Arnaldo Jabor
O jogo de oposições entre sexo e amor, que Jabor refere em sua crônica e é musicado por Rita Lee, poderia ser parodiado a propósito das distinções/relações entre pornografia e erotismo. As fronteiras, nestes campos, parecem bem mais complexas, como se pode observar em textos teóricos, artísticos e midiáticos.
Tal dificuldade fica patente em lançamento recente de dicionário pornográfico sob a direção de Philippe di Folco[1]. Comenta o resenhista do livro, Patrick Kéchichian[2], que a pornografia apenas recentemente, há uns dez anos mais precisamente, passou a ser considerada como um tema de estudos. Os objetos e práticas pornográficas, ligados a mecanismos de perversão, certamente, não eram, novos ou inéditos, o que evoluiu foi a visibilidade, a publicidade e uma certa banalização dessas práticas. Diversos artigos compõem o dicionário na busca de usos exóticos da sexualidade em viagens que vão da China à Índia, do Japão à Escandinávia.
Objeto questionável, verdadeira armadilha lexicográfica, a pornografia parece alimentar-se de todas as contradições a seu respeito. Com efeito, colocar diante de si objetos e pensamentos de intensidades diversas, que nos são interiores, e examiná-los tranqüilamente é problemático. A pornografia apresenta-se mais como “um ponto de vista”, segundo a opinião de um dos articulistas. A característica de mapeamento do dicionário aponta a amplitude do campo e nossa sede de compreensão desta palavra, cuja etimologia grega alude à prostituição e à escritura, ou seja, comércio por um lado e a uma corrente de signos substitutivos do real, por outro. Sem dúvida, a sociedade do espetáculo atual, em seu viés, neoliberal e competitivo, parece tudo querer mostrar, tudo tornar público e isto explica, em parte, a tendência da passagem do segredo erótico à obscenidade pornográfica, questões que vêm sendo discutidas a propósito da temática.
Recente matéria na Folha de S. Paulo comenta a pesquisa da jornalista americana Ariel Levy sobre sexualidade para consumo e a obsessão feminina em parecer estrela pornô. Para a pesquisadora, no pós-feminismo, e nós diríamos também no pós-pornográfico, as mulheres imitam a pornografia: “hoje, as pessoas não têm vergonha de consumir, elas são descaradamente capitalistas, não há resistência ideológica”[3]. Reduz-se a sexualidade a algo que se pode comercializar, seja sob a forma de implantes de silicone, fio-dental de poliéster, venda real de sexo, como na prostituição, pornografia ou strip-tease. Constrói-se gradativamente uma semiologia do travestimento, atrelada à busca de lucro e visibilidade.
Entre nós, os recursos teatrais de Tiazinha, corpo-fetiche da mídia contemporânea, bem como a lógica das casas de encontro, exprimem posturas bastante diversas do comportamento dos libertinos, tal como foi explorado e discutido por Bataille, Sade, Sacher-Masoch ou Krafft-Ebing. Nestes últimos, predomina a sexualidade elaborada, lentidão, contratos e nexos político-existenciais, distintos do ludismo superficial ou das escolhas consumistas de novas práticas de servidão, espancamento das lúdicas casas de sexo, etc. São exemplares as matérias publicadas sobre a mercantilização do corpo da atriz sadomasoque Suzana Alves, a Tiazinha. Uma das reportagens falava sobre o “promissor mercado do sofrimento”, apontando o nivelamento superficial que se instalava entre o velar e o desvelar: “escondendo o rosto e revelando peças típicas do sadomasoquismo – o chicote, a máscara e o espartilho –, Suzana Alves (mencionava) e esvaziava, simultaneamente, o obscuro universo de fetiche que cercava o sadomasô”.[4]
Paradoxalmente, Tiazinha, “a delicada sadomasoquista”, a esta altura, ocupava um lugar no imaginário de nove entre dez adolescentes, sendo reproduzida nos objetos infantis os mais diversos. Comentava Luís Fernando Veríssimo: “o Brasil conseguiu outra façanha inédita no mundo: inventou o sadomasoquismo sem maldade”.[5] Aludia Veríssimo a traço da cultura brasileira que separa o símbolo ou talvez, melhor, o signo de seu referente, sugerindo uma tendência fetichista de nossa cultura, ou seja, fazer circular significantes vazios de forma sacralizada.
