato latente dos indivíduos e da sociedade. Se o discurso biológico não dá conta, redefinem-se novas formas de manutenção dos processos estigmatizantes e excludentes, como afirma Stuart Hall :31

A diferença genética – o último refúgio das ideologias racistas – não pode ser usada para distinguir um povo do outro. A raça é uma categoria discursiva e não uma categoria biológica. Isto é, ela é a categoria organizadora daquelas formas de falar, daqueles sistemas de representação e práticas sociais (discursos) que utilizam um conjunto frouxo, freqüentemente pouco específico, de diferenças em termos de características físicas – cor da pele, textura do cabelo, características físicas e corporais, etc. – como marcas simbólicas, a fim de diferenciar socialmente um grupo de outro.

Mas, segundo Milton Santos : 32

No Brasil, onde a cidadania é, geralmente, mutilada, o caso dos negros é emblemático. Os interesses cristalizados, que produziram convicções escravocratas arraigadas, mantêm os estereótipos, que não ficam no limite do simbólico, incidindo sobre os demais aspectos das relações sociais.

Ora, sabemos que a violência da polícia brasileira é voltada, fundamentalmente, àqueles que historicamente têm de ser postos em seu devido lugar, e “lugar de preto é na senzala”, diz um velho dito irônico. Ou seja, a manutenção dos excluídos em seus nichos habitacionais – subnormais, confinados e promíscuos, segundo a definição do geógrafo – é a tônica de políticas e práticas sociais cristalizadas, normatizadas ou assumidas por poderes oficiais e paralelos. Assim, as periferias urbanas brasileiras apresentam diversas similitudes com os guetos norte-americanos, habitados por seres humanos que foram etiquetados como underclass, subcidadãos que sobrevivem em meio à patologização social e individual. Segundo Wacquant :33

Esse “grupo” pode ser supostamente identificado como por uma série de características intimamente interligadas – desordem: uma sexualidade fora de controle, famílias chefiadas por mulheres, altas taxas de absenteísmo e reprovação nas escolas, consumo e tráfico de drogas, além da propensão ao crime violento, “dependência” persistente em relação a auxílio público, desemprego endêmico (devido, de acordo com algumas versões, à rejeição ao trabalho e à recusa em ajustar-se às estruturas convencionais da sociedade), isolamento em áreas com alta densidade de famílias problemáticas etc.

Ou seja, parece que aqui vemos comprovada a máxima dos Racionais: “periferia é periferia em qualquer lugar”, pois as descrições acima, somadas à questão dos quatro elementos de guetização vistos anteriormente – preconceito, violência, segregação e discriminação – reforçam a conceituação do gueto urbano contemporâneo feito pelo sociólogo francês, com o agravante de que os benefícios sociais brasileiros para tal “categoria” é escasso e/ou insuficiente. Então, no Brasil, com o advento, instituição e crescimento do tráfico de drogas e a consequente guetização e assunção belicista desses territórios o fato se complica, pois assim há o respaldo para o tratamento dado aos habitantes desses locais marginalizados, estigmatizados, onde comumente a única relação com o poder público – salvo a presença de candidatos em campanha eleitoral – se dá através da presença de forças policiais que acabam “se integrando” de maneira conflitante e violenta ao dia-a-dia de tais comunidades.

Para concluir, partimos então em uma direção que pretende ser desembocadura para nossa argumentação, ou seja, como o movimento Hip Hop e, no caso específico, o RAP dos Racionais MC’s insere-se como forma contemporânea de questionamento das formas de exclusão e estigmatização presentes na sociedade brasileira contemporânea, fazendo parte de um processo de tomada de consciência racial radical: o RAP transforma pardos em negros. Segundo Munanga (2004) : 34

Os movimentos negros brasileiros contemporâneos, nascidos na década de 70, retomaram a bandeira de luta dos movimentos anteriores representados pela Frente Negra, substituindo o anti-racismo universalista pelo anti-racismo diferencialista. Sob a influência dos movimentos negros norte-americanos, eles tentam dar uma redefinição do negro e do conteúdo da negritude no sentido de incluir neles não apenas as pessoas fenotipicamente negras, mas sobretudo os mestiços e descendentes de negros, mesmo aqueles que a ideologia do branqueamento já teria roubado.

No Brasil, geralmente, o RAP é tido como uma forma essencialista de expressão artística, nos mesmos modelos, porém apresentando especificidades que o afastaram do RAP consumido hoje nos Estados Unidos. Se, no início, as bases, samplers, sonoridades eram típicas dos EUA, comumente adaptações de bases de hits da black music, houve também a procura de outras referências, sendo buscadas inferências de músicos e ritmos brasileiros, um caso típico de releitura, movimento de hibridização de fontes externas a partir da mescla com sonoridades e temáticas localizadas.35
Pensando especificamente no RAP dos Racionais, trata-se de um discurso que se pretende prática vital. Para os rapazes de São Paulo, o RAP não é jogo, é guerra, e os rappers, conscientes de sua missão, são considerados guerreiros (várias são as passagens em que as metáforas bélicas são utilizadas como confirmação de que existe uma batalha que está sendo perdida pelos Manos). Sobre o termo Mano, é interessante notar que é uma forma de aglutinação fraterna de sujeitos que estão agrupados em um sentido de autoconsciência de sua função: buscar os espaços de cidadania negados pelo “sistema”. Tal categoria seria uma apropriação e ampliação de um conceito que não já tinha razão de ser no Brasil: o brother “negro” dos EUA. O Mano será, então, uma categoria que ultrapassa fronteiras raciais ou étnicas, porém que é formada, em sua grande maioria, por descendentes de negros e de migrantes. Em uma das canções, Negro drama, com seu caráter autobiográfico, está dito sobre o nascimento do personagem: “Família brasileira/ dois contra o mundo/ mãe solteira/ de um promissor vagabundo (…) O bastardo/ mais um filho pardo/ sem pai”. Ao se assumir como “pardo”, denominação genérica dada aos seres híbridos comuns no Brasil, o discurso rejeita o embate negro x branco. Ao internalizar a nominação pejorativa daquilo que não é bem definido enquanto cor da pele, o discurso poético vai agir na direção que aponta para o Mano, ou seja, para um ser sem cor, fruto do processo de exclusão social. Embora conscientes de que a marca epidérmica é fundamental, no RAP dos Racionais o embate já migrou, o inimigo não é o sujeito branco – embora ele possa aparecer assim em diversas situações – mas sim o “sistema” branco capitalista que empurra para os guetos urbanos 36 toda uma série de pessoas que poderiam ser definidas, inclusive, como “os brancos quase pretos de tão pobres”, tão poeticamente pintados por Caetano Veloso e Gilberto Gil no Rap-lamento Haiti. Porém, nos RAPs dos Racionais, o fato de possuir a pele escura sempre é agravante ao problema da estigmatização e consequente exclusão e vitimação por parte dos organismos estatais de controle e dos tentáculos do poder – policiais, seguranças, gerentes de lojas etc. Sabemos, porém, que o tratamento dado ao negros é diferenciado, em todos os níveis de relações sociais. Após análises estatísticas, a professor Marcelo J. P. Paixão37,chegou à seguinte conclusão que, de certa forma, conclui nossas observações:

O que essa plêiade de indicadores demonstra é a existência de uma coerência entre dados no seguinte sentido: i) seja qual for o indicador escolhido para analisar as desigualdades raciais, em todos eles os negros encontram-se em uma situação pior que a dos brancos; ii) seja qual for a região do país, os indicadores sociais e demográficos dos negros são menos favoráveis que os indicadores dos brancos; iii) mesmo quando se desagregam estes dados por gênero, o que se vê é que os homens brancos estão em melhor situação que as mulheres brancas, que estão em condições mais favoráveis que os homens negros, que estão em uma situação menos grave que as mulheres negras. Sendo assim, verifica-se que os argumentos de que no Brasil ser branco ou ser negro é indiferente do ponto de vista da estratificação social não são verdadeiros, ou, antes, pode-se argumentar que o problema social brasileiro possui um evidente e nítido componente social.

O RAP dos Racionais, fundamentalmente nos últimos dois trabalhos (Sobrevivendo no Inferno, de 1997 e Nada como um dia após o outro, de 2003) passou dos resquícios de uma visão racial com ecos do movimento norte-americano, para uma visão local interessante, em que o fundamental é a interação do pobre favelado a um processo de conscientização e busca da cidadania. Segundo Maria Rita Kehl : 38

Alguma coisa mudou na atitude de Brown e seus manos depois de Sobrevivendo no inferno, onde eles demarcavam o território do rap excluindo os “filhinhos de papai” que se faziam passar por malandros escutando os Racionais MC`s no rádio do carro. Em 2002, os músicos mais populares do hip hop paulista entenderam que a potência de seu “rythm and poetry” ultrapassa barreira de classe e de raça. Ninguém consegue impedir que os jovens do Jardim América 39 se identifiquem com o discurso produzido pelos moradores do Jardim Ângela.

Porém, o sabemos, como nos fala Kebengele Munanga, que o processo de “branqueamento físico da sociedade brasileira” fracassou e os abismos sociais estigmatizantes perduram, se os playboys assumem roupas, gestos e falas, o que se pode fazer? Mas no próprio cd está incluída a sintomática Da ponte pra cá, um enfático e irônico grito de exclusão dos playboys.

quero sua irmã e seu relógio Teg Heuar
Um conto se pá, da pra catar
ir para a quebrada e gastar antes do galo cantar
Um triplex para a coroa e o que malandro quer
não só desfilar de Nike no pé
Ô, vem com a minha cara e o din-din do seu pai
mas no role com nóis “ce” não vai
Nóis aqui vocês lá, cada um no seu lugar.
Entendeu? Se a vida é assim, tem culpa eu

Brown continua afirmando que não tem nada pra dizer para “os classe média”. Enquanto produto da indústria cultural, o RAP pode ser consumido por quem quer que seja, mas sabemos que o público-alvo, termo que aqui cai muito bem, continua sendo os moradores das periferias das cidades brasileiras. Como elemento integrante da cultura Hip Hop, o RAP dos Racionais é estetização e também parte de um ideário político que se conjuga com uma série de orientações que reivindicam direitos e melhorias estruturais e culturais para as comunidades pobres. A maioria dos shows ocorre ainda em espaços que não são os destinados aos pop stars. As aparições na TV escassearam ainda mais, porém as redes de comunicação se ampliam e a fala poética que reverbera os anseios de pretos, pobres, favelados se consolida como uma poética popular que busca, através da palavra, a conscientização daqueles que historicamente estiveram sempre à margem dos mínimos direitos do cidadão.

Vamos agora nos ater mais detalhadamente a um dos RAPs mais famosos dos Racionais, Negro Drama, que estruturalmente está dividido em duas partes principais, nas quais duas vozes poéticas e performáticas falam da dificuldade de sobrevivência de quem vive entre o sucesso e a lama ou entre a lama e a fama. Há variações do verso-mote, Negro drama, que oscila para negro trama, ou sente o drama, algumas aliterações que enriquecem a sonoridade das rimas. Na letra constam três gêneros narrativos tradicionais que são negados: “Não é conto, nem fábula, lenda ou mito”. E aqui transparece uma característica que foi sendo depurada na poética dos Racionais. Como afirmou Mano Brown, no início da carreira as letras produzidas usavam em maior quantidade de versos, um vocabulário mais elaborado, técnico, poderíamos dizer, mas que, segundo o próprio rapper, parecia linguagem de sociólogo. Em Sobrevivendo no inferno (1997), a oralidade – com gírias, onomatopéias, referência da linguagem publicitária, entre outras formas – foi explorada com efeitos surpreendentemente expressivos, mas também havia a introdução de referências que ultrapassam o léxico do dia-a-dia e do gírio (como Cidadão Kane). No disco duplo de 2003, Nada como um dia após o outro dia, as referências da cultura letrada aparecem com uma frequência maior, como as citadas acima (conto, fábula, lenda e mito). O enunciador poético se declara um Poeta entre o tempo e a memória, verso que nos remete ao caráter ambíguo da genética do próprio RAP que possui em sua formação heranças arcaicas e que se move dentro da temporalidade histórica do agora. Em Estilo cachorro, irônica saga de um rolê noturno, o personagem é “pontual como o Big Ben, quatro anos assim, nem Shakespeare imaginaria um fim”, ou seja, o “clássico” junta-se ao popular e ao trivial. Se pensarmos no caráter pedagógico do RAP dos Racionais, podemos cogitar que tal presença de referências da cultura “oficial” pode servir como forma de levar os ouvintes a buscarem o significado e produtividade de tais referentes na mensagem poética do RAP.

