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Youtube your Facebook! A reconfiguração dos dispositivos audiovisuais na internet e as novas plataformas digitais entendidas como aparelhos de captura e/ou como máquinas de guerra | Ivan Capeller

These are the days of miracle and wonder
Stacatto signals of constant information
This is the long-distance call
The way the camera follows us in slow-mo’
The way we look to us all

(Paul Simon, “The Boy in the Bubble”)

 

Smash the radio
No outside voices here
Smash the watch
Cannot tear the day to shreds
Smash the camera
Cannot steal away the spirits

(Peter Gabriel, “The Rythm of the Heat”)

 

O presente texto procura pensar o papel e a função das plataformas de comunicação digitais na reconfiguração técnica e estética dos dispositivos audiovisuais analógicos que precederam a internet 2.0 na história da indústria cultural dos meios de comunicação de massa modernos (telefonia e fonografia, fotografia e cinema, no século XIX; rádio, cinema sonoro e televisão, no século XX). Pretende-se verificar, sobretudo, se ainda é possível sustentar a pertinência das teorias da comunicação e da cultura de massa baseadas na possibilidade de se opor antiteticamente uma função apocalíptica dos meios de comunicação, considerados como dispositivos ou aparelhos de controle e direcionamento vertical e hierarquizado dos fluxos de informação, à sua função integrada de livre intermediação horizontal e aberta desses mesmos fluxos.

Nesta análise, serão aplicados os conceitos de aparelho de captura e de máquina de guerra à teoria da comunicação.[1] Embora esses conceitos não tenham surgido no âmbito de uma teoria específica da comunicação, sua aplicação em diversas áreas do conhecimento já recebe seus primeiros esboços no último capítulo de Mille Plateaux,[2] e é desenvolvida por Deleuze, no que diz respeito ao campo dos dispositivos audiovisuais, nos seus dois volumes posteriores sobre o cinema.[3] Porém, o nexo entre os estudos, de caráter mais amplo, que marcam os volumes escritos em parceria com Guattari, de um lado, e os volumes específicos sobre o cinema, de outro, só pode ser adequadamente estabelecido a partir da releitura que ambos fizeram da pragmática de Charles S. Peirce.[4] Assim, aplicaremos essa pragmática inicialmente ao cinema, entendido como um dispositivo audiovisual modelar e paradigmático dentre as plataformas analógicas de comunicação características do século XX. Passaremos então aos dispositivos audiovisuais digitais, tentando repensar a dicotomia entre apocalípticos e integrados[5] em suas novas configurações contemporâneas – desde os reality shows do gênero Big Brother (e sua incessante autopromoção dos meios de comunicação de massa entendidos como aparelhos e/ou instrumentos de captura e de controle da informação), até as mais recentes plataformas de comunicação acessíveis pela internet, como o Facebook e oYoutube.

Quando aplicada ao cinema, a pragmática de Peirce possibilita a articulação dos quatro componentes comuns a qualquer dispositivo audiovisual (gerativo, transformacional, diagramático e maquínico).[6] No caso da experiência cinematográfica, seu componente gerativo articula a disjunção assíncrona de imagens e sons, no plano material, à disjunção sincronizada do olhar à escuta, dos rostos e das vozes, no plano audiovisual da expressão. Essa cinemática da mímesis se articula, por sua vez, à práxis cinematográfica por meio da disjunção entre a reprodução do real e a representação do imaginário, a função documental e a função discursiva, o filme como produto e como obra, disjunção essa que perpassa toda a história do cinema, configurando seu componente transformacional. Quanto ao componente diagramático do cinema, revela a sua dupla articulação como a resultante da disjunção entre o plano material do seu conteúdo (técnico) e o plano mental de sua expressão (estética). Ao mesmo tempo, aponta para a complexa questão das relações entre o cinema e a história, isto é, para o seu componente maquínico – articulado simultaneamente nos níveis mecânico e anímico da experiência cinematográfica, o que nos permite pensar o sentido histórico de sua práxis articulado ao problema político do estatuto da técnica nas sociedades modernas.

