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Apagamento e visibilidade autorrepresentada: comunicação autóctone na periferia da periferia | de Ricardo Oliveira Freitas

Introdução

Considerando o fenômeno de emergência e visibilização de produções que retratam múltiplas realidades das periferias brasileiras, baseadas em discursos unívocos, o texto ora apresentado aborda os processos de comunicação e as interações sociais destes resultantes, a partir do lugar ocupado por iniciativas de comunicação popular e comunitária para o desempenho das identidades minoritárias e suas expressões no Brasil e para a elaboração de uma contrainformação do que é produzido sobre si. Por comunicação comunitária e popular entendo todo tipo de iniciativa que, ao utilizar-se de recursos de mídia, promove a participação ativa do indivíduo em processos de desenvolvimento local, quando seus grupos e suas comunidades encontram-se distanciadas das esferas de poder, privilégio e prestígio.

Apesar de presenciarmos a emergência de grandes produções sobre o periférico, tanto no cinema como na TV brasileira (o que coloca o debate como um caso não necessariamente específico da comunicação autóctone), centrei-me na investigação de iniciativas autóctones produzidas por comunidades rurais, no almejo de alcançarem reconhecimento junto à esfera de visibilidade pública e, por extensão, à esfera pública política, a partir da análise e da elaboração de uma pequena cartografia das iniciativas de comunicação popular e comunitária elaboradas na região Sul da Bahia.

Meu interesse por tais modos e formas de comunicação deveu-se ao entendimento, com base nos produtos (finalizados), de que estas invertem a clássica lógica atribuída às populações periféricas e minoritárias, ao contemplarem modos de vida que não são necessariamente urbanos ou suburbanos, aos moldes das recorrentes representações em mídia que, constantemente, lhes atribuem representações baseadas em modos e estilos de vida circunscritos às periferias das grandes metrópoles brasileiras: populações de favela, de modo geral, cerceadas por toda a sorte de violência urbana. Nesse sentido, ao privilegiar periferias rurais nordestinas, me comprometi, pois, com o estudo de modos e formas de comunicação como tido e visto na “periferia da periferia”.

Interessou-me pensar com base em recortes referenciais bibliográficos, que privilegiam análises que desmantelam o clássico esquema da comunicação unilateral onipotente, tão recorrente na corrente funcionalista de estudos da comunicação, representada pelo clássico esquema “emissores dominantes versus espectadores passivos” (cf. MARTÍN-BARBERO, 2003), ao atribuírem tanto um papel de atividade como um lugar de poder ao “canônico” agente da recepção passiva, no que reconhecem a importância de produtos autóctones – tanto em termos de produção como de distribuição e recepção. É, pois, tal fato que atribuirá à comunicação autóctone as categorizações de alternativa, popular e/ou comunitária, em concordância com o que John Downing concebeu como mídias radicais alternativas (DOWNING, 2002).

Ao reconhecer a virtude da categoria “autóctone”, deixo claro que o interesse do projeto sustentou-se sobre as questões da representação; sejam estas “de fora sobre dentro para dentro”, “de fora sobre dentro para fora” e, sobretudo, “de dentro sobre dentro para dentro e fora”. O caso do Sul da Bahia encaixa-se nesta última proposta. Além de comunicação autóctone, pode mesmo ser classificada como comunicação étnica, já que integra-se ao rol de preocupações debruçadas sobre as questões da identidade (étnico-racial) frente não somente às forças homogeneizantes da comunicação hegemônica, mas, sobretudo, às forças homogeneizantes da globalização – o que proporciona importante debate sobre a comunicação como instrumento de análise das questões da identidade e da cultura no mundo globalizado. Sua importância deve-se ao fato de que o tema, além de revelar o caso da não-representação, revela, também, situações em que representações negativadas são acionadas, através de projetos, velados ou não, de [in]visibilidade (que se concretiza pela ausência) e apagamento (que se concretiza pela presença pejorativa e desqualificadora).

