Tive a alegria de conhecer Moema Viezzer há quase 20 anos no âmbito do Fórum Paulo Freire e do Fórum Social Mundial e, a partir daquele momento, fiquei tocada por sua história de iniciativas e compromisso com o meio ambiente, as mulheres e a educação popular. Nesta entrevista[1], realizada na cidade de São Paulo em meio a atividades vinculadas ao lançamento do seu mais recente livro, Vocação de semente – a história de uma facilitadora da inteligência coletiva, procuramos dialogar especialmente acerca de questões relativas ao lugar da mulher no pensamento e nas práticas pedagógicas.
O que você poderia me dizer de Moema Viezzer?
Moema Viezzer: Sou brasileira, nascida em Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, filha de agricultores de origem italiana, a primeira de seis irmãos. Passei minha infância em diferentes cidades (São Marcos, Farroupilha, Rio Pardo). Aos 9 anos, fui estudar como aluna interna num colégio de freiras, com a pretensão de ser uma delas. Meu sonho de criança era ser professora e a possibilidade que eu tinha era a de ser freira como as minhas professoras. Estudei no convento São José até me formar como “normalista”, coincidindo também com meu engajamento na Comunidade das Irmãs de São José, para a qual trabalhei particularmente durante o Aggiornamento orientado pelo Vaticano II. Após essa experiência internacional, fui morar no Nordeste do Brasil, onde conheci várias pessoas que atuavam com base na filosofia e metodologia de Paulo Freire. A partir da leitura da Pedagogia do oprimido, tornei-me também discípula deste mestre, que acompanhei durante muitos anos atuando como educadora popular. Orientei-me principalmente para duas áreas: a educação popular feminista e a educação popular ambiental. Primeiro com grupos populares, movimentos sociais e ONGs, depois também como consultora para órgãos do poder público e empresas. Atualmente vivo em Toledo. Estou aposentada, mas continuo atuando dentro de minhas possibilidades, do âmbito local ao internacional. Este ano foi lançado um livro sobre minha história enquanto facilitadora da inteligência coletiva, a partir de entrevistas e interação com a jornalista Tereza Moreira. Também estou concluindo um livro com Marcelo Grondin, meu marido, sobre “o genocídio dos povos originários do continente das Américas”, e estou acompanhando, a distância, a reedição, em espanhol, de Si me permiten hablar (“Se me deixam falar”)[2], que está sendo feita na Bolívia 40 anos depois da publicação original
Qual o legado de Domitila? Qual foi a contribuição para sua atuação após o encontro com ela?
Moema Viezzer: A publicação de Se me deixam falar veio como consequência da minha participação na Tribuna paralela à primeira Conferência das Nações Unidas sobre Mulher, Desenvolvimento e Paz, que foi um momento importante para a humanidade. Pode-se dizer que foi um marco histórico que teve muitos desdobramentos no sentido de desvendar a situação da mulher, tanto em termos de sua subordinação milenar ao homem como em termos de sua contribuição essencial para a vida neste planeta. À primeira conferência sucederam-se outras com conferências intermediárias que culminaram na Conferência de 1995, quando os governos aprovaram a Plataforma de Ação de Beijing, um documento que até hoje serve de referência para quem trabalha com políticas públicas para mulheres em prol da equidade de gênero.
Como foi o processo de publicação do livro Se me deixam falar?
Moema Viezzer: Se me deixam falar é o testemunho de uma mulher das minas de estanho da Bolívia, uma mulher que chegou até a 4ª série do curso primário e, no entanto, acabou sendo uma mulher que esteve ao lado de Eduardo Galeano, Noam Chomsky e importantes figuras do movimento feminista em eventos internacionais. Ela se tornou uma protagonista dos direitos humanos no âmbito internacional, graças à publicação, em vários idiomas, do seu testemunho de vida que eu recolhi por ocasião da Primeira Conferência das Nações Unidas realizada no México em 1975 sobre Mulher, Desenvolvimento e Paz, quando ambas participamos da Tribuna Internacional da Mulher, o evento paralelo à Conferência.