Em Negro Drama nota-se a afirmação discursiva de que raízes culturais, raciais e ideológicas seriam mais fortes que o poder dado aos ídolos pops, posição contrária à aculturação sofrida, por exemplo, pela personagem descrita no RAP Qual mentira vou acreditar que se transforma de uma linda negra passista em uma vaca nazista que condena o tipo e as atitudes de pessoas de sua mesma origem.

O tema da pressão sofrida pela ambiguidade de ser um Mano e um artista reconhecido também se faz presente nos últimos dois trabalhos dos Racionais, tal fato relaciona-se com todas as implicações relativas às relações de poder e a “patrulha ideológica” sofrida, além da também ambígua relação com o tráfico e o consumo de drogas, pois as letras do grupo são firmes na crítica à alienação em todas as suas formas.

Em Negro Drama, a introdução, falada, nos introduz ao sentido narrativo da história pessoal, ou seja, reivindica o direito à palavra que possui a verdade, pois é um discurso poético (ficcional) autenticado pelo seu emissor. Não se trata de apenas contar mais uma história, o caso agora é dar um depoimento vital, de um testemunho que dota, poeticamente, o discurso da verticalização necessária de uma história vivenciada, daí o caráter exemplar épico ser trazido através da tecnologia: o cd traz a voz do gueto para o mundo digital: tradição e modernidade que criam possibilidades outras de revisão dos paradigmas da cultura pop.

Na segunda parte do RAP, inicia-se a outra parte da narrativa poética de uma história que não será contada por nenhum Forest Gump, pois nesse RAP busca-se a verdade que “daria um filme”, então a reminiscência autobiográfica apresenta o personagem e a cena: “Uma negra, uma criança nos braços, solitária na floresta de concreto e aço”. Então evidencia-se a negativa anterior, ou seja, os versos dizem a verdade, não estamos lidando, ouvintes/leitores, com conto, fábula, lenda ou mito. Nos versos posteriores, contundentes e perspicazes, está dito o seguinte:

Eu sou problema de montão
de carnaval a carnaval
Eu vim da selva, sou leão
sou demais pro seu quintal
Problema com escola eu tenho mil, mil fita
Inacreditável, mas seu filho me imita
No meio de vocês ele é o mais esperto,
Ginga e fala gíria. Gíria não, dialeto.

Esses versos, de certa forma, propulsionaram nossa pesquisa, e neles se concentra um tipo de enfrentamento que estimulou, por exemplo, as observações de Maria Rita Kehl sobre o possível trânsito entre a mensagem do Capão e o mundo dos playboys. Porém, acreditamos que a ironia dessa pequena “vitória” contra o Senhor de engenho funciona, através da reversibilidade irônica, como afirmação da ética e da estética da favela, exemplificada na auto-valorização dos jovens e da quebrada (o bairro, a favela) que ocorre, por exemplo, em Da ponte pra cá. Finalizando, há, sabemos, uma discussão que perpassa o tipo de pesquisa que aqui se apresenta, ou seja, sobre a qualidade literária do corpus em questão, debate que evidencia valorações sobre cultura e arte preferenciais. E aqui apresentamos algo que é descrito por um de seus autores como som de preto, sem massagem. Estamos lidando com uma prática discursiva, performática, estilística, ou seja, poética, produzida por quem sempre esteve abaixo da linha indelével que separa e define padrões culturais e delimita espaços territoriais e simbólicos, ou seja, lidamos com ética e estética, formas estas conjugadas em algo distinto. Mas, talvez, para quem o RAP se dirige preferencialmente, ele seja algo muito maior, seja prática política, ponte entre Arte e Vida, ou simplesmente alento vital, ou seja, Ritmo e Poesia.
APÊNDICES

I – Da ponte pra cá

A lua cheia clareia as ruas do capão,
Acima de nós só Deus humilde né não? né não?
Saúde: plin, mulher e muito som,
Vinho branco para todos um advogado bom
Cof,cof, ah, esse frio tá de fuder,
Terça feira é ruim de role, vou fazer o que
Nunca mudou nem nunca mudará
O cheiro de fogueira vai, perfumando o ar
Mesmo céu, mesmo cep no lado sul do mapa,
Sempre ouvindo um rap para alegrar a rapa
Nas ruas da sul eles me chamam brown,
Maldito,vagabundo, mente criminal
O que toma uma táça de champagne também curte
Desbaratinado, tubaína, tutti-frutti.
Fanático, melodramático, bom-vivant,
Depósito de mágoa quem esta certo é o saddam, ham…
Playboy bom é chinês, australiano,
Fala feio e mora longe não me chama de mano
“- e aí brother, hey, uhuuul, ” pau no seu c…aaaíí,
Três vezes seu sofredor odeio todos vocês
Vem de artes marciais que eu vou de sig sauer,
Quero sua irmã e seu relógio tag heuer
Um conto se pá, dá pra catar,
Ir para a quebrada e gastar antes do galo cantar.
Um triplex para a coroa é o que malandro quer,
Não só desfilar de nike no pé
Ô vem com a minha cara e o din-din do seu pai,
Mais no rolé com nóis ?ce? não vai
Nóis aqui, vocês lá, cada um no seu lugar.
Entendeu? se a vida é assim, tem culpa eu?
Se é o crime ou o creme, se não deves não teme,
As perversa se ouriça e os inimigo treme
E a neblina cobre a estrada de itapecirica…
Sai, Deus é mais, vai morrer para lá zica