A periferia da periferia

A importância de se pensar o conceito de periferia da periferia deve-se ao fato de que, ao assumi-la, incorporam-se tanto as noções de pertencimento, dentro de uma perspectiva global, como as noções de pertencimento a partir de uma lógica local; tanto do Brasil em relação às grandes potências mundiais, como do Nordeste em relação ao eixo centro-sul do país. Ao reconhecer que a quase totalidade das produções sobre periferias (paisagens e cenários) e populações periféricas (panoramas e personagens) estrutura-se a partir de representações do periférico como tido e visto nos grandes centros urbanos brasileiros, opto por classificar meu campo de trabalho como uma “periferia da periferia”, considerando tanto o distanciamento desta região em relação à capital do estado e a outras metrópoles, como o fato de serem cidades com populações abaixo de 25.000 habitantes, que concentram expressivos traços de ruralidade como base das suas economias. Além disso, ao reconhecer as nações em desenvolvimento como territórios periféricos, baseado numa lógica de territorialidade global, que se debruça sobre a noção de centro versus periferia, na qual o centro refere-se aos países desenvolvidos e a periferia ao restante do mundo, e ao comparar o Nordeste rural brasileiro às metrópoles do eixo centro-sul do país, e, até mesmo, aos grandes centros urbanos nordestinos, a partir de uma lógica nacional, percebo a existência de uma meta periferia, que teima em separar o litoral do sertão, o campo da cidade, o interior da capital.

Nos termos da comunidade imaginada, pensada por Benedict Anderson (2009), ou da invenção do Nordeste, como proposta por Albuquerque (2001), não tenho como desconsiderar que tais tipos de categorizações, baseadas em termos relacionais e, com isso, excludentes, são determinadas por processos e contexto históricos que refletem as transformações “inventadas” tanto na esfera sociocultural, como política e econômica. Tais transformações constroem representações autóctones, inaugurando a aparição de termos nativos, mas também externas, que inauguram a aparição de termos no mais das vezes tomados como unívocos e canônicos sobre o Outro, transformando, como lembra Nestor Garcia Canclini (2005), maiorias demográficas em minorias culturais.

A cultura da mídia, ao passo que torna modos de vida e visões de mundo homogêneas, através de incisivas representações ideológicas aliadas aos interesses das classes dominantes, oferece os recursos para que grupos invisibilizados e populações minoritárias reelaborem seus textos a partir de leituras reconstituídas com base em experiências próprias (cf. KELLNER, 2001). É o que Jesus Martín-Barbero percebe como a importante presença dos conflitos, contradições e lutas que descaracterizam a clássica lógica atribuída ao processo comunicacional “como estruturado entre emissores-dominantes e receptores-dominados, sem o menor indício de sedução nem resistência” (MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 15).

Não à toa, é o paradoxo entre o local e o global que tem regido o debate em torno da comunicação comunitária e popular como comunicação alternativa à grande mídia. Para alguns autores, a mídia é alternativa ao quebrar a homogeneização centralizadora da grande mídia. O debate entre o global e o local também é importante, pelo fato de chamar a atenção para os paradoxos da globalização. Afinal, em um mundo que parecia estar às raias da singularização universal, falar em comunicação comunitária faz parecer um passo bastante retrógrado. Entretanto, tal como o mundo da cultura globalizada, eis que presenciamos a expressiva emergência do tema da comunicação de aspectos locais, popular e comunitária, no bojo da globalização de mensagens e representações em âmbito global.

Ao enfocar a esfera pública de visibilidade midiática e sua relação com o desenvolvimento da ação política por parte de grupos minoritários, baseio-me na hipótese de que tal tipo de prática coletiva contribui não apenas para deslocar lugares e vozes no espaço público, mas, também, para o surgimento de formas alternativas de visibilidade pública midiática, ao reconhecer que a construção e a consagração dessas formas de aparecimento e visibilidade (midiáticas) dependem da ação política compartilhada entre sociedade civil, movimentos sociais e setores do governo.

