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Ana Crelia Dias entrevista Silviano Santiago

 

Ana Crelia Dias: Silviano Santiago é um nome que remete a um ser plural: professor, crítico, ficcionista. De que forma essa pluralidade interfere (ou não interfere) na sua escrita de ficção? E que face desse sujeito múltiplo mais se revela hoje?

Silviano Santiago: Para o escritor, todas as formas de saber e de conhecimento são bem-vindas e benéficas. Por definição, a literatura – tanto a reflexão teórica e a docência, quanto a prática crítica e a criação – é predisposta à multidisciplinaridade, já que o que esteve e está em questão é a condição humana, e não determinado conhecimento disciplinar (no sentimento universitário da palavra) sobre esse ou aquele aspecto da vida social, política, econômica etc., do ser humano em certa nação ou continente. Mais do que um conhecimento (knowledge, para usar a terminologia anglo-saxã), a literatura é portadora de uma sabedoria (wisdom, idem). Seu compromisso fundador – pelo menos nos países do Ocidente – se deu no momento histórico da expansão da tradição filosófica e literária greco-latina. Portanto, aproximações recentes da literatura às disciplinas das chamadas ciências sociais apenas empobrecem seu escopo. Há que tomar cuidado com o verbo empobrecer. Tome, por exemplo, o caso da medicina, muitas vezes o empobrecimento no plano da totalização do conhecimento médico, de que é exemplo o médico generalista, pode redundar num aprofundamento do conhecimento particular, de que é exemplo o médico especialista. Muitas das formas modernas de literatura, ou de crítica literária, repousam no aprofundamento de questões sobre a condição humana que se passam no plano das reivindicações de cunho particular, ou seja, social, político e econômico. Um romance como Vidas Secas, de Graciliano Ramos ou uma coleção de poemas como A rosa do povo, de Carlos Drummond, apesar de mais especializados disciplinarmente, não são menos ambiciosos do que Memórias póstumas de Brás CubasLibertinagem, de Manuel Bandeira. Faço a comparação para acrescentar que chega um determinado momento da avaliação da obra de arte em que o que conta é a genialidade do escritor. Todas as demais teorias bem intencionadas caem por terra.

Falando em particular do romance – um gênero desprovido de poéticas, como dizem os anglo-saxões, um gênero lawless, sem lei, bandido – tudo é permitido e graças a Deus. O progresso do gênero se dá pela transgressão às regras estabelecidas. O GuaraniMemórias sentimentais de João Miramar e Grande Sertão: Veredas são bem ou totalmente diferentes e, no entanto…

Estabelecido esse patamar mínimo para a resposta, acrescento que me sinto muito bem sendo polivalente. E tive a sorte de poder ambicionar a polivalência no momento em que a literatura é julgada como produção de discursos, e não mera expressão em um único gênero da personalidade do autor. Tenho uma boa formação em literatura – isto é, minha curiosidade intelectual foi devidamente satisfeita por determinado conhecimento, determinada erudição –, e o que faço é eleger um dos discursos literários que estão à minha disposição para expressar-me artisticamente do modo que julgo mais conveniente, habilidoso, agradável e convincente.

O discurso reflexivo, por exemplo, requer que o aparato teórico-metodológico adquirido ampare a paciente análise textual a ser feita. O problema é saber se me julgo competente para enfrentar aparato e análise, e movimentá-los com palavras na folha de papel em branco. A experiência didática deu-me a segurança indispensável para tal tarefa. Ela veio de sucessivos experimentos com estudantes em sala de aula. Por outro lado, o exercício do discurso ficcional/poético proporcionou-me um saber que é o de padeiro, ou seja, de quem “já pôs a mão na massa”. Sinto-me, pois, apto a produzir um ensaio. Se dedicar a ele o tempo indispensável à boa realização, publico-o como tal. Não terei vergonha, mais tarde, em juntá-lo a outros e reuni-los em livro, é o caso recente de O cosmopolitismo do pobre.