Eu diria que o livro, tal como foi publicado, é uma manifestação de como saberes que se constroem de maneira diversificada podem dialogar e dar margem a novas criações. Eu tinha o saber de uma pessoa que havia feito o magistério, uma experiência de educadora popular adquirida principalmente nos anos em que vivi no Nordeste, e tinha experiência como assistente de pesquisa na Universidade de Manchester, quando acompanhei meu marido que fez o doutorado. Mas o que Domitila sabia e o que eu sabia eram coisas diferentes. E o que sabíamos as duas de diferentes maneiras era expresso de maneira diferente. E foi da junção de nossos saberes que resultou a publicação de Se me deixam falar.
Na construção do saber coletivo, uma das questões é aceitar a diversidade, a sociodiversidade. Trabalhando com homens e mulheres de diversos setores: trabalhadores rurais, sindicalistas rurais e urbanos e outros, tive a oportunidade de perceber o quanto é importante, quando se reúnem pessoas de classes e setores diferentes na busca de soluções coletivas, ter clareza e sensibilidade para as diferentes formas de percepção e de atuação das pessoas e dos grupos sociais. Inclusive, dentro do mesmo grupo social.
Nunca esqueço, por exemplo, uma experiência que tive em Recife, na formação de um grupo de pescadoras e pescadores quando chegou a oportunidade de vender uma área de mangue para uma imobiliária. Os homens achavam o máximo ganhar um bom dinheiro para transformar aquela área em um conjunto imobiliário, enquanto as mulheres diziam: de jeito nenhum, aqui não vamos permitir que se mate a maternidade dos peixes. Olha a visão diferenciada que tinham! Lembro também do exemplo de uma proposta a respeito de uma fábrica venezuelana de cimento que poluía muito a redondeza. Quando se tornou objeto de discussão de mulheres e homens que sofriam os efeitos da poluição, os homens queriam que de qualquer jeito aquela fábrica permanecesse porque dela estavam tirando o ganha-pão; mas as mulheres diziam que não era assim… que a fábrica podia ficar na Venezuela, mas não naquele espaço onde estava estragando a saúde de todos, sobretudo das crianças.
A percepção que a gente tem da realidade depende da forma como está inserida nos vários espaços da sociedade, inclusive dentro da unidade doméstica. Por isso são tão importantes os diálogos, as rodas de conversa em função de tal ou qual questão ou problema em pauta, dando possibilidade de ouvir todos os lados, cedendo, ampliando, complementando, construindo uma inteligência coletiva até chegar a ver juntos a realidade a ser transformada.
Eu acho este um desafio, neste momento em que presenciamos um avanço exponencial dos meios de comunicação, especialmente dos meios de comunicação eletrônica. É tanto o que se tem disponível! Mas não é pelo fato de termos esses meios que nos comunicamos mais. Inclusive, a gente nota no uso do Facebook, do Instagram, do Whatsapp, e vários outros que temos à disposição que, se não aprendermos a administrar esses meios, eles podem se tornar meios de in- comunicação: você diz e o outro não ouve, o outro fala e você não escuta.
Precisamos de educação para aprender a administrar tudo aquilo que está disponível para utilizarmos. Só para dar outro exemplo: lembro que, certa vez, conversando com Rose Marie Muraro, ela dizia: a pílula anticoncepcional trouxe a liberdade da mulher. Eu comentei, nesse mesmo sentido: a pílula não é mais do que um instrumento que a mulher pode utilizar para sua liberdade na área reprodutiva; se tivesse, de fato, trazido a liberdade para a mulher, o Brasil não seria o segundo país do mundo com problema de alta porcentagem de adolescentes grávidas, não é mesmo? Toda oportunidade nova traz a necessidade de uma nova aprendizagem.
