O indivíduo ancorado ao grupo social, às instituições por meio da arte
Ao criar um círculo aconchegante para a vida concreta, o segredo ancora numa das características da existência social, ou seja, incorpora o indivíduo aos grupos, à vida organizada, e assim por diante.
O meu irmão por exemplo que é cientista e mora em Paris, é astrofísico – conta Tiziana. Ele dizia: “Quando eu tomo banho e sinto aquelas gotinhas de água caírem, aí me vêem as idéias.” Eu tenho a impressão que é isso, que o artista é um pouco diferente, porque se abstrai mais da vida de cada dia. Mas hoje… Hoje é o caos (TIZIANA BONAZZOLA, 84 anos, artista plástica, professora de arte da Escolinha de Arte do Brasil).
A presença de Tiziana nas artes plásticas no Brasil desde 1949, no Rio de Janeiro, é bem expressa no que caracteriza como específico à artista: “Os temas são sempre assim. Ligados ao amor pela natureza ou ligados ao amor pelo trabalho.”
É nessa “oscilação” que o artista mantém uma relação amorosa e, mais que isso, do que pude observar em diferentes exposições que Tiziana realizou no Rio de Janeiro: são facetas lúdicas, embebidas, por vezes, numa atmosfera onírica, como pode ser constatada no quadro “Os meninos da rua Uruguai”. É o que poderia ser dito desse quadro, que tem a presença do que Tacussel diz ser uma espécie de poesia sem escritas[1] . Segundo o sociólogo, teríamos enormes dificuldades de apreendê-la com a ajuda de instrumentos estatísticos. Acrescento aí instrumentos convencionais que precisam, no entanto, ser motivo de credibilidade, como é o fazer fé[2] naquilo que se afirma e que encobre a luta pelo monopólio da legitimidade em nome da qual ele é travado[3] . Num empenho parecido com o do arqueólogo, a autora mostra o que Howard Becker denomina de mundo das artes, respondendo ao que este sociólogo indaga: Quem é e artista? Qual é sua identidade?. Mas há também enfoques políticos que precisam ser mostrados, como resultantes do exercício de uma liderança no meio da categoria artista, aqui especialmente considerada:
Olha, eu acho que o artista é o que tem mais consciência, aquele que tem o sentimento ou a consciência do vazio. Quer dizer, parece-me que o artista vive esta situação. Ela, na verdade, conflita no artista a necessidade de preencher espaços afetivos e de organizar esse afeto. Então, eu acho que à medida em que o não artista se identifica com o artista este, sim, tem consciência de que existe um grande vazio, que se pode atribuir a varias coisas. Inclusive o vazio que se dá no intervalo da relação entre você e você mesmo. É o artista que os aproxima. Isso me parece que é a coisa mais interessante na arte. Então, artista me parece é o que administra afeto (LUIZ ÁQUILA, 62 anos, artista plástico, ex-diretor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, RJ).
Essa correspondência entre as características mediadoras do artista, que se estabelecem no plano de sua função social, está no princípio que Antonio Gramsci diz ser sinalizador do que é esperado do artista. Isso parece ser tão verdadeiro, que vale a pena ouvir um pouco mais sobre essa função social do artista[4] .
Isso é uma questão que está permanentemente em discussão até hoje. O artista tem um papel fundamental na sociedade, ele tem que captar tudo o que está no ar, ele tem que corresponder ao seu tempo e traduzir isso tudo pela linguagem das artes plásticas, traduzir em novas formas, gerar reflexões (LICIUS BOSSOLAN, 34 anos, bacharel em pintura pela EBA/UFRJ. Mestrando do PPGAV-EBA/UFRJ – Linha de Pesquisa Estudos da Imagem e das Representações Culturais).
Mas o curioso é que a questão da mediação que cabe ao artista, tem conotações políticas, movidas por algo como a afeição que se irradia do fazer artístico aparentemente não servindo para nada. É o que Jean Duvignaud sugere: o que não serve para nada é que deve ser motivo de atenções [5] .