O dispositivo cinematográfico se conecta historicamente à emergência de diversos aparelhos de captura desenvolvidos no âmbito da ciência e da técnica industriais. Entendido como um aparelho de captura de imagens e, depois, também de sons, o cinema se submeteu aos diversos modelos miméticos de representação gerados no âmbito da história da arte e do espetáculo. O dispositivo cinematográfico é um dispositivo mimético que pode ser, a princípio, pensado como um acoplamento técnico de múltiplos aparelhos de registro (de luz, movimento, som, cor, relevo, etc.). Essa operação assume as funções características de um aparelho de captura: a dupla acoplagem lentes/câmera, microfones/gravador (bem como as técnicas de filmagem com controle da continuidade espaço-temporal e sonora do discurso cinematográfico) organiza a práxis cinematográfica como um trabalho em torno do quadro visual entendido como o centro de gravidade de um processo mimético de captura e apreensão das imagens e dos sons.

Como dispositivo técnico-industrial, o cinema é um aparelho de captura complexo, capaz de conjugar, em seu componente gerativo, o domínio técnico sobre a realidade física das vibrações óticas e acústicas com a maestria estética sobre os modos sonoros, visuais e literários da representação artística. Seu componente transformacional combina estrategicamente a disputa econômica pela conquista de mercados com a tendência à hegemonia ideológica e cultural intrínseca à indústria do entretenimento. Engenheiros do movimento, da luz e do som (fotógrafos, maquinistas e técnicos de som), maestros e condutores do fluxo audiovisual e da narrativa (roteiristas e diretores), empresários e capitães de indústria (produtores e associados): todos são personagens de uma potencial empresa global de captura que constitui, em grande medida, a própria história do cinema como dispositivo audiovisual.

Por outro lado, pensar o dispositivo cinematográfico como máquina de guerra implica a distinção, no interior da dimensão técnica da práxis, entre arma e instrumento.[7] Enquanto aparelho de captura, o dispositivo cinematográfico é um instrumento de apreensão da experiência humana em sua totalidade, tanto em sua dimensão material (trabalho), como em sua dimensão cultural (expressão). Como tal, tende necessariamente a gravitar em torno de certos modelos de representação que possibilitem o sentimento de identificação imaginária entre o espectador e a instância narrativa que organiza o fluxo audiovisual como espetáculo, estriando a superfície da película por meio da codificação significante das imagens e dos sons. Já como máquina de guerra, o dispositivo cinematográfico deve ser pensado como arma de projeção – de imagens e de sons –, sobre o espaço-tempo da tela lisa, regulada pela velocidade do dispositivo. Como arma (e não como instrumento ou aparelho), afeta o espectador por meio da modulação variável de eventos óticos e acústicos.

A máquina de guerra do cinema não obedece a modelos preestabelecidos de procedimento técnico ou de codificação estética, pois se reconfigura incessantemente em seu próprio plano de projeção. Se o momento da filmagem consagra o dispositivo cinematográfico como aparelho de captura (enquanto o momento da montagem, geralmente, corrobora e reforça esse aparelho), o momento da projeção cinematográfica é aquele que pode colocar em risco, no nível estratégico de difusão e propagação dos efeitos possivelmente provocados por um filme, tal operação de captura, provocando uma série de consequências inesperadas. Assim, enquanto estudar o cinema como um aparelho de captura é estudá-lo do ponto de vista de sua produção – seja no sentido industrial ou artístico, técnico ou estético –, estudá-lo como máquina de guerra exige uma teoria da recepção do filme que se situe além da narratologia e do cognitivismo, pensando a triangulação entre projetor, tela e espectador, como um espaço liso de reconfiguração do discurso cinematográfico em que a mímesis cinematográfica é posta à prova.