Vejo que tudo isso está relacionado com a questão da inteligência coletiva que pode exponencialmente estar sendo trabalhada para chegarmos a ser uma sociedade que constrói a paz, uma sociedade que pensa na comunidade de vida. Estamos num momento histórico em que se tornou urgente aprender a “recolocar as coisas no seu lugar”, porque estamos vivendo em um mundo desorganizado, no qual as leis do mercado regem a forma de organizar a sociedade, tornando a vida insustentável. Temos que aprender como administrar a abundância existente no planeta em função da vida da comunidade humana e dos demais seres que constituem toda a comunidade de vida, colocando a economia a serviço da sociedade e do meio ambiente. Essa é uma revolução que precisa acontecer neste mundo globalizado, no qual se situa também nosso país. Do jeito que estamos vivendo no Brasil não dá para continuar; corremos risco de não sobreviver nem como espécie humana.
Com a mudança cultural atual, como lidar com a vulnerabilidade, a decepção, o desencanto e o fracasso?
Moema Viezzer: A mudança de cultura transcende, definitivamente, mudanças de governos, de leis e até de alguns costumes. E como a cultura patriarcal é milenar, essa mudança é especialmente complicada. Acho importantíssimo, sim, a presença massiva das mulheres em tudo o que se refere à transformação social. Em qualquer espaço e em qualquer assunto, inclusive do próprio ser mulher na sociedade, de ser pessoa-ser humano, nas relações interpessoais, familiares e comunitárias, nas relações que a gente cria nas instituições com as quais a gente se liga – associação, sindicato, igreja, partido político e outros. As mulheres têm um jeito diferenciado de olhar a realidade. É um caminho a ser trilhado para homens e mulheres enquanto seres humanos. Eu acredito que é possível criar relações equitativas respeitando a diversidade.
A sociedade patriarcal foi construída priorizando o homem em detrimento da mulher, o que trouxe, na estrutura das sociedades, a dominação de um sexo sobre outro e a exclusão de muitas pessoas por orientações sexuais diferentes da heterossexual. Não se pode esquecer que até pouco tempo, em nossa civilização, de acordo com a lei romana, a mulher era propriedade do homem, tal como uma mesa, uma cadeira, um animal… e o homem podia fazer com ela o que quisesse, por vezes de maneira igual e até pior do que para escravos. Não foi sem razão que a escritora egípcia Nawal El Saadawi incluiu em seu livro A face oculta de Eva que, em certo momento da história, foi dada “liberdade para o escravo, mas não para a mulher”. E, por incrível que pareça, até hoje existem pseudocientistas que conseguem afirmar que a mulher é um ser inferior ao homem por natureza, em vez de reconhecê-la como um ser humano diferente. O patriarcado é uma forma de organização sociocultural milenar que ainda não apresentou sinais de rápida extinção.
A subordinação da mulher ao homem, enquanto questão estrutural, é uma das difíceis questões a serem encampadas a partir de novas concepções e ações individuais, bem como da redefinição de todos os atores sociais que interferem nas mudanças que se buscam.
Em todo o mundo é possível constatar como as leis não conseguem muitas vezes acompanhar o avanço civilizatório da humanidade e, muito menos, coibir atos de certos detentores do poder sobre as populações, particularmente sobre as mulheres. Modus vivendi ainda permitem assassinatos, aceitam estupro da mulher ‘por ser mulher’, consideram ‘natural’ que as mulheres sejam menos remuneradas do que os homens, não aceitam a partilha do poder… a lista inteira seria longa! Estamos frente a um terreno muito vulnerável exatamente por tratar-se da “revolução mais longa”, como dizia Juliet Mitchel já na década de 1960.
Sobre meus desencantos, nem preciso falar o quanto me chocou a nova gestão das políticas nacionais no que se refere a questões básicas de direitos humanos, incluindo a diversidade racial e a questão de gênero. Durante mais de uma década, eu me sentia muito fortalecida em minha atuação como educadora popular estando “alinhada às políticas nacionais”. Claro, podemos continuar falando das grandes declarações planetárias. Mas, que diferença!
