A esplêndida exposição retrospectiva da obra de Luciano Figueiredo que o Paço Imperial abrigou entre 05 de setembro e 05 de novembro de 2006, no Rio de Janeiro, revelou uma trajetória ao mesmo tempo múltipla, complexa e singularmente consistente.
O título “Do jornal à pintura”, não deixa de dar, por alto, uma descrição sumaríssima dessa trajetória. Caso se tratasse, porém, do título de um capítulo da biografia de Luciano, então – dado que, nos seus anos de formação, na Bahia, ele se dedicou à pintura – esse capítulo teria que ser precedido por outro, intitulado “Da pintura ao jornal”. Tudo somado, teríamos, portanto, “Da pintura ao jornal” e “Do jornal à pintura”: em suma, “Da pintura à pintura”. Posto isso, não pretendo, de maneira nenhuma, diminuir a importância do jornal na obra de Luciano. Ao contrário, ele é central no percurso que, muito esquematicamente, descreverei a seguir.
No final da década de 1950 e de 1960, no Brasil, no campo das artes plásticas, a partir do Concretismo e do Neoconcretismo, os artistas de vanguarda, baseados em considerações e experimentações sob alguns aspectos semelhantes, mas, sob outros, diferentes das que haviam sido feitas na Europa pela vanguarda histórica, sentiram a necessidade de quebrar as compartimentações, as categorias e os gêneros artísticos. O Tropicalismo, por sua vez, levando a experimentação ao terreno da mídia (que estava então sendo repensada, de modo revolucionário, por Marshall McLuhan), ocasionou na prática o questionamento da própria distinção entre o erudito e o popular, entre a vanguarda e a indústria cultural. Ao pôr em xeque as hierarquias culturais tradicionais, bem como as formas convencionais de arte e de vida, a contracultura dos anos 60 e 70, não só no Brasil, mas em todo o mundo, abriu a perspectiva da produção de invenções, transformações e cruzamentos antes insuspeitados.
Frente às possibilidades criativas então disponibilizadas e à atração da experimentação, Luciano – que, no entanto, já havia participado da Bienal Nacional de Artes Plásticas (1966) e da Bienal Internacional de São Paulo (1967) – perde o interesse pela carreira convencional de pintor. Em vez disso, a partir de 1969, quando decide morar no Rio de Janeiro, ele estabelece parcerias extremamente fecundas com artistas como o poeta Waly Salomão (fazendo, por exemplo, o cenário do show de “Fa-tal”, de Gal Costa, e, junto com Óscar Ramos, o layout da revista Navilouca) e Hélio Oiticica (fazendo o cenário do espetáculo “Gal deixa sangrar”). Fortemente atraído pelo Concretismo e pelo Neoconcretismo, ele dirige seus estudos, pesquisas e experimentos numa direção construtivista. Nessa mesma época, Luciano produz diversas capas de discos e livros.
Em 1972, Luciano vai morar em Londres e, livre do fetichismo da pintura, deixa-se impregnar pela poesia, pelo cinema, pelo grafismo, elementos que estarão, a partir de então, presentes em quase todas as suas obras. Já nas colagens como “Solaris Compass”, “Noir” e “Chiaroscuro Sky” pode-se observar que ele não parte da natureza nem tenta encontrá-la. É no imaginário artificial de nossa época, produzido pelo cinema, pela canção, pela literatura, pelo jornal, que vai buscar os elementos heterogêneos – tais como sintagmas retirados de poemas de Ezra Pound ou trechos de diálogos de filmes de Nicholas Ray – que reúne ao construir ou editar obras que funcionam como verdadeiros ideogramas, em que sobreposições visuais e verbais surpreendentes e estimulantes solicitam a revitalização da nossa sensibilidade e do nosso intelecto.