Recentemente, em sintonia, com a publicização da vida privada, com o show da realidade em que se transforma o cotidiano, a pornografia ocupa um crescente espaço como demonstram títulos de livros recentes como Os florais perversos de Madame de Sade, de Ruth Barros, Marcos Gomes e Heloisa Campos ou O alfabeto da devassa, de Luiz Roberto Nascimento Silva, ambos da Editora Rocco.
Na atualidade, os diversos tons da sexualidade se misturam sempre mais com a diversidade de apelos dos novos suportes midiáticos. Depois do “lesbian chic”, das conotações homoeróticas e do vale-tudo sexual na comunicação das marcas, nos últimos 10 anos, que novos imaginários e sexo pode investir? Em outras palavras, quais os comportamentos que informam novas tendências no mais atemporal dos prazeres humanos, ao lado da alimentação? Investigando sobre o tema, a última revista ViewPoint (www.view-publications.com) lança o “new burlesque”, tendência guarda-chuva, sintoma da “idade do excesso” com um forte perfume decadentista. No coquetel contemporâneo, a revista identifica um exercício do sexo que resgata o divertimento, a emoção e o (verdadeiro) prazer dos sentidos. Ao invés de pornografia, o “show off”. Sinais dessa nova sensibilidade aparecem em alguns sites[6].
Seguindo esta linha mais sutil, canal que até bem pouco tempo atrás era discriminado dentro da própria Globosat (empresa da Globo que o empacota) e que até hoje não tem seu logotipo no site da programadora, o Sexy Hot virou “cult” e foi parar na academia. Sua equipe, composta majoritariamente por mulheres, usa “filtros de gênero” e persegue cotidianamente essa sintonia fina entre a busca da excitação de uns e os limites do aceitável e do gosto médio das mulheres. O caso do Sexy Hot é interessante. Há um programa voltado para a mulher, o “Boa de Cama”, que não usa termos agressivos, como “cachorra”, comenta a socióloga Bianca Freire-Medeiros. Segundo ela, a mulher o consome como “preliminar” do ato sexual com o parceiro, preferindo, filmes com “conteúdo”, que tenham história e não apenas genitálias.[7]
Por outro lado, histórias em quadrinhos são lançadas em formato pornô, reproduzindo as famosas “Tijuana-Bibles”, publicadas ilegalmente nos Estados Unidos entre 30 e 50 e resgatando os famosos catecismos de sexo explícito de Carlos Zéfiro. Por exemplo, o espinafre do velho marinheiro Popeye, quem diria, dá força descomunal a outras partes do corpo, além de braços e pernas, agindo como um precursor do Viagra.
Uma série de quatro documentários sobre o sexo no cinema brasileiro entre as décadas de 70 e 80 (a comédia erótica, a pornochanchada e os filmes de sexo explícito) será produzida pelo Canal Brasil tendo em vista o sucesso da temática junto ao público do programa “Como era gostoso meu cinema”, exibido no Canal a partir de 0h30m.
A discussão das fronteiras entre pornografia e erotismo, normalidade e abjeção, prossegue. Confusões entre as áreas evoluem de forma inacreditável com o auxílio das novas tecnologias. Morte e pornografia viram manchete quando soldados americanos enviam fotos de cadáveres iraquianos a sites de conteúdos explícitos, obtendo acesso gratuito ao material pornográfico especializado em fotos eróticas amadoras. Comenta o correspondente especial, Dorrit Harazim, que não se tem notícias de escambo semelhante em guerras passadas.
A civilização ocidental se desenvolveu a partir da dicotomia do mesmo e do diferente, procurou uma verdade transcendental que balizasse seus referentes, garantindo uma epistemologia fundada nos princípios de perfeição, estabilidade, permanência, unidade e racionalidade. A partir de tal modelo, construiu-se um corpo ideal em oposição a um corpo monstruoso ou abjeto, uma sexualidade normal vs a pornografia.
A situação certamente vai se distanciando da época em que havia grande preocupação em classificar o pornográfico pela classe dominante no controle de outros grupos. A pornografia parece ter sido, sobretudo, a partir do século XIX, conceito usado “para monitorar e rotular a conduta moral de determinados setores da população” para evitar que se distraíssem das obrigações pátrias perdendo a razão, a objetividade e a disciplina[8].