Também fico muito decepcionada em ver como o sistema de educação que temos não consegue chegar ao âmago do que deveria ser o ensino no momento atual. Pessoas que passaram pelos vários níveis do saber formal, às vezes com doutorado, pós e outras especializações, ainda são tão limitadas e ignorantes em relação às questões básicas que estamos defendendo quando trabalhamos sobre a diversidade social, a começar pela primeira diversidade existente entre os seres humanos: sua identidade de gênero. Basta abrir o Google e procurar a palavra “mulher” para ver o quanto ainda existe de atraso na humanidade em relação a isso.
Nossa! Haveria tantas coisas a dizer…
O que dizemos quando falamos do feminino no pensamento e nas práticas educativas?
Moema Viezzer: Existe “um outro jeito de ser” que permite a abordagem dessa questão em vários níveis. Uma delas, que remete a outras concepções e outras práticas é, sem dúvida, a revisão da linguagem – falada, escrita, visual, eletrônica. O fato de não aceitar O HOMEM como a referência única da criação e assumir a diversidade na forma de falar, de escrever, de tratar as imagens, é uma forma de abordar o feminino em sua questão relacional.
Nas práticas educativas, isso se faz não só a partir de exposições verbais, mas de práticas que ajudam a lidar com a diversidade como algo “bom para todos e todas”. Há muitos textos de suporte, métodos, dinâmicas, jogos, exercícios pedagógicos que podem contribuir para isso.
Qual a sua impressão sobre a educação popular e o movimento feminista?
Moema Viezzer: Tenho a impressão de que hoje em dia já existe bastante aproximação entre ambos. No início não foi assim. Os que se dedicavam à educação popular não podiam ouvir falar do feminismo: diziam que dividíamos a classe trabalhadora. Na verdade, a classe trabalhadora estava dividida pelo capital exatamente por ser considerada um bloco monolítico: sem sexo e orientação sexual, sem cor, sem idade. No caso do feminismo, houve um tempo em que os grupos de vanguarda não conseguiam “misturar-se” aos movimentos e organizações populares e vice-versa. Foi com o tempo que a questão começou a ter uma compreensão mais ampla nas instituições, começando por criar espaços específicos como departamentos, secretarias, comissões. E foi muito importante a criação de grupos e associações específicas de mulheres para levantar a questão de forma mais ampla, no sentido do cultivo da diversidade como uma questão de direitos humanos iguais.
Como você percebe a ciência, a arte e a tecnologia em feminino?
Moema Viezzer: Eu diria que há muito que avançar nesse sentido. Nas universidades, em geral, falta essa visão do feminino, particularmente do feminino apontando para novas “relações sociais de gênero” como condição para chegar à equidade. Existem muitos Núcleos de Estudo de Gênero que fazem bons trabalhos, mas nem sempre conseguem que isso permeie as várias esferas do saber, como uma nova prática dos espaços de produção do conhecimento. Como a tecnologia é fruto do conhecimento, também entra nessa mesma limitação ainda visível.
Na arte, me parece também que há muitos avanços. Mas a arte, como tal, ainda continua sendo uma arte patriarcal e novas formas de fazer arte, expressando aspectos sobre o qual estamos dialogando, são mal interpretadas.
Diante da diversificada produção de conhecimentos, como certificar saberes?
Moema Viezzer: Você quer dizer “patentear”? Sou totalmente contra o patenteamento de saberes coletivos como os das populações indígenas, por exemplo.
Da mesma forma, sou contra o patenteamento de saberes de uso comum durante séculos (plantas, ervas, receitas de cura, por exemplo), alguns durante milênios, como ocorreu com o Nim na Índia (árvore utilizada pelas comunidades indianas para a produção de madeira, fabricação de extratos e para fins medicinais. Foi patenteada nos Estados Unidos, mas foi derrogada pela denúncia de grupos vinculados à ecofeminista Vandana Shiva).
Como você vê, especificamente, a questão de gênero na educação?