A afeição, como algo sem peso em nossos dias, num mundo de coisas que enaltecem cegamente o progresso, os resultados e a objetividade exacerbada, é considerada e se aproxima muito do que Simmel[6] compreende como função política do amor. Com isso, quer dizer que há conotações políticas nela, como as distribuições de direitos que essas conotações englobam. Simmel não tratou especialmente da afeição, mas tratou de algo que lhe é bem próximo, como o amor. É evidente que aí cabe uma observação quanto ao que foi por ele considerado primordial nesta categoria. Faz dela uma categoria primordial, porque não tem nenhum outro fundamento, além de si mesmo. Ela é precisamente isso, porque determina o objeto na totalidade de ser último, e nada como tal, na ausência de toda existência prévia. Como repercussão desses dados concretos, o que daí decorre e o que se tem é no nível da coesão – e a vida social depende disso, conforme Simmel [7] , dá-se uma espécie de sintaxe diagonal que ondula os movimentos, sempre difíceis de acompanhar nas suas formas sinuosas. Nelas se dá a participação social e, nem por isso, deixando de se mostrar diversificada e rica.
É evidente que aí cabe uma observação. O que se tem e o que se observa e que se torna muito útil entender o que Rancière denomina exemplarmente de A partilha do sensível [8] que dá título ao seu livro. Ali é proposta uma espécie de deslocamento de uma discussão, colocando-a fora do lugar habitual, em que a arte é geralmente despolitizada. Para Rancière, torna-se importante pensar a articulação que deve se dar com as maneiras de fazer arte, as formas em que se manifesta a visibilidade dessas maneiras e suas relações. A noção de fábrica do sensível, enunciada por Rancière, é entendida primeiramente pelo entrelaçamento de uma pluralidade de atividades humanas. A idéia de “partilha” do sensível implica algo mais. Diz ele que um mundo comum não é nunca simplesmente o ethos, a estada comum, que resulta da sedimentação de um determinado número de atos entrelaçados. Ao tratar do artista e seus envolvimentos com a política, coloca-se, para Rancière, a questão da relação entre o lado ordinário do trabalho e a “excepcionalidade” artística. Não é só isso: Platão, em sua República, mostra para nós o quanto é perniciosa a divisão de trabalho que o levou a excluir os artesãos do todo espaço político comum. Para ele, o fazedor da mímesis (recriador da realidade) é, por definição, um ser duplo. Ele faz duas coisas ao mesmo tempo, quando o princípio de uma sociedade bem organizada, segundo Platão, é que cada um faça apenas uma só coisa, aquela à qual sua “natureza” o destina. Por aí se vê, conforme Rancière (id., p. 64), que a idéia do trabalho está vinculada à política, como deu para observar no mito de Midas, em que o desempenho de um papel diversificado para um rei somente poderia ser uma atividade determinada e, por isso, Midas é impedido de ultrapassar o que se esperava dele: os direitos ao exercício de um papel já estão como que prescritos para o rei e o as you like it não lhe era dado experimentar.
Nesse ponto, detemo-nos um pouco mais nos aspectos políticos que estão embutidos na formação do artista.
O que é um artista? Eu tenho a impressão. Eu vou improvisar. Ele coloca socialmente solicitações que não estão no horizonte do possível, do imediato, do pensável. E é uma produção um tanto insólita, vinda, portanto, de uma pessoa que tem um nível de ligação concreta com essa sociedade. A produção dele tem a ver com a sociedade. Quer dizer, o artista hoje em dia participa, emerge da sociedade. Ontem mesmo estava vendo um programa, por incrível que pareça na TV Câmara?. Domingo à tarde. Era um DVD que foi lançado pela Gravadora Biscoito Fino. Acho que são cinqüenta anos de comemoração de Carlos Lyra. E eu fiquei espantado porque a gente não se dá conta, mas com quinze anos ele já fazia as suas composições com Tom Jobim. Eu acho que essa precocidade mostra essa natural tendência do artista. É uma singularidade qualquer na personalidade. Eu acho que, em música popular, isso se manifesta, então, muito espontaneamente. No caso específico das artes plásticas, é a mesma coisa. O professor, uma escola, uma instituição podem promover um contato do aluno com a cultura das artes plásticas. Quer dizer com a tradição, com a cultura no sentido do debate que o precede (CARLOS ZILIO, 61 anos. Artista plástico. Doutor em Artes Plásticas pela Université de Paris. Professor de Pintura no Curso de Graduação e na Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA/UFRJ – Área Linguagens Visuais).