Ponhamos que tenha elegido o discurso ficcional. Minhas leituras da ficção e da teoria poética no período de formação e as demais feitas no período de exercício da profissão como professor universitário me dão a garantia de ter certo domínio da matéria. Logo depois dos anos 1976, abandonei a análise de romances, contos e poemas, e comecei a trabalhar nos cursos da PUC autobiografias, memórias e correspondência literária – o que se chamou a literatura do eu, recentemente recoberta pelo neologismo autoficção (autobiografia ficcionalizada, ficção autobiográfica). Se quisesse escrever algo nesses gêneros, não me sentiria um escritor espontâneo a pôr em ordem na folha de papel os fatos da vida vivida. Estaria menos próximo de Meus verdes anos, de José Lins do Rego, e mais próximo de Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos. Este se transforma, por assim dizer, em modelo, com tudo o que a palavra contém de positivo (emulação) e de negativo (filiação), que se traduz afinal pela expressão vitoriosa de “a ansiedade da influência” (Harold Bloom). Por outro lado, não posso deixar de viver o momento que vivo. Naquela mesma época, informava-me e me enriquecia com o knowledge, que me chegava através da leitura sobre a realidade sócio-política e econômica do Brasil e da América Latina. Bem lá no fundo da formação, havia a tese sobre André Gide e um paradoxo. Não era ele que dizia que somos mais sinceros quando fazemos ficção do que ao escrever autobiografia? Pois é, misturemos tudo isso numa coqueteleira e teremos o drinque que idealizei, pesquisei e produzi, intituladoEm liberdade, uma ficção. Ainda nessa linha, mas já no novo milênio, senti-me à vontade para aceitar a encomenda da Bem-te-vi e organizar a correspondência de Carlos Drummond & Mário de Andrade. Os laços se atam e se desatam e se reatam. Veja você, por uma questão estratégica posso dedicar-me um ano ou mais a tal ou a tal outro discurso, mas isso não significa preferência. Significa, antes, as contingências da soma de tempo e dinheiro. Um se perde e o outro se ganha. Isso se chama sobrevivência.

ACD: Com uma vasta publicação ficcional e crítica, já poderíamos pensar em ousar a pergunta: qual é a sua grande obra? Por quê?

SS: Pelo rabicho da resposta anterior, você já viu que, em matéria de preferência, sou a favor da obra mais próxima. Por motivos que não vêm ao caso aqui, desde os doze anos de idade fui jogado contra os muros da vida prática. Sobrevivo, trabalhando. Não consigo ser saudosista (ou de maneira brutal: não tenho tempo nem dinheiro para ser saudosista). Tenho memória razoável e com constância revisito o passado. Não tenho prazer em viver no passado nem em revivê-lo no presente. Sigo ao pé da letra a “errata pensante”, de que falou Machado de Assis num de seus romances: “Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes”. Uma tradução aproximada da metáfora machadiana se encontra no livro de poemas Cheiro forte, e a versão irônica correspondente em De cócoras. No momento, minha grande obra é Heranças, romance que será publicado daqui a dois ou três meses pela Editora Rocco. Aguardo sua leitura.

ACD: Seus textos ficcionais apresentam, especificamente os dois últimos, narradores que se constituem muito mais como antinarradores, dada a reflexão que tecem acerca do processo de criação. Duas perguntas: o que é narrar para você hoje? E o que motiva esse processo de avanço e recuo na narração, muitas vezes até desfazendo o que foi construído: é uma tendência da literatura contemporânea ou é um processo do escritor Silviano?

SS: Respeito sua observação, mas não sei se os chamaria de antinarradores. Em termos de narratividade, performam a ação de maneira semelhante a dos narradores que conhecemos tradicionalmente na ficção ocidental. O romance é narrado de fio a pavio. Tem começo, meio e fim. Os contos são também narrados na integridade da proposta de cada um. O que choca num caso e no outro é o título de cada uma das obras, dicas de novas poéticas da ficção. O falso mentiroso eHistórias mal contadas, respectivamente.