Por esfera pública, entendo, aqui, a dimensão na qual se constitui um processo de formação de opinião pública, através da participação de atores públicos e privados, regulamentada para o estabelecimento de leis gerais para aplicação no âmbito do privado, mas, objetivamente, relevante para o âmbito do público. Um tipo de esfera que media a relação entre público e privado, entre sociedade civil e Estado, como sugere Habermas (2003). Outra concepção nos remete à ideia de esfera pública como espaço de aparência (mesmo em contextos de aparência derivada da exposição midiática). Nesse caso, a esfera pública aparece como condição sine qua non para que o ato de aparecer no espaço público promova a condição da existência real, a objetividade de ser e estar no mundo, de se fazer ver e ouvir por todos, a concretude da cidadania através da visibilidade.

É em relação a esta múltipla importância da esfera pública que o termo ‘privado’, em sua acepção original de ‘privação’, tem significado. Para o indivíduo, viver uma vida inteiramente privada significa, acima de tudo, ser destituído de coisas essenciais à vida verdadeiramente humana: ser privado da realidade que advém do fato de ser visto e ouvido por outros, privado de uma relação ‘objetiva’ com eles decorrente do fato de ligar-se e separar-se deles mediante um mundo comum de coisas, e privado da possibilidade de realizar algo mais permanente que a própria vida. A privação da privatividade reside na ausência de outros; para estes, o homem privado não se dá a conhecer, e portanto é como se não existisse. O que quer que ele faça permanece sem importância ou consequência para os outros, e o que tem importância para ele é desprovido de interesse para os outros (Arendt, 2000, p. 68).

Nesse sentido, tais iniciativas são importantes pelo fato de contraporem modos e formas de exclusão e de invisibilidade, que, não necessariamente, estruturam-se na ausência; mas sobremaneira, na presença negativada, que por sua vez, proporciona uma visibilidade que invisibiliza, que excluiu. Um apagamento constituído pela presença, pela presença apagada. A recorrente presença afro-descendente na produção jornalística policial encenada pelo choro e pelo sofrimento é exemplar 2. Em termos cognitivos, a presença negativada, no que é repetidamente representada, naturaliza a ideia de uma existência firmada em um sublugar, em uma subexistência.

A apropriação de meios e veículos de comunicação por grupos e comunidades subalternizadas é forte aliada da emancipação social, através da constituição de ações políticas pelos movimentos sociais, sobretudo em sociedades constituídas com base na desigualdade social – esse, o caso do Brasil. Por isso, a emergência dos movimentos sociais aliados aos recursos de comunicação e suas tecnologias, assim como às expressões em arte, contribui para o enfraquecimento de projetos (velados ou não) de dominação que se sustentam na exclusão, invisibilidade ou apagamento de determinados segmentos sociais.

Agora, nós vamos invadir a sua praia

Muitos são os autores que defendem a ideia de que, ao deixar de constituírem-se em instrumentos de mediação social para configurarem-se em instrumentos de midiatização, os meios de comunicação de massa transformaram fenômenos sociais em espetáculos. A tônica da espetacularização não proporcionou anseio por visibilidade enquanto fenômeno estético, de grandiosidade e beleza, pura e simplesmente. Espetacularização, aqui, traduz-se pela lógica do ineditismo e da representação embutida na ideia de espetáculo. Nesse sentido, grupos e comunidades, até então invisibilizadas dos projetos midiáticos, ao almejarem inclusão e reconhecimento junto à esfera de visibilidade pública, que podemos mesmo traduzir como a esfera de visibilidade midiática, almejam mais que a exposição infundada de suas iniciativas. Anseiam, pois, pela aquisição de reconhecimento de seus problemas, prioridades e, sobretudo, de seus anseios, modos de vida e visões de mundo, junto às esferas de poder e aos seus pares. Por isso, as iniciativas de comunicação comunitária tentam encontrar formas de interação (de comunicar) entre comunidades – quer seja entre grupos e comunidades afins, quer seja entre grupos e comunidades desinteressadas, quer seja junto à sociedade abrangente e hegemônica. Também por isso, comunicação comunitária passa a traduzir a ideia de pertencimento de grupos e comunidades ideologicamente minoritárias junto à esfera hegemônica, relacionando, pois, comunicação comunitária, cultura de minorias, mídias alternativas, midiativismo e ações de resistência.