Em termos autorreflexivos, o cinema contemporâneo demonstra uma aguda autoconsciência do seu componente maquínico enquanto dupla articulação entre aparelho de captura e máquina de guerra, tanto em sua faceta mais artística e intelectualizada como em sua vertente mais comercial, voltada ao entretenimento. No nível estratégico, um filme pode ser utilizado como arma, não necessária ou diretamente de guerra, mas articulada a uma máquina de guerra específica, a determinado fluxo de ideias, desejos e conflitos, que nunca são exclusivamente cinematográficos ou estéticos, pois podem ser de toda ordem, atravessando e perpassando o filme em todos os seus níveis e componentes – como bem o intuiu Sigfried Kracauer em seu ainda hoje essencial De Caligari a Hitler.[8] No filme Vincere, de Marco Bellochio (2009), por exemplo, há uma sequência que se passa em uma sessão de cinema, em 1914, na qual os espectadores se engalfinham em verdadeira batalha campal diante de uma tela de cinema em que um cinejornal anuncia a entrada da Itália na Primeira Guerra Mundial. A projeção cinematográfica figura, aqui, como o estopim da crise social e política que dividiu o país naquele momento, em um recurso sistematicamente utilizado por Bellochio nesse filme. John Carpenter, por sua vez, imagina, em Cigarette Burns[9] (telefilme de 2005), a existência de um filme experimental que estaria terminantemente proibido, devido aos massacres que sua projeção invariavelmente provocava entre aqueles que o assistiam. Tal filme, cujo título seria La fin absolue du monde, representa o próprio componente maquínico do dispositivo cinematográfico como um dispositivo de propagação mimética da ação, livre de amarras representacionais e mediações significantes, e, portanto, como um dispositivo apto à produção social de pânico. Assim, para o espetáculo cinematográfico hodierno, a utopia avant-gardista do específico fílmico se converte em pesadelo distópico, reforçando a necessidade do primado representacional de modelos narrativos, ao mesmo tempo que pretende contestá-los.

Tal impasse é a expressão definitiva de uma tensão constitutiva do dispositivo cinematográfico, em seu componente gerativo, entre o nível especificamente simbólico da representação cinematográfica e o propriamente técnico da reprodução cinemática; essa tensão se traduz, em seu componente maquínico, como a tensão entre a pressão centrípeta dos aparelhos de captura conjugados pelo dispositivo audiovisual (câmera e gravador, roteiro e montagem, trilha sonora e quadro visual) – aparelhos esses que estriam o espaço-tempo da experiência cinematográfica, reterritorializando-a (em cinemas nacionais, por exemplo) e recodificando-a (em gêneros e estilos) – e a tensão inversa, centrífuga, exercida pela máquina de guerra do cinema como projeção de imagens e sons no espaço-tempo liso potencialmente infinito de sua recepção histórica.

A máquina de guerra que subjaz como potência implícita a qualquer dispositivo audiovisual costuma ser encoberta por sua função histórica de aparelho simultaneamente técnico e ideológico de captura. No caso da televisão convencional, aberta e analógica, esse fenômeno aparece de forma ainda mais clara: reality shows, como o Big Brother, são o epítome do dispositivo audiovisual como aparelho de captura total. Todo o tempo de transmissão da TV, com toda a sua audiência, poderia ser capturado por esse virtual aspirador da experiência humana em sua totalidade, projetando a ficção da realidade televisiva sobre a realidade audiovisual do telejornal em um empreendimento de colonização da vida real que apenas reforça o potencial poder direto de captura da experiência já anunciado pelo cinema. Nesse caso, a criação de uma plataforma digital como a internet possibilita apenas a inserção programada e regulada do espectador na programação, por meio de um jogo de estímulos e respostas que os teóricos da comunicação costumam denominar, de maneira algo pomposa, interatividade, restringindo ao máximo o avassalador potencial mimético que uma verdadeira máquina de guerra poderia extrair de tal dispositivo.

O estudo do componente maquínico também nos possibilita pensar, no entanto, como o desenvolvimento tecnológico do rádio, da televisão e de todas as modalidades de vídeo e áudio, ainda que obedeça aos ditames ideológicos e de controle que os organizam em sistemas de comunicação molares, permite aos dispositivos audiovisuais “reconstituir uma imensa máquina de guerra da qual se tornam apenas pequenas partes, apostas ou opostas”.[10] É assim que a vídeoarte, no último quartel do século XX, pôde se apresentar como uma máquina de guerra alternativa aos grandes aparelhos de captura da indústria cinematográfica e da televisão: comparada à tecnologia complexa e “pesada” da impressão em película, o vídeo analógico já apresentava um tipo de agenciamento maquínico mais fluido que o do cinema – o que pode ser amplamente demonstrado pelo uso entusiasmado que o então chamado cinema marginal fazia de janelas (Super-8, 16mm) e texturas alternativas.

