Washington Dias Lessa, ESDI/UERJ
Jeanine Geammal, UFC
Este texto busca investigar a marca de vestuário feminino Daspu, criada no Rio de Janeiro em 2005. O tema se vincula ao marketing, ao branding e ao design – área em que foi realizada esta pesquisa –, podendo ser desenvolvido segundo os referenciais analíticos respectivos. Dadas, porém, as particularidades do surgimento e difusão da marca, optou-se por trabalhar com o conceito palavra de ordem, proposto por Deleuze e Guattari, buscando trazer uma inteligibilidade diferente à produção de sentido e aos relacionamentos com a mídia e com o mercado que caracterizaram o processo Daspu.
1. O surgimento da marca Daspu
A Daspu é uma marca do setor de moda e vestuários que pertence à ONG Davida. Esta ONG foi criada no Rio de Janeiro em 1992 por Gabriela Leite, e está voltada para questões ligadas à cidadania das prostitutas e para iniciativas visando a organização da categoria. Integra a Rede Brasileira de Prostitutas que tem a missão de articular politicamente o movimento de defesa e promoção dos direitos dessas profissionais. Segundo a Rede, “a prostituição é uma profissão, desde que exercida por maiores de 18 anos”1. A Davida manifesta seu repúdio à vitimização das prostitutas, e anuncia o combate à discriminação, ao preconceito e ao estigma. E, sobretudo, não preconiza o abandono da prostituição. Ao contrário, defende o direito das prostitutas prestarem serviços sexuais, afirmando que devem assumir sua profissão em vez de envergonharem-se dela.
Em 2005 é lançada pela Davida a marca de uma confecção, a Daspu, que tornou-se conhecida nacionalmente a partir de uma polêmica com a Daslu, loja multimarcas de luxo sediada em São Paulo.
O nome Daspu havia sido criado como uma brincadeira em 15 de julho de 2005, durante a comemoração, na sede da Davida, dos 13 anos de fundação da ONG. Dois dias antes, Eliana Tranchesi, uma das sócias da Daslu, fora presa pela Polícia Federal acusada de sonegação de impostos, e o acontecimento havia sido amplamente coberto pela imprensa. Foi com base nessa referência que, em meio a uma conversa sobre a ideia da ONG montar uma confecção visando arrecadar fundos para o movimento, Sylvio de Oliveira sugere, com bom humor, o nome Daspu (Lenz, 2008: 34). Mas nada foi feito para implementar a ideia.
Primeiro desfile, 16 dez. 2005, na Rua Imperatriz Leopoldina, Rio de Janeiro. Fotos de Marcos Silva |
Em 20 de novembro de 2005 o nome aparece publicamente pela primeira vez, mencionado em nota na coluna de Elio Gaspari, do jornal O Globo (Gaspari, 2005: 16). No entanto nem Gabriela Leite nem Flavio Lenz, assessor de imprensa da ONG, tiveram qualquer participação na publicação desta primeira notícia sobre a marca. Segundo hipótese de Lenz, a informação teria chegado ao jornalista por intermédio de alguém que, em algum bar nas imediações da sede ONG, na região da praça Tiradentes, centro do Rio de Janeiro, teria ouvido uma conversa de seus integrantes, sempre em tom de brincadeira, sobre o assunto (Lenz, 2008: 45-46).
Logo depois desse aparecimento na mídia, a Daslu ameaça processar a Davida alegando tentativa de denegrir sua imagem, o que dá a Flavio Lenz e Gabriela Leite a oportunidade de tornar a Daspu assunto de manchete 2. E as matérias jornalísticas sobre o confronto Daslu X Daspu, evidenciam uma adesão da imprensa à iniciativa das prostitutas. Um pouco depois a Daslu retira o pedido de processo.
Após o lançamento involuntário do nome, o sucesso repentino naturalmente impõe a criação efetiva da confecção. A opção inicial foi a de divulgar a causa política da Davida através de camisetas com frases provocativas. Com a repercussão e o apoio recebido da mídia e do público a partir da polêmica com a Daslu, surge a ideia de uma estruturação empresarial mais complexa, prevendo coleções, desfiles, venda de outros tipos de roupas etc. E esta ideia era mais afinada com o discurso da Davida. Uma simples confecção estaria associada a mulheres que necessitam de ganho econômico e produzem e vendem roupas para atingir esse objetivo. Uma empresa de moda, por outro lado, deve envolver atitude e ditar comportamento, conforme categorias correntes no meio da moda. Assim como envolve expectativas de reforço financeiro, não apenas a partir de vendas estritas, mas compreende essas vendas também como resultado do desempenho da marca como imagem.
Durante sua trajetória visando consolidar-se no mercado da moda, a Daspu, desde seu lançamento em 2005 até 2009, apresentou sete coleções. Em ordem cronológica e associadas a seus criadores são elas: Batalha, criada pelos próprios integrantes da Davida; Daspu na Pista BR-69, concebida pela estilista Rafaela Monteiro; Puta Arte, com criação do designer Sylvio de Oliveira; Copa Sacana, por Franklin Melo; As cruzadas: a batalha entre o botão e a espada, criada pelo grupo Profissionais do Ramo – Movimento Puta Life Style, formado por ex-alunos e alunos da Unversidade FUMEC Fundação Mineira de Educação e Cultura (Alzira Calhau, Ana Luisa Santos, Bruno Oliveira, Luisa Luz, Maíra Sette, Marília Tavares, Natália Assis, Rafael Boneco, Rangel Malta); e Da farofa ao caviar, concebida pelo mesmo grupo da coleção anterior.
Por sua facilidade de produção e sua adequação às necessidades de propagação do discurso da Davida, as camisetas, caracterizadas com o mesmo humor presente na criação do nome Daspu, tornam-se um produto emblemático. Trazem mensagens irônicas e bem-humoradas sobre cidadania, liberdade, sexualidade e prevenção de DST e AIDS. “Somos más, podemos ser piores”, “PU Davida”, “Moda pra mudar” e “Antes do show, afine o instrumento” – são algumas dessas frases que aparecem adornadas por imagens de preservativos, de mulheres ou casais. Concebidas dessa forma por Sylvio de Oliveira, são transformadas nos verdadeiros trajes de batalha da ONG e recebem o aval da mídia especializada, confirmado por sua aparição na seção “Fetiche” do jornal O Globo sobre a legenda: “Daspu. Aí está a camiseta mais Cult do momento” (O Globo, 2006: 1).