Jesus Martín-Barbero (2004) entende que as alternativas de comunicação popular não devem, necessariamente, ser marginais às grandes mídias. Podem mesmo apoderar-se de traços de cultura massiva. O que não é problema. Entretanto, devem atentar para o fato de que as culturas populares não são homogêneas – tal qual o discurso construído pelas grandes mídias. O problema reside no fato de que no que é produzida para massificação e controle das massas, a cultura massiva tende a negar as diferenças, fazendo com que desapareçam por assimilação e, com isso, homogeneizando-as. Considerando que mesmo o gosto popular está moldado pela cultura de massa, reconhecemos que a comunicação será alternativa ao assumir a complexidade dos processos de massificação da cultura (e formação da comunicação massiva) que são estruturados na quase negação do popular. Digo, quase, já que entendo que numa análise aguçada dos complexos processos de formação da cultura massiva, podemos perceber traços de popularidade, “de códigos e dispositivos em que se imbricam a memória popular e o imaginário das massas” (Martín-Barbero, 2004, p. 213).

Boaventura de Sousa Santos (2009) confirma a tese de que a apropriação de recursos de comunicação por comunidades desprestigiadas é importante elemento para a aquisição de autonomia e da emancipação de tais comunidades, proporcionando maior atuação e, por extensão, visibilidade junto à esfera pública política.

É evidente que essas tecnologias têm possibilitado um uso contra-hegemônico. Meu trabalho teórico é, sempre, mostrar que os instrumentos hegemônicos podem ter um uso contra-hegemônico. Nós não estamos em um mundo onde haja instrumentos hegemônicos, de um lado, e, do outro lado, instrumentos contra-hegemônicos puros. Temos que usar contra-hegemonicamente instrumentos hegemônicos – entre eles, obviamente, os meios de comunicação e a revolução da informação. (SOUSA SANTOS, 2009).

O Movimento Cultural Arte Manha é boa ilustração. Exemplo típico das articulações entre arte, comunicação e mobilização social, congrega a lógica de que expressões e manifestações em arte permitem trazer à tona problemas e prioridades que afligem, de modo específico, grupos ideologicamente minoritários e, por extensão, juridicamente vulneráveis, tornando-os visíveis para o mundo. Se, num primeiro momento, o grupo priorizava apenas a arte e suas expressões como elemento central em suas atividades, após bom tempo utilizando recursos de mídia como ferramentas para registro, divulgação e documentação (fotografia e vídeo, mais especificamente), seus componentes perceberam que produtos audiovisuais poderiam transformar-se em fortes aliados para o fortalecimento das propostas do grupo: formulação de políticas inclusivas e democratização da arte como favorecimento de ações cidadãs, de atitudes autoestimadas e reconhecimento. A expressiva produção de audiovisuais e a importância creditada a esse tipo de produção resultou na criação de um polo de produção de vídeos e de um cineclube de rua e comunitário, o Cineclube Caravelas.

A lógica do reconhecimento deu às formas de representação lugar de destaque nas produções realizadas pelo Cineclube e seu grupo de autores. Na articulação entre arte como forma de expressão e mídia como instrumento de informação, o Cineclube produziu nos últimos dois anos mais que uma dezena de filmes, com toda a sorte de recursos para produção audiovisual – de equipamentos profissionais a celulares, passando por uma ilha de edição provida de excelentes recursos – mesmo sem o apoio de uma secretaria de cultura, até então, inexistente no município.

Mostramos que existem formas de confrontarmos os grupos que estão no poder em Caravelas! São forças políticas que buscam nos esvaziar como pessoas com o abandono da cidade, do nosso patrimônio… neutralizar nossa riqueza cultural. Mostramos que é possível nos organizarmos, que a partir da própria população podemos criar, construir outras possibilidades para a cidade. Quando um filme de Caravelas ganha um prêmio na capital cultural do país chegamos para essas pessoas e perguntamos: E aí? (sic, Jaco Galdino 3).