Em termos maquínicos, porém, a reconfiguração mais importante dos dispositivos audiovisuais não é ainda a que separa as tecnologias analógicas lisas (fita magnética) das estriadas (película ótica), ou a “linguagem cinematográfica” da “linguagem televisiva”, pois a dicotomia entre cinema e vídeo apenas acentua, quando articulada às tradicionais plataformas analógicas de difusão do seu conteúdo, a disjunção constitutiva de todo e qualquer dispositivo audiovisual enquanto aparelho de captura e/ou máquina de guerra. À possibilidade técnica de difusão de imagens e sons no espaço-tempo liso das ondas de transmissão da TV entendida como uma máquina de guerra, por exemplo, correspondeu a possibilidade técnica da gravação de áudio e vídeo em tapes, ou seja, de aparelhos de captura destinados ao incremento da capacidade de controle de um determinado sistema de comunicação a partir de dispositivos cada vez mais móveis e velozes.

A cada incremento técnico da mobilidade e da ubiquidade desses novos dispositivos audiovisuais, não só novas estéticas e linguagens se apresentam como possibilidades até então inéditas para os dispositivos precedentes, mas, sobretudo, novas plataformas de registro e transmissão de informação se configuram, potencializando novas máquinas de guerra. Se a estética mais característica do cinema contemporâneo, por exemplo, está indubitavelmente ligada aos novos suportes digitais de captação e reprodução de imagens e sons naquilo que estes apresentam de mais próximo às necessidades de uma máquina de guerra, já que são portáteis e fáceis de manusear, leves e velozes, aderindo ao espaço-tempo liso da duração do evento muito mais facilmente que os seus congêneres analógicos, é apenas com a chegada dos dispositivos digitais de alta definição (HD) que se realiza a convergência maquínica do cinema e do vídeo em seus devires entrecruzados como dispositivos audiovisuais, aparelhos de captura e/ou máquinas de guerra desse novo campo de batalhas conhecido como internet. E, assim como o dispositivo cinematográfico mimetizou de maneira canibalesca os dispositivos técnicos e estéticos que lhe precederam (fotográficos, literários, pictóricos, musicais e/ou teatrais), assim como o dispositivo televisivo fez o mesmo com os dispositivos de comunicação de massa anteriores (cinema, rádio e jornal), também a internet funciona como pantagruélica plataforma digital de captura e integração de todos os dispositivos audiovisuais e textuais de que se tem notícia, reconfigurando incessantemente as condições de sua difusão e circulação e também do seu controle e de sua recepção, ou seja, do seu maior ou menor grau de adesão a determinados aparelhos de captura e, portanto, de sua maior ou menor mobilidade em relação a determinadas máquinas de guerra.

O Facebook e o Youtube serão tomados aqui como os dois polos extremos dessa última reconfiguração maquínica dos dispositivos audiovisuais na era da internet 2.0, embora a principal característica dessa nova reconfiguração seja, precisamente, a de uma maior indistinção e ambiguidade entre aparelhos de captura e máquinas de guerra.

O Facebook é um dispositivo que se apresenta, a princípio, como a própria concretização utópica do meio de comunicação de massas perfeitamente integrado, em que a radical horizontalidade dos circuitos de informação não só não impede como pretende até mesmo estimular o compartilhamento personalizado, autônomo e voluntário, de toda sorte de informações. Seu caráter inapelavelmente narcísico, baseado na exposição de perfis pessoais arquivados como fichas em que a banalidade da informação rivaliza com a sua abundância, revela, porém, o modo como novos aparelhos de captura se constituem com base em plataformas digitais presentes na internet. Os dispositivos conhecidos como redes sociais realizam a vigilância integrada da sociedade sobre si mesma, anunciada pelo dispositivo do Big Brother, em um nível de adesão “interativa” inédito em termos tanto de escala como de fluxo de informações. Não por acaso, dentro do novo quadro horizontalizado e multitudinário da internet, dispositivos como o Facebook tendem a reproduzir o padrão quase autista de muitas emissoras tradicionais de TV aberta, comportando-se como se a totalidade do que realmente interessa acessar na rede estivesse inteiramente presente em suas páginas, agregando e assimilando outras áreas e dispositivos da internet ao seu conteúdo próprio, e procurando canalizar e controlar a maior parte do fluxo de informações a partir de comunidades baseadas em todo tipo de identificação imaginária, que configuram, assim, grupos de discussão tendencialmente seletivos e excludentes. Dessa forma, o Facebook acaba reproduzindo, em filigrana e a partir de uma escala maior e mais vasta de abrangência, os processos, que a televisão a cabo dos anos 1980 já havia iniciado, de esquadrinhamento e balcanização do público, por intermédio de suas preferências e hábitos culturais.

