“Tenho tão nítido o Brasil que pode ser e há de ser, que me dói demais o Brasil que é”
(Darcy Ribeiro)
Completados vinte anos da morte de Paulo Freire e Darcy Ribeiro em 2017, permanece tarefa intelectual e cidadã dialogar com as contribuições teóricas e políticas desses educadores, reinventando propostas pedagógicas que promovam a emancipação intelectual, a justiça social e a equidade de classe, etnia e gênero. Este dossiê se dedica a essa tarefa ao apresentar reflexões, memórias e práticas que atestam a vitalidade e a vivacidade dos legados de Darcy Ribeiro e Paulo Freire.
Roseli Figaro, em “Darcy Ribeiro e Paulo Freire: para pensar o Brasil”, alia memória afetiva e rigor científico na análise das aproximações e distanciamentos entre esses autores, no campo da comunicação. Luiz Roberto Alves, companheiro de trabalho de Freire, realiza, no ensaio “Paulo Freire e a comunhão educacional no mundo”, um diálogo ao modo freireano com um de seus últimos críticos, recuperando vozes e elucidando o pensamento de Freire a partir de seus próprios textos. Já em “Universidade em tempos de calamidade pública: crise ou projeto?”, de Leonardo Nolasco-Silva e Vittorio lo Bianco, a obra de Darcy Ribeiro serve de mapa para discutir a crise da universidade no estado do Rio de Janeiro e o lugar por ela ocupado na produção de um projeto de nação.
As lições de Darcy se desdobram nas memórias afetivas de duas profissionais que conviveram com o autor e participaram do seu sonho. Em “Vinte anos sem Darcy: impressões e notas”, Helena Bomeny reflete sobre a falta que um intelectual como Darcy faz em vários aspectos: da aposta no Brasil como sociedade à paixão pela literatura como expressão maior da criatividade intelectual, científica, política e afetiva. Nessa mesma direção, em “A lição de Lúcia”, Lúcia Velloso Maurício delineia, a partir do relato da experiência que vivenciou como diretora da escola de ensino fundamental de um projeto de Escola de Demonstração, a concepção de Darcy Ribeiro sobre educação básica e sua intensa preocupação com a formação de professores.
O legado de Paulo Freire e Darcy Ribeiro se apresenta em toda sua riqueza nos artigos que descrevem como essa inspiração se traduz em ação nos mais diversos campos. Em “Kaplún e as políticas de comunicação e educação do MST”, Alexandre Barbosa mostra as influências de Mario Kaplún, educomunicador argentino radicado no Uruguai, nas práticas pedagógicas e comunicativas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). No campo da educação indígena, Karla Pádua examina, em “A Formação Intercultural como um tempo de muitas aprendizagens”, as aprendizagens que emergiram das narrativas de professores/as indígenas participantes da primeira turma de um curso de Formação Intercultural de Educadores Indígenas, destacando as trocas de experiências entre grupos de etnias diversas e o aspecto prático do conhecimento escolar.
No campo das artes, o legado freireano se revela especialmente produtivo. Em “Práticas artísticas e musicais: revelações e desafios”, Priscila Messias e Denise Martins descrevem os resultados de uma pesquisa realizada com crianças, envolvendo atividades de intervenção baseadas na pedagogia dialógica de Freire. Em “Músicos callejeros: economía popular y pensamento académico”, Andrea del Pilar reflete sobre a atuação dos músicos de rua nos espaços públicos da cidade de Bogotá, na Colômbia, interrogando-se sobre como a universidade pode incorporar em seu currículo novos diálogos com as necessidades da cidade. Em “A literatura depois das ocupações secundaristas”, Luiz Guilherme Barbosa parte de relatos sobre as ocupações secundaristas em 2015 e 2016 para propor outras abordagens da literatura na escola, atentas a uma economia performática do texto.
O dossiê conta ainda com a resenha do livro virtual Vidas presentes, de Luiz Eduardo Soares, por Raphaella Lira, que apresenta, por meio de relatos de abandono e evasão escolar impactantes, o projeto Aluno presente.
Por fim, duas entrevistas realizadas por Margarita Victoria Gomez revelam aspectos instigantes e pouco conhecidos da vida e da obra de Paulo Freire. Lutgardes Costa Freire, filho do educador, nos conduz à experiência do exílio vivido pela família, e Moema Viezzer, à jornada de uma mulher que acompanhou com experiências femininas a trajetória de Freire.
Neste dossiê, dois artigos são republicações da revista “Artes de educar”, da UERJ: “Universidade em tempos de calamidade pública: crise ou projeto?” e “Vinte anos sem Darcy: impressões e notas”. Em um momento em que a educação no estado vive um processo de desmonte, essa opção se justifica pela importância das reflexões trazidas por esses textos, que testemunham a força de resistência intelectual da universidade em situações de crise.
Em tempos de intensa polarização política, este dossiê revela como, vinte anos após a morte de Darcy Ribeiro e Paulo Freire, a chama de suas ideias permanece viva e atuante, mesmo com todas as dificuldades, na contramão das propostas conservadoras que novamente assombram o país e a América Latina. Desejamos que a sua leitura possa dar algum alento àqueles que não se conformam com “a América Latina que é” e continuam trabalhando para a educação que “há de ser”.
Adriana Armony (Colégio Pedro II), Margarita Victoria Gomez (PACC/UFRJ) e Pablo Nabarrete Bastos (UFF)
Organizadores