Instâncias de intencionalidade na produção audiovisual caravelense e, por extensão, articulações e negociações entre processos de produção e recepção, representação e reconhecimento, fazem do Cineclube Caravelas uma espécie de base para um Estado ampliado, como proposto por Gramsci (2004), que elabora consensos e mediações entre a cidade, seu governo e seus moradores, além de trazer à tona toda a sorte de questões identitárias e de pertencimento (gênero, sexualidade, raça e etnia, geração, classe e regionalismos). Ou seja, a partir das suas especificidades, transformam “arte desinteressada” em “comunicação engajada”.

[…] a comunicação da cultura depende menos da quantidade de informação circulante do que da capacidade de apropriação que ela mobiliza, isto é, da ativação da competência cultural das comunidades. […] O comunicador deixa, portanto, de figurar como intermediário – aquele que se instala na divisão social e, em vez de trabalhar para abolir as barreiras que reforçam a exclusão, defende o seu ofício: uma comunicação na qual os emissores-criadores continuem sendo uma pequena elite e as minorias continuem sendo meros receptores e espectadores resignados – para assumir o papel de mediador: aquele que torna explícita a relação entre diferença cultural e desigualdade social, entre diferença e ocasião de domínio e a partir daí trabalha para fazer possível uma comunicação que diminua o espaço das exclusões ao aumentar mais o número de emissores e criadores do que o dos meros consumidores. (MARTÍN- BARBERO, 2003, p. 145).

Ao reconhecer a necessidade de se produzir vídeos que sejam representacionais e que contemplem traços de reconhecimento pelo público, Jaco (e tantos outros produtores das periferias brasileiras) faz saltar aos olhos a importância da intencionalidade e especialização tanto da produção como da recepção, revelando assim o importante papel creditado ao público e às audiências como codificadoras e decodificadoras daquilo que o produtor inseriu na mensagem. Afinal, a própria ideia de cinema comunitário indica o importante papel do público e audiência naquilo que, afinal, reconhecemos como recepção ativa. Nesse sentido, o cinema que se faz sobre Si, autóctone, quer seja exibido para o Outro ou para o Mesmo, terá o importante papel de suscitar a afirmativa, elaborada por Hall, de que a distinção entre denotação e conotação é apenas analítica – indicativa dos diferentes níveis em que as ideologias e os discursos se cruzam, e não da presença ou ausência da ideologia na mensagem. (cf. HALL, 2003).
Domínios discursivos, hierarquicamente organizados, dão sentido à vida social. A isso, Hall intitula “sentidos dominantes ou preferenciais” instalados dentro de “mapas de sentido” – lugar em que uma cultura é classificada através de uma série de significados. (HALL, 2003, p.397). Entretanto, tal crença dá margem a considerar o resultante da produção um fato e a interpretação uma instância particular e individual, aos moldes de uma “percepção seletiva”.

Mas, “a ‘percepção seletiva’ quase nunca é tão seletiva, aleatória ou privatizada quanto o conceito sugere. Os padrões exibem agrupamentos significativos ao lado das variantes individuais” (HALL, idem). Entretanto, mesmo que consideremos o lugar de destaque dado às teorias que creditam valor supremo ao sentido conotativo do signo, pelo fato de aí instalarem-se, mais eficazmente, as ideologias que transformam e alteram a significação, “isto não quer dizer que a denotação esteja fora da ideologia” (HALL, 2003. p.398). O que significa que a codificação não pode determinar ou garantir os códigos de decodificação que serão utilizados. Portanto, Hall sugere três posições hipotéticas para entendimento do modo com que a denotação de um discurso pode ser construída. Centro-me na hipótese que reconhece que o espectador pode perceber e diferenciar o sentido conotativo e denotativo embutido na mensagem-discurso. Mas, pode, também, decodificá-la de modo contrário, afinado com definições de situações e eventos que estão em dominância global, realocando-lhe dentro de algum referencial alternativo, operando, portanto, um “código de oposição”, numa leitura contestatória da posição hegemônica-dominante – momento em que se trava “a ‘política da significação’, a luta no discurso” (HALL, idem), ou, como prefiro, a aparição do lugar do produtor na figura do receptor.