Não adianta querer, tem que ser tem que pá,
O mundo é diferente da ponte pra cá
Não adianta querer ser tem que ter para trocar,
O mundo é diferente da ponte pra cá

Outra vez nóis aqui vai vendo,
Lavando o ódio embaixo do sereno
Cada um no seu castelo, cada um na sua função,
Tudo junto, cada qual na sua solidão
Hei, mulher é mato a Mary jane impera,
Dilui a rádio e solta na atmosfera
Faz da quebrada o equilíbrio ecológico,
Distingüe o judas só no psicológico
Hó, filosofia de fumaça analise,
E cada favelado é um universo em crise
Quem não quer brilhar, quem não? mostra quem,
Ninguém quer ser coadjuvante de ninguém
Quantos caras bom, no auge se afundaram
Por fama
E tá tirando dez de havaiana
E quem não quer chegar de honda preto em banco de
couro,
E ter a caminhada escrita em letras de ouro
A mulher mais linda sensual e atraente,
A pele cor da noite, lisa e reluzente
Andar com quem é mais leal e verdadeiro,
Na vida ou na morte o mais nobre guerreiro
O riso da criança mais triste e carente,
Ouro, diamante, relógio e corrente
Vem minha coroa onde eu sempre quis pôr,
De turbante, chofer uma madame nagô.
Sofrer pra que mais se o mundo jaz do maligno,
Morrer como homem e ter um velório digno
Eu nunca tive bicicleta ou video-game,
Agora eu quero o mundo igual cidadão Kane,
Da ponte pra cá antes de tudo é uma escola,
Minha meta é dez, nove e meio nem rola
Meio ponto a ver, hum e morre um,
Meio certo não existe truta o ditado é comum
Ser humano perfeito, não tem mesmo não,
Procurada viva ou morta a perfeição
Errare humanus est, grego ou troiano,
Latim, tanto faz pra mim: fi de baiano
Mas se tiver calor, quentão no verão,
Ce quer da um rolé no capão daquele jeito,
Mas perde a linha fácil, veste a carapuça,
Esquece estes defeitos no seu jaco de camurça
Jardim Rosana, Três estrela e imbé,
Santa Tereza, valo velho e dom José.
Parque chácara, lídia, vaz,
Fundão muita treta com a Vinícius de Moraes

Refrão

Mas não leve a mal tru, ce não entendeu,
Cada um na sua função, o crime é crime e eu sou eu.
Antes de tudo eu quero dizer, pra ser sincero
Que eu não pago de quebrada mula ou banca forte.
Eu represento a sul, conheço loco na norte,
No 15 olha o que fala, perus, chicote estrala
Ridículo é ver os malandrão vândalo,
Batendo no peito feio e fazendo escândalo
Deixa ele engordar, deixa se criar bem,
Vai fundo, é com nóis, super star, superman, vai…
Palmas para eles digam hey, digam how,
Novo personagem pro Chico Anísio show
Mas firmão né, se deus quer sem problemas,
Vermes e leões no mesmo ecossistema
Ce é cego doidão? então baixa o farol!
Hei hou, se qué o quê com quem diow?
Tá marcando, não dá pra ver quem é contra a luz
Um pé de porco ou inimigo que vem de capuz
Hey truta eu tô louco, eu tô vendo miragem,
Um bradesco bem em frente a favela é viagem
De classe “a” da “tam” tomando jb
Ou viajar de blazer pró 92 dp
Viajar de GTI quebra a banca,
Só não pode viajar com os mão branca
Senhor guarda meus irmão nesse horizonte cinzento,
Nesse capão redondo, frio sem sentimento
Os manos é sofrido e fuma um sem dar goela,
É o estilo favela e o respeito por ela
Os moleque tem instinto e ninguém amarela.
Os coxinha cresce o zóio na função e gela
Qual mentira vou acreditar
São apenas dez e meia, tem a noite inteira
Dormir é embaçado, numa sexta-feira
TV é uma merda, prefiro ver a lua
Preto, Edy Rock, Star, a caminho da rua
hã… sei lá vou pruma festa, se pam
se os cara não colar, volto às três da manhã
Tô devagar, tô a cinqüenta por hora,
ouvindo funk do bom, minha trilha sonora.
A polícia cresce o olho, eu quero que se foda
Zona Norte, a bandidagem curte a noite toda.
Eu me formei suspeito profissional,
bacharel pós-graduado em “tomar geral”.
Eu tenho um manual com os lugares, horários,
de como dar perdido… ai, caralho..

Prefixo da placa é MY
sentido Jaçanã, Jardim Ebron
Quem é preto como eu já tá ligado qual é,
Nota Fiscal, RG,polícia no pé
escuta aqui: o primo do cunhado do meu genro é mestiço,
racismo não existe, comigo não tem disso,
é pra sua segurança
Falou, falou, deixa pra lá.
Vou escolher em qual mentira vou acreditar.
Tem que saber mentir, tem que saber lidar
em qual mentira vou acreditar?