Nada mais político do que esse debate proposto pelo artista plástico, pesquisador e professor que, ao tempo da ditadura militar, amargou a prisão e guardou pratos nos quais lhe eram servidas “refeições” para serem transformados em suportes sobre os quais fez pinturas. Esses pratos foram mostrados no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ) na exposição que realizou no ano de 2002. O que é preciso aí explicar é o autoritarismo daquele período que vinha junto com a intolerância, o menosprezo aos intelectuais, artistas. Não há como não reconhecer no procedimento do Zílio um vigor enorme, movido pela esperança de futuro, em que aquelas “circunstâncias” certamente não se perpetuariam. Na sua mais recente exposição (2005), que se deu no Paço Imperial (RJ), chamaram a minha atenção os trabalhos que realizou, tendo como suporte a pouca valorizada folha de papel. Utilizou-se de grandes dimensões desse material. O efeito extraordinário desse ato político mostra-se mais claramente no que o artista continua dizendo, em resposta ao que assinalei como contribuições, que deu e continua dando na Escola de Belas Artes no plano político.
É pelo menos ali no âmbito da EBA que vejo isso, porque fui dar aula de pintura na graduação. Vejo como eles estão muito mobilizados, quer dizer, vêem que ali existe, na pós-graduação, um terreno que os inquieta. Provoca-os. Eu acho que isso foi positivo (Idem).
O termo inquietação tem, evidentemente, um sentido enorme no que tange aos aspectos políticos da formação do artista, que se deve ocupar deles para a aquisição de consciência (conhecimento – cum nacer) que perpetua e renova, e isso se dá implicando poder (cum). É oportuno citar o artista plástico Augusto Rodrigues, idealizador da Escolinha de Arte do Brasil, que me fez a sugestão de criar um Centro de Inquietação [9] . Uma proposição dessa natureza deriva, obviamente, da longa e ininterrupta convivência que teve com artistas, críticos de arte, intelectuais, chefes de Estado, professores, artistas populares. No caso de Augusto Rodrigues, é preciso dizer que a sua atuação como artista plástico, caricaturista, pedagogo, deu-se, não só no Brasil, mas também na América Latina, por meio de exposições e conferências de que participou na Argentina, no Chile e no Paraguai.
Também conviveu com estudantes, educadores e artistas que eram das regiões sul-americanas e procuraram a Escolinha de Arte do Brasil para seguir cursos ou unicamente visitá-lo. Foi também contemplado com o Prêmio de Viagem ao Exterior no Salão de Arte Moderna em 1954. Com esse prêmio pôde participar da Sessão Inaugural da INSEA (International Society for Education Through Art) na Unesco, em Paris, que teve repercussões no desenvolvimento do seu projeto no Rio de Janeiro, no Recife (PE) e na Argentina.
É preciso dizer que as observações que Augusto Rodrigues tecia não se fundamentam em algum embasamento teórico, ainda que admirasse as idéias do crítico de arte inglês Herbert Read e do educador Anísio Teixeira. A sua vivência, a experiência com a arte, com a educação, serviam de seta para as reflexões que fazia. Essa vivência, embebida num grande envolvimento emocional com o que se referisse à arte, à educação artística, transparece também no que o artista plástico Luiz Áquila diz a esse respeito, no plano político:
Quer dizer, o que eu vejo na minha própria experiência, e é uma experiência empírica, não tem nenhuma base teórica para ser mais exato. Mas o que me parece é que as escolas reúnem as pessoas. Reúnem essa pessoas que encasquetaram, resolveram que vão ser artistas e vão lidar com esse mundo tão movediço como é o das artes plásticas. Eu acho que existe o artista. Então, uma boa escola de artes (…) é aquela que possibilita o maior número de encontros possíveis. Quer dizer, eu acho que a escola mais produtiva, que eu conheço é a do Parque Lage (RJ), que é, na verdade, uma extensão das experiências do Museu de Arte Moderna (MAM). Os professores do Parque Lage, os que valorizam mais o Parque Lage em geral, tinham sido alunos do MAM, pessoal da minha geração. Então, acho que essa experiência do MAM, passou a ser uma escola mais solta e mais boêmia, no sentido assim do fazer. A escola foi muito bem instituída por Rubens Gerchhman. Décio Pignatari, que foi muito corajoso, rompendo com a tradição que havia. Ainda era o período da ditadura militar, quer dizer a Escola do Parque Lage tinha um sentido catárquico de encontro. Nesse sentido catárquico constitui-se o que é a Escola do Parque Lage que vai até hoje.
