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No Muro | de J. Bamberg


Gyn-Go/BsB-Df Abril/outono 2007
p/ Alice Fátima Martins, Manoela Afonso,
Don José Alvarez
e os meus brabos,
todos, sertanejos, antepassados.

 


Verso 1

No Sertão do Razo, onde nascí, diz-se que aquêle que atravessa as suas terras brutas, em verdade, navega, na sua imensidão sêca, no seu mar entreliçado de caatinga e de calor escaldante. Assim sendo, sou um navegante diferente, pois que, montado num burrão bem reiúno, repente, investido dos meus paramentos, das minhas esporas-4-Potosí, do meu manguá-de-rêlho, peiteira, gibão, luvas e chapéu de barrigueira de suçuapára, perneiras da costaneira do mesmo bicho e tudo o mais que nos componha, abaixo de Deus, dos carcará e dos urubus. Nos seguindo, em sombra, o meu Rizo, cachorro boca-prêta, rajado-caatingueiro-do-rabo-fino. Onde vou, ele, lá… Sou o encourado que por lá trafega os seus recônditos mais inextricáveis à toando a boiada inconsútil em meu tropel. E isso, desde muito antes de até haver nascido, pois que tocou-me vir ao mundo,qual os meus,todos, bem no meio dessa terra ressequida, debaixo de um pé-de-umbuzeiro de frondão bem protetor, refrescador de quase todas as misérias circundantes e ameaçadoras de sempre, logo ao fêcho de um dia de começo de outono, o primeiro com chuvada boa e morna, depois de fechado o sétimo ano de estio por lá.

A menina que me pariu, minha mãe, já assustada, comigo no seu colo a esturricar-lhe os peitos, sedento, puxando-lhe as suas águas no colostro, buscava forças para a nossa travessia em seguida e em riba de um carro-de-bois, em junta traquejada, até o pé do muro que restou de velho sobradão largado lá no meio do tempo, onde nos arranchamos a contra-vento, com todos os petrêchos, animais de monta e carga, agregados, parentalha, e isso, escarreiradamente, depois do meu anúncio, em chôro troado, de que viera a êste mundo para decifrá-lo! E assim, cheguei, chegamos e para isso aquí estamos, todos, em vida de decifrações contínuas, eternas. Riposto velhas sinas. E aqui, hoje,já um velho encourado, curtido nos sóis dos dias, conto-lhes dos “por quê”…

 

Verso 2

Ter um muro como referência,nesses ermos,é destino, Estrêla-de-Belém a ser perseguida.É como marcar a ferro em brasa a saga de ida em frente, até passarmos as horas das formulações, questionamentos e outras instruções de como re-fincá-lo em um ponto adiante na re-invenção do tempo por todos nós, navegantes. Pois, se êle é eterno, e, o é, essa fatia à qual renominamos de, agora, hoje, amanhã, realidade, seria tão sòmente mero recorte, marcação de passagem, afirmação do nosso nome assentado na sua face de pedra e cal, no muro do tempo, do lado que o sol nasce, e êle, o muro preconcebido, está lá desde sempre, qual fragmento do todo, como um arco é uma fração do círculo. Assim, êsse muro/recorte nos precede e se assenta, abrigo primeiro, detalhe da montanha e da caverna que nêle há, brique-a-brique da muralha ciclópica que, ilusòriamente, nos defenderia do , outro, do inimigo, em tempos muitíssimo para trás, antanhos.

 

Verso 3

Um muro é, na verdade, o não-limite-falso-determinado, assinalado, a nos provocar falas internas diante das suas miragens fronteiriças: “…Me ultrapasse. Vença-me e vá-se embora! Vença o mundo e êle será seu, a seu tempo…” . Sendo êle próprio a sua mesma marca revelada à sua própria sombra, na vala que nos separa em antes-e-depois da sua, nossa, construção, anunciando-se em nós, nêle mesmo, em suas lascas de pedra-de-lajêdo amontoadas, fincando o marco do outro lado onde estão os nossos ,e os outros, os inimigos e seus corpos formando o rebôco que forra a outra face desconhecida dêsse mesmo linde, mas, que vemos mui raramente, apenas quando passamos a sua linha de lado, sua claridade ou sombra, luz ou escuridão, o agora ou o desconhecido, nós ou êles, ess’outros, do lado de lá do muro sobreerguido a cada dia das nossas vidas em constante de construção e desconstrução, estampando nossa toda estupidez, nossa insanía, sanha de sangue, o des-limite, o nem ser, a pior forma de validamento do dispensável. É, esse muro, feito da compostagem dos corpos dêsses nossos ,outros, apesar, de, quando em vez, da consciência auto-crítica e sua boa paga em moeda de quase possível, em perenidades de boa Paz.