O Youtube, por outro lado, demonstra como a internet, como um amplo e disseminado aparelho audiovisual de captura, permite a recomposição estratégica de uma ou mais máquinas de guerra em seus agenciamentos históricos concretos. O Youtube possibilita que pensemos as novas condições de produção e recepção do audiovisual, pois seus agenciamentos ainda escapam, em certo grau, aos grandes aparelhos de captura midiáticos estabelecidos, inclusive na internet, e seu acervo começa a se constituir como uma babélica enciclopédia audiovisual, realizando “postumamente” o fantasma cinematográfico de um dispositivo capaz de abarcar, em todo o conteúdo de sua matéria, a totalidade das formas de expressão. Reconstituindo um espaço liso e veloz de circulação de imagens e sons a partir do espaço previamente estriado pela rede mundial de computadores, sites de compartilhamento de arquivos audiovisuais como o Youtube se contrapõem à lógica de captura da indústria do entretenimento, uma vez que não mais centralizam o espectador em torno do espetáculo e da narrativa, fragmentando a experiência do audiovisual em seus diversos níveis constitutivos e permitindo sua livre recombinação posterior em novas montagens.

Embora a lógica identitário-narcísica que preside as redes sociais também esteja presente aqui, a começar pelo próprio nome do dispositivo, seu efeito específico é bem menos concentracionário e centrípeto: o Youtube é um dispositivo mais propenso ao dissenso e ao desencontro entendidos como modos frutíferos de reconfiguração dos meios de comunicação de massa.[11] Se nem sempre a informação que acompanha o arquivo é confiável ou se o seu conteúdo não corresponde ao nome do arquivo, se a pista de som não corresponde ao som original do filme de origem ou está claramente fora de sincronismo, e, se nem sempre o acesso a um fragmento qualquer garante o acesso posterior a todo um filme ou conjunto de filmes, vídeos e áudios, mesmo assim, ou exatamente por isso, o Youtube exerce sobre os demais dispositivos audiovisuais o mesmo efeito que a internet sobre os outros meios de comunicação – o de uma verdadeira apocatástase de todo o passado audiovisual da humanidade, simultaneamente projetado sobre o nosso instante atual de vigília. Evidentemente, também será possível verificar, dentro do Youtube, áreas mais ou menos fechadas ou exclusivas, controladas por determinadas marcas ou companhias comerciais que padronizam e formatam todo o conteúdo veiculado, seguindo estratégias que configuram o surgimento de ainda outros aparelhos de captura. No entanto, o mesmo argumento pode ser apresentado sob a forma inversa, já que o Facebook, considerado em sua potencialidade ainda não explorada, pode muito bem vir a abrigar, abertamente ou não, certas máquinas de guerra, de letalidade maior ou menor, que eventualmente podem escapar do controle social espontâneo que todos exercem sobre todos nesse verdadeiro sonho orwelliano de consumo.