A complexidade das coisas, dos procedimentos que atuam na construção do que se denomina de formação do artista, pode ser também vista num contexto formal de ensino da arte:
Respeito o autodidata; o artista sempre traz suas vivências, todos têm que ser respeitados. Traduzem sua linguagem de forma própria os que se inserem num circuito profissional. A academia, por sua vez, é uma instituição para gerar conhecimento; o que a gente tem aqui é muito bom, é uma troca, e a gente aprende a reverter isso para a sociedade de forma consciente. O acadêmico tem a vivência e mais a cultura e uma visão lúcida de seu papel como profissional (LICIUS BOSSOLAN, Mestre em Artes Visuais do PPGAV – EBA – UFRJ, Linha de Pesquisa Imagem e Cultura).
Entre o encontro informal fora da sala de aula e o que se dá, sustentando uma relação formal entre aluno e professor, dá-se um fato curioso e que parece peculiar às escolas de arte. Do que pude observar, as peculiaridades de cada uma dessas instâncias dão-se no nível do que têm como projeto. Na Escola de Belas Artes da UFRJ, na qual trabalhei ao longo de quase vinte anos, é justamente a distinção de propostas profissionalizantes, que tem como compromisso o preparo que é exigido ao atendimento das solicitações advindas do mercado de trabalho. Não nos iludamos: em ambos os contextos visões do mundo, idéias, valores perpassam o que se ensina e o que o aluno deixa de ver no que aprende ou faz. Isso se dá e aparece em qualquer instituição integrante de uma sociedade diversificada, complexa, que tem objetivos de fornecer quadros para as especializações. Essa é uma das características sociais do Brasil e nada impede que o artista tenha um desempenho de seu papel mais bem preparado. Está bem distante a aceitação do que Goethe disse como peculiar ao artista, ou seja, ele faz e não fala.
Evidentemente, o ingrediente político que passa por aí é bem visível e, hoje, a complexa configuração da vida social, os inter-relacionamentos entre múltiplos contextos que caracterizam a existência coletiva serão refletidos e, ao mesmo tempo, reflexos desse quadro de coisas nas obras do qual o artista é autor. Se bem que existam obras que são bem mais interessantes do que os seus autores…
Isso se dá no plano local das artes plásticas, e aí se chega a um ponto que retoma a ênfase do lado político da arte que afeta o Brasil, cada vez mais interdependente da internacionalização crescente do mundo da arte [10] . Mas nem tudo está perdido, e podemos vislumbrar uma dimensão capaz de ser generalizada:
Partindo de um nada a expressar. O desejo de expressar. A partir de um não saber, a criação de um saber que vai se construindo, de um pensamento que vai se articulando. A partir também de um diálogo com o trabalho, um pensamento que vai andar na entrelinha do que se conseguiu e do que não se conseguiu, do que foi possível criar e do que não foi possível criar. Entre o que foi feito e o que resta a fazer, entre o que se desejava fazer e o que foi realmente criado. Aí surge o caminho do novo trabalho (LENA BERGSTEIN, 59 anos, artista plástica)
As coisas apontadas por Lena não são tão simples. O que quer dizer trabalho – relação com o mercado, com a criação – nos dias atuais depara-se com uma nova ordem capitalista, ainda que contenha suas dimensões anteriores num novo mundo globalizado. Observa-se, segundo o sociólogo, o novo complexo de reestruturação produtiva no Brasil, no qual há a tendência de desenvolver uma radical precarização do trabalho, da qual a terceirização, anteriormente presente em atividades suplementares à produção, tomou nova figura: tornou-se ativa, conforme Alves[11] , no coração das atividades diretamente vinculadas à produção, promovendo alterações importantes na materialidade do capital e nas formas de atuação do trabalho produtivo.
Esse desenho sugestivo indica mutações em curso, que afetam igualmente o campo do fato artístico: a montagem de uma exposição num centro cultural, num museu cujas galerias têm dimensões bastante expressivas e pode se dar, ao mesmo tempo, em várias salas, envolve seguramente na sua realização, cerca – ou mais – de cinqüenta funcionários, empregados, nem todos remunerados pela instituição que oferece a oportunidade: o patrocínio financeiro. O que se segue no que o artista Carlos Zílio transmitiu-me numa conversa informal, bem como outros tantos terceirizados (administração, curadoria, divulgação, montagem e segurança), ou seja, sem vínculos trabalhistas como os conhecemos, alcançam igual número de pessoas. Essas tendências vêm predominando nas grandes cidades do Brasil e se deparam com o que se conhece diretamente vinculado ao fato artístico.
