Ano XIII 0201
dossiê
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A LITERATURA DEPOIS DAS OCUPAÇÕES SECUNDARISTAS

(…)um colégio em que ensinam a dizer “não” a mais
de mil propostas, desde a mais disparatada até a
mais atraente e difícil de se recusar.

Enrique Vila-Matas

 

Resumo: A produção cultural nas ocupações secundaristas em 2015 e 2016, no Colégio Pedro II, esteve marcada pela retextualização de canções, com destaque para o funk, performadas em vídeos publicados nas redes sociais. Nossa hipótese é que essa produção veicula outras abordagens da literatura na escola, atenta a uma economia performática do texto. Práticas de tradução e de vocalização do texto são dois exemplos de performatização abordados, que demandam outro(s) conceito(s) de literatura em relação aos escolarizados no ensino básico.

Palavras-chave: Ocupação secundarista; escolarização; performatização; ensino de literatura.

Abstract: The cultural production during the secondary students’ occupation held in 2015 and 2016 was marked by the retextualization of songs performed in videos published in the social networks, especially funk. Our hypothesis is that such production conveys other literary approaches into school, being aware of a performing economy of the text. Two examples of the performing practices addressed are the translation and vocalization of texts, which require other literary concept(s), different from those offered during basic education.

Keywords: Secondary students’ occupation; schooling; performance; literature teaching.

 

Escolarização, desescolarização

A escola convive com uma marca entre outras que a distingue, no campo da institucionalização dos saberes, das universidades. É comum considerar o problema da escolarização do conhecimento, debruçando-se sobre o desafio de ensinar conceitos para pessoas em fase de maturação intelectual. Assim, tanto a escola quanto a universidade produzem os recursos didáticos, que mimetizam mais ou menos os laboratórios de produção de conhecimento dos centros de pesquisa, e também os currículos escolares, que reorganizam a complexidade dos saberes às vezes em níveis de dificuldade de acordo com o segmento ou a série dos estudantes.

Por exemplo, no momento de se introduzir os estudos linguísticos numa perspectiva textual, no ensino médio, o currículo escolar preconiza, de acordo com uma prática generalizada, o estudo da teoria das funções da linguagem tal como formulada por Roman Jakobson, em 1960. Essa prática é hoje corroborada pela prova do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), cujas questões relativas a teorias do texto abordam principalmente os gêneros textuais, as práticas argumentativas e as funções da linguagem. São questões que requerem o conhecimento da nomenclatura e principalmente da aplicação da teoria de Jakobson a textos de gêneros diversos, funcionando como uma força de produção curricular desses saberes para a escola brasileira.

Por mais que o debate sobre a natureza e as funções da linguagem seja amplo o suficiente para abarcar pesquisas em áreas das Ciências Naturais e das Ciências Humanas, o processo de escolarização em curso estabiliza a questão e as contradições que participam da pesquisa científica, reduzindo a uma a resposta para o problema: a resposta escolarizada. Assim se organiza uma gramática do conhecimento escolar que presta serviço à autoridade docente mais do que faz justiça aos saberes que ensina, e segue na contramão de uma produção discursiva escolar. Mesmo no momento mais público dessa produção discursiva, a redação do ENEM, o debate gira em torno do tema proposto pela prova e não se leva em conta a produção discursiva dos alguns poucos milhões de jovens e também adultos acerca de temas sensíveis à realidade social do país (o arquivo digital das redações do ENEM não está publicamente disponível para pesquisa). O que sugere ser a escolarização do discurso certa prática de silenciamento que imuniza a fala do aluno ou candidato à universidade, inócua no que diz (a não ser quando transgride os direitos humanos), avaliada quanto à clareza e à organização argumentativas.

Menos comum, no entanto, é pensar a universitarização dos saberes, o que sugere um problema de perspectiva na produção do conhecimento. Uma busca simples no Google Acadêmico retorna aproximadamente 142.000 resultados para o termo escolarização, enquanto a universitarização responde por 513 ocorrências aproximadamente. Não somente há mais escolas que universidades, embora não na mesma proporção, mas principalmente é na universidade que se produz conhecimento sobre a escola, pelo menos o conhecimento academicamente legitimado. A escola, no entanto, funciona como um espaço de produção de conhecimento com base na experiência pedagógica diária muito rico, e temo que a escolarização da escola esteja relacionada com a dificuldade de ela fazer circular esse conhecimento, pouco reconhecido e transmitido, e guardado fora dos livros e revistas acadêmicas.