Se a produção de vídeo sobre a periferia quebra a universalidade de códigos, que no caso brasileiro, parecem estar erigidos sobre uma produção que representa a periferia a partir de um modelo de caos metropolitano como tido e visto no eixo centro-sul do país, os vídeos autóctones, produzidos na, pela e para a periferia, parecem significar uma “nova estética de periferia”, que, se não fogem tão radicalmente dos moldes pré-definidos pela produção hegemônica, contribuem para a destituição da carga de dominação presente na produção hegemônica, reelaborando novas esferas de dominância e preferência. Afinal, seus produtores, até então tidos como receptores passivos, elaboram a codificação a partir de uma longa experiência com a decodificação da mensagem. Ao conotar e denotar tais mensagens, seja no processo de produção seja no processo de recepção, transformam-nas em práticas sociais, permitindo que o circuito comunicacional se complete e produza efeitos. Do contrário, como sugere Hall, “não poderíamos falar de uma efetiva troca de comunicativa”. (HALL, 2003, p. 398).

Tais trocas são importantes, pois promovem a inclusão de novos atores no cenário midiático, com a inclusão de novas mídias e produtos no cenário mundial, além de encontrarem nos recursos midiáticos importantes suportes para desenvolvimento de novas expressões e alianças político-sociais entre Estado, governo, democracia, terceiro setor, sociedade civil e grupos ideologicamente minoritários. Elaboram, assim, novos modos de representação contra-hegemônicos, acenando para a promoção de políticas públicas para inclusão social e redução da desigualdade social, através de recursos de comunicação popular. A expressividade de redes de solidariedade, organizadas entre sociedade civil e terceiro setor, faz emergir, através dos recursos de mídia, vozes subalternizadas e invisibilizadas, excluídas dos projetos de cidadanização, através de “atores coletivos cívicos – associações voluntárias, movimentos sociais, porta-vozes de causas” (MAIA, 2006), criando novas formas de produção artística e cultural como ações inclusivas e novas utilizações de tecnologias na [off] indústria cultural [periférica] – elaborando algo em torno do conceito de redenção pela arte e pela tecnologia.

Se as características no plano das produções culturais não são universais, para o caso das questões sociais acontece o mesmo. Baseadas em prioridades estritamente locais, as “causas” determinarão o ponto de distinção entre um modelo universal e uma tônica local de reivindicações e prioridades. São privilegiadas as causas sociais; entre estas, toda sorte de desigualdades e de ações discriminatórias, assim como a necessidade de inserção destes tidos como Outros no âmbito da hegemonia. O fato é que aquilo que a princípio caracterizava-se como contra-hegemônico acaba constituindo uma nova hegemonia, não outra e não menos hegemônica, formando uma espécie de mainstream do periférico e do minoritário, que faz da contra-hegemonia uma nova hegemonia. Com isso, passam a criar produtos próprios, autorais, responsabilizando-se não somente pela produção como também pela emissão e distribuição. De coadjuvantes a protagonistas, de receptores passivos a emissores ativos.

Galo cantou, eu vou mimbora

O universo de interesse do projeto versou sobre modos e formas de utilização da mídia (mais especificamente, audiovisual) e a contribuição de tais formas de utilização para a consolidação de um [novo] mercado midiático, que, a partir de uma tendência mundial, tenta referenciar identidades pessoais, locais, regionais e étnicas em oposição à premissa da singularização unificada e ímpar trazida no bojo do debate sobre globalização. Dessa forma, o presente projeto se encaixou no rol da produção preocupada com o paradoxo entre o global e o local, tradição e modernidade, que tem constituído, nos últimos tempos, as discussões nas ciências sociais e em estudos de cultura e mídia.

Como objetivos específicos, o projeto apresentou questões a fim de contribuir para as discussões em torno das políticas de identificação e cidadanização (e, por extensão, da nacionalidade) como temas emergentes dos veículos e discursos comunicativos, culturais e mediadores, a partir do debate sobre identidade e diferença que tem, tão incisivamente, tomado tônica nos últimos tempos com o advento da globalização, além de fornecer elementos para uma análise crítica da produção comunicacional brasileira, em seus aspectos comercial e social. Reconhecer a importância da comunicação popular para a construção de redes de solidariedade, acenando para a sua paradoxal configuração, que cria formas de socialização que se estabelecem no âmbito do público (as audiências de TVs e cinemas de rua estabelecem relação com o outro em espaços que são públicos, a céu aberto), na contramão da ideia onipresente de que as novas tecnologias de comunicação contribuem para consolidar a privatização das relações sociais contemporâneas ao serem acessíveis em âmbito privados, foi outro ponto importante no desenvolvimento deste projeto.