Moema Viezzer: É uma lástima ter que constatar como a categoria de análise sociológica das “relações sociais de gênero” foi processada, manipulada e reduzida. Eu tive o privilégio de acompanhar o grupo que criou essa categoria de análise nos anos 1970, transcendendo a categoria de gênero utilizada pela psicologia. No âmbito da sociologia, a análise das relações de gênero veio para demonstrar como, em diferentes realidades sociais, as relações que se desenvolvem entre homens e mulheres ao longo dos tempos são históricas, ou seja, são criadas, recriadas, modificadas ao longo da história. Não são biologicamente naturais. E assim como foram historicamente criadas, também podem ser historicamente modificadas, como parte do avanço da humanidade. E estão sendo, efetivamente, mesmo com muita dificuldade e lentidão.
Essa forma de analisar a realidade ajuda muito a entender a importância de as mulheres ascenderem ao estudo, ao trabalho, à vida social, administrativa, política, nos mais diversos âmbitos, do local ao planetário. Mulheres e homens precisam viver bem, em igualdade de seres humanos respeitosos de suas diferenças. Para tanto, as sociedades precisam organizar-se dessa forma, pensando não só nas pessoas adultas, mas também nos jovens, adolescentes, crianças, pessoas idosas. Desse caldo emergirá uma nova consciência coletiva, incluída a consciência das relações de gênero equitativas.
Penso que o reducionismo da palavra gênero, que chegou até o Plano Nacional de Educação, tornando lei que não se empregue a palavra gênero, é um sinal de ignorância por uns e de má fé por outros. Foi eliminado o termo principal: as “relações sociais” levantadas pela questão de gênero e, em certos meios, limitado o conceito ao vocábulo transgênero. Uma lástima.
Quando falamos de relações sociais de gênero equitativas, estamos falando no total respeito à diversidade de sexos e de orientações sexuais e na possibilidade de os seres humanos conviverem em sociedade dirigindo empresas: homens e mulheres podem fazer política, mulheres e homens podem administrar a unidade doméstica, mulheres e homens são responsáveis pela educação das novas gerações. São mudanças estruturais na forma de dirigir, de empregar, de educar, enfim, de conviver, que supõem mudanças grupais e individuais.
E com relação à questão de que é a mulher quem educa, o que você pensa?
Moema Viezzer: O patriarcado está interiorizado nas mulheres também, mas até isso é uma questão estrutural. Só para citar um exemplo: a violência hoje espalhada pelas casas e nas ruas pode ser atribuída a mulheres que não educam seus filhos? Os fatos comprovam que não é assim e que estamos frente a um fenômeno que faz parte de uma questão muito maior e que afeta – inclusive de maneira muito especial – as mulheres.
O professor está preparado ou disposto a dialogar com estudantes que se declaram híbridos, sem gênero ou sexo definido?
Moema Viezzer: É difícil porque não estamos preparados para isso. Eu mesma, se tiver que lidar com essa questão em meu cotidiano, dentro de casa, precisaria aprender a lidar com tal complexidade; é uma formação que eu não tive. O que acho errado é “etiquetar” uma pessoa, um ser humano, um cidadão-cidadã exclusivamente a partir de sua orientação sexual. É importante que este seja acolhido como uma pessoa em sua totalidade física, psicológica, material, espiritual, com todos os direitos de um ser humano ao trabalho, ao lazer e à convivência.
Você considera que essas questões pedem mais diálogo sobre as várias compreensões do feminismo e das feministas?
Moema Viezzer: O feminismo em suas várias correntes – os vários feminismos – questionaram profundamente os preconceitos ligados ao fato do que é ser feminina e, mais do que isso, as estruturas sociais que os alicerçaram. Há muito estereótipo ainda sendo revisto e também estão sendo repensados os muitos fatores sociais que levaram à bipolarização das relações entre mulheres e homens. As diversas correntes do feminismo trouxeram à tona ações pessoais e interpessoais, demonstrando que estamos frente a uma questão social estruturante.
Acredito que é a dimensão política (retomando a educação e Paulo Freire) que aparece nesse fato de pensar o lugar da mulher…
Moema Viezzer: Sim. A sociedade é feita de mulheres e homens, de diferentes idades, de diferentes opções, e a gente tem que criar formas novas – e diferentes – de convívio na sociedade. Afinal, essa é a dimensão da política. E como lembravam as feministas já nos anos 1960: “as questões pessoais são questões políticas”.