Ainda em Londres, Luciano descobre as possibilidades plásticas do jornal. “Todo jornal, da primeira linha à última, não passa de um tecido de horrores”, dizia Baudelaire, numa sentença que Luciano gosta de citar. Puramente instrumental, ele é diariamente lido, descartado e usado como papel (anti-)higiênico pelos mendigos. Para quem o lê, a notícia – a mensagem – é a única coisa que importa. Ora, invertendo a hierarquia que preside à lógica instrumental tanto do cotidiano quanto da sociedade que o produz, Luciano desinstrumentaliza o jornal. “Foi precisamente o que não era notícia no jornal que chamou minha atenção”, diz ele, já de volta ao Brasil, em 1984. “Comecei a ver as páginas como um mosaico, com todas as suas variações cromáticas: o chiaroscuro, as linhas, a qualidade das fotografias impressas. Tudo isso me fez consciente de uma espécie de natureza particular, não calculada, não destinada a fazer parte da notícia. As páginas começaram a agir como um resíduo muito excitante. À medida que me afastava da notícia em si, uma contra-leitura provocava novas relações de espaço-luz-sombras. As páginas tornavam-se vibrações óticas sugeridas pela realidade inesperada que continham.” É, portanto, de um dos produtos dos cálculos da indústria cultural que a arte de Luciano extrai uma espécie de natureza incalculável. É no mundo existente, no dado, no mediato, no midiático que ela mergulha para redescobrir o lugar (o topos, não a utopia) do espanto.
A oportunidade de observar as etapas através das quais o desenvolvimento e o aprofundamento da experimentação com o jornal conduz à pintura é certamente o aspecto mais fascinante da presente exposição. Por volta de 1990, a cor que ele introduz nas obras intituladas “Relevo” realça as qualidades plásticas das dobras, dos cortes, dos caimentos do papel do jornal. Ou bem essas obras são inteiramente monocromáticas ou uma única cor contrasta com a cor original do jornal.
Em 1998, ele declara que o que lhe interessa é “uma espécie de dinâmica de planos, produzida pela manipulação de páginas, folhas, pelo ato de virar as páginas, pelos volumes, pela luz e a sombra, peloschiaroscuros. Os movimentos das figuras retangulares demonstravam uma operação orgânica revelada pelo contato com as páginas”. A partir de 2000, ele produz a belíssima série “Diorama”, de obras retangulares que consistem em acrílico sobre jornal, papelão e/ou madeira. De modo fiel à etimologia da palavra (“aquilo que é visto através”), todos os elementos que compõem essas obras se encontram à mostra. Assim, vários planos transparentes de jornais e de cor se sobrepõem sem ocultar uns aos outros, e sem escamotear sequer o suporte sobre o qual se colam, de modo que este – a madeira, por exemplo – também funciona como um componente formal da obra.
A partir de então, o jornal que, enquanto tal, passara a ser apenas um dos constituintes da obra total, é até capaz de desaparecer totalmente. É o que acontece nos “Muxarabiês” que, consistindo em acrílico sobre madeira, são pura pintura. Entretanto, como essas obras incorporam o que Luciano aprendeu com o jornal, a memória deste é, de certo modo, preservada por elas. A própria presença formal da madeira, a transparência dos planos, a sutileza cromática, a articulação construtiva da cor e do espaço, a exclusão de qualquer ilusionismo, em suma, a ambição de que todos os componentes da obra, sem mistificação alguma, se revelem e, ao se revelar, resplandeçam, tudo isso nos induz a uma espécie de arqueologia visual que remete, como a uma matriz, às experimentações de Luciano com o jornal. Da pintura à pintura: vê-se que foi necessário abandonar/perder a pintura para poder um dia reencontrá-la: ou melhor, reinventá-la.
*Antonio Cicero, poeta e ensaísta, é autor, entre outras coisas, dos livros de poemas Guardar (1996) e A cidade e os livros (2002), e dos livros de ensaios filosóficos O mundo desde o fim (1995) e Finalidades sem fim (2005). Organizou, em parceria com Waly Salomão, o volume de ensaios O relativismo enquanto visão do mundo e, em parceria com Eucanaã Ferraz, a Nova antologia poética de Vinícius de Morais. Também é compositor, tendo parceiros como Marina Lima, Adriana Calcanhotto e João Bosco, entre outros.