Acreditei, pois, que seria necessário tecer uma visão aguçada sobre a totalidade das estruturas de produção da informação. Para Martín-Barbero, é nos interstícios das “estruturas transnacionais da informação e estruturas nacionais do poder” que são revelados domínios ideológicos em modos de ver, que não dizem respeito apenas aos espectadores, mas também aos produtores. Estes últimos, também videntes, espectadores. Os modos de ver são produzidos socialmente, pelo imaginário coletivo. O que confirma a lógica de que a análise do produto não deve centrar-se exclusivamente no produto em si e na sua condição de reproduzir a verdade, mas nos dispositivos de enunciação-produção, de percepção e reconhecimento. Ou seja, os estudos das tecnologias ou dos meios devem ceder lugar aos estudos debruçados sobre a produção de mensagens situadas no âmbito da cultura, a partir de um prisma que privilegie a interação das mídias na mediação entre indivíduos (produtores, receptores e produtores-receptores) na esfera da cultura e sociedade contra uma ideologia tecnocrática, que permeia e esteriliza os esforços da comunicação alternativa, da informação contra-hegemônica, já que não chega a questionar verdadeiramente as estruturas ideológicas e políticas da produção de informação. (cf. Martín-Barbero, 2004).

Portanto, o reconhecimento da comunicação como fenômeno social e sistema cultural exige que sua abordagem e análise não se restrinjam às estruturas formais da comunicação, aos moldes de uma análise das técnicas, como rebatido por Geertz (2003), mas, que englobe os processos socioculturais que moldam a sua produção, isto é, seu uso e significado, aos moldes de uma análise das mediações, mais que dos meios, como proposta por Martín-Barbero (1997).

Nesse sentido, o referido projeto tentou contribuir para os estudos da comunicação que se preocupam com o papel da comunicação popular e comunitária como recurso para preservação e fomentação do panorama cultural de microrregiões e comunidades destituídas de poder, caracterizando-se não somente como importante recurso para registro e preservação da memória tradicional local, como também, possibilitando acesso a novas tecnologias e a novas formas de produção cultural e inaugurando novos modos de organização social, compromissada em divulgar novos modos de comportamento presentes em microrregiões e na realidade de microgrupos (ou em qualquer prática cotidiana sob a égide da globalização), não se restringindo, apenas, à preservação de traços tradicionais isolados, mas de traços tradicionais articulados com formas, modos e estilo-de-vida propostos pela modernidade, a partir do lugar em que a comunicação popular funciona como prática social contemporânea.

Ao avaliar a importância da comunicação popular e comunitária para a formação técnica e para o aperfeiçoamento profissional de integrantes de microrregiões nordestinas, criando novas linhas de emprego e renda e analisar os mecanismos que cooperam para o apaziguamento de ações excludentes, redução da desigualdade social e fomento da inclusão social, visando elevar os índices de melhoria da qualidade de vida e desenvolvimento humano junto a populações destituídas de reconhecimento, fomentando a participação inclusiva e cidadã (inserção junto à esfera pública política e à esfera de visibilidade pública) através de recursos de mídia, o projeto revelou, pois, a participação de grupos e comunidades minoritárias para a elaboração de uma contra informação que reelabora o que é produzido sobre si.