Práticas de produção literária no contexto das ocupações secundaristas

Daí a importância de a escola trabalhar por sua desescolarização, como vem acontecendo graças a algumas iniciativas. Ao longo do ano de 2016, orientei um trabalho de iniciação científica no instituto federal de ensino em que atuo, o Colégio Pedro II, dedicado a produzir corpus e analisar a produção cultural dos estudantes em ocupações escolares. 2015 havia sido o ano da primeira onda de ocupações escolares, na rede pública estadual de São Paulo. Já trabalhando com a questão da produção literária em contexto escolar, me deparava agora, por iniciativa da estudante Isabella Dias, com outro universo textual muito mais constituído por faixas, vídeos e rostos do que por textos escritos. O final de 2016 nos reservou uma surpresa para a pesquisa: o Colégio Pedro II foi ocupado pelos estudantes, e Isabella Dias atuou diariamente na ocupação que persistiu por dois meses. Depois do processo de ocupação, eu e Isabella Dias criamos um grupo de trabalho com outros dois estudantes que atuaram em outras ocupações escolares, quando pude começar a compreender melhor alguns aspectos que estavam em jogo na produção cultural desses estudantes.

As ocupações secundaristas em 2015, na rede pública estadual de São Paulo, e depois em 2016, nas redes estaduais de São Paulo e Paraná e na rede pública federal espalhada pelo país, deram um importante passo nesse sentido, na medida em que o processo pôs em jogo outros modos de produzir currículo: a campanha por doação de aulas, a realização de aulas tendo como objeto saberes não escolarizados, os shows realizados por artistas com inserção na mídia de massa de repente tornavam a escola muito mais permeável aos saberes que circulam dia a dia à margem dela.

Mas foram principalmente as responsabilidades por segurança, limpeza e alimentação assumidas pelos estudantes que fizeram emergir os pilares pretos dos saberes que sustentam a rotina escolar, já que essas três atividades são exercidas na escola pública em geral por funcionários principalmente negros, terceirizados e precarizados em suas relações de trabalho. Por fim, a atuação nas mídias sociais como estratégia de legitimação social das ocupações conferiu o caráter público a parte dessa produção discursiva, que muitas vezes circulou na forma de vídeos representando jograis e cantos de ocupação performados por grupos de estudantes, nas escolas ou nas ruas. Nesses atos públicos e nos vídeos que os veicularam praticamente se desenvolveu um novo gênero, formado pela interseção entre as práticas políticas dos movimentos sociais (assembleias, discursos, palavras de ordem) e o consumo de cultura pop veiculada nas mídias sociais (performatização dos corpos, cultura do hip hop e do funk, processos de memetização e viralização do discurso).

Inúmeros cantos de guerra das ocupações secundaristas foram formados parodiando funks. Ainda na primeira onda das ocupações, um primeiro registro retomou signos da resistência à repressão na década de 1970: uma turma de estudantes vendados, em sala de aula, cantando em coro “Cálice”, de Chico Buarque e Milton Nascimento, misturado a versos de “De grão em grão”, da cantora gospel Aline Barros, e de “Para não dizer que não falei de flores”, de Geraldo Vandré (Trocando em Miúdos, 2015).

 

 

Performado em sala de aula, o coro de vozes em uníssono demonstra ter aprendido a lição sobre a história política e cultural do país nos anos de chumbo, cantando de cor a canção símbolo de resistência, apropriando-se ainda de outras duas canções, numa montagem cuja força reside na emulação da derrota que denuncia a força do ataque, reside na alegorização do poder repressor. As vendas nos olhos, a imobilidade dos corpos, a memória do regime de exceção política contrastam, no entanto, com a menção à canção gospel e os versos: “Está na hora de crescer, passar a limpo esse país / devolver pra nossa gente o dom de ser feliz”. Também a veiculação ampla nas redes sociais confere ao vídeo o caráter de anúncio distópico, de que a reorganização escolar proposta pelo governo do estado de São Paulo tocava num ponto sensível da escola contemporânea: a tensão entre as políticas de parametrização do ensino nas redes públicas e as práticas pedagógicas obsoletas assentadas na escola contemporânea.

