Como em um bom time de futebol, o grupo de articulistas que compõem o novo número da Z Cultural combina juventude e experiência acadêmica. Porém, embora esse tenha sido um dos critérios empregados para a seleção dos autores, não foi certamente o principal, e sim a aderência, direta ou indireta, de sua produção intelectual ao eixo temático central da presente edição: interfaces digitais entre cultura, cidadania e capitalismo.
Por essa razão, iniciamos esta Z com o artigo que mais diretamente se aproxima de seu eixo, no qual Ovidio Mota Peixoto problematiza o discurso “triunfalista” da inclusão digital, com ênfase na relação entre novas TICs, cidadania e educação, trazendo de volta ao debate um pensador e ativista brasileiro outrora muito influente, mas pouco discutido ultimamente entre nós: Darcy Ribeiro.
Já Patrícia Saldanha, em um movimento ousado, propõe a noção de (e a implementação da) publicidade comunitária como elemento fundamental para que se atinja uma efetiva viabilidade econômica das práticas de comunicação nas “comunidades” – noção que ela discute e fundamenta com o devido rigor teórico.
Ainda no âmbito da comunicação comunitária e da problemática da cidadania, Adilson Cabral explora o conceito de “emergência”, de Steven Johnson, que diz respeito a “processos organizados de baixo para cima e de forma adaptativa”, para pensar os “esforços da sociedade civil em relação à afirmação dos direitos humanos à comunicação e da apropriação social das tecnologias de informação e comunicação a partir de articulações que promovam comunidades de compartilhamento social com base em processos emergentes.”
Pablo Nabarrete Bastos, por sua vez, nos brinda com uma análise teoricamente refinada, inspirada principalmente em Bakhtin, Gramsci e Hall, da palavra como uma das arenas da luta de classes, tomando como objeto empírico o tratamento dado ao movimento Hip Hop e ao MST no discurso midiático hegemônico. O artigo ainda possui o mérito de enfatizar o profundo compromisso político-revolucionário de Gramsci, contribuindo assim para a necessária desconstrução de sua imagem corrente (e reduzida) de “teórico da cultura”.
Numa linha parecida, Marco Bonetti resgata um aspecto misteriosamente obliterado em boa parte da fortuna crítica sobre a obra de Walter Benjamin: a óbvia e profunda influência de Marx. Assim, em seu Karl Marx e Walter Benjamin, Bonetti denuncia o equívoco metodológico que consiste na construção de um Walter Benjamin “descafeinado”, isto é, “depurado” da presença central de Marx em seu pensamento, como se a opinião (conservadora) de Gershom Scholem sobre o valor da obra do amigo tivesse se tornado canônica.
Cabe aqui uma breve digressão, dado que Bastos e Bonneti tocaram um ponto fulcral do debate que nos foi ofertado promover: parafraseando o que Stuart Hall certa vez disse sobre a recepção da obra de Foucault na Inglaterra, a qual teria gozado, durante um determinado período, de um “apostolado acrítico”, parece-nos que algo similar ocorre com Benjamin e Gramsci entre nós: gozam de um “apostolado acrítico”, mas em uma versão “descafeinada”, caracterizada pela minimização ou descarte da influência de Marx, que seria não mais que um aspecto menor, datado, superado, descartável de seus pensamentos.
Ora, essa eloquente ocultação – na recepção de dois autores cuja contribuição menor certamente não foi o rico desenvolvimento que promoveram de elementos apenas indicados de modo assistemático na vasta obra de Marx (em especial as complexas relações entre economia, política, tecnologia e cultura), sem com isso, ao contrário do que muitos pensam, terem efetuado nenhuma ruptura fundamental com seu arcabouço teórico – seria epistemologicamente fundamentada com rigor ou ideologicamente contaminada?
Embora não toque diretamente na questão, o artigo de Ivan Capeller aponta para a segunda alternativa, em um esforço difícil e teoricamente audaz de (re?)aproximar Deleuze da crítica da economia política, analisando os fenômenos “recentes” do facebook e do youtube à luz da teoria e da história do cinema, ou melhor, dos dispositivos audiovisuais, entendidos como aparelhos de captura e máquinas de guerra.
Numa perspectiva menos convergente que a de Capeller, Ricardo Musse apresenta uma esclarecedora explanação do tenso diálogo entre marxismo e pós-modernidade, mediante uma análise crítica dos principais argumentos de alguns dos seus protagonistas. Entre outros efeitos salutares, o artigo de Musse nos ajuda a entender tanto as causas da mencionada ausência de Marx de locais onde esta ausência é sintomática, quanto parte das dificuldades que permeiam o debate entre marxismo e pós-modernidade, em meio ao qual se situa o pós-estruturalismo.
Por fim, Douglas Kellner, um dos pioneiros dos Estudos Culturais estadunidenses no início dos anos 70, e o entrevistado da presente edição da Z Cultural, além de refletir sobre o papel das novas tecnologias de comunicação na reconfiguração da esfera pública contemporânea, sem recusar a contribuição do pós-estruturalismo, argumenta em defesa da retomada do diálogo entre Estudos Culturais e marxismo, corroborando a posição deste que ora vos fala e contribuindo igualmente para entendermos melhor as causas do esvaziamento recente deste diálogo.
Encerrando essa apresentação, quero registrar meus agradecimentos à querida Heloísa Buarque de Hollanda, pelo convite para a curadoria deste número da Z Cultural. Agradeço, pois enxergo no gesto, além de uma demonstração de confiança, principalmente uma expressão de sua generosidade teórica, dado o fato (por ela conhecido) de as posições que costumo defender não serem as mesmas do mainstream teórico, se assim se pode dizer, dos Estudos Culturais contemporâneos.
Agradeço também aos autores por seus artigos e a Douglas Kellner por nossa conversa.
Uma boa leitura.
Marco Schneider
GCO e PPGMC UFF / ESPM / Unisuam / PACC UFRJ