A utilização de recursos de comunicação por sociedades tradicionais acena para a configuração de novos panoramas, que promovem a descontextualização das funções canônicas dos veículos de comunicação e, por extensão, a sua refuncionalização e a sua ressignificação, contribuindo objetivamente para mudanças no consumo e uso dos veículos e produtos comunicacionais, a partir de uma estratégia de desconstrução, cumprida, no mais das vezes, pela cultura hegemônica diante das culturas subalternas. (cf. CANCLINI, 2005). A apropriação de recursos de mídia por sociedades tradicionais é prova de que recursos tecnológicos, e, por isso, modernos, podem servir como importantes aliados de projetos voltados para a preservação do patrimônio memorialístico e tradicional, mesmo quando tal uso resulta em formas de hibridação cultural, de sincretizações, negociações e articulações, contrárias à ideia de uma essência de pureza em termos identitários. Desse modo, a importância da apropriação da mídia por comunidades tradicionais é que estas descontextualizam não somente a função dos objetos e os recursos das tecnologias criadas a serviço das sociedades industriais e urbanas; mas, sobretudo, recontextualizam a relação de subordinação das culturas subalternas frente à cultura hegemônica.

Concluo que, mesmo quando classificadas como produções artísticas, o teor discursivo das produções sobre minoritário e periférico, no que contempla certa lógica de visibilidade, faz com que tais produções configurem-se como um circuito comunicacional.

Ressalvo, ainda, que o recorte sobre os produtos analisados levou em consideração a variedade de gêneros e formatos e, paradoxalmente, a homogeneidade de repertórios entre tais produtos, com base nas questões da cidadania e da inclusão social; a fim de avaliar a importância da produção de comunicação autóctone para a construção de um modelo de identidade, num primeiro momento, segmentada, depois, regional e, por fim, nacional, atentando para a importância de tais produtos para a elaboração de modelos identificatórios entre grupos minoritários no Brasil e para o debate sobre cidadanização, que extrapola, pois, a esfera da teoria da comunicação e engrossa os estudos sobre sociedade e cultura.

Interessei-me em tecer um estudo não das tecnologias ou dos meios, mas da produção de mensagens situadas no âmbito da cultura, a partir de um prisma que privilegiasse a interação das mídias na mediação entre indivíduos (produtores, receptores e produtores/receptores) na esfera da cultura e sociedade. Essa a ideia de mídia-ação, mediação, que considera a mídia como prática social. Além de considerar a contribuição que tais produtos e suas representações deram para o desmonoramento de práticas excludentes (xenófobas, discriminatórias, racistas etc.) e para a idealização de práticas inclusivas.

 

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TAVARES, Julio C. de S. “Paisagem midiática, etnicidade e pedagogia cívica”.In.: FREITAS, Ricardo Oliveira de (org.). Mídia alter{n}ativa: estratégias e desafios para a comunicação hegemônica. Ilhéus: EDITUS/FAPESB, 2009.

 

 

*Ricardo Oliveira de Freitas realizou o Pós-Doutoramento no Programa Avançado de Cultura Contemporânea – PACC, do Fórum de Ciência e Cultura – FCC, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. É Docente e Coordenador do Grupo de Pesquisa em Midiativismo e Mídias Alternativas – GUPEMA, da Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC, na Bahia. Foi bolsista CNPq e FAPESB. Autor da coletânea de artigos Comunicação Alter[n]ativa: estratégias e desafios para a comunicação hegemônica, publicado pela FAPESB/EDITUS, 2009.

 

1 O presente texto é parte resultante do Estágio de Pós-Doutoramento por mim realizado no Programa Avançado em Cultura Contemporânea – PACC/UFRJ, sob a supervisão da Profª Drª Heloísa Buarque de Hollanda, entre maio de 2009 e abril de 2010. Não teria sido possível sem o apoio da minha instituição de origem, UESC; do CNPq, que me concedeu uma bolsa PDS; e da FAPESB, através da bolsa de Apoio à Pesquisa. Devido ao espaço determinado pelas normas da Revista, privilegiei o desenvolvimento teórico em detrimento da etnografia e da análise de dados obtidos durante a pesquisa de campo. Para dados e etnografia, ver FREITAS, 2009.

2 Sobre a ideia de “visibilidade sofrida”, ver SILVA, 2009.

3 Jaco Galdino é integrante do Grupo Arte Manha, em Caravelas, e idealizador do Cineclube Caravelas. É o diretor/videomaker que mais vídeos produziu no Cineclube. Entrevista publicada no jornal comunitário O Timoneiro, edição n. 4, jun./jul. 2007 (este, outro projeto do Grupo).