 

Verso 4

O muro é o arrimo para a miríade de vidas que o constrói, seja para os musgos nas entre-lascas das pedras ou na água barrenta fervilhante de micro-organismos a dar unto à sua massa de rejunte. Sêco, ao sol, parece ôlho de môsca, um pedaço grande de mica laminulada, um broche inteiro de macassita rebrilhante ou um painel de espaços para as mais variadas inscrições, a sangue pisado, a piche, spray, raio laser, sei lá mais o que. Fulano esgravatou-lhe uma rosácea, muito depois do índio ancestre riscar de urucum e sangue vivo a sua vitória contra um mapinguarí improvável. Beltrano fixou em vermêlho-e-prêto as mais terríveis imprecações sôbre si mesmo e sua amada impossível. Sicrano escrachou a todos com palavrões e desenhos de extra-terrestres. E, uma velha senhora, em idiolêto só seu, mas, plenamente compreensível aos seus pares, lascou: ” – têùn càuvãu pafôgu béinbõ 200 alátra” … U’a moça da cidade, veio, fotografou, filmou tudo e perguntou de tudo a todos, e se foi, como um risco feito no muro, de ponta a ponta, em linha irregular a perpassar todas as demais formas e micro-vidas alí postadas… Nêle foi afixado o édito da derrocada de Babel, a fala do, meu, em suas ruínas quanto à dôida afirmação do ,nosso ,e que antes a empilhara em tôrre que buscava os céus do não-futuro, do jeito que se havia, em negação fragílima do imprecatável. Destruída, sobrou-lhe o radier e coisa de metro-e-quase-dois, da sua base original e todo o mais, devidamente calcinados pelo Fogo do Castigo.O muro atávico esboroou-se e o que hoje existe o faz sôbre outros muito antigos muros afundados em raconte de estórias que, repetidas, viraram história: “…Veridiano-benze-quem e seu bravo cachorro ‘Vence-demanda’ morreram fuzilados, igualmente aos seus avós, encostados bem alí, no paredão de pedras, por conta de uma eleição apoiada do lado errado do muro!…”. É o que se diz, lendo-se a sentença da sua condenação real. Aliás, não interessa o contexto se a referência é tão sólida e marcada das cicatrizes do ricochête das balas “7.62-ponta-de-cruz”. O muro ficou e êle, o Veridianão falado, hoje, é um fantasmão, mais o seu cão-alma, correndo pelos bêcos estreitos nas madrugadas sem lua, na Vila de Santantõi de Lisbôna, distrito do Krenguenhén, no Sertão-de-Deus-o-tenha, sussurrando: “-… LIBERDADE!… LIBERDADE!…” O muro, lá, impassível, com as suas espinhas na cara a contra-sol.

Já o meu cachorro Rizo não pode avistar um muro. É só chegar, cheirar e afirmar os limites com a tinta breve do seu mijo ardido, em colocação “ad nauseam” do seu todo poder de bicho-macho. A cada vez que alguém passa, êle avisa em seu latido que aquém do limite tem ,outros,estranhos e que isso não é o certo e que carece de providências e consêrtos, fazendo alarido apoiado na cachorrada moradora de outros cantos de muro, em côro de infeliz concêrto…

Um muro, se mal entendido também poder ser um cêrco asfixiando-nos na fronteira nervosa e medrosa da xenofobia do intra-muros, no mêdo do outro, nos mêdos em régua-torta de perdição da noção básica da razão mínima. Havemos que vencer os mêdos, haveremos que pular os muros, venceremos em vira-mundo, trocando de caminhos, varejando as outras trilhas das verêdas e dos paços, buscando-se as passagens que nos levem à boa água, ao melhor destino, certamente, isso tudo, extra-muros, pois o Sertão, nosso, interior, quer a água da alegria, não se cabendo lindeiro, pois êle mesmo se quer avançar em busca de outros chãos mais úmidos que ofereçam fermento de mais e mais vida em abençoada abundância.

 

Verso 5

Afinal, a gente não nasce para o que esteja marcado na parede singela do muro da vida que recebemos para transformá-la. A vida se quer nisso, nessa mudança a toda hora, por isso, não se cabendo no tempo que a sombra do muro marca. A vida é sempre mais e mais e mais, muito além dos limites, além do horizonte longínquo, do traço das elipses, muitíssimo para lá das zonas mais densas e escuras do cosmo onde nascem as nebulosas com todas as constelações que nem sabemos porquê…

Ela, a Vida, não cabe no muro do universo e vive e revive, sim, no infinito, pousada numa dobra da Mão de Deus, bem p’rá lá de quaisquer muros e nos oferecendo o convite em desafio eterno e simples: “Vem!…” .

 

 

1. Versão condensada.
2. O autor prefere o uso de estilo, em prosa-poemática, como meio de preservação de falares ancestres da nossa língua, ainda falada e assim escrita, no sertão…

 

 

* J Bamberg é sertanejo, baiano, professor pesquisador, humanista.