O que você sente quando se defronta com o atual movimento de retrocesso, de conservadorismo, da emergência de ideias e atitudes fascistas?
Moema Viezzer: Fico triste com muitas coisas que vêm acontecendo. Com o fato de ver pessoas de idades diferentes ouvindo e vendo Bolsonaro, apesar da maneira nefasta de ele tratar as pessoas, particularmente as mulheres, de achar que violência se rebate e se resolve com mais violência, de engrandecer o jeito ditatorial militar de governar. Tanta gente a quem não faltou estudo ainda é capaz de dizer que se precisa de “alguém assim para pôr ordem no país”. Pesado, não é?
Também é chocante ver tanta gente que esteve na rua para pedir a saída de quem estava governando antes e agora percebe que não foi acertado, mas ainda não tem consciência de que o que vai resolver as questões do país é um ato mais coletivo e que nossos atos também são responsáveis pelo que vem ocorrendo no país. No caso da escolha de dirigentes, por exemplo, em sua maioria nossos atuais supostos representantes no Congresso Nacional só pensam em si mesmos, em como se reelegem e, mais do que isso, em como se reelegem a partir de comportamentos totalmente viciados. Estamos vivendo um momento bem difícil. Vamos precisar inventar, criar outras forças sociais capazes de mostrar que nós, cidadãos e cidadãs, também valemos neste país.
As mudanças estruturantes que estamos conhecendo atualmente em parte representam um soco no estômago de quem durante muito tempo esteve lutando por transformações sociais em benefício das populações. Puxa vida! Tudo o que a gente aprendeu e conseguiu levar à frente enquanto “sujeitos históricos”, como sempre insistia Paulo Freire. Por que isso tem que ser reprimido e sucateado, fazendo-nos voltar muitos anos na condução de nosso destino?
Você conheceu Paulo Freire?
Moema Viezzer: Sim, eu trabalhei com equipes freirianas no Nordeste do Brasil – Pernambuco, Bahia, Maranhão –, quando Paulo Freire já estava no exílio. Depois, quando voltei do exilio, morei num bairro próximo de sua residência e a gente se encontrou várias vezes. Contribuí para sua presença em vários eventos internacionais. Ele me ajudou muito quando voltei ao Brasil até para decidir como continuar o trabalho que tinha iniciado com Domitila no México e dado seguimento com mulheres da República Dominicana e do Haiti. Ao retornar ao Brasil, estava num dilema: vou para um bairro e me dedico a trabalhar localmente com mulheres como educadora popular, ou procuro uma forma de envolvimento que me permita trazer para cá o que tinha aprendido no exílio? Porque, na verdade, toda moeda tem duas faces: se por um lado o exílio foi muito difícil de viver, foi também um momento em que aprendi muito. Tive a possibilidade de conhecer outras realidades e trabalhar com mulheres diferentes, e de aprender também muito sobre feminismo e aplicá-lo na educação popular no âmbito da América Latina, da qual tive a oportunidade de conhecer muitos países.
Em algum momento esse feminismo foi rejeitado?
Moema Viezzer: Quando voltei do exílio, no final da ditadura, os grupos de mulheres populares que você encontrava eram, majoritariamente, os que tinham estado dentro dos grupos das Comunidades Eclesiais de Base. Então, eu pensei: vamos ver o que dá para fazer junto com esses grupos. E tive a sorte de poder iniciar meu trabalho nesse sentido com um projeto do qual participaram clubes de mães e grupos de mulheres de São Paulo. Sobre 100 grupos de mulheres que entrevistamos no início da década de 1980, somente um falava sobre “os direitos da mulher”. Mas ali já existia um trabalho que não era de corte assistencialista, um trabalho com base na Teologia da Libertação que tinha ajudado as mulheres a entender como funcionava a economia do país e o porquê das discrepâncias sociais. Parecia um terreno bem propício para trabalhar as ideias do feminismo.