Essas maiores labilidade e ambiguidade que as noções de aparelho de captura e de máquina de guerra apresentam para o componente maquínico dos atuais dispositivos audiovisuais de comunicação torna possível repensar, com base nas atuais plataformas digitais de transmissão de dados, a maior ou menor pertinência da já clássica distinção entre apocalípticos e integrados para uma teoria contemporânea da comunicação. Se a posição apocalíptica se define, de um lado, como a denúncia generalizada da indústria cultural como um gigantesco empreendimento de captura socioeconômica e político-ideológica da sociedade, são esses mesmos aparelhos de captura desenvolvidos no âmbito dos sistemas e dispositivos de comunicação que permitem a atual integração da sociedade mundial em uma escala sem precedentes históricos; por outro lado, se a posição integrada se define como o elogio inconsequente e acrítico das possibilidades oferecidas à sociedade pelos meios de comunicação de massa, não há dúvidas de que a recepção dessa mesma sociedade à internet se caracterizou, desde o início, pela percepção de que esta última representava uma espécie de apocalipse ou estágio final das formas consagradas de reprodução e transmissão da cultura, notadamente no ramo da indústria fonográfica.

Nesse suposto apocalipse integral, a própria crítica da cultura se vê levada a seus limites constitutivos. Isso porque a integração “total” da sociedade pela internet se realiza idealmente como o apocalipse de todas as formas tradicionais de produção e de transmissão da cultura, levando à superação, no sentido hegeliano do termo, das contradições anteriormente utilizadas na elaboração da sua crítica: categorias e conceitos como os de cultura erudita e cultura popular, saber científico ou saber tradicional, sociedade da vigilância versus sociedade do espetáculo ou alienação ideológica e consciência política, não permitem mais qualquer ilusão teórica acerca de uma possível kulturkritik da era digital que seja capaz de esboçar a paideia do novo século. Emblemática dessa nova situação é a superação da dicotomia entre apocalípticos e integrados nos termos em que foi pensada e aplicada pela teoria da comunicação no século passado: a maior ou menor recusa ou aceitação da indústria cultural pressupõe a maior ou menor adesão simbólica de sujeitos mais (ou menos) integrados à dialética de sua própria sujeição social, enquanto as novas plataformas digitais parecem se basear, cada vez mais, no anonimato e no automatismo das novas formas de servidão maquínica que caracterizam as relações sociais na internet.[12] Assim, da mesma forma que, do ponto de vista da crítica da cultura, as novas plataformas digitais incrementam exponencialmente o nível de integração social e cultural para, com isso, conferir a todos um grau supostamente maior de liberdade subjetiva, são essas mesmas plataformas que, do ponto de vista da crítica da economia política, facilitam de forma igualmente exponencial o incremento do nível mundial de integração do capital e, com isso, supostamente diminuem o grau de liberdade objetiva de que dispomos no controle de nossos próprios fluxos de informação.

Apenas uma análise do componente maquínico dos dispositivos audiovisuais contemporâneos, isto é, das intricadas relações sociais, econômicas e políticas de controle e resistência que perpassam atualmente a esfera da troca de informações digitais, possibilita a compreensão de como – nessa zona de combate que é a internet – tanto as teorias que se inspiram em algum tipo de sociologia da cultura quanto aquelas que pretendem basear-se em uma crítica da economia política do signo não mais se constituem em paradigmas suficientes para a elaboração de uma teoria da comunicação que se torna cada vez mais indiscernível da crítica da economia política tout court.

Nessa análise, o cinema considerado como dispositivo voltado ao registro documental e à memória coletiva (mesmo, e sobretudo, quando a intenção original de um filme ou cineasta não for esta) pode nos fornecer uma série de índices inestimáveis acerca das transformações por que passa o componente maquínico dos dispositivos audiovisuais. Em seu belíssimo filme Sans soleil, de 1982, por exemplo, o cineasta francês Chris Marker consegue nos dar um eloquente testemunho do lugar e do momento histórico em que o dispositivo cinematográfico se deparou, pela primeira vez, com o ainda então inexplorado potencial dos novos dispositivos audiovisuais eletrônicos, analógicos ou digitais.