O narrador do primeiro deles perdeu a certeza sobre a própria verdade. Ele constrói ficções dentro da ficção. Estamos acostumados a narradores que têm absoluta certeza sobre o episódio que narram. Quando o escritor (e não mais o narrador) quer passar ao leitor a incerteza do que lhe foi dito pelo narrador X, cria um segundo, terceiro, quarto… narradores. É o caso clássico do filme japonêsRashomon, de Akira Kurosawa, onde temos várias versões para o estupro duma mulher e o possível assassinato do marido. A mesma estória é narrada de quatro ou cinco pontos de vista diferentes, levando o espectador cauto ou incauto a optar por uma das versões ou se naufragar nelas. É o caso ainda de alguns romances de William Faulkner, entre eles e mais sintomaticamente The sound and the fury. O narrador de O falso mentiroso não delega a outro narrador o desmentido da própria palavra. Ele só não tem absoluta certeza sobre a veracidade, por exemplo, duma versão sobre o episódio de seu nascimento (sobre sua filiação, em suma). Em lugar de questioná-la, inventando/propondo um segundo narrador, prefere “inventar” (no sentido de: partir para) uma segunda versão, uma terceira versão. A ficção em estado larvar. Não é o que acontece no trabalho de análise? O trabalho feito por mim é diferente do que acontece no romance de Alain Robbe-Grillet, La jalousie, por exemplo, onde é a lembrança (a memória) do narrador que se julga incapaz de reproduzir exatamente o que aconteceu – veja-se o episódio clássico da centopéia que é esmagada contra a parede. É através do lento trabalho do leitor que se pode chegar a uma decifração (precária, talvez) do episódio A decifração é feita pela justaposição – agora, pela memória do leitor – das diferenças na repetição do episódio. As versões que se repetem do episódio não são idênticas. Não é a somadas semelhanças que traz ao leitor a verdade sobre o esmagamento, mas antes a soma das diferenças – se é que se podem somar diferenças. Como não se podem somar as diferenças, a verdade é um buraco na narrativa. Ao leitor é oferecida umalacuna. A literatura do nada (néant), de que tanto se falou. Minha experiência talvez esteja mais próxima do narrador ficcional beckettiano. Se você resolver o enigma proposto, te dou um doce.

Em O falso mentiroso o leitor pouco pode fazer para ajudar/aconselhar o narrador. Por mais que ele tente justapor/compor as várias versões expressas pelo narrador fica sempre o gosto de cada versão não lhe ter sido bem contada. Não adianta, portanto, reuni-las, analisá-las em conjunto, nas semelhanças ou nas diferenças. Não há buraco, não há lacuna a ser oferecida ao leitor. O mal contado é a essência (se me permite o palavrão) da literatura ficcional.

Já aí passamos para os narradores dos vários contos de Histórias mal contadas. O buraco é mais embaixo, se me permite agora a expressão grosseira, mas feliz. O problema da narratividade (e do narrador) em literatura ficcional é mais complicado do que apresentava o narrador do citado romance. Todas as estórias são mal contadas. Caso não o fossem, seriam chatíssimas e, por isso, deixariam de ser ficção. A graça duma estória está no fato de ser mal contada, competindo ao leitor dar-lhe o significado que lhe escapa. Tradicionalmente – e falo da crítica literária antes do advento da psicanálise – os grandes críticos, aqueles que se destacaram para a posteridade, agiam dessa forma sem terem consciência do que faziam. Em termos analíticos, quero dizer que toda estória literária (e talvez toda narrativa subjetiva, independente do esforço de torná-la artística) parece dizer mais do que aparentemente está dizendo. Isso porque existe um significado latente que é mais poderoso semanticamente do que o significado manifesto. Dou o exemplo mais contundente. Freud ao descobrir que Hamlet era uma história mal contada conseguiu extrair da peça shakesperiana o compromisso da trama com o complexo de Édipo. Sem que o soubéssemos cientificamente, o complexo já estava latente na arte dramática desde a Grécia e o período elisabetano. Depois dessas palavras, talvez se evidencie de maneira mais clara a razão pela qual não me agrada a qualificação de antinarradores para os meus últimos livros de ficção. Deixo claro, no entanto, que não sei o que você entende por antinarrador. Faço-lhe a pergunta.