É preciso cantar em coro e é preciso viralizar o canto coral a fim de evidenciar as demandas: a produção de uma comunidade de vozes e o uso social da tecnologia no ambiente escolar. Mas sobretudo é preciso notar a relação com a produção literária que os cantos de ocupação põem em cena. Ainda em 2015, duas canções foram veiculadas em apoio às ocupações, o rap “Ocupar e resistir”, de Koka e Fabrício Ramos, e “O trono do estudar”, de Dani Black, que foi gravada a muitas vozes, como as de Tiê, Zélia Duncan, Tetê Espíndola, Chico Buarque, Arnaldo Antunes, Tiago Iorc, entre outros. O rap, abordando a luta política que uma ocupação representa, desenha a singularidade dessa luta, referindo-se também ao caso do Chile e da luta pela gratuidade do ensino público. O traço de imaturidade política que o jovem secundarista tende a receber, imunizando o seu discurso, é reconhecido pelo rap e justifica a força do movimento de ocupação, que irrompe como uma demonstração de que a experiência supera a precariedade institucional e o silenciamento do discurso: “Direita, tropa de choque, / em cima, o governo fascista, / esquerda, argumentação, / embaixo, secundarista”.

 

 

“O trono do estudar” canta na forma de um repente o elogio do estudante, reconhecendo nele uma soberania irredutível à consolidação de práticas pedagógicas inertes, a exemplo da naturalização da sala de aula como laboratório de alienação das relações sociais (“E nem me colocando numa jaula / porque sala de aula essa jaula vai virar”). A forma popular do repente encontra a afirmação de uma realeza senão do estudante, do estudar, desenhando no refrão uma sociedade em harmonia entre campo e castelo, em que as relações de propriedade se perdem no ato do estudo: “Ninguém tira o trono do estudar, / ninguém é dono do que a vida dá”.

 

 

O estudante no limiar da política ou das relações sociais parece desmentido pelos ocupantes secundaristas, que procuraram mandar recados claros em forma de funk nos vídeos veiculados e viralizados durante as ocupações. Foi o caso de uma performance realizada por atores da Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Penna, do Rio de Janeiro, nas escadarias da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, no dia 9 de março de 2016. Dois vídeos disponíveis no YouTube mostram o grupo de pouco mais de 20 pessoas atuando e cantando uma paródia de “Baile de favela”, do MC João. A letra foi retextualizada para o contexto da crise financeira do estado do Rio de Janeiro, mas a certa altura produz uma curiosa montagem entre a experiência cultural de um jovem das classes populares e um caso notório de corrupção entre Estado e uma construtora privada: “Quer ler livro, acha que merece, / quer ir ao teatro, acha que merece, / quer ir ao cinema, acha que merece. / O governador deu a cultura pra OAS” (“O Julgamento do Pezão (Paródia Baile de Favela) #MartinsSemPena”).

 

 

Curiosa montagem porque o enunciado do texto volta-se perversamente contra o enunciador, fazendo pouco caso do desejo de inserção no mercado de consumo cultural (“acha que merece”). O texto encena uma voz inimiga como estratégia de legitimação do discurso de oposição que enuncia, procurando evidenciar a dependência entre políticas de democratização da cultura e a corrupção na gestão da coisa pública. Estratégia que lembra certos procedimentos autoirônicos de poemas contemporâneos, notadamente de Angélica Freitas, cujos poemas em forma de canção ainda retomam a performatização do canto no texto escrito: “são porcas permanentes / mas como descobrem os maridos / enriquecidos subitamente / as porcas loucas trancafiadas / são muito convenientes” (“uma canção popular (séc. XIX-XX)”, Freitas, 2013, p. 15). Por fim, a paródia produzida pelos estudantes repete um procedimento que o funk original já realizara sobre um trecho como: “Ela veio quente, / hoje eu tô fervendo”, que é quase o decassílabo sáfico cantado por Erasmo Carlos em 1967: “Pode vir quente que eu estou fervendo”.

 

Registro da performance dos atores da Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Penna, do Rio de Janeiro, nas escadarias da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, no dia 9 de março de 2016 Fonte: YouTube
Registro da performance dos atores da Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Penna, do Rio de Janeiro, nas escadarias da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, no dia 9 de março de 2016
Fonte: YouTube

 

Outro vídeo publicado em maio de 2016 mostra um grupo de jovens em frente a um prédio da polícia militar de São Paulo cantando para a câmera gritos de guerra em defesa da ocupação escolar. Alguns desses jovens aparecem em outros vídeos publicados pela rede entoando os mesmos cantos, como o que canta pela conciliação da família que teme pelo filho ocupante. “Mãe, pai, tô na ocupação, / e só pra tu saber eu luto pela educação” (“secundaristas”).