A noite é assim mesmo, então… deixa rolar.
Em qual mentira vou acreditar?
Tem que saber mentir, tem que saber lidar.
Em qual mentira vou acreditar?
Pó, que caras chato, o!
Quinze pras Onze,
eu nem fui muito longe e os “home” embaçou.
Revirou os banco, amassou meu boné branco,
sujou minha camisa do Santos.
Eu nem me lembro mais pra onde eu vou.
E agora, que será que ligou
“Espere na atração, eu tô na Zona Sul,
eu chego rapidinho,assinado: Blue”.
Pode crer, naquele lado de Santana,
conheço uns lugar, conheço umas fulana.
Juliana? Não. Mariana? Não. Alessandra? Não. Adriana?
O nome é só um detalhe, o nome é só um nome.
953… hum, esqueci o telefone.
“Ôrra, demorou, heim?!”
E aí, Blue, como é?
Isso aqui é um inferno, tem uma pá de mulher,
trombei uma pá de gente, uma pá de mano,
tô há quase uma hora te esperando.
Passou uma figura aqui e deu idéia,
disse que te conhece e pá, chama Léa.
Cabelo solto, vestido vermelho,
estrategicamente a um palmo do joelho.
Os caras comentaram o visual,
“oz bi”, que tal, pagando o maior pau.
Ninguém falou, ah! ah! mas eu ouvia
meio mundo xingando por telepatia
(filha da puta!).
Economizava meu vocabulário,
não tinha o que falar, falava o necessário
meio assim, é claro, será qual é que é, truta
é o que não falta, mina filha da puta.
Tudo comigo, confio no meu taco,
versão africana “Don Juan de Marco”,
tudo muito bom, tudo muito bem,
sei lá o que é que tem, idéia vai, idéia vem,
ela era princesa, eu era o plebeu,
quem é mais foda que eu, espelho, espelho meu.
“Tipo Taís de Araújo ou Camila Pitanga?”.
Uma mistura. Confesso: fiquei de perna bamba.
Será que ela aceita ir comigo pro baile?
Ou ir pra Zona Sul ter um “Grand Finale”?
Amor com gosto de gueto até às seis da manhã,
me chamar de “meu preto” e me cantar “Djavan”.
Ninguém ouviu, mas… puta que pariu!
Em fração de segundos meu castelo caiu!
A mais bonita da escola, rainha, passista,
se transformou numa vaca nazista!
Eu ouvindo James Brown, pá, cheio de pose,
ela pergunto se eu tenho… o quê? Gun’s Roses?
Lógico que não! A mina quase histérica,
meteu a mão no rádio e pôs na Transamérica.
Como é que ela falou? Só se liga nessa,
que mina cabulosa, olha só que conversa:
que tinha bronca de neguinho de salão (não…)
que a maioria é maloqueiro e ladrão (aí não…).
Aí não, mano! Foi por pouco,
Eu já tava pensando em capotar no soco
Disse pra mim não falar gíria com ela,
pra me lembrar que não to na favela.
Bate-boca, maior goela, será que é meia-noite, já?
A Cinderela virou bruxa do mal.
Me humilhar não vai, vai tirar o caralho
levanta o seu rabo racista e sai!
Eu conheço essa perversa há maior cara
correu a banca toda de uns “pleiba” que cola lá na área.
Pra mim ela já disse que era solitária
que a família era rígida e autoritária
Tem vergonha de tudo, cheia de complexo
que ainda era cedo pra pensar em sexo

REFRÃO

Ih! Caralho! Olha só quem tá ali?
O que que esse mano tá fazendo aqui?
E aí, esse maluco veio agora comigo,
Ligou, que era até seu amigo,
que morava lá na sul,irmão da Cristiane,
dei um “cavalo” pra ele no Lausane.
Ia levar um recado pra uns parente local
, da Igreja Evangélica Pentecostal.
Desceu do carro acenando a mão
“Na paz do Senhor!”.
Ninguém dava atenção.
Bem diferente do estilo dos crentes.
Um bom “jaco” e touca, mas a noite tá quente.
Que barato estranho, só aqui tá escuro.
Justo nesse poste não tem luz de mercúrio.
Passaram vinte fiéis até agora,
dá cinco reais, cumprimenta e sai fora.
Um irmão muito sério, em frente à garagem
outro com a mão na cintura em cima da laje.
De vez em quando a porta abre e um diz:
“tem do preto e do branco?” e coça o nariz.
Isso sim, isso é que é união!
O irmão saiu feliz, sem discriminação!
De lá pra cá veio gritando, rezando:
“Aleluia, as coisas tão melhorando!”.
Esse cara é dentista, sei lá…
diz que a firma dele chama “Boca S.A.”.
Será material de construção? Vendedor de pedras?
Lá na zona sulera patrão.
Ih! patrão o caralho! Ele é safado
Fugiu do Valo Velho com os dias contados
A paranóia de fumar era fatal
Arrombava os barracos, saqueava os varal
Bateu na cara do pai de um vagabundo.
Hum… tá fazendo hora extra no mundo
A noite tá boa, a noite tá de barato
mas puta, gambé, pilantra é mato

Tem que saber mentir
tem que saber lidar.
Em qual mentira vou acreditar?
A noite é assim mesmo, então deixa rolar
Em qual mentira vou acreditar?

Negro Drama
NEGRO DRAMA
entre o sucesso e a lama
Dinheiro, problemas, invejas, luxo, fama
NEGRO DRAMA
Cabelo crespo e a pele escura
A ferida, a chaga, à procura da cura
NEGRO DRAMA
Tentar ver e não vê nada
A não ser uma estrela
Longe, meio ofuscada

Sente o drama,
O preço, a cobrança
No amor, no ódio
A insana vingança

NEGRO DRAMA
Eu sei quem trama
E quem tá comigo
O trauma que eu carrego
Pra não ser mais um preto fodido

O drama da cadeia e favela,
Túmulo, sangue, sirene, choros e velas
Passageiro do Brasil, São Paulo, agonia
que sobrevive em meio às honras e covardias
Periferias, vielas, cortiços
Você deve tá pensando
O que você tem a ver com isso