ACD: O senhor assistiu ao documentário Jogo de cena, de Eduardo Coutinho? Sua obra também faz, em alguns casos, esse jogo entre o real e o ficcional. Em sua opinião, isso é uma tendência da arte em geral?

SS: Não consigo comparar o trabalho ficcional que faço com o trabalho que os documentaristas brasileiros (ou não) realizam. Partimos de premissas muito diferentes – opostas, talvez ? sobre o estatuto da realidade e do real em arte. Estamos mais para o acirrado do jogo entre times diferentes, do que para o empate de dois a dois, ou zero a zero.

ACD: Acredito ser De cócoras sua narrativa de maior nuance lírica, assim como os contos “Ed e Tom”, “O verão e as rosas”, entre outros. O senhor teme sentimentalismos em seus textos? (Que fique claro que não acho piegas nenhum dos textos citados. Ao contrário, eles têm forte aprofundamento lírico e são todos muito bem construídos nesse sentido. A pergunta vem apenas da curiosidade do porquê de não haver muitos textos assim hoje.)

SS: Acreditava que tinha dado a mais plena vazão a um narrador lírico em Keith Jarrett no Blue Note. Será que me engano? Meus livros de ficção anteriores eram muito compostos, trabalhados que tinham sido na cabeça e em sucessivos planejamentos e rascunhos antes de serem trabalhados anarquicamente pelo próprio trabalho de escrita (não há simetria perfeita entre forma imaginada e forma realizada – alerto – mesmo em romances como Em liberdade). No caso de Keith Jarrett deixei que o narrador fosse conduzido pelo andante da música popular norte-americana, sentimental por natureza, pelo improviso que representa o jazz e que o pianista Keith Jarrett representa dentro do improviso no jazz. A letra (the lyrics) da canção não contava, não tinha importância para cada narrador, até mesmo porque estava a escutar um disco instrumental. Contava apenas num importantíssimo detalhe. Falavam todas as letras do amor heterossexual, algo que é consensual na arte popular ou pop. Os contos seriam sobre o amor homossexual. Depois de livro tão trabalhado quanto Stella Manhattan, com personagens tão sofridos na busca da satisfação amorosa (para contraste com o outro livro, veja as inserções poéticas no primeiro capítulo, a ser catalogadas por No money, no fuck, no love), pensei em sublimar as questões propriamente práticas que envolvem o surgimento do amor, e deixá-las serem compensadas pela pobreza/riqueza do sentimento de solidão – dominante em todo o livro. A solidão é o ponto de vista que deixa a descoberto a plenitude da experiência amorosa – paradoxalmente? Qualquer coisa no gênero “esquecer para lembrar”, título de livro de Carlos Drummond. Experimentar o sexo, esquecê-lo para lembrá-lo como amor. O ponto alto da abstração musical do texto escrito está ao meio do livro, no conto “Bop be” (be bob de trás para diante).

Se quisesse trabalhar a letra das canções, o narrador teria que evocá-las. Como se trata de canções muito conhecidas, verdadeiros hits internacionais, pode haver aqui e ali lembranças ocasionais de um ou outro verso. Mas o importante era dar continuidade em palavra ao mistério do improviso de Keith Jarrett (pensava também no “Concerto de Colônia”, dele também). O narrador lírico é, portanto, um narrador em total liberdade (pelo menos para mim), daí também o tom confessional da escrita (se pseudo ou verdadeiro, pouco importa). Certamente, esse é também o caso de De cócoras, onde deixo que meus temas clássicos sejam contaminados pela questão da experiência lírica na tela (o filme Gilda) e a espiritualidade anti-rilkiana (em especial os dois anjos ao final do romance). Minhas narrativas tendem a ser pão pão queijo queijo. Não é o caso do romance em questão e não é o caso do conto “O verão e as rosas” (em segredo, te digo que é uma homenagem a Clarice Lispector). Já o conto “Ed e Tom” escapa ao narrador lírico, pelo menos da maneira que acreditava estar concebendo-o. É um libelo a favor de colega meu, que teve a carreira cortada ainda nos anos 1960 (a não ser o episódio em si, todos os detalhes na caracterização dele foram modificados). Está vendo que nem sempre é bom dar a palavra ao autor. Não é a melhor palavra e muito menos a última. A palavra do autor é semelhante ao andaime, de que se valem os pedreiros para levantar um edifício de apartamentos. Habitado o edifício, qual é o morador que se lembra da importância dos andaimes? Quem se lembra do trabalho incansável e mal remunerado dos pedreiros?