Então, deparamo-nos com um novo complexo de reestruturação produtiva, no dizer de Alves, que atingiu a objetividade e a subjetividade do mundo do trabalho. Esse mesmo jogo – que é bem anterior aos nossos dias – que se dá na fronteira do pragmatismo e dos aspectos pessoais – que emerge na luta dos critérios que, na França, vão determinar o que era classificado com artes úteis ou necessárias, idéias essas que englobavam também as artes manufaturadas [12] . É preciso dizer que grandes conquistas no campo da arte foram concretizadas com o desenvolvimento das noções de autenticidade, de individualidade, de originalidade: essas vieram junto com a defesa da pintura de história, um pouco ali negligenciada. Com todos os aspectos assinalados colocava-se também a questão dos amadores que a defendiam.
No que foi assinalado por Lena Bergstein – e aí volto um pouco para trás – tem-se claramente indicações de um fato artístico que se apresenta de forma inacabada. Fica evidente que para Duvignaud as categorias classificatórias não se reduzem à simples constatação de uma diferença entre elas: ultrapassam, seguidamente, a idéia que fazem desses sistemas. Acresce o fato de que aí são incluídas questões da profissionalização do artista que necessitam levar em conta as relações atuais com o trabalho, que vão além delas ao nos determos no cotidiano. É por esses planos e níveis que passa a compreensão singular do artista e da criação artística, linkados ao trabalho [13] .
A categoria trabalho clareando o fato artístico
A categoria trabalho deve ser considerada de maneira a elucidar a natureza do fato artístico em suas relações com o que se convenciona como próprio ao desempenho profissional, isto é, formação profissional, remuneração equivalente, direitos trabalhistas, valor financeiro atribuído ao seu trabalho.
Esses indicadores de um exercício profissional afetam até mesmo os artistas que podem ser considerados bem sucedidos [14] : “Sei dar preço para uma obra minha. Eu não tenho nenhum problema para dar preço para os meus trabalhos.”
Fica-se com o que a artista plástica afirma, sem saber como esse preço foi calculado, de que maneira e quais os critérios que foram aí sinalizadores na mediação com os compradores. Isto quanto ao preço cobrado. Mas há algo que necessita ser mencionado e que, de muitas maneiras, revela o que dimensiona a presença do indivíduo, acoplada ao artista: “Existem outra riquezas que não são só as materiais. Há a riqueza dos amigos, ser dono do tempo, renúncias do mundo capitalista. A vida é só uma. Tem-se de cuidar da vida” [15] (WLADIMIR MACHADO, 54 anos, artista plástico, professor do Ateliê de Pintura da EBA/UFRJ, Doutor em História Cultural pela USP).
Por aí se vê que a contestação das normas do capitalismo, ou seja, produzir, vender, consumir não é menos entrecruzada com contradições naquilo que o artista considera como autonomia, gerir sua vida com poucos recursos, pouca adesão ao consumo e assim por diante. O artista que age e pensa assim se depara com um fato intransponível, conforme Jean Duvignaud [16] : “Sua obra precisa ser comunicada. Não pode ser, portanto, algo que se mantenha escondido, pois nenhum artista tem como objetivo produzir para si.”
É preciso levar em conta que o artista hoje é também multimidiático, conforme Medeiros [17] .
*Rosza W. vel Zoladz é aposentada da EBA/UFRJ, onde orienta teses e dissertações da Linha de Pesquisa Estudos da Imagem e das Representações Culturais no PPGAV e pesquisadora visitante do PACC (Programa Avançado de Cultura Contemporânea) do FCC / UFRJ. Recentemente recebeu homenagem do Ministério da Cultura e Comunicação da França, com o Título de Chevalier de l´Ordre dês Art set dês Lettres. É também Conselheira Emérita do Conselho de Minerva da UFRJ.
NOTAS:
[1] Cf. TACUSSEL, Patrick. “À altura do cotidiano”. In: A propósito da obra de Michel Maffesoli. Notas sobre a pós-modernidade. O lugar faz o elo. Atlântica Editora, Rio de Janeiro, 2004, p. 110. O que deve ser acrescentado ao que é feito por Tacussel é dizer que, dessa maneira, se cria um compromisso com novas aberturas epistemológicas.