Desde o início, por ouro e prata
Olha quem morre, então, veja você quem mata
Recebe o mérito a farda que pratica o mal
Me ver pobre, preso ou morto já é cultural
Histórias, registros e escritos
Não é conto, nem fábula, lenda ou mito
Não foi sempre dito que preto não tem vez
Então, olha o castelo e não
foi você quem fez, Cuzão

Eu sou irmão dos meus truta de batalha
Eu era a carne, agora sou a própria navalha

Tim…Tim…
Um brinde pra mim
Sou exemplo de vitórias,
Trajetos e Glórias

O dinheiro tira um homem da miséria
Mas não pode arrancar de dentro dele a favela
São poucos que entram em campo pra vencer
A alma guarda o que a mente tenta esquecer

Olho pra traz, vejo a estrada que eu trilhei
Mó cota
Quem teve lado a lado e quem só ficou na bota
Entre as frases, fases e várias etapas
Do quem é quem, dos Mano e das Mina fraca

Hum..
NEGRO DRAMA de estilo
Pra ser, se for tem que ser
Se temer é milho
Entre o gatilho e a tempestade
Sempre a provar
Que sou homem e não um covarde
Que Deus me guarde
Pois eu sei que ele não é neutro
Vigia os rico, mas ama os que vêm do gueto
Eu visto preto por dentro e por fora
Guerreiro, Poeta entre o tempo e a memória
Ora, nessa história, vejo o dólar
E vários quilates. Falo pro mano
Que não morra, e também não mate
O Tic Tac
Não espera, veja o ponteiro
Essa estrada é venenosa
E cheia de morteiro
Pesadelo, hum, é um elogio
Pra quem vive na guerra
A paz nunca existiu
Num clima quente
A minha gente soa frio
Vi um Pretinho
Seu caderno era um Fuzil.

NEGRO DRAMA
Crime, futebol, música. Carai!
Eu também não consegui fugir disso aí
Eu sou mais um
Forest Gump é mato
Eu prefiro contar uma história real
Vou contar a minha….

Daria um filme
Uma negra e uma criança nos braços
Solitária na floresta de concreto e aço
Veja, olhe outra vez o rosto na multidão
A multidão é um monstro sem rosto e coração
Hey, São Paulo, terra de arranha-céu
A garoa rasga a carne, é a Torre de Babel
Família brasileira, dois contra o mundo
Mãe solteira de um promissor vagabundo
Luz, câmera e ação: gravando a cena vai
O bastardo, mais um filho pardo, sem pai
Hey, Senhor de engenho, eu sei bem quem você é
Sozinho cê num güenta
Sozinho cê num güenta a pé
Cê disse que era bom, e as favela ouviu
Lá também tem uísque e Red Bull
Tênis Nike, Fuzil
Admito, seus carro é bonito
Hé, e eu não sei fazer
Internet, vídeo-cassete, os carro loko
Atrasado eu tô um pouco, sim, tô, eu acho
Só que tem que
seu jogo é sujo e eu não me encaixo
Eu sou problema de montão
de carnaval a carnaval
Eu vim da selva, sou leão
sou demais pro seu quintal
Problema com escola eu tenho mil, mil fita
Inacreditável, mas seu filho me imita
No meio de vocês ele é o mais esperto,
Ginga e fala gíria. Gíria não, dialeto
Esse não é mais seu, hó, subiu
Entrei pelo seu rádio, tomei, cê nem viu
Nós é isso, aquilo. Quê? Cê não dizia
Seu filho quer ser preto, rá, que ironia
Cola o pôster do Two-Pac aí
Que tal? Que cê diz?
Sente o negro drama
Vai, tenta ser feliz
Hey, bacana
Quem te fez tão bom assim
O que cê deu, o que cê faz
O que cê fez por mim
Eu recebi seu Tik, quer dizer Kit
De esgoto a céu aberto e parede madeirite
De vergonha eu não morri
Tô firmão, eis-me aqui
Você não, você não passa
Quando o Mar Vermelho abrir
Eu sou o Mano
Homem duro do gueto, Brown, Obá
Aquele loko que não pode errar
Aquele que você odeia amar nesse instante
Pele parda e ouço funk
E de onde vem os diamante?
Da lama
Valeu, mãe
Negro drama
Aí, na época dos barraco de pau lá na pedreira
onde vocês tavam?
o que vocês deram por mim ?
o que vocês fizeram por mim ?
agora tá de olho no dinheiro que eu ganho
agora tá de olho no carro que eu dirijo
demorou, eu quero é mais
eu quero é ter sua alma
aí, o rap fez eu ser o que sou
Ice blue, Edy rock e KL Jay, e toda a família
e toda geração que faz o rap
a geração que revolucionou
a geração que vai revolucionar
anos 90, século 21é desse jeito
aí, você saí do gueto
mas o gueto nunca saí de você, morou, Irmão
você tá dirigindo um carro
o mundo todo tá de olho em você, morou
sabe por quê?
pela sua origem, morou Irmão
é desse jeito que você vive
é o negro drama
eu não li, eu não assisti
eu vivo o negro drama, eu sou o negro drama
eu sou o fruto do negro drama
aí dona Ana, sem palavra, a senhora é uma rainha, rainha
mas aí, se tiver que voltar pra favela
eu vou voltar de cabeça erguida
porque assim que é
renascendo das cinzas
firme e forte, guerreiro de fé
Vagabundo nato.
* Jorge Nascimento formou-se em Letras pela UFRJ, onde cursou graduação, mestrado e doutorado em Língua Espanhola e Literaturas Hispânicas. Desde 1993 é professor da Universidade Federal do Espírito Santo, atuando na graduação e no mestrado em Estudos Literários, desenvolvendo pesquisas sobre literatura hispano-americana e brasileira. Atualmente pesquisa o RAP dos Racionais MC`s e Literatura Marginal.
Contato: jorgelizn@gmail.com

 

 