ACD: São muitas as referências do cinema, da literatura, do teatro em sua obra. O senhor acha que um texto que se valha de tais recursos tende à erudição? Isso pode ser empecilho para o grupo que o mercado chama de “leitor comum”?

SS: Toda referência ou alusão é um entrave para o chamado leitor comum (se é que podemos juntar a vasta gama de leitores ingênuos, naïfs, debaixo da única etiqueta leitor comum). A solução para o problema não está em evitá-las. Está antes em torná-las palatáveis, isto é, assimiláveis como uma espécie de alusão a amigo ou a caso notoriamente conhecido, em conversa mole. Se não se pode deixar o leitor entrar na referência ou alusão, há que buscar uma maneira de deixá-lo pelo menos feliz (ou presunçoso) às margens do rio da narrativa. O mesmo problema existe na leitura do poema, como também na leitura do ensaio. No meu caso, quantas referências e alusões me escapam/escaparam ao ler os notáveis ensaios de Jacques Derrida, para ficar com um exemplo? Quantas referências e alusões me escaparam/escapam na leitura de As flores do mal, de Baudelaire, para citar outro exemplo? Apesar de me faltar erudição filosófica ou erudição poética, tenho a impressão de que chego a penetrá-los com relativa segurança. Aliás, acredito que nenhum leitor tem total segurança sobre o texto que lê. Por isso é que relemos os que julgamos notáveis. Há gradações na aproximação dos leitores ao texto, dos espectadores à peça de teatro, ao filme, às obras de artes plásticas. Cada um faz do texto lido o que pode. Às vezes alguém que acredita estar desencavando mistérios num romance está na verdade cada vez mais à flor da pele, a dizer sandices de bom sandeu. Ao passo que um crítico dito impressionista, como Augusto Meyer, flertando aqui e ali com a obra de Machado de Assis, acaba por enunciar verdadeiras pérolas, que até hoje nos encantam e nos enriquecem. Nesse particular, por que não refletir sobre o quinto capítulo de Esaú e Jacó, intitulado “Há contradições explicáveis”. Lá se lê: “Explicações comem tempo e papel, demoram a ação e acabam por enfadar. O melhor é ler com atenção”. Desde que apresentada de maneira palatável, todo bom leitor engole a seco qualquer referência ou alusão.

ACD: A técnica do cinema – a montagem, a direção – encontra na sua obra paralelos estruturais. O senhor lança mão de estruturas muito diferentes de composição a cada texto. O senhor foi crítico de cinema, não foi? Esse recurso estrutural nos romances vem dessa experiência?

SS: Inicia-se lá no Centro de Estudos Cinematográficos (BH), sem dúvida, embora o gosto pela imagem tenha origem mais remota. Já mencionei em entrevistas o fato de que, na infância formiguense, tinha verdadeira loucura pelos gibis. Pelos gibis e pelo cinema que então nos chegava de Hollywood e tratava de temas relacionados à Segunda Grande Guerra (nasci em 1936), eduquei-me como cosmopolita numa cidade interiorana de menos de trinta mil habitantes. Esse tipo de experiência, de experiência da leitura no sentido semiológico do termo, foi trabalhado à exaustão nos poemas iniciais de Crescendo durante a guerra numa província ultramarina, que na verdade faz pendant com Em liberdade e, certamente, com os vários cursos sobre autobiografia e memorialismo que dei na PUC, para não mencionar o livrinho sobre Drummond, que saiu em 1976 na Vozes. O primeiro poema analisado no livrinho é sintomaticamente “Infância”, o segundo em Alguma poesia. Informado isso, acrescento que sempre me senti à vontade na cultura da imagem, tão à vontade quanto na cultura da palavra. Aliás, seria ridículo tentar separá-las em alguém que cresceu e se formou no século 20, o século por excelência da imagem. Como querer ser artista sem freqüentar as salas de cinema e os museus? Como diz ou dizia o mote da revista semanal, “veja e leia”.