Nesse filme declaradamente autorreflexivo, narrado/comentado por uma voz em off feminina que afirma ler uma carta escrita pelo cinegrafista autor das imagens que vemos (isto é, o próprio Chris Marker), a paisagem visual e sonora da Tóquio de inícios da década de 1980 é expressa pela alternância entre imagens que apresentam a tradicional textura ótica da película fotográfica e imagens de conteúdo semelhante, porém de textura eletrônica, seja porque vistas através das onipresentes telas de TV e monitores de vídeo da cidade, seja porque já diretamente produzidas como imagens de síntese. Em dado momento, a voz em off que permeia o filme nos introduz a um jovem criador de videogames, Hayao Yamaneko, e às suas imagens de síntese, obtidas a partir de distúrbios e conflitos de rua gravados da TV e posteriormente digitalizados para realçar ao máximo o seu contraste e suas cores, ressaltando o seu aspecto mais gráfico e abstrato de artefato.

Yamaneko, segundo Marker,

(…) tratou as imagens dos tumultos dos anos 1960 no sintetizador. Imagens menos enganosas, diz com a convicção dos fanáticos, do que as que vemos na televisão. Ao menos elas se mostram como são, imagens, e não na forma portátil e compacta de uma realidade já inacessível. Ele chama o mundo de sua máquina, a Zona, em homenagem a Tarkovsky. (…) No fundo, sua linguagem me toca, porque é dirigida àquela parte de nós que insiste em desenhar nas paredes das prisões – um giz a seguir os contornos do que não existe, não existe mais ou ainda não existe. Uma escrita com a qual cada um fará sua lista das coisas que fazem o coração bater, para ofertá-la ou apagá-la; nesse momento, a poesia será feita por todos e haverá tumultos na zona.[13]

Uma “lista das coisas que fazem o coração bater”, de um lado, e “a poesia feita por todos”, de outro: em sua reflexão acerca dessas imagens e sons eletrônicos de trinta anos atrás, pioneiros em relação às atuais plataformas audiovisuais digitais, Marker anteviu poética e profeticamente a internet como uma nova zona ou máquina de guerra, antecipando as novas possibilidades de articulação política e cultural das grandes lutas sociais de que é feita a história da humanidade.

 

* Ivan Capeller é doutor em comunicação pela UFF e professor adjunto da ECO/UFRJ.

 

Notas


[1] Ver, a esse respeito, DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Capitalisme et schizophrénie 2 – Mille plateaux. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980. p. 434-591.

[2] Ibid., p. 592-625.

[3] DELEUZE, Gilles. L’Image-mouvement. Paris: Les Éditions de Minuit, 1983; L’Image-temps. Paris: Les Éditions de Minuit, 1985.

[4] Ver DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix: Capitalisme et schizophrénie 2 – Mille plateaux. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980. p. 140-184.

[5] A formulação tradicional dessa dicotomia encontra-se em ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1993. p. 33-67.

[6] Ver CAPELLER, Ivan. Pragmática da experiência cinematográfica. Cadernos da 14ª Jornada Peirceana: os objetos do signo. São Paulo: PUC-SP, 2011. p. 17-22.

[7] DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Capitalisme et schizophrénie 2 – Mille plateaux. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980. p. 491-502.

[8] KRACAUER, Sigfried. De Caligari a Hitler, uma história psicológica do cinema alemão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.

[9] Referência autorreflexiva às marcas redondas, parecidas com queimaduras de cigarro, que sinalizam a mudança próxima do rolo de projeção das projeções cinematográficas convencionais.

[10] DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Capitalisme et schizophrénie 2Mille plateaux. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980. p. 525.

[11] Exemplar, nesse sentido é o episódio ocorrido no Brasil por ocasião do Ano-novo de 2010, quando o “jornalista” Boris Casoy emitiu frases ofensivas contra os trabalhadores do país durante uma transmissão ao vivo de um telejornal que, além de “vazar para o ar” em cobertura nacional de rádio e de TV, foi registrada e, quase imediatamente, postada no Youtube, impedindo assim o abafamento do caso e possibilitando a sua divulgação massiva para mais pessoas durante muito mais tempo. O episódio ainda está disponível em www.youtube.com/watch?v=wOzCMZrWH5w.

[12] Acerca da diferença entre sujeição social e servidão maquínica, ver DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Capitalisme et schizophrénie 2 – Mille plateaux. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980. p. 570-573.

[13] SANS soleil. Direção: Chris Marker.  Aurora DVD. Coleção cinema essencial v. 4. A tradução do off é minha.