 

 

Agora os lugares do saber são recolocados e os filhos procuram dar lição aos pais, o que se justifica pelo objeto da luta: eu preciso ensinar que eu quero aprender. Os vocativos monossilábicos iluminam certa atomização do discurso, monossilábico como é próprio da abreviação que a linguagem oral imprime a inúmeras palavras da língua, mas também como é próprio da criança que começa a falar. Polissílabas mesmo somente as palavras que rimam e entram num acordo entre som e sentido: ocupação/educação.

Registro de performance na qual estudantes secundaristas de escolas públicas do estado de São Paulo entoam cantos em defesa das ocupações Fonte: Vimeo
Registro de performance na qual estudantes secundaristas de escolas públicas do estado de São Paulo entoam cantos em defesa das ocupações
Fonte: Vimeo

Dedicar a atenção da leitura para essas produções significou não somente estudar que literatura se produziu durante as ocupações, como também indagar que procedimentos de composição literária operam nesse discurso por uma outra escola. A canção como forma do poema em performance pública é uma constante nessa produção, mas também na produção da poesia contemporânea. A ponto de, num ensaio recente, Flora Süssekind ler a resposta que a produção poética tem dado à vida política do país por meio da retomada de “um modelo paradigmático na constituição da literatura brasileira – o das canções do exílio” (Süssekind, 2016). A instabilidade institucional em que a vida política tem lançado o país nos anos recentes, com a emergência de uma polarização política manifesta no dia a dia do trabalho e da família e a eleição da escola como campo de disputa político de um país futuro entram em atrito com textos que cantam um exílio sem deslocamento entre línguas ou países, um exílio interno. Cantado também pela performance dos corpos midiatizados em rede social, cantado para a viralização e a memetização do texto (sobre a relação entre ocupação e poesia, ver também Barbosa, 2017). Um pouco como poemas que vêm sendo escritos diretamente na caixa de texto da timeline do Facebook, de que são exemplos os trabalhos de Tarso de Melo (Íntimo desabrigo, 2017) e Alberto Pucheu (Para que poetas em tempos de terrorismos?, 2017), ou ainda poemas produzidos pela apropriação de mensagens inbox ou postadas por amigos, de que é exemplo o trabalho de Carlito Azevedo (Livro das postagens, 2017), ou então poemas que se apropriam da ata da sessão na Câmara dos Deputados que decidiu pelo impeachment de Dilma Rousseff, como se lê em Sessão (2017), de Roy David Frankel. Por fim, o canto coral ou jogral insistente nas ocupações parece fazer par com os coletivos de poesia que têm convidado à leitura e à produção dos poemas em convivência, seja por meio de oficinas literárias cotidianas (Oficina Experimental de Poesia), saraus abertos a novas poéticas (CEP 20.000 ou Sarau do Escritório), edição “ao vivo” junto com os autores (Editora kza1), eventos de leitura e debates (Mulheres que Escrevem). A expansão do slam poetry no Rio de Janeiro em 2017, com a criação, entre outros, do Slam das Minas RJ e, a partir dele, do coletivo Poetas Favelados, é mais um exemplo da força dessa cena que convoca a voz, o corpo, o vídeo e as redes sociais para a produção poética.

O que significa ensinar literatura na escola?

Também a escola, por outro lado, tem comparecido nos poemas e romances produzidos recentemente. Um narrador que sonha com uma escola pública federal de ensino médio, colégio de aplicação da Universidade de Brasília, sendo invadida por forças policiais:

Professores, estudantes e funcionários do Centro de Ensino Médio cercavam a escola; capacetes se juntavam em caminhões e jipes enfileirados na avenida L2. O último a discursar foi o Geólogo, sentado nos ombros do Nortista. O zumbido do megafone não apagava a voz do líder: … fechar uma das melhores escolas do Brasil… Um ato arbitrário e infame de um governo despótico… A voz ainda ecoava quando uma poeira vermelha cobriu o campus (Hatoum, 2017, p. 147).