É claro que na cultura da imagem cinematográfica é de enorme importância a questão da montagem. Desde cedo, fui apaixonado por ela. Seja pela montagem por atração, cujo teórico maior foi o soviético Eisenstein (há exemplo flagrante dela no romance Uma história de família), seja pela montagem pelo plano-seqüência, cujo grande teórico foi André Bazin da revista Cahiers du cinéma. Tenho dificuldade em aceitar a montagem que se tornou standard nos clipes musicais, ou a montagem pelo recurso à sucessão de close-ups, de que é exemplo a telenovela (devo dizer que Kar Wai faz maravilhas com esta e me causa muita inveja). No entanto, a possível diversidade na composição de meus livros não advém de minha familiaridade com o cinema, ou com as artes plásticas, ou melhor, advém em parte. Advém, antes, de detalhe muito pessoal (quem sabe original) de minha personalidade criadora. Não gosto de repetir o feito. Não gosto de transformá-lo em receita. Para mim, cada obra é um experimento (a não ser confundido com o mero experimentalismo formal). Se por acaso reclamo para mim a condição de vanguardista é porque ponho fé nas graças, mistério e loucura do experimento, à semelhança do doutor Silvana, dos gibis, ou de algum cientista em sofisticado laboratório de pesquisa europeu ou norte-americano. Estou mais perto do doutor Jekyll, ao criar Mr. Hyde, do que da maioria dos nossos escritores que se apegam com unhas e dentes a uma fórmula de romance, ou a um estilo que julgam ser ultra pessoal.

ACD: A formatação de um gênero literário não encontra muita facilidade de adequação em seus textos: eles parecem constituir uma reelaboração do conceito de gêneros. Viagem ao México, por exemplo, promete-nos uma epopéia e transita por diário íntimo, ensaio, biografia e romance. O senhor pensa a arquitetura de um livro com o rigor que se mostra depois da realização?

SS: Tinha pressentido atrás a iminência dessa pergunta. A forma pensada, planejada, posta em rascunhos, não apresenta simetria perfeita com a forma realizada, embora muito daquela esteja nesta. Uma não existe sem a outra, é verdade (a não ser no caso muito especial de Keith Jarrett, onde a forma pensada não existiu, e existiu de maneira mais violenta a correção depois do texto já escrito). Por ser um experimentalista (veja a resposta anterior), não teria sentido que seguisse ao pé da letra as noções de gênero, tal qual expostas nas poéticas. Aliás, atrás também alertava para o fato de que o gênero que elegi com mais freqüência, o romance, é por falta de poéticas e por definição, lawless. Em meus experimentos, procuro levar até as últimas conseqüências esse aspecto do gênero. A tal intensidade levo o experimento, que Heranças, meu último romance, representa o fracasso. Tenta se enquadrar perfeitamente às regras do gênero. Quem vai acreditar? Criei um romance de personagens, com uma dicção realista. No mais, a pergunta está perfeitamente formulada.

ACD: De onde vem o conceito de autoficção de que o senhor fala ao se referir a sua obra?