A camiseta Beijo aparece na edição de 14 jan. 2006 do jornal O Globo, na seção Fetiche, dentro do caderno Ela Fashion, como a mais cult do momento. Foto de Luciana Whitaker. |
Apesar do amadorismo apresentado pela Davida na fase inicial do desenvolvimento de produtos, consolida-se o protagonismo dos responsáveis pela administração da marca. No que tange à formação e projeção de sua imagem, a inexperiência com o negócio moda e, por outro lado, a experiência no trato com a imprensa3 , acrescida da premência da causa política, conduziram o processo de projeção pública desse empreendimento nascente para o uso do espetacular, do que dá notícia. Mas, complementarmente, também é buscada uma estruturação mais profissional, assim como foram buscados subsídios quanto à administração e gerenciamento.
2. Em busca da especificidade Daspu: uma opção de método
A área de criação e gestão de marcas integra de modo tendencialmente diferenciado os campos do design, do branding e do marketing, e atualiza-se segundo as várias possibilidades de agenciamentos entre essas especializações, e delas com as propostas de criação de marcas que ganham existência concreta no mercado.
O conhecimento elaborado/sistematizado pela área constitui um conjunto heterogêneo que abarca de análises e sistematizações, validadas pela experiência profissional em projeto e consultoria, a elaborações mais especificamente teóricas, tanto abordando a estruturação do mercado quanto metodologias para o desenvolvimento de projetos.
Uma análise que considerasse o caso Daspu estritamente segundo essas referências, identificando/julgando protocolos e tipos de intervenções consagradas pelos padrões de excelência técnico-profissional, tenderia a não dar conta da riqueza do processo, já que o surgimento e difusão da marca Daspu apresenta algumas especificidades particulares.
Temos, inicialmente, o modo como surge a Daspu. Uma marca existe associada a produtos ou serviços, mas ganha consistência com base não apenas na qualidade desses produtos ou serviços. Na medida em que existe um espaço público de comunicação, dado tanto pela existência de diferentes configurações midiáticas (mídia impressa, a web, espaço urbano etc) quanto pelas atividades que as articulam (jornalismo, propaganda, marketing, design etc), a projeção da marca neste espaço de aparecimento possui uma autonomia em relação à sua associação direta ao produto ou serviço respectivo.
O que sobressai no surgimento da Daspu é a forma como subverte a ordem natural sugerida pelos ensinamentos do branding para a criação de uma marca de sucesso: “posicionamento, nome e identidade gráfica” (Martins, 2006, p.80-81). Seu aparecimento na mídia antecede não só a estruturação do negócio, que no momento não passava de uma conjectura, assim como qualquer estudo de posicionamento mercadológico e registro da marca. Graças à ação da imprensa ela se projeta como imagem antes de existir o empreendimento que ela deveria representar, criando condições propícias para a sua concretização.
Uma outra característica diz respeito à associação da Daspu ao universo dos movimentos sociais. Como a ideia surge de um grupo de prostitutas que trabalha pelos direitos civis de sua profissão, a marca vincula-se às searas política, social, cultural etc. E esta dimensão vai caracterizar fortemente o seu DNA.
Um outro aspecto, dado pelo contexto em que a marca é proposta, diz respeito a eventuais fragilidades dos encaminhamentos propriamente empresariais. Mas se de acordo com parâmetros técnico-profissionais estritos esta constatação até pode levar a uma avaliação negativa, por outro lado não pode ser ignorado o vigoroso senso de oportunidade da Davida visando o crescimento da Daspu: ele se manifesta tanto na busca do fortalecimento da imagem da marca que começa a se construir, quanto nas providências visando a estruturação do negócio que deve embasar a marca em termos produtivos.
Daspu na GNT
Tendo em vista a intenção de investigar o processo de surgimento e difusão da marca Daspu, deparamo-nos, assim, com as limitações que um referencial analítico técnico-profissional, da área de criação e gestão de marcas, poderia apresentar para a recuperação da especificidade Daspu como feixe de experiências sociais. Sem invalidar ou desqualificar as análises realizadas segundo este referencial, optou-se por uma “conformidade analítica”, relativizando a competência técnico-profissional como parâmetro de avaliação e buscando destacar a riqueza da experiência social presente no processo. Para isso recorreu-se ao conceito palavra de ordem, proposto por Deleuze e Guattari em Mil Platôs, na seção Postulados da Lingüística, conceito que se refere à presença de uma pragmática na estrutura mesma da língua, possibilitando a transformação da realidade pelo discurso. Pesou nessa decisão: o fato de que o processo Daspu se construiu com base no caráter nominativo da marca; a importância assumida pelos slogans veiculados nas camisetas; e o fato da projeção pública da marca ter se dado pela ação da imprensa, na qual se destaca o discurso verbal.
Página do jornal Extra com matéria sobre a Daspu, publicada em 14 jan. 2006.
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Foi tomado como corpus da investigação o clipping referente à Daspu arquivado pela Davida. Sucedem-se nesse espaço configurado pela mídia: versões e fatos fortuitos ou planejados, personas e personagens diretos e indiretos – tais como jornalistas, a direção da Davida, profissionais de moda e de imagem pública etc –, iniciativas da Davida perseguindo profissionalismo e visando adquirir estrutura e ritmo minimamente empresariais etc. A partir da compreensão da enunciação Daspu como palavra de ordem, buscou-se a caracterização dos agentes, das circunstâncias da enunciação e dos desdobramentos do processo de nascimento e crescimento da marca.
3. A palavra de ordem, conceituada por Deleuze e Guattari, e a enunciação Daspu
Para chegar ao conceito palavra de ordem, Deleuze e Guattari partem da crítica ao caráter formal e fechado da língua, tal como esta categoria é proposta por Saussure, e trabalham: a) com o conceito ato de fala ou ato ilocutório proposto por J. L. Austin e desenvolvido por John Searle no âmbito da filosofia da linguagem ordinária; c) com a compreensão, segundo a filosofia estoica, de que num campo social existem os corpos e as modificações corpóreas 4 , e por outro lado os atos incorpóreos levando a transformações incorpóreas que são atribuídas aos corpos – caracterizando-se neste processo “uma independência entre as ações e paixões dos corpos, e os atos incorpóreos” (Deleuze, Guattari, 1995: 26). Vejamos como esses conceitos se constroem.
A conceituação de ato ilocutório pressupõe que tanto a função representativa quanto a função comunicativa da linguagem são apenas condições para a realização de sua pragmática, pois quando faço uma enunciação eu atuo sobre a realidade. Dizer “prometo” não é descrever uma promessa ou apenas comunicá-la, mas fazer uma promessa; assim como ao dizer “eu juro” eu estou jurando, ou estou ordenando quando emprego o imperativo. Mas as atuações sobre a realidade não se resumiriam a esses atos performativos explícitos. Por exemplo, em última instância todas as enunciações envolvem um modo ou um tom de voz, e ao enunciar em tom peremptório que “a terra é redonda”, um sujeito pode estar se posicionando e influindo pragmaticamente no curso de algum acontecimento.