Brasília eternamente em construção sob a névoa, como nas fotografias de Marcel Gautherot, se repete na cena do romance mais recente de Milton Hatoum, e a sensação é que os anos 1970 quando se passa o sonho do romance são a um tempo história e distopia da escola contemporânea. Porque a escola, digamos, não vai bem quando reproduz, como em geral acontece, as relações que reforçam a divisão social: “infância: menino contra menina / adolescência: menino encontra menina / é claro que assim não tem como dar certo” (Dimitri BR, 2016, p. 41). É um erro de escuta revelador do acerto das relações, como quem, aprendendo mal as lições, aprende melhor sobre o mundo: depois da contenda na infância, o encontro na adolescência inclui na palavra e reforça nas relações o embate de um gênero contra o outro, como na escuta do menino quando a mãe avisava a hora da aula: “e o meu corpo inteiro // (a parte de trás / do nosso terreiro / era a minha / pequena jângal) // só entendia // jaula // – ir para a jaula” (Aleixo, 2017, p. 40). As questões de múltipla escolha têm sido um gênero produtivo nessa literatura, sempre trabalhando pela indeterminação dos saberes e dos sentidos, como num poema de Leonardo Gandolfi, cujas alternativas responderiam àquilo de que o poema mais precisa (“a) elefantes / b) comprimidos / c) um novo animal de estimação / d) mais apertos de mão / e) outro autor”, Gandolfi, 2015, p. 45); como noutro poema de Dimitri BR, em que se pede para, após a leitura de um poema qualquer, determinar se foi escrito “1. a) por um homem / b) por uma mulher // 2. a) heterossexual / b) homossexual // 3. a) cisgênero(a) / b) transgênero(a) // 4. a) da sua cor / b) de outra […]” (Dimitri BR, 2016, p. 44); como ainda, por fim, o livro de Alejandro Zambra, Facsímil (2014), todo escrito como sequência de questões de múltipla escolha, de que é exemplo:

51) Você foi um péssimo filho, __________ escreve. Você foi um péssimo pai, ___________ escreve. Está sozinho, __________ escreve.
a) por isso / por isso / por isso
b) e é sobre isso que / e é sobre isso que / e é sobre isso que
c) mas / mas / mas
d) e não / e não / e não
e) e / e / e
(Zambra, 2017, p. 39)

A rememoração histórica que conduz à escola distópica, o erro de escuta ou pronúncia que produz aprendizado ou a questão de múltipla escolha que indetermina o gabarito consistem em três procedimentos pelos quais a literatura hoje lê a escola pela chave da desescolarização. Afinal, os três procedimentos não reforçam práticas escolares, antes vão na contramão de práticas de rememoração em sala de aula que visam a restituir as marcas da escola na história de alguém, ou na contramão da concepção de aprendizagem como acerto às lições ou questões propostas.

Por qualquer lado que se olhe, seja pelos estudantes nas ocupações secundaristas, seja passeando por alguma literatura contemporânea, por qualquer lado que se escute o que, apesar das políticas públicas de parametrização da escola, de homogeneização dos materiais didáticos, de supressão do tempo de pesquisa e planejamento das aulas, fala, o que aparece é uma demanda pela produção literária e performatização do texto literário em rede social, e o reconhecimento de que muitas práticas escolarizadas trabalham na contramão da formação cultural. Isso não significa um convite a reformular as práticas do zero a partir de uma escuta textual, mas, reconhecendo a temporalidade do processo social e convidando ao trabalho, acolher traços dessa paisagem textual como forças de transformação das práticas de ensino em literatura.

O diagnóstico já tem sido muito repetido e os caminhos apontados são vários, poucos, no entanto, no sentido de transformações que a literatura tem produzido nas práticas contemporâneas. Quero dizer que o livro de autoria única produzido de acordo com os gêneros do poema em versos ou do livro de contos ou do romance representa muito parcialmente a circulação literária, que hoje se vale de blogs, perfis no Instagram, PDFs, memes, escritas em rede social, autorias coletivas, comercialização à margem das livrarias, em feiras, sites e redes sociais, por um lado, e concentração editorial de narrativas premiáveis, premiação como critério de reconhecimento e qualidade, globalização de narrativas locais, por outro lado. Parece um problema considerar a formação cultural de um estudante como se a literatura, hoje, constituísse uma prática autônoma às relações econômicas e como se as formas consolidadas dos gêneros literários não respondessem também ao apelo dos contratos, prêmios e tiragens, porque “todo o cultural (e literário) é econômico e todo o econômico é cultural (e literário)” (Ludmer, 2014, p. 149).