1 Entre o pessoal do RAP, o termo função é utilizado como trabalho, atividade, “correria”.

2 SANSONE, Lívio. Negritude sem etnicidade: o local e o global nas relações raciais e na produção cultural negra no Brasil. Salvador: EdUFBA, São Paulo: Pallas, 2003. (p.12)

3 SODRÉ, Muniz. Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999. (p. 22)

4 PEDREIRA, Fernando. In: Jornal do Brasil 12/05/93.

5 Fantasmas primitivos e superstições cibernéticas. Editorial de O Estado de S. Paulo, 17/08/86.

6 O “Estado” contra Tião Macalé. Folha de S. Paulo, 05-09-93.

7 Entrevista concedida a Alexandre Medeiros e Tim Lopes. Jornal O Dia, 31-01-94.

8 Cit. In: PARANHOS, A. Os desafinados do samba na cadência do Estado Novo. Revista Nossa História. Ano 1, n.4, fev., 2004. (p. 21)

9 Formado em 1990, por Mano Brown, Edy Rock, Ice Blue e KL Jay, o grupo Racionais Mc’s destacou-se na coletânea “Consciência Black”, lançada pela gravadora Zimbabwe Records, com os sucessos: “Pânico na Zona Sul” e “Tempos Difíceis”. Em 1992, lançaram seu primeiro LP “Holocausto Urbano” que vendeu cerca de 50 mil cópias. Nos anos 90 e 91 trabalharam com shows por toda a capital e interior, receberam o Prêmio de Melhor Grupo de RAP do Ano e participaram da abertura do Show do Public Enemy no Ginásio do Ibirapuera. Em 1992 deram um importante passo, e fizeram shows na Febem e deram palestras para alunos nas escolas públicas. Em 1993, foram a atração no Teatro das Nações, com o projeto Música Negra em Ação. O sucesso total veio com o CD “Raio X do Brasil”. Conquistaram o maior Prêmio da Música Popular Brasileira o “Prêmio Sharp”, Mano Brown ganhou como compositor revelação com a música “Homem na Estrada”. No final de 1997, com seu próprio selo (Cosa Nostra), lançaram o CD “Sobrevivendo no Inferno”, que vendeu mais de 500mil cópias, sem contar os CDS piratas. No ano de 1998, lançaram dois videoclips “Diário de um Detento” e “Mágico de Oz”. Em agosto do mesmo ano foram os vencedores do Vídeo Music Brasil, promovido pela MTV, recebendo os prêmios “Melhor Grupo de Rap” e “Escolha da Audiência”. Em 2003 lançaram o CD “Nada como um dia depois de outro dia”. (Fonte:http:// www.capao.com.br)

10 É melhor não aparecer nestes programas que tiram sarro dos grupos. Não iríamos vender nosso som para estes caras. Não somos produto, somos artistas. (Edy Rock, Racionais, Jornal da Tarde, 4/8/98).

11 Os gregos, que tinham bastante conhecimento de recursos visuais, criaram o termo estigma parar se referirem a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava. Os sinais eram feitos com cortes ou fogo e avisavam que o portador era um escravo, um criminoso ou traidor – uma pessoa marcada, ritualmente poluída, que devia ser evitada, especialmente em lugares públicos. (GOFFMAN, I. Estigma. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1975. p. 11).

12 (Revista Isto É, 21 de outubro de 98).

13 SCHUSTERMAN, Richard. Vivendo a arte: o pensamento pragmatista e a estética popular. São Paulo: Editora 34, 1998. Trad. Gisela Domschke. (pp. 164-165)

14 SCHUSTERMAN, Richard. Estética rap: violência e a arte de ficar na real. In: DARBY, Derrick; SHELBY, Tommie. Hip Hop e a filosofia. São Paulo: Madras, 2006. Trad. Martha Malvezzi Leal. (pp. 68-69)

15 TATIT, Luiz. O século da canção. Cotia: Ateliê, 2004. (p. 243)

16 A canção, o rap, Tom e Cuba, segundo Chico. Jornal Folha de S. Paulo, 26/12/04. Disponível em:http://www.chicobuarque.com.br/texto/entrevistas/entre_fsp_261204c.htm
Idem (p. 160).
Cf. Griots, cantadores e rappers: do fundamento do verbo às performances da palavra. In: DUARTE, Zileide (org.). Áfricas de África. Recife: Programa de Pós-graduação em Letras / UFPE, 2005. (p. 11-12)

17 Idem (p.13)

18 O gueto norte-americano, o único que veio à luz do outro lado do Atlântico – os brancos de diversas origens, inclusive judeus, conheceram apenas bairros étnicos, de recrutamento essencialmente voluntário e heterogêneo, e que, mesmo miseráveis, sempre permaneceram abertos para o exterior por meio de pequenos canais de comunicação com uma sociedade branca norte-americana compósita -, representa a realização hiperbólica dessa lógica de dominação etnorracial imposta por um poder exterior. Nascido nas primeiras décadas do século passado sob o impulso das grandes migrações de negros dos estados do Sul, descendentes de escravos libertos. (WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto. São Paulo: Boitempo, 2008. Trad. Paulo César Castanheira. p. 18)

19 OTTMANN, Goetz. Entre a fluidez e a unidade: o que é local no Hip-Hop brasileiro. Disponível em http://www.imaginario.com.br/artigo/a0061_a0090/a0085.shtml

20 KELLNER, Douglas. A voz negra: de Spike Lee ao rap. In: —. Cultura e mídia. São Paulo: EDUSC, 2001. Trad. Ivone C. Benedetti. (p. 232)

21 Macarrão, 33 anos, apontador do jogo do bicho, duas filhas, morador do morro do Zinco e torcedor do Fluminense. Toghum, 32 anos, vendedor de produtos esotéricos, budista e morador de Cavalcante. Combatente, 21 anos, moradora de Vigário Geral, frequentadora da Igreja do Santo Daime e operadora de telemarketing. Durante 9 meses, entre 2002 e 2003, uma equipe filmou o dia-a-dia destes três cariocas da Zona Norte, que batalham e sonham em fazer da sua música, o RAP, o seu ganha-pão. O resultado é uma crônica composta pelo cotidiano, letras e dramas deste três personagens. (Sinopse do filme disponível em: http://adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes/fala-tu/fala-tu.htm)

22 Podemos pensar no padre Bartolomé de las Casas, citado por Borges, que afirmava que era um pecado escravizar índios, já que havia negros que serviriam melhor a tal prática.