O ato ilocutório impõe uma compreensão da linguagem que se diferencia do modelo linguístico saussureano, pois ultrapassa a compreensão do enunciado com base em sua dimensão significante (que define a esfera da significância/informação, remetendo ao caráter representativo da linguagem), assim como a compreensão da enunciação com base na sua relação com um sujeito (que define a esfera da subjetivação/comunicação, remetendo ao caráter comunicativo da linguagem).
Enquanto a lingüística se atém a constantes – fonológicas, morfológicas ou sintáticas – relaciona o enunciado a um significante e a enunciação a um sujeito, (…) remete as circunstâncias ao exterior, fecha a língua sobre si e faz da pragmática um resíduo. (…) Como diz Bakhtine, enquanto a lingüística extrai constantes, permanece incapaz de nos fazer compreender como uma palavra forma uma enunciação completa; é necessário um “elemento suplementar que permanece incessível a todas as categorias ou determinações lingüísticas” (Deleuze, Guattari, 1995: 21)
Na caracterização da palavra de ordem, este efeito próprio do ato ilocutório é complementado pela concepção estoica de que há uma independência entre corpos de uma sociedade – associados por Deleuze e Guattari, com base no universo linguístico, a um plano de conteúdos – e os enunciados a respeito desses corpos – associados a um plano de expressos. Os enunciados promovem transformações incorpóreas nos corpos, sendo essas transformações distintas das ações e paixões que afetam os corpos (Deleuze, Guattari, 1995: 18). As palavras de ordem são
não uma categoria particular de enunciados explícitos (por exemplo, no imperativo), mas a relação de qualquer palavra ou de qualquer enunciado com pressupostos implícitos, ou seja, com atos de fala que se realizam no enunciado, e que podem se realizar apenas nele. (…) [E diferentemente da concepção lingüística tradicional] a linguagem só pode ser definida pelo conjunto das palavras de ordem, pressupostos implícitos ou atos de fala que percorrem uma língua em um dado momento. (Deleuze, Guattari, 1995: 16)
Se os atributos não-corpóreos são ditos acerca dos corpos, se podemos distinguir o expresso incorpóreo “avermelhar” e a qualidade corpórea “vermelho” (…), é então por uma razão bem diferente do que a da representação. Não se pode nem mesmo dizer que o corpo, ou o estado das coisas, seja o “referente” do signo. Expressando o atributo não-corpóreo, e simultaneamente atribuindo-o ao corpo, não representamos, não referimos, intervimos de algum modo, e isto é um ato de linguagem. A independência das duas formas, a de expressão e a de conteúdo, não é contradita, mas ao contrário confirmada, pelo fato de que as expressões ou os expressos vão se inserir nos conteúdos, intervir nos conteúdos, não para representá-los, mas para antecipá-los, retrocedê-los, retardá-los ou precipitá-los, destacá-los ou reuni-los, recortá-los de um outro modo. (Deleuze, Guattari, 1995: 27)
Buscando esclarecer este regime de independência entre corpos e enunciados, entre o âmbito da “lição das coisas” e o âmbito da “lição dos signos” (Deleuze, Guattari, 1995: 26), os autores referem-se à introdução que Oswald Ducrot fez para a edição francesa de Speech Acts, de Searle:
Quando Ducrot se pergunta em que consiste um ato, ele chega, precisamente, ao agenciamento jurídico, e dá como exemplo a sentença do magistrado, que transforma o acusado em condenado. Na verdade o que se passa antes – o crime pelo qual se acusa alguém – e o que se passa depois – a execução da pena do condenado – são ações-paixões afetando os corpos (corpo da propriedade, corpo da vitima, corpo do condenado, corpo da prisão). (Deleuze, Guattari, 1995: 18)
A palavra de ordem coloca-se como condição necessariamente social da linguagem, e por isso, diferentemente das sistematizações fonológica, semântica, sintática da língua, possui um caráter não necessário e não pré-determinado, e ao mesmo tempo interventivo/transformador:
Os corpos têm uma idade, uma maturação, um envelhecimento; mas a maioridade, a aposentadoria, determinada categoria de idade, são transformações incorpóreas que se atribuem imediatamente aos corpos, nessa ou naquela sociedade. “Você não é mais uma criança…”: esse enunciado diz respeito a uma transformação incorpórea, mesmo que esta se refira aos corpos e se insira em suas ações e paixões. A transformação incorpórea é reconhecida por sua instantaneidade, por sua imediatidade, pela simultaneidade do enunciado que a exprime e do efeito que ela produz; eis porque as palavras de ordem são estritamente datadas, hora, minuto e segundo, e valem tão logo datadas. (Deleuze, Guattari, 1995: 19)
Porém é importante salientar que a palavra de ordem não funciona com base apenas no exercício da vontade, desvinculado das circunstâncias em que a enunciação se dá. O que possibilita, ou não, a efetividade da palavra de ordem são essas circunstâncias.
[Benveniste] mostra que um enunciado performativo não é nada fora das circunstâncias que o tornam o que é. Alguém pode gritar “decreto de mobilização geral”; esta será uma ação de infantilidade ou de demência, e não um ato de enunciação, se não existir uma variável efetuada que dê o direito de enunciar. O mesmo é verdade em relação a “eu te amo”, que não possui sentido, nem sujeito nem destinatário, fora das circunstâncias que não se contentam em torná-lo crível, mas fazem dele um verdadeiro agenciamento, um marcador de poder, mesmo no caso de um amor infeliz (Deleuze, Guattari, 1995: 20-21)
A enunciação Daspu como palavra de ordem articula-se conjugando dois momentos. A data-referência principal é o dia 20 de novembro de 2005, quando Elio Gaspari publica a nota n’ O Globo. É a partir desse momento que a Davida assume a exposição pública e a repercussão positiva, que vai transformar um projeto de confecção em um processo de construção de uma empresa de moda, assim como vai potencializar a imagem da própria Davida. Mas também se coloca a data de 15 de julho de 2005, quando o nome é criado, pois é a especificidade do nome que dá a sua consistência como palavra de ordem, apesar dessa só se efetivar em 20 de novembro depois de ter seu potencial transformador reconhecido/assumido pela Davida. Se não fosse a referência à Daslu, talvez a nota não tivesse sido publicada; mas se não fosse a ironia e o bom humor, uma “brincadeira carioca” nas palavras de seu criador, Sylvio de Oliveira, talvez a repercussão não tivesse sido tão grande.
Fotos do desfile da Daspu na Rua Augusta divulgadas pelo jornal O Estado de São Paulo, 12 abr. 2006.
De qualquer modo o nome Daspu é coerente com a visão positiva e não moralista que caracteriza a ONG. A chave de leitura do nome Davida, por exemplo, refere-se a um eufemismo para puta – mulher da vida –, mas também à positividade da afirmação Da Vida. E o nome Daspu, ao se apresentar como uma marca Das Putas – homologamente ao nome Daslu, motivado pelos prenomes Lúcia e Lourdes de suas duas fundadoras –, brinca com o estereótipo da mulher obrigada a se prostituir para sobreviver em contraposição ao consumo de luxo da cliente Daslu. Assim como alude ao fato de que o mundo Daslu é eventualmente também atravessado pela relação entre sexo e dinheiro.
Foto do desfile da Daspu na Rua Augusta divulgadas pela Folha de São Paulo, 12 abr. 2006. Foto de João Sal
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A menção satírica à Daslu, associada à autoironia de relacionar prostitutas da Praça Tiradentes, no centro do Rio de Janeiro, à boutique mais luxuosa do país, dão ao humor Daspu um certo tom de ”escracho”. Grande parte do sucesso pode ser tributado a esta irreverência, que também se faz presente nas frases das camisetas. Sua carioquice conquistou cariocas e não cariocas, pois a proposta tinha potencial para apresentar-se culturalmente como fetiche. Assim como aconteceu com as camisetas: tornaram-se, imediatamente, objetos de desejo.
No entanto devem ser assinaladas as circunstâncias que tornam possível a palavra de ordem, assim como as transformações na ONG e no empreendimento Daspu que se seguem às suas reverberações.
Devem ser assinaladas quais as circunstâncias que efetivam a Daspu como palavra de ordem, vale dizer os modos como essas circunstâncias vão sendo dispostas, no momento inaugural e ao longo do processo daí decorrente, por corpos (lição das coisas) e enunciados (lição dos signos) conectados ou conectáveis ao evento. E de como as pressuposições recíprocas entre as ações e paixões desses corpos e as transformações incorpóreas expressas por esses enunciados dialogam com as circunstâncias que sustentam a palavra de ordem. Conforme já indicado, os expressos podem “se inserir nos conteúdos, intervir nos conteúdos, não para representá-los, mas para antecipá-los, retrocedê-los, retardá-los ou precipitá-los, destacá-los ou reuni-los, recortá-los de um outro modo.” (Deleuze, Guattari, 1995: 27)
No cenário da enunciação Daspu destacam-se entre a heterogeneidade dos corpos e agentes dos enunciados: prostituição, moda, jornalismo, público leitor, comunicação, marketing, design, empreendedorismo, sociedade brasileira, arte, sociedade do espetáculo, movimentos sociais, política, bom humor e crítica, discurso antropológico, moralismo, ética, “consistência cidadã”, criação, transgressão etc. Neste sentido delineiam-se agenciamentos fragmentadamente coletivos e processuais.
Daspu nos bastidores de “Caminho das Índias” |
A partir da análise do clipping pesquisado, e tendo em vista os corpos e os enunciados em jogo, pode-se compreender as circunstâncias que fundamentam a enunciação Daspu na particularidade de quatro confluências: a) a confluência entre a lógica da imprensa, o escândalo Daslu, e o surgimento da Daspu; b) a confluência entre a Davida como proposta e organização, e sua experiência com a mídia; c) a confluência entre a lógica da moda, a cobertura jornalística da moda, e o caráter transgressivo associado à Davida/Daspu; d) a confluência entre o apoio de artistas e intelectuais, e o trabalho voluntário de profissionais de moda e de imagem pública.
Independentemente dos aspectos técnicos e éticos que caracterizam as diretrizes explícitas de produção/edição de um meio de comunicação – tais como a fidedignidade, a abrangência e a isenção da informação veiculada –, coloca-se a diretriz pragmática de motivar o leitor. Isto envolve a articulação das várias possibilidades de formatação da informação jornalística, assim como o tratamento cativante dos fatos que a reportagem e a edição constroem. A eficácia dessa estratégia fortalece o prestígio e o cacife empresarial do veículo, e é isto o que se busca expressar na a fórmula-síntese “notícia vende jornal”.
No caso Daspu colocam-se como pano de fundo desta articulação pragmática: a) a diretriz ética de defesa da sociedade, pois a motivação da publicação da nota vem da existência de um processo contra a Daslu, e evoca tanto a necessidade de cumprimento das leis, quanto a impunidade das elites; b) a existência de um público leitor afetado pelas condições da economia e, por isso, receptivo à critica de desmandos legais; c) o caráter inusitado da associação entre uma confecção de prostitutas e a loja multimarcas de luxo, que se dá pela referência paródica e satírica do nome Daspu ao nome Daslu. O fato é imediatamente percebido em seu potencial de repercussão jornalística. E a sua publicação como nota numa coluna de opinião acentua ainda mais sua dimensão irônica.
No desdobramento da cobertura das ações da Davida, o tema da defesa da sociedade é alimentado pela notificação judicial da Daslu, e potencializado por comparações de fundo ético entre a Daslu e a Davida. Em alguns momentos, em colunas de opinião essa cobertura ganha um tom carregado de denúncia. Entretanto na quase absoluta maioria das vezes o assunto Daspu é reproduzido/caracterizado com o mesmo bom-humor presente na criação do nome. Pois apesar do caráter político e de critica social, a novidade apresentada pela Daspu é alegre e divertida, assim como o bloco carnavalesco dos Prazeres Davida, uma das iniciativas culturais da ONG.
O desdobramento da enunciação Daspu através da ação da imprensa coloca a Davida em evidência. E a consistência política e cultural da Davida dão substância à palavra de ordem, pois as referências éticas são reais. No momento de seu aparecimento público a Daspu podia ser só uma ideia, mas consegue tornar-se realidade, pois existe por trás da marca um grupo de prostitutas organizadas com um discurso e posição critica coerentes em relação à realidade da prostituição. Sylvio de Oliveira, referindo-se ao ineditismo da proposta da ONG, lembra que no primeiro desfile, por ocasião do Fashion Rio, havia, aproximadamente, trezentos jornalistas do mundo inteiro “naquela ruazinha estreita”, o que seria um acontecimento inédito no mundo. Nunca antes houvera tantos holofotes focalizando positivamente a prostituição. Sylvio conta que na Europa, onde há um trabalho consistente com prostituição,
existe uma mulher, que […] é como se fosse a Gabriela lá. Fazem coisas incríveis, mas nunca com essa preocupação que a Davida teve de fazer a população virar cúmplice das prostitutas.[…] O trabalho lá na Europa é muito interno, o político, o de prevenção a AIDS sim, mas é muito para o bem estar das putas apenas, não contando com a cumplicidade da população. (Oliveira, 2008: 58)
Mas além dessa retaguarda ética e política, as ações e posições da Davida subsequentes à publicação da nota de Gaspari estabeleceram um diálogo ativo com a cobertura jornalística, evidenciando a habilidade de Gabriela Leite e Flávio Lenz em capitalizar a imagem da marca. Eles souberam fomentar por um longo período o interesse da mídia na Daspu. Fala-se tanto da marca que esta chega integrar uma lista publicada n’ O Globo por Ancelmo Gois, em 26 de novembro de 2006, dos assuntos que “ninguém aguenta mais ouvir”, e isto um ano depois de ter sido anunciada por Gaspari! (Gois, 2006: 27). Ou seja, a partir do momento inesperado em que a marca foi divulgada pela primeira vez, todos os outros espaços na mídia foram bem aproveitados pela Davida. E muitos, de certo modo, articulados pelos seus dirigentes.
Famosas apóiam projeto social em “Caminho das Índias” Elke Maravilha, Susana Vieira, Betty Lago, Preta Gil e Priscila, vice-campeã do BBB9 falam sobre o trabalho da Daspu para o documentário da personagem Leinha. |
Neste sentido foi fundamental a experiência jornalística de Flávio Lenz, adquirida na atuação em jornais de grande circulação, no trabalho como assessor de imprensa da Davida desde 1992, e na publicação do jornal da ONG Beijo da Rua, em suas versões impressa e on line.
A recepção da Daspu pela moda desenha-se com base em algumas características valorizadas pelo meio. Destaca-se, inicialmente, o imperativo do novo. A moda, com sua natureza inquieta e desassossegada, é movida pela novidade. A esta deve-se a busca pelo diferente, do que não integra ainda o repertório do campo. O tédio associado ao que já foi seguidamente vivenciado abre espaço para o exógeno. E segundo um referencial antropológico destacam-se as tribos e as periferias, que oferecem um “viés diferencial perseguido, dialeticamente, pela estética globalizada” (Villaça, 2007: 59), proporcionando novas identidades possíveis. Através do ato de vestir uma camiseta, ou desfilar, ou se projetar em uma imagem fantasia, promove-se uma brincadeira de prostituta, ou de apoio às prostitutas. Relativamente ao seu processo de comunicação, a Daspu foi surpreendente nesse aspecto: foi criada uma marca viva, uma marca sujeito (Lipovetsky, 1989: 187) com a qual é fácil de se identificar.
Por outro lado, como a empatia do provável consumidor com a marca tende a se estabelecer segundo uma dimensão política, isto aponta para uma critica de relações e enquadramentos autoritários e moralistas. E essa condição também vem fortalecer a busca do novo, só que num outro registro. Caracteriza-se aí um outro aspecto valorizado pela moda, que é o rompimento com o passado, o gosto por desobedecer regras. E isto destaca a valorização, pela moda, do transgressivo, e de como a Daspu corresponde duplamente a esta expectativa.
Primeiramente coloca-se o discurso da prostituta autodeterminada, que é capaz de falar por si, defender seus direitos e atuar politicamente, rompendo com o silenciamento, com o não-discurso, da prostituta comum. Num outro nível coloca-se a crítica, no âmbito da defesa dos direitos civis, às posições assistencialistas que têm como objetivo “recuperar” as prostitutas, tirando-as “da vida”. Diferentemente a Davida defende a opção consciente de atuar na profissão, assim como o orgulho profissional. Essas posições têm um papel importante na recepção da marca pelos artistas, jornalistas e criadores, graças à valorização do transgressivo como veículo tanto do novo quanto da renovação social. Assim como o transgressivo também se associa à categoria de atitude, igualmente valorizada pela moda.
“Da farofa ao caviar” desfile da Daspu em BH 2009
E existe, finalmente, a consciência quanto aos recursos de exposição e aparecimento, presentes na prática da moda. A Daspu, desde seu lançamento, utiliza sobretudo um determinado modo de operação da moda: a valorização do sensacional (Carli, 2002: 114). Com a ajuda de artistas e cenógrafos tira proveito do show. Seus desfiles se referenciam na arte e transformam-se em instalações e performances. Embora não se abra mão de obter recursos através das vendas, a marca não se descuida da premissa e protocolos do desfile espetáculo. E isto até porque a produção não está bem equacionada. De qualquer maneira há plena consciência de que o aparecimento em si mesmo trabalha pela causa, e de que estar na mídia significa, ainda que de modo relativo, o direito a ter voz.
A imagem da marca projetada pela imprensa é fortalecida pela adesão e apoio de artistas, intelectuais, profissionais de cultura e de moda.
As formas de apoio podem envolver efetivações estratégicas, como o convite de Gringo Cardia para a Daspu participar do estande do SEBRAE na edição outono-inverno do Fashion Business de 2006, assim como o oferecimento de trabalho voluntário, como faz o próprio Cardia com a cenografia para o desfile da coleção Daspu na Pista – BR 69, no Circo Voador, e toda uma legião profissional que se envolve com a marca: estilistas, cenógrafos, designers, modelos, cineastas. Como também há o apoio dado através da cessão de espaço em programas de entrevista, como fazem Betty Lago e Jô Soares, ou em outros espaços televisivos, como na participação na novela Caminho das Índias, da Rede Globo de Televisão, em 2009.
Foto do desfile da Daspu no Circo Voador, divulgadas pelo jornal O Globo, na seção Fashion Rio, em 10 jun. 2006. Foto de Fábio Guimarães. |
A motivação desse apoio se origina na identificação tanto com o caráter ético que a imagem da marca projeta, quanto com o caráter transgressivo. Por outro lado, pode-se falar de um retorno desse apoio, dado pela exposição que se ganha com o destaque que o assunto tem na mídia. Porém simpatizantes como Gringo Cardia ou Betty Lago, só para citar dois exemplos, não podem ser considerados principiantes em busca de exposição pública. Mas, sem juízo negativo de valor – pois é legítima a expectativa de exposição por parte de quem contribui com a ONG –, este talvez seja o caso, por exemplo, da estilista Rafaela Monteiro (segundo desfile), ou do grupo Coletivo Puta Life Style (quinto e sexto desfiles). E da parte desses profissionais também pode estar presente uma expectativa, também legítima, quanto a uma liberdade do exercício criativo.
Desfile de lançamento da coleção Daspu na Pista BR 69, no Circo Voador, Rio de Janeiro. 9 jun. 2006. Fotos Marcos Silva. |
Resulta deste apoio: a) o reforço temático da imagem da marca, na medida em que citações de “famosos” na imprensa enfatizam aspectos éticos ou transgressivos; b) o reforço da visibilidade da marca, pois as declarações de apoio colhidas em eventos específicos transcendem tanto esses eventos quanto o caráter referencial dado pelo espaço na mídia, incorporando-se a um espaço maior e menos material de aparecimento; c) consistências parciais na visualidade ligada à marca, dadas pelos parâmetros profissionais do trabalho voluntário (que elas sejam mais ou menos articuladas entre si é uma outra questão).
Conforme indicado por Deleuze e Guattari, um enunciado diz respeito “a uma transformação incorpórea, mesmo que esta se refira aos corpos e se insira em suas ações e paixões” (Deleuze, Guattari, 1995: 19). Ou seja, independentemente da distinção entre corpos e transformações incorpóreas, estas tornam-se presentes e podem marcar os processos de mistura dos corpos.
Com base nesta orientação, destacamos dois aspectos das transformações na ONG Davida e no empreendimento Daspu que se seguem às reverberações da palavra de ordem: o primeiro ligado à autoimagem das prostitutas que participam, ou se conectam à ONG, assim como à própria imagem da ONG; e o segundo ligado à estruturação da Daspu como negócio.
A enunciação pública do nome Daspu recoloca o jogo exibe-esconde com o qual as prostitutas lidam em seu dia-a-dia – exibe para o cliente, esconde da sociedade, polícia, família. É obviamente salutar para a causa política da Davida, mas exige das prostitutas que abram mão de sua habitual repulsa pela exibição/exposição pública, que na moda é parte inseparável do jogo.
E isto traz uma mudança quanto ao ato de mostrar-se. As prostitutas passam a ter status distinto do que tinham antes, pois incorporam a persona da modelo, que mostra o que veste mostrando-se. E, momentaneamente, ganham voz na mídia. Com a sua entrada no meio da moda, a marca inaugura um novo padrão para a autoimagem das associadas à Davida: mostrar-se e dizer-se puta.
Este processo ganha uma compreensão mais nítida a partir da categoria discurso reverso, proposta por Michel Foucault em História da sexualidade 1: A vontade de saber: Desenvolvendo a questão da “polivalência tática dos discursos” nesta área (Foucault, 1988: 111), o autor postula que deve-se imaginar uma “multiplicidade de elementos discursivos que podem entrar em estratégias diferentes”. Refere-se, entre outras coisas, ao fato das enunciações ligadas a controles sociais comportarem deslocamentos e utilizações para fins opostos. Segundo ele o aparecimento, no século XIX, na psiquiatria, na jurisprudência e na própria literatura, de toda uma série de discursos sobre espécies e subespécies de homossexualidade, inversão, pederastia e “hermafroditismo psíquico”, permitiu, certamente, um avanço bem marcado dos controles sociais nessa região de “perversidade”; mas, também, possibilitou a constituição de um discurso “de reação” [discurso “reverso” 5 ]: a homossexualidade pôs-se a falar por si mesma, a reivindicar sua legitimidade ou sua “naturalidade” e muitas vezes dentro do vocabulário e com as categorias pelas quais era desqualificada do ponto de vista médico (Foucault, 1988: 112).
Esta estratégia já estava presente no discurso de Gabriela Leite antes da Daspu. No entanto a marca fornece o megafone/amplificador que a propaga e faz reverberar, conforme o subtítulo do livro de Lenz: Daspu – a moda sem vergonha. O que a Daspu promove com sua moda sem vergonha é a transformação da puta sem-vergonha ou desavergonhada, na puta sem vergonha de dizer-se puta, o que, entre outras coisas, significa, por exemplo, deixar-se fotografar para jornal.
Por outro lado, este imenso potencial transformador que a marca representa, na medida em que se apresenta como “uma forma inusitada de ativismo político”
6, perde seu poder se a Daspu desaparece como marca. O valor da marca pode ser tão importante quanto a venda de produtos, mas também é verdade que se as vendas não acontecem e a empresa não se fortalece, este valor tende a se esvaziar. Esta avaliação aponta para a importância da Daspu manter-se ativa no mercado da moda.
A recepção favorável que a enunciação Daspu teve no meio moda não significa que ela tenha sido sempre avaliada positivamente. Muitas vezes a moda se apropria das práticas e dos produtos de periferia como demonstração de correção política, por exemplo, mas exige em troca a adaptação. Ao se associar à moda, a Daspu fica sujeita à sua lógica mutante: estar na moda pode significar, no minuto seguinte, não estar mais. Ao mesmo tempo que o fascínio pela novidade favorece o surgimento de marcas e estéticas fora de um mainstream, o imperativo do novo dificulta sua permanência. A partir do momento em que uma experiência específica ganha visibilidade, deixa aos poucos de ser uma novidade. Para se manter como sujeito nesse espaço social é necessário não só produzir outras novidades, mas também enquadrar-se segundo seus parâmetros produtivos. Movimento que a Daspu vem se empenhando em fazer desde seu lançamento.
Sobre a estreita relação entre a imprensa especializada em moda e o sistema da moda, que dá aos jornalistas especializados e veículos um certo poder na homologação dos gostos e inclusão das marcas neste sistema, deve-se lembrar que, observando-se o desempenho do Brasil na moda mundial dos últimos tempos, observa-se uma elevação significativa nesse padrão para a homologação. O investimento das empresas nacionais para obter reconhecimento internacional da moda brasileira, requer, com toda certeza, mais rigor no critério de seleção das marcas que receberão essa homologação, seja da imprensa especializada ou dos demais setores do sistema da moda. A edição de 2009 do Fashion Rio pareceu caminhar ainda mais na direção da elevação desse padrão. Reduziu drasticamente o espaço oferecido às marcas em processo de profissionalização e manteve no evento oficial apenas as que haviam alcançado um estágio profissional mais avançado. Profissionalismo, design, qualidade de produto, permanência e constância são critérios importantes para a manutenção do status alcançado em solos internacionais e, consequentemente, concorrem para a eleição do grupo de marcas que ingressará nesse círculo cada vez mais restrito. E este é um movimento natural da perspectiva da indústria da moda.
Desfile da coleção Daspu na Pista BR 69, no Club Glória, São Paulo, 15 jun. 2006. Fotos de Marcos Silva. |
Nas raras avaliações dos jornalistas de moda, são encontrados indícios da não homologação da marca Daspu. Mas, sobretudo, a raridade dessas críticas é a principal evidência de que ela não chegou a ser exatamente considerada como parte do meio.
Nas escassas avaliações e críticas que a marca Daspu recebe da imprensa especializada, é possível perceber inadequações do produto oferecido, ou da empresa Daspu, ao negócio moda. Como quando Iesa Rodrigues, ao elogiar a camiseta Beijo da Rua, sublinha a ausência de produtos apresentados pela marca naquele momento. Ou quando Glória Kalil, comentando um padrão de vulgaridade presente hoje na moda, e comparando as roupas da Daspu e da Daslu, refere-se às diferenças de tecido e acabamento. Ou ainda na crítica encontrada no site de Erika Palomino, que afirma que o público aplaudiu mais as prostitutas e menos as modelos de verdade, ainda que pouco antes tivessem reproduzido a afirmação de Rafaela Monteiro – “prostituta não tem cara”.
Fotos do desfile da coleção Puta Arte, na Praça Tiradentes. Rio de Janeiro. 19 jan. 2007. Fotos de Viola Berlanda
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É interessante, para o caso Daspu, pensar nos binômios socialização/individualização, distinção/imitação, presentes na teoria de Simmel (Simmel, 1957). Quando Gabriela Leite afirma que faz uma moda para todas as mulheres parece ciente da importância dessa relação. Entretanto, na maioria das vezes, a roupa da Daspu é nomeada pela imprensa como roupa de prostituta para prostituta. Segmentação que nada ajuda ao discurso da Davida. Uma confusão que talvez seja estimulada pelos conceitos autorreferentes presentes em todas as coleções. Essa segmentação advém, normalmente, da mídia não especializada. Glória Kalil, como visto, afirma justamente o contrário. Mas nesse caso o discurso de indistinção também tem, subjacente, a distinção. Nos comentários de Glória Kalil sobre a similaridade entre as modas Daspu e Daslu, está claro que ela não ignora que são “as pequenas diferenças que fazem toda a moda”. Quando destaca a importância de um bom tecido ou acabamento, não desconhece que “a torrente de pequenos nadas” (Lipovetsky, 1989, p.32) à qual o tecido e o acabamento pertencem pode, imediatamente, desclassificar ou classificar a pessoa que os adota ou que deles se mantém afastada. Se inserem em “uma parte da moda que se tornou como a alma da economia geral do vestuário: o detalhe” (Barthes, 2005: 341). Assim, nem tudo é paródia e deboche na apropriação que Daspu faz do nome Daslu: deve haver também imitação. Ou pelo menos ela é esperada. Quando as análises, elogiando o desempenho Daspu, equiparam suas criações com as demais, anunciam que é isso que esperam da marca.
Desfile da coleção Puta Arte, no Club Glória, em São Paulo. SP, 27 jan. 2007. Fotos de Viola Berlanda |
Mas a habilidade de articulação do grupo gestor da Davida em função dos objetivos da ONG fica evidenciada também no trato administrativo com a marca. Desde as ações para o pronto atendimento das urgentes demandas para a constituição real da marca – não somente produtivas, como a realização de uma primeira camiseta em transfer para simular uma produção inexistente, mas também empresarias, como o registro da marca no INPI, feito por Lenz quinze dias depois da publicação da nota de Gaspari –, passando pela busca de qualificação empresarial, e chegando às associações com a FUMEC e seus alunos para o desenvolvimento das novas produções
Relativamente a essa parceria é preciso destacar o fato das estampas para as camisetas da última coleção acentuarem com humor o caráter de naturalidade e sensualidade do tema prostituição, caracterizando com mais justeza as referências que conferem a ligação ao trabalho da Davida, dando o tratamento merecido às camisetas, produto que mais se identifica com a marca Daspu.
Desfile da coleção As cruzadas: a batalha entre o botão e a espada. Belo Horizonte. Jun. 2008. Fotos de Nana Moraes. ARQUIVOS |
O design se define como uma disciplina prática, como por exemplo o marketing e a administração, e projetual, como a arquitetura e o urbanismo. Isto leva a que, diferentemente da história, da filosofia ou da matemática, por exemplo, em paralelo à esfera acadêmica também se estabeleçam cânones e instâncias de sua validação profissional no mercado.
Em termos da esfera acadêmica, temos que ela cumpre o papel de elaboração, sistematização e transmissão do conhecimento humano produzido/acumulado, tendendo a encarar este conhecimento com base no paradigma consolidado pelas ciências da natureza a partir do Renascimento 7. Frente ao fato de que, segundo esta concepção, todas as áreas acadêmicas devem se compreendidas como ciências 8 – mesmo que extraoficialmente o paradigma dominante leve a uma grande seletividade no reconhecimento desta atribuição –, caracterizam-se duas posições no âmbito do design:
a) uma envolvendo iniciativas visando conferir uma cientificidade à profissão, normalmente através de uma super valorização da metodologia 9 – embora elas tendam a não funcionar para grande parte da prática profissional;
b) outra envolvendo um consenso de que, mesmo que esta cientificidade metodológica possa ser adequada a alguns tipos de projeto, e não deixando de considerar a possibilidade da utilização do conhecimento científico, o design em geral, como outras atividades práticas e projetuais, não se caracteriza conforme o modelo da ciência moderna que se desenvolve a partir do século 16.10
De qualquer modo o espaço acadêmico marca mesmo as disciplinas práticas com alguns dos atributos da cientificidade, como a busca de isenção técnica e uma supervalorização dos limites das áreas de conhecimento, com base na pressuposição de uma divisão social do trabalho que tende à idealização, pois possui um caráter formalmente descritivo e ignora a dinâmica concreta da relação entre áreas de conhecimento no mercado e no espaço acadêmico.
Considerando, por outro lado, os parâmetros de validação profissional pelo mercado, temos que, a partir de uma racionalidade e de um pragmatismo de mercado, são valorizados protocolos de relacionamento profissional, a competência e a neutralidade técnica e uma “política de resultados”, ou seja, o retorno do investimento. Embora esses parâmetros coloquem-se com independência em relação à esfera acadêmica, esta, por sua própria razão de ser, precisa incorporá-los enquanto referência necessária para o ensino da profissão, sendo que nessa operação eles passam a ser enquadrados segundo os modos de funcionamento e parâmetros do espaço acadêmico. E neste fechamento do campo os critérios se cruzam – a neutralidade técnica se conjuga à isenção de caráter científico, por exemplo – criando “enrijecimentos” de ação e percepção, dificultando a compreensão de novas dinâmicas da sociedade e novos modos de conhecer.
Conforme fica sugerido no item 2 deste trabalho, os parâmetros do mercado sinalizam o caminho mais evidente para uma análise, com base na competência profissional, do peso relativo que a criação e gestão de uma marca pode adquirir no possível sucesso um empreendimento.
Desfile na Unidos da Tijuca. Rio de Janeiro. 6 jun. 2008. Foto de Celso Pereira. |
No entanto o recorte estritamente profissional – neutro e isento segundo os protocolos do mercado e sua replicação acadêmica –, não elimina o fato de que existe a atividade, correspondendo ao trabalho e suas especificidades e potencialidades técnicas e sociais, como algo distinto da profissão. Mesmo considerando que atividade e profissão se apresentam como um mesmo “corpo”, esta distinção analítica se justifica. Pois embora a efetivação da atividade dependa dos balizamentos profissionais que dispõem as condições de sua existência, isto pode se dar tanto como confirmação dessas condições, quanto relativamente, por meio da investigação/experimentação de alteridades, e celebração de um compromisso com um “objeto ampliado” e com uma abertura do conhecimento. Neste sentido a caracterização de uma autonomia da atividade se aproxima de iniciativas de revisão dos parâmetros igualmente técnicos e isentos das ciências sociais. Como indica Boaventura dos Santos “A experiência social […] é muito mais ampla e variada do que a tradição científica e filosófica concebe e considera importante” (Santos, 2006: 778).
A opção por uma referência analítica adequada à recuperação da experiência social presente na criação e difusão da marca Daspu – envolvendo aceitação da diferença e construção de cidadania –, assume a possibilidade de conexões e aberturas que enriqueçam o escopo do design e de disciplinas afins. E isto abrangendo caracterização técnica e posicionamentos sociais e culturais, tanto em termos da atividade quanto da profissão.
E finalizando, cabe registrar o paralelo, em termos do trabalho prático, a esta busca de abertura do campo em termos do conhecimento, destacando o desprendimento e generosidade dos profissionais que se engajaram no processo Daspu.
BARTHES, Roland. “Da jóia à bijuteria”. In: Inéditos. Vol. 3 – Imagem e moda.São Paulo: Martins Fontes, 2005.
CARLI, Ana Mery Sehbe de. O sensacional da moda. Rio de Janeiro: Educs, 2002.
CROSS, Nigel. “From a Design Science to a Design Discipline: Understanding Designerly Ways of Knowing and Thinking”. In MICHEL, Ralf (ed.). Design Research Now: Essays and Selected Projects. Basel: Bierkhäuser Verlag, 2007. p.41-54.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. “Postulados de lingüística”. In: Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. P. 11-60.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
GASPARI, Elio. “Uma nova grife”. In: O Globo. Rio de Janeiro, 20.11.2005.Caderno O Pais. P.16.
GOIS, Ancelmo. “Ninguém agüenta mais ouvir”. In: O Globo. Rio de Janeiro, 26.11.2006. Caderno Rio, p.27.
LENZ, Flavio. Daspu – a moda sem vergonha. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008.
LESSA, Washington Dias. “Prática de design e conhecimento”. Designe. Rio de Janeiro: Escola de Artes Visuais/ Univercidade, ano III, nº 3, outubro de 2001, p. 80-86.
LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero. Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
MARTINS, José Roberto. O manual para você criar, gerenciar e avaliar marcas.3ª edição. 2006. Disponível em www.brandingemarcas.com.br/kose-roberto-martins
O GLOBO. “Fetiche”. In: O Globo. Rio de Janeiro, 14.01.2006. Caderno Ela Fashion, p.1.
OLIVEIRA, Sylvio de. Entrevista concedida a Fábio de Araújo Keidel. In: KEIDEL, Fábio de Araújo. Criação de marcas em movimentos sociais: uma análise do caso Daspu. Rio de Janeiro, 2008. Universidade Federal do Rio de Janeiro; Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Escola de Comunicação. p.54-62.
SANTOS, Boaventura de Souza (org.). Conhecimento prudente para uma vida decente – um discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo: Cortez, 2006. [2003]
SIMMEL, Georg. “Fashion”. In: American Journal of Sociology. vol. LXII, Nº 6 , Chicago, may 1957. p. 541-558.
VILLAÇA, Nízia e Góes, Fred. Em nome do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
VILLAS-BOAS, André. Prefácio. In: LENZ, Flavio. Daspu – a moda sem vergonha. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008. p. 10-17.
* Jeanine Geammal é designer e professora do curso de Design de Produto da Universidade Federal do Ceará. Atua no campo do design de jóias, principalmente com a produção de joalheria-arte e no desenvolvimento de coleções. Organizou a coletânea “Joia em estudo” (Editora SENAI, 2009).
1- Divulgação da “Carta de Princípios” da Rede Nacional de Prostitutas, divulgada pelo sítio “Beijo da Rua”, mantido pela Davida.
2- Visando, num primeiro momento, divulgar as questões relativas às lutas da ONG Davida.
3- Marcada pela figura de Flávio Lenz, assessor de imprensa da Davida
“dando à palavra ‘corpo’ a maior extensão, isto é, todo conteúdo formado” (Deleuze, Guattari, 1995: 26).
4- No texto original em francês o termo usado por Foucault é discours “en retour” (Histoire de La sexualité 1: La volonté de savoir. Paris: Gallimard, 1976. p.134). Em vez de discurso “de reação”, utilizado na tradução brasileira, consideramos mais fiel às intenções do autor a tradução discurso “reverso”.
5- Em inglês o termo também é traduzido por “reverse” discourse.
6- André Villas-Boas, prefaciando o Livro de Flávio Lenz, afirma que a novidade não reside “na realização de espetáculos ou atividades artísticas e de lazer […], mas na sua transformação em estratégia. A conformação estética não é mais um ‘braço cultural’ do movimento, mas tornou-se o próprio movimento”. (Villas-Boas, 2008: 13-14)
7- Apesar do encaminhamento desta investigação colocar-se como um questionamento desse paradigma, não cabe aqui indicar nem o seu processo de consolidação, nem a “geopolítica” acadêmica que dele decorre, nem as vertentes e natureza da crítica a que tem sido submetido.
8- Segundo uma das categorizações oficiais de ensino e pesquisa no Brasil, o design é uma ciência social aplicada.
9- A este respeito ver Cross, 2007: 41-46
10- A este respeito ver Lessa, 2001: 81-82.