Essas transformações que se reconhecem nas obras e também, como pretendi demonstrar, na produção cultural das ocupações secundaristas, sugerem a concepção de literatura como campo cultural capaz de produzir efeitos comunitários, como quer, por exemplo, Wander Melo Miranda. Num momento em que a experiência de leitura se legitima socialmente por “incorporações e desincorporações, associações e dissociações” consideradas, a rigor, disparatadas pela tradição de leitura moderna do texto literário autônomo, ou ainda que os campos e as linguagens artísticas trocam de lugar com frequência e obras narrativas ou utilizando versos ou texto verbal em geral estão frequentemente expostas ou performadas em museus e galerias, ou em palcos e praças e vídeos e fones de ouvido, nesse momento se reconhece “o lugar da crítica de qualquer um como o lugar do leitor emancipado” (Miranda, 2017). Trata-se de um reconhecimento dos efeitos da democratização de acesso à universidade, vivida na última década e meia na sociedade brasileira, por exemplo, o que trouxe para o debate acadêmico com mais força a questão do ensino da literatura no contexto das relações entre literatura e democracia.

Isso é reconhecido na apresentação de Margens da democracia: a literatura e a questão da diferença (2015), quando os organizadores Marcos Siscar e Marcos Natali mencionam “a difícil convivência entre literatura, ensino e demandas de inclusão social” (2015, p. 7). Dossiês pensando a relação entre literatura e ensino em revistas acadêmicas se multiplicaram e podem ser lidos nas revistas Nau Literária (UFRGS, v. 6, n. 2, 2010), Gragoatá (UFF, v. 19, n. 37, 2014), Remate de Males (UNICAMP, v. 34, n. 2, 2014), Contexto (UFES, n. 27, 2015), FronteiraZ (PUC-SP, n. 14, 2015), Literatura e autoritarismo (UFSM, n. 15, 2015), Abril (UFF, v. 8, n. 17, 2016), Cerrados (UnB, n. 42, 2016), Diadorim (UFRJ, v. 18, n. 1, 2016), Terra Roxa (UEL, v. 31, 2017), entre outras. A implementação do Programa de Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS) pela Universidade Aberta do Brasil também pareceu impulsionar o debate, que participa cada vez mais do dia a dia nas universidades.

A consolidação do debate evidencia as diferenças e os posicionamentos. Sem apostar num retorno a um humanismo supostamente sem teoria, é preciso considerar a literatura como uma relação (entre texto e leitor, entre autor e leitor, entre autor e texto, entre livro e texto e leitor etc.) capaz de produzir efeitos de comunidade. Num texto publicado em 2011, Magda Soares discorre sobre a escolarização da literatura, analisando a publicação do texto literário nos livros didáticos. Deixando de lado as considerações de ordem econômica, em relação aos direitos autorais dos textos modernos e contemporâneos, e às políticas de aquisição do livro didático pelo Estado, que conformam essa escolarização, Soares termina por distinguir entre uma escolarização adequada e outra inadequada da literatura. A adequada é eficaz quando conduz “às práticas de leitura literária que ocorrem no contexto social” (Soares, 2011), ao passo que é inadequada a escolarização que produz resistência à prática de leitura. Essa afirmação do contexto social parece fundamental e não representa a exclusão das práticas de leitura em contexto universitário.

No entanto, numa compilação recentemente publicada, 18 autores são convidados a responder à questão título do livro, O que significa ensinar literatura?, todos eles professores em universidades públicas. Financiada por duas universidades catarinenses, UFSC e UNESC, a publicação produz um painel importante da reflexão em contexto universitário, e traz um testemunho agudo da trajetória docente de João Adolfo Hansen, em “Por que ensinar literatura?”. Muito interessado em sublinhar as noções históricas que organizaram sua prática docente, destacando a crítica à leitura modernizante de obras predecessoras da modernidade, Hansen se atém à cátedra e considera que o seu ensino procurou oferecer a ocasião para que, na literatura, fosse possível “comparar os mundos possíveis que a ficção inventa com o mundo do leitor” (Hansen, 2017, p. 142).

