Luiz Eduardo Soares[1] já é velho conhecido do público em geral. Considerado um dos grandes nomes da segurança pública, o antropólogo e cientista social foi coautor do best-seller Elite da Tropa, que chegou às telas brasileiras como Tropa de Elite I e II, pela direção de José Padilha. Em seu mais novo livro, Luiz Eduardo Soares resolveu se aventurar numa seara distinta. Em vez da violência e do caos da segurança, o que ganhou corpo em sua última obra foi um projeto de natureza escolar. Vidas presentes, lançado em junho de 2017, publicado pelo grupo Pigma Realize e com gravuras do artista Francisco Maringelli, trata de um projeto que se destaca pela importância social e pela tenacidade de seus articuladores e articuladoras. O projeto Aluno Presente, iniciativa da Associação Cidade Escola Aprendiz, com o apoio da Secretaria Municipal de Educação e da Fundação Education Above All, durante três anos teve como objetivo o desenvolvimento de ações que visavam a “garantir o direito de acesso à educação básica das crianças e dos adolescentes de 6 a 14 anos na cidade do Rio de Janeiro, atuando principalmente na identificação e localização daqueles que não estavam matriculados e na prevenção da infrequência e da evasão escolar”, como afirmam Natacha Costa e Eliana Sousa Silva, representantes do projeto, numa das notas que antecedem os textos que integram o livro.
Falar em estratégias que garantam o acesso das crianças brasileiras à educação básica e a sua permanência é um tema naturalmente desafiador que, por mais que seja alvo de permanentes discussões, jamais é resolvido, como tampouco se esgota. Por mais que se saiba disso, nada prepara o leitor para o tipo de experiência que Luiz Eduardo Soares relata nos textos de Vidas presentes. Com um trabalho de incursão minucioso e delicado, sempre à mercê dos poderes paralelos que dominam a cidade do Rio de Janeiro – o tráfico e a milícia –, cada relato parece um caso de resolução absolutamente impossível, em que se vê como crianças são abandonadas à própria sorte pelo sistema. É nesse ponto nevrálgico que se inserem os articuladores e articuladoras. Usando uma metodologia de perfil inédito, trabalhando em instâncias que iam desde uma “gestão intersetorial” até a busca ativa dos alunos nos territórios periféricos em questão, o projeto Aluno Presente conseguiu localizar mais de 23 mil crianças em situação de abandono escolar. Vidas presentes consiste em 15 relatos que foram considerados os que visibilizam as melhores estratégias empregadas pelos profissionais.
É difícil saber qual das narrativas chama mais a atenção para a urgência que é o abandono e a evasão escolar em uma cidade das dimensões do Rio de Janeiro. O primeiro deles provavelmente foi selecionado para abrir o livro devido à sua força e ao cenário árido em que se convertem os espaços dominados pelo tráfico na cidade. Mariana, a articuladora e uma das protagonistas do relato, atravessa a cidade e, por vezes, tem que solicitar aos líderes, sejam eles milicianos ou traficantes, permissão para reconduzir estudantes à escola ou mesmo matricular crianças que estejam fora dela. Também é de responsabilidade dos articuladores a adaptação de crianças e adolescentes que tenham sido remanejados para outras escolas pela CRE por causa de disputas internas do tráfico ou da milícia.
É na favela do Cajueiro, em Campo Grande, que Mariana vai encontrar um menino, que permanece anônimo durante a reconstituição dos fatos, cuja vida de solidão e abandono imediatamente se coloca como uma causa inadiável:
Como o radar está sempre ligado, ela percebe um menino que se destaca porque está só, parado, maltrapilho. Ele é magro e está sujo. Mariana se aproxima, mas é a criança que a aborda primeiro. Quer saber o que a tia faz, por que está ali. Mariana diz que está ali para ajudar crianças a entrar na escola. Pergunta-lhe o nome e prossegue:
Onde está a sua mãe?
O menino cala-se.
Onde você mora?
Eu não moro, ele diz.
Como assim? Onde é sua casa?
Aqui.
Aqui, onde? Qual é a sua casa?
Aqui mesmo. Não tenho casa.
Mariana indaga pela mãe.
Está por aí, ele diz.
Como, por aí? Por aí, onde?
Lá embaixo. Deve estar na rua, embaixo da favela.
A criança tem nove anos.
E sua família?
Não tenho ninguém, não, ele explica.
Seu pai?
Ele abaixa a cabeça.
Não tem vó, tia, tio?
Não.
E a escola?
Não tenho escola, não, tia[2].
Apesar de serem apenas quinze os relatos que integram o livro, a realidade nos mostra que a quantidade de crianças na mesma situação do menino encontrado por Mariana ainda é grande, apesar dos esforços de articuladores e profissionais para reconduzi-los a familiares à escola. O menino da favela do Cajueiro é uma metonímia das vidas presas no entre-lugar da violência.
Em uma introdução que antecede os relatos, o próprio Luiz Eduardo Soares afirma que uma de suas intenções ao dar forma de texto literário aos testemunhos dos articuladores e articuladoras foi o desejo de permitir que esse conjunto sirva futuramente como corpus de estudos etnográficos, e também o de transformar o que foi relatado em algo que seja capaz de suscitar a empatia e, de quebra, colocar em evidência a necessidade de posturas como as dos articuladores.
Um olhar mais atento, porém, mostra como não só esse é um trabalho ímpar, de incomensurável importância social, como também é, infelizmente, apenas uma pequena iniciativa frente a um sistema fundamentado nas desigualdades sociais, que a cada dia gera mais vítimas, de regra aqueles que estão em situação mais frágil ou de vulnerabilidade, como é o caso das crianças em idade escolar contempladas pelo Aluno Presente.
Em um mundo onde tudo – e todos – são pautados pela sua capacidade imediata de gerar lucro e movimentar as engrenagens do sistema, pouco espaço há para a infância das crianças que estão às margens, cada vez mais à mercê de um poder público que insistentemente se exime de uma responsabilidade prevista por lei. Por isso mesmo o que é relatado na obra de Luiz Eduardo Soares não apenas transcende a ideia da mera etnografia ou da possibilidade de evocar sensibilidade naqueles que o leem, mas se converte em uma referência ímpar em tempos sombrios para os rumos da educação brasileira.
*Raphaella Lira é professora adjunta do CAp-UERJ, possui doutorado em Literatura Comparada e atualmente desenvolve uma pesquisa de pós-doutorado no PACC, sob a supervisão da professora Beatriz Resende.
[1] Luiz Eduardo Soares é especialista em segurança pública, antropólogo, cientista político e escritor. Coautor e autor de diversos livros, possui uma variada produção, que contempla temas como justiça, segurança, violência, antropologia. Publicou em 2015 Rio de Janeiro Histórias de vida e morte pela editora Companhia das Letras.
[2] Trecho extraído da edição online de Vidas presentes. Disponível em http://www.cidadeescolaaprendiz.org.br/wp-content/uploads/2017/06/Vidas-Presentes.pdf. Acesso em: 01/03/2018