[2] São muitos os assuntos e procedimentos guiados e movidos pela crença. No dia em que tratava desse aspecto, em sala de aula, com alunos do PPGAV-EBA, na Linha de Pesquisa “Estudos da Imagem e das Representações Culturais” (2005/II), analisava questões como o capital simbólico, a leitura da arte. Exemplificava com o correio e a crença que existe no envio da correspondência. No mesmo dia, à noite, a TV mostrava o escândalo do mensalão, dando-se justamente no Correio Nacional.
[3] Cf. Fleury, Catherine Arruda, Ellwanger. “Reflexões sobre arte e artistas”. In: Rosza W. vel (Org.) Imaginário Brasileiro e Zonas Periféricas. Algumas Preposições Sociologia da Arte. FAPERJ / 7 Letras, 2005. pp 188 – 226
[4] Cf. GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1995. As sucessivas edições da obra que modificam uma ou outra passagem dão, no entanto, como permanentes as injunções socioculturais que interferem na formação das diversas categorias intelectuais. O que Gramsci sugere é tomá-las como mediadoras entre grupos sociais que, de outra maneira, não se relacionariam. É oportuno citar MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira. Companhia das Letras, São Paulo, 2001. Aí as implicações históricas devem ser consideradas.
[5] Cf. DUVIGNAUD, Jean. Les prix des choses sans prix. Actes Sud, France, 2001. O exemplo costumeiramente dado por Duvignaud em aulas, conferências, artigos, é ilustrado pela Torre Eiffel, que se transformou no símbolo da França, sem ter sido construída com esse propósito. O monumento foi construído por ocasião da Exposição Universal de Paris (1889).
[6] SIMMEL, Georg. Como as formas sociais se mantêm. MORAES FILHO, Evaristo (Org.) Simmel. Editora Ática, São Paulo, 1983, pp. 45-58.
[7] Cf. SIMMEL, Georg. Filosofia do amor. Martins Fontes, São Paulo, 1993, p. 124.
[8] Cf. RANCIÈRE , Jacques. A partilha do sensível. Estética e política. Editora 34, São Paulo, 2005, p. 63. O precioso livro enfatiza aspectos novos, que denomina de impregnação política da arte, fora de engajamentos partidários, doutrinários.
[9] Cf. ZOLADZ, Rosza W. vel. Augusto Rodrigues. O artista e a arte, poeticamente. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1990 e Idem, Imaginário Brasileiro e Zonas Periféricas. Algumas proposições da Sociologia da Arte. 7 Letras/FAPERJ, 2005.
[10] Essa situação, no entanto, está muito distante de ser generalizada ou ser mais freqüente do que o inverso. Não se tem ainda, como há na França, artistas que produzem para acervos de museus importantes, como é o caso dos artistas plásticos tchecos Tylek e Tylecek, naturalizados franceses. A produção artística desses artistas plásticos é adquirida pelo Mihama Museum, Japão. Mas há, num trajeto inverso, a produção artística de Michel Lablais, adquirida por um colecionador brasileiro. Isso se dá há muito tempo no percurso França-Brasil, pois Lablais é francês, com importantes exposições na Europa, nos Estados Unidos e na Ásia.
[11] Cf. ALVES, Giovanni. O novo (e precário) mundo do trabalho. Bomtempo/FAPESP, São Paulo, 2005.
[12] Cf. HEINICH, Nathalie. Du peintre à l’artiste. Artisans et académiciens à l’âge classique. Lês Éditions de Minuit, Paris, 1993, pp. 193ss
[13] Cf. ALVES. Idem, 2005.
[14] Depoimento da artista plástica Adriana Varejão à jornalista Nina Lemos. IN Revista Gol. Tipo Exportação, dezembro, 2005, pp.54-60.
[15] Cf. SANSOT, Pierre. Les gens du peu. PUF, Paris, 1991. Isso ocorre em sociedades afluentes, em que se prefere viver com os subsídios estatais que são alocados para os desempregados no lugar de se submeterem ao estresse, às pressões da vida do trabalho formal. O fato se dá, em menor número, também entre nós, como pode ser visto nesse depoimento elucidativo de um tipo de projeto que se mescla com a vida ativa do artista. Ver também a esse respeito MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos, Forense, Brasil, 1987.
[16] Cf. DUVIGNAUD, Jean, 2001.
[17] Cf. MEDEIROS, Rogério. A arte hoje, 2005 (digitado).