Menos parcimonioso é o ensaio de Fábio Akcelrud Durão, “Da intransitividade do ensino de literatura”. O texto se organiza em duas seções, “Considerações sobre o objeto e sua transmissão” e “Desajuste social”, desequilibradas em extensão pois a segunda faz as vezes de encerramento do texto. Começa ressalvando a necessidade de conceber a literatura com base numa determinada definição para, daí, considerar o seu ensino. Logo posiciona a teoria na sala de aula como um processo de internalização, de modo “que ela passaria a confundir-se com uma forma de comportamento” (Durão, 2016, p. 16). Tomando partido, começa por definir reativamente o fenômeno literário, propondo o que a literatura não é: “discurso”, e completando: a literatura é “um objeto que se sustenta” (Durão, 2016, p. 17), um artefato exitoso na articulação interna. Seria preciso que a aula, assim como a crítica, não fetichize o texto literário, e compreenda-o “como um brinquedo”, o qual se pode tocar, com o qual se pode lambuzar, “como argila ou lama” (Durão, 2016, p. 18). Derivam disso dois aspectos, sendo o primeiro: a literatura não diz respeito à moral. No entanto, o corolário que Durão defende a partir desse aspecto nega-se a reconhecer o caráter discursivo da crítica e do ensino: “Levar Machado de Assis para a favela não ajuda ninguém” (Durão, 2016, p. 19). Não ajuda, no entanto a função dessa frase no texto parece ambígua, pois defende o trabalho da leitura como trabalho crítico cuja direção não está dada de antemão, ao passo que faz do exercício crítico provocação da inteligência a partir de certo poder de fala publicada. A função da literatura residiria numa crítica da realidade, ou de uma realidade baseada na ideia de lucro. O segundo aspecto do conceito autonomista de literatura é que o seu valor é produzido a posteriori, e por isso o trabalho de interpretação é um trabalho de atualização do texto. À concepção do literário como autônomo textualmente decorre que o seu ensino não acontece por meio de um conhecimento estanque. A postura investigativa conduzida por uma hipótese interpretativa e desenvolvida pela fala do professor diante da escuta atenta do aluno é o motor desse ensino. É inconcebível, porém, que essa investigação possa se dar coletivamente, no contexto universitário atual, “salvo nos raríssimos casos de turmas excepcionais” (Durão, 2017, p. 24). Há uma recusa ao coletivo como um elogio da autonomia crítica, como se um implicasse no outro: “Essa caracterização contraintuitiva da aula como um ambiente não democrático encontra seu oposto em uma abordagem da leitura e da escrita como atividades coletivas” (Durão, 2017, p. 24).

Difícil não atribuir essa perspectiva crítica do ensino a um processo de universitarização da literatura, que inclui um processo de formação individual na especialização da pesquisa, desenvolvendo a autoria no campo de conhecimento. A contraparte desse processo, a saber, a função social dessa pesquisa, é como que atrofiada no caso do campo de estudos literários, dada a baixa circulação da literatura ou de certa literatura comparativamente a outros produtos culturais, como o cinema, na sociedade brasileira. No entanto, isso significaria desconsiderar a circulação da literatura nas salas de aulas de todas as escolas de ensino básico, e é precisamente desse esquecimento que aparece a queixa de uma crise que justifica a alienação das práticas coletivas no ensino da literatura. Afinal, se com esse arsenal em sala de aula a instituição escolar não conseguiria produzir um país leitor, então o modelo universitário embasado na autoria individual pareceria mais potente para a formação do pesquisador.

Práticas de ensino de literatura na educação básica

De fato, as canções de ocupação não pareciam compostas com base em monumentos da cultura. Nem seria o caso de exigi-lo desses processos de composição, mas talvez seja o caso de compreender alguma relação entre o que acontece e o que se deseja que aconteça. A hipótese desenvolvida aqui parte da premissa de que a experiência cultural dos estudantes elabora uma interpretação da cultura contemporânea, e alguma literatura hoje tem dialogado com novas formas de sensibilidade. Muitas vezes insistir no caminho da formação de leitores pela exclusiva experiência do livro e da narrativa de autoria individual pode não ser suficiente num contexto em que a circulação da literatura mesma está muito mediatizada pelas redes sociais (e não me refiro apenas a fenômenos de público, como Rupi Kaur, mas à performance em rede social de inúmeros poetas e alguns narradores). Por isso, é necessário considerar para a sala de aula uma economia performática do texto literário, que considere a produção literária in loco com práticas de oficina, a performatização em rede social da leitura e da escrita, a produção de relações em rede com autores e comunidades de leitores dentro e fora da escola, a ampliação da concepção de literário que considere testemunhos, artivismos, diários de leitura, textos coletivos ou quaisquer práticas que extrapolem a ideia de um leitor escolarizado como consumidor de um mercado cultural de livros.