Então começamos a trabalhar com esses grupos temas feministas com a metodologia de educação popular: partindo do concreto ao abstrato, do particular ao geral, do local ao global. Não nos preocupamos em explicitar conceitos desde o início. Para as mulheres participantes, foi muito mais fácil, após alguns meses de trabalho, entender que o que elas traziam à tona eram assuntos do movimento feminista e então explicar “o feminismo enquanto instrumento teórico e prática política”, como falava a argentina Judit Astelarra. Foi muito legal porque um dos grupos, inclusive, criou uma associação autônoma de mulheres, a Associação de Mulheres da Zona Leste, que continuou na caminhada e hoje faz parte da coordenação do movimento de mulheres da região. Processos similares aconteceram com outros grupos com os quais trabalhamos posteriormente em vários cantos do país.
Falando com Lutgardes Freire, filho caçula de Freire, ele nos contou acerca do seu exílio e sobre a questão do machismo naquele contexto. Como você avalia isso?
Moema Viezzer: Quando conheci Paulo Freire, ele era um grande patriarca, supereducado e muito amoroso. Era fruto de sua própria formação, mas nunca deixou de querer aprender.
Em relação ao assunto de que estamos falando, Freire tinha consciência de que era um aspecto com o qual ele não tinha trabalhado no início, mesmo se tratando de “oprimidos” e de “sujeitos históricos”. Foi uma evolução interessante a que aconteceu com ele. Lembro-me de um encontro de educação popular em Piracicaba, acho que em 1986, com a presença de aproximadamente 700 educadores e educadoras, no auditório da Universidade Metodista. Quando abriram a palavra após a intervenção dos expositores da mesa, escutei três ou quatro perguntas e fiz esta pergunta a Paulo Freire: como o sr. avalia a questão das mulheres na educação popular? Nossa! A reação da plateia foi de quase total rejeição. Mas Paulo Freire, respondendo simplesmente, de acordo com o que ele pensava e até onde ele tinha chegado, disse: “Se eu me permitisse oprimir a minha esposa e as minhas filhas, eu não me permitiria estar aqui na frente de vocês falando em educação, porque é muito importante que a gente saiba que qualquer forma de opressão deve ser atacada. Mas eu acho que essa questão de opressão das mulheres, elas é quem vão nos ensinar. Vamos ter que aprender com elas”.
E aprendeu! Em seu livro intitulado Pedagogia da esperança, Paulo Freire revisa várias questões da Pedagogia do oprimido a partir das críticas que recebeu das mulheres. Um dos pontos centrais é a questão da linguagem, mas a linguagem enquanto forma de expressão de toda uma cultura. É bonito ver a evolução de um grande filósofo-educador como ele.
Nossa linguagem e práticas inclusivas já estão chegando ao cotidiano das pessoas e das instituições como fruto das mudanças que propugnamos. Já fizemos muita coisa chegar a conferências internacionais que os governos assinaram. Mas como é difícil passar do papel para a prática! Investe-se muito para chegar às cúpulas tanto no âmbito nacional como internacional. Quanto dinheiro, quanta reunião, quanta assembleia, quanto evento para chegar à cúpula! Mas, de forma geral, não se emprega suficiente tempo, dinheiro e trabalho para aplicar o que foi decidido na volta à planície do cotidiano, que é onde a vida acontece.
Sempre insisti nesse aspecto enquanto educadora popular. O último trabalho que fiz diretamente relacionado com feminismo e educação popular foi quando saiu o II Plano Nacional de Políticas para Mulheres, resultado da 2ª Conferência Nacional de Políticas para Mulheres, da qual participaram mais de duzentas mil mulheres nas conferências municipais, estaduais e nacional. Como retornar? Quando recebemos nos municípios o texto técnico, logo pensei na importância de transformá-lo numa linguagem e metodologia que facilitassem a aplicação no âmbito local. Então preparamos uma versão adaptada que intitulamos: Nosso Plano em Ação, com dez cartilhas, uma para cada eixo do Plano, com propostas concretas de mutirão para cada um dos temas, envolvendo todos os atores sociais que interferem nas políticas públicas para mulheres em cada área: saúde, educação, comunicação etc., mostrando claramente que esse Plano não era só “assunto de mulher”, mas assunto de políticas públicas, ou seja, de todos e todas. Para cada tema era sugerido um mutirão com questões envolvendo a prefeitura, o legislativo, o judiciário, as empresas, os meios de comunicação, as organizações da sociedade civil, os partidos políticos. Praticamente era um diagnóstico que permitia partir para o planejamento. Foi um trabalho muito gratificante, aproveitado por vários grupos de todo o país, entre eles várias organizações de mulheres agricultoras.