SS: Desde criança, por razões de caráter extremamente pessoal e íntimo – refiro-me à morte prematura de minha mãe ? não conseguia articular com vistas ao outro o discurso da subjetividade plena, ou seja, o discurso confessional. Não estou querendo dizer que minha personalidade infantil, isto é, meus impulsos vitais e secretos eram-me desconhecidos. Pelo contrário, conhecia-os muito bem. Tão bem os conhecia que sabia de seu alto poder de autodestruição e destruição. Acreditei ter de esconder dos ouvidos alheios a personalidade de menino-suicida e de menino-predador, escondê-la debaixo de discursos inventados (ficcionais, se me permitem), onde eram criadas subjetividades similares à minha, passíveis de serem jogadas com certa inocência e, principalmente, sem culpa no comércio dos homens. Criava falas autobiográficas que não eram confessionais, embora partissem do cristal multifacetado que é o trágico acidente da perda materna. Já eram falas ficcionais e, como tal, co-existiam aos montões. Nenhuma das falas era plena e sinceramente confessional, embora retirassem o poder de fabulação da autobiografia. O dado confessional que poderia chegar à condição plena ficava encoberto, camuflado, para usar a linguagem da Segunda Grande Guerra, então dominante. Não tinha interesse em escarafunchá-lo em público. Os fatosautobiográficos fabulam, embora nunca queiram aceitar a cobertura da fala confessional, visto que se deixavam apropriar pelo discurso que vim a conhecer no futuro como ficcional. O sujeito ressemantizava o sujeito pelo discurso híbrido – o autoficcional. Não estou querendo dizer que não vivia a angústia de não poder articular em público o dado da subjetividade plena, dita confessional. Vivia-o, só que não o exercitava como fala nem o escrevia. Agarrar-me e subtrair-me a essa angústia era o modo vital da sobrevivência do corpo e dos impulsos vitais, era o modo como o discurso autobiográfico se distanciava do discurso confessional e já flertava, inconscientemente, com o discurso ficcional.. Onde mais forte se fazia o sentido da angústia e mais necessária sua subtração era à mesa de jantar ou no confessionário. Fiquemos com este exemplo.

Meu pai não era católico praticante, mas nos obrigava a ser. Segui o catecismo e fiz primeira comunhão. Ia à missa todos os domingos. Aos sábados, diante do padre-confessor de sotaque germânico, no escurinho protegido pelas grades do pseudo-anonimato (morava numa cidade do interior), tinha de fazer exame de autoconsciência e ser sincero ao enumerar e confessar os pecados da semana. Costumava trazê-los escritos numa folha de papel. Uma pitada de paranóia, e acrescento que os pecados eram muitos e, perdão pelo trocadilho, inconfessáveis. Apesar da lista avantajada, não proferia no confessionário uma fala sincera, confessional. Mentia. Ficcionalizava o sujeito – a mim mesmo – ao narrar os pecados constantes da lista. Inventava para mim e para o padre-confessor outra(s) infância(s) menos pecaminosa(s) e mais ajuizada(s), ou pelo menos onde as atitudes e intenções reprováveis permaneciam camufladas pela fala. Essas mentiras, ou invenções autobiográficas, ou autoficções, tinham estatuto de vivido, tinham consistência de experiência, isso graças ao fato maior que lhes antecedia – a morte prematura da mãe ? e garantia a veracidade ou autenticidade. Aos sábados, diante do confessor, assumia uma fala híbrida – autobiográfica e ficcional ? verossímil. Era “confessional” e “sincero” sem, na verdade, o ser plenamente. O menino ao confessionário já era um falso mentiroso, narrava histórias mal contadas. Faço minhas as palavras contundentes de Michel Foucault em A arqueologia do saber: “Não me pergunte quem sou eu e não me diga para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever”.

ACD: Loucura é um tema que atravessa sua obra. Existe uma razão para isso?

SS: A razão está num poema de Crescendo durante a guerra numa província ultramarina.

 

Transcrevo-o: Loucura Eram muitos os loucos então: Em cada quintal, Correntes para o acesso. Em cada fundo de quintal, Uma sombra suja, entre árvores, Sombra adulta pastando, Armando arapuca De pegar passarinho. A família o protege E só não o esconde dos íntimos.

 

* Ana Crelia Dias é doutora em Literatura Brasileira. É professora do Colégio de Aplicação da UFRJ e do curso de Especialização em Literatura Infantil e Juvenil da Faculdade de Letras da mesma universidade.