Por fim, remeto a duas tentativas pedagógicas nessa direção. Em 2017, como introdução ao curso de literatura em turmas da terceira série do ensino médio, no Colégio Pedro II, propus a leitura de uma tradução de Bartleby, o escrivão (1853), de Herman Melville. O texto fora escolhido como primeira leitura após a ocupação do Colégio, nos últimos meses de 2016. Agora a proposta era a ocupação do texto literário, seja pela leitura, pelo conhecimento de interpretações que esse texto conheceu, e pelo destaque que essas interpretações dão à frase enunciada pelo protagonista: contratado como escrivão de um escritório de advocacia na Wall Street, em Manhattan, o experiente copista Bartleby começa, sem se justificar, a se recusar a escrever enunciando: “I would prefer not to”. O término abrupto da frase associado à polidez que relativiza a recusa, a enunciação lacônica e tranquila imprimem ao refrão da narrativa um traço de agramaticalidade, segundo a leitura de Gilles Deleuze (1997). O desafio que propus aos estudantes foi o de traduzir para o português a frase, depois da análise conjunta dos traços gramaticais que compõem o original em inglês. Para isso, os estudantes receberam uma carta da professora de tradução Carolina Paganine, da UFF, a qual foram convidados a responder justificando a tradução que escolheu fazer. A novela de Melville, que já recebeu cerca de 10 traduções diferentes para o português (as soluções dessas traduções para a frase de Bartleby também foram apresentadas aos estudantes-tradutores), passou a contar com uma série de novas traduções para a frase original, produzidas por estudantes do ensino médio. Assim é que, entre algumas outras soluções, nem todas satisfatórias, para a tradução, a língua conta agora com soluções como: Preferiria não fazer, Eu preferiria não fazer, Eu preferiria não fazê-lo, Eu iria preferir não fazê-lo, Eu iria preferir não fazer, Eu apreciaria não fazê-lo, Creio que é melhor não fazê-lo, Optaria por não fazer, Optaria por não fazê-lo, Escolheria não agora, Seria melhor não fazer, Gostaria de não fazer, Não concordaria em me propor a isso, Preferiria não empreendê-lo. A diversidade de soluções às vezes está motivada menos por uma tradução da literalidade do que pelo traço de transcriação motivado pela procura de originalidade no contexto da turma. A próclise insistente em frase negativa confere estranhamento gramatical a uma frase que, traduzida, ganha traços de hipercorreção num contexto linguístico de forte preconceito na sociedade brasileira. Haveria outras notas a fazer às traduções, as quais celebro em sua multiplicidade, abrindo outras traduções possíveis para o texto, que é, assim, performatizado em sala de aula.

Outra experiência de multiplicação de leituras se deu na recepção à escritora Conceição Evaristo, que visitou o Colégio no segundo semestre de 2017. Para essa recepção, orientei um grupo de sete alunos, de turmas e séries diferentes do ensino médio, para a elaboração de uma performance vocal de dois contos da narradora. “Olhos d’água” e “Maria” narram, sob perspectivas distintas, traumas sofridos por mulheres no seio familiar: no primeiro, uma filha recorda a mãe ausente há muitos anos, enquanto no segundo uma mãe é assassinada por linchamento e por engano ao retornar para casa depois de um dia de trabalho. O texto performado resultou de uma montagem de trechos desses contos, trabalhando com a sobreposição de vozes dos estudantes. O registro vocal da performance “De que cor” pode ser conferido abaixo:

 

 

O tom da leitura, o cuidado na pronúncia das sílabas, a velocidade e o controle da voz participaram do processo de composição, num trabalho com a oralidade que resultou no estudo e amadurecimento dos usos da voz em contextos públicos. Aqui, direito à literatura e exercício da cidadania parecem se confundir, e o resultado não se encontra nos livros nem mesmo registrado em cadernos. Os exemplos poderiam se multiplicar e precisam ser considerados de acordo com os contextos escolares em que acontecem. De qualquer maneira, a proposta é considerar processos de performatização do texto, pelos quais leitura e autoria se indistinguem. Uma sala de aula mais permeável às práticas de produção literárias propõe uma escola na contramão do monumento textual como fim do estudo e amplia a formação do leitor crítico quanto ao modelo de consumo do mercado de livros.

 


 

* Luiz Guilherme Barbosa é professor de Língua Portuguesa e Literaturas do Colégio Pedro II, doutor em Teoria Literária pela UFRJ. É autor de A mão, o olho: uma interpretação da poesia contemporânea (2014) e de Postagens e antipostagens (2018). Integra o coletivo Oficina Experimental de Poesia, e os grupos de pesquisa Poesia Brasileira Contemporânea, sediado na UFRJ, Grupo de Estudos em Ensino de Português e Literaturas (GEEPOL) e LITESCOLA, sediados no Colégio Pedro II.

 

Referências

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