E como estão essas políticas hoje?
Moema Viezzer: A sensação do momento é de “desmonte”. O governo atual acabou com a Secretaria de Políticas para Mulheres ligada à Presidência da República; o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher já não conta com as conselheiras da sociedade civil, que se retiraram. Está tudo muito difícil. No âmbito local também, porque isso teve um efeito cascata.
Para encerrar esta conversa, gostaria que falasse um pouco dos referenciais teóricos que estão presentes na sua reflexão e nos seus trabalhos.
Moema Viezzer: Sem dúvida, minha formação de educadora popular esteve muito marcada pelos escritos de Paulo Freire e a prática que eu tive a oportunidade de ter com a equipe diretamente ligada a ele, além dos mestres da Teologia da Libertação, particularmente Leonardo Boff, Ivone Gebara e Marcelo Barros. A partir do exílio, fui agregando outros insumos e, paulatinamente, orientando meu trabalho principalmente em função da educação popular feminista e da educação popular ambiental. Com relação à questão feminista, foi marcante minha participação na Tribuna paralela à 1ª Conferência das Nações Unidas sobre Mulher, Desenvolvimento e Paz no México, onde se deu meu encontro com Domitila, a partir do qual desenvolvi muitos trabalhos começando pelo livro Se me deixam falar, seguido de muitos outros na linha da educação popular feminista.
Eu diria que a pessoa que mais me marcou e me fez entrar nesse universo foi Kate Young, uma das integrantes do grupo da Inglaterra que criou a categoria de análise das relações sociais de gênero e me convidou para o primeiro Seminário Internacional sobre o tema realizado em Sussex em 1978, a partir do qual muita coisa mudou em minha vida pessoal, de ativista social, e em meu trabalho de educadora popular. Na questão ambiental, a física indiana Vandana Shiva e a socióloga alemã Maria Mies, duas ecofeministas internacionalmente conhecidas, são as que mais me inspiraram para incluir na dimensão ambiental o que eu tinha aprendido enquanto educadora popular feminista, ou seja: a revisão global do contato do ser humano com a natureza a partir da visão das mulheres, particularmente a partir do ecofeminismo.
Muitas pessoas cruzaram meu caminho, mas acho que essas me marcaram de maneira muito especial. E, sem dúvida alguma, o diálogo de saberes que se dava na prática da educação popular feminista trouxe uma espécie de novo “caldo cultural” que, dentro de minha capacidade, fui absorvendo ao longo deste mais de meio século de minha existência no qual estive empenhada em facilitar a inteligência coletiva.
* Margarita Victoria Gómez é pesquisadora visitante do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ). Atua em pesquisa sobre Educação Superior e Migração no Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (NUPRI) e no Centro de Estudos Rurais e Urbanos (CERU) na Universidade de São Paulo. Coordena a Virtus Educação e Pedagogia da virtualidade. Publicou vários artigos, livros e vídeos. Email: mvgomez07@gmail.com.
Notas
[1] A entrevista foi realizada por Margarita Victoria Gómez em dois momentos: um por e-mail e outro presencial, no dia 18 de dezembro de 2017, na cidade de São Paulo. A entrevista foi editada para fins desta publicação.
[2] Si me permiten hablar: testimonio de Domitila, una mujer de las minas de Bolivia / Barrios de Chungara. Domitila; Viezzer, Moema, 1. ed. México: Siglo Veintiuno, 1977.