23 Este artigo está publicado em Proposta – Revista Trimestral de Debate da FASE, Ano 30. 90: 66-83. Disponível emhttp://www.redemulher.org.br/generoweb/rnovaes.htm

24 Um quarto elemento é considerado pelos militantes do movimento é a Consciência.

25 Cit. In: SANTA CRUZ GAMARRA, D. El negro en iberoamérica. CUADERNOS HISPANOAMERICANOS. Madrid: n. 451-452., jul.-oct., 1988.

26 MATTA, Roberto da. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 1990.

27 Podemos pensar no padre Bartolomé de las Casas, citado por Borges, que afirmava que era um pecado escravizar índios, já que havia negros que serviriam melhor a tal prática.

28 Cesare Lombroso foi um professor universitário e criminologista italiano, nascido a 6 de novembro de 1835, em Verona. Tornou-se mundialmente famoso por seus estudos e teorias no campo da caracterologia, ou a relação entre características físicas e mentais. Lombroso tentou relacionar certas características físicas, tais como o tamanho da mandíbula, à psicopatologia criminal, ou a tendência inata de indivíduos sociopatas e com comportamento criminal. Assim, a abordagem de Lombroso é descendente direta da frenologia, criada pelo físico alemão Franz Joseph Gall no começo do século XIX e estreitamente relacionada a outros campos da caracterologia e fisiognomia (estudo das propriedades mentais a partir da fisionomia do indivíduo). Sua teoria foi cientificamente desacreditada, mas Lombroso tinha em mente chamar a atenção para a importância de estudos científicos da mente criminosa, um campo que se tornou conhecido como antropologia criminal. A principal idéia de Lombroso foi parcialmente inspirada pelos estudos genéticos e evolutivos no final do século XIX, e propõe que certos criminosos têm evidências físicas de um “atavismo” (reaparição de características que foram apresentadas somente em ascendentes distantes) de tipo hereditário, reminiscente de estágios mais primitivos da evolução humana. Estas anomalias, denominadas de estigmas por Lombroso, poderiam ser expressadas em termos de formas anormais ou dimensões do crânio e mandíbula, assimetrias na face, etc, mas também de outras partes do corpo. Posteriormente, estas associações foram consideradas altamente inconsistentes ou completamente inexistentes, e as teorias baseadas na causa ambiental da criminalidade se tornaram dominantes. (Disponível em: http://www.cerebromente.org.br)

29 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. (p. 62-63)

30 Ser negro no Brasil hoje. Disponível em:http://www.ige.unicamp.br/~lmelgaco/santos.htm

31 Idem p. 44.

32 MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2004 (p.137).

33 O rap entrou no Brasil repertório da mídia nacional hoje, ou em 1998 pelo menos, depois de dez anos de presença na periferia. (…) O gosto dos playboys pelo rap dos Racionais, seu consumo tolerante de discursos antagônicos a seus interesses e a conseqüente integração do rap à cultura de massa hegemônica seria a atitude de quem se encontra em posição de superioridade hierárquica. (…) Enquanto os Racionais MCs fazem poesia a partir de sua percepção do racismo branco e da resistência negra, colocam em cena e – mais importante – em música, a onipresença muda no Brasil da opressão e da violência. A popularidade repentina do rap brasileiro, sua participação na cultura hegemônica brasileira, talvez seja a evidência de uma nova elaboração da autoconsciência brasileira. Essa reelaboração enfatiza o fato de que a segurança física está ao alcance de poucos, e a guerra civil de baixa intensidade entre os “excluídos” e as autoridades, envolvendo traficantes de drogas e a polícia, é parte permanente do cenário contemporâneo. Junto com a cordialidade que parece imperar nas relações entre grupos díspares e antagônicos e que permite que a classe média afirme carinhosamente “nóis sofre, mas nóis goza”, outros valores sociais regem o cotidianos. O consumo branco do rap implica, portanto, uma nova apreensão das relações sociorraciais. Em suma, esse consumo é uma forma de afirmar a violência das relações sociais; siginifica identificar-se com uma espécie de música de protesto. Música de protesto nos lembra os anos 60 e aí podemos afirmar (…) que o consumo do rap pela classe média branca talvez seja um substituto para a ação. Mas Francisco Carlos Teixeira (…) disse que cantar uma música de protesto em circunstâncias de perseguição policial pode, sim, ser ação política. Os rappers, cujos primeiros shows na periferia sofriam de repressão policial, certamente sabem do que ele estava falando. (SOVIK, Liv. What a wonderful world: música popular, identificações, política anti-racista. In: RAMOS, Sílvia (org.). Mídia e racismo. Rio de Janeiro: Pallas, 2002. p. 103-104)

34 Utilizamos o termo gueto, pois acreditamos que as favelas brasileiras se relacionam com a seguinte definição. Gueto é uma forma urbana específica que conjuga os quatro elementos do racismo repertoriados por Michel Wierviorka – preconceito, violência, segregação e discriminação. (WACQUANT, p. 18)

35 PAIXÃO, Marcelo J. P. Desenvolvimento humano e relações sociais. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. (p.80)

36 KEHL. M. R. Quem tem moral com os adolescentes? (Duas hipóteses sobre a crise na educação no século XXI). Texto apresentado no IV Colóquio do Laboratório de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas e Educacionais/LEPSI- USP. Oct. 2002. Disponível em: http://www.proceedings.scielo.br/

37 Um bairro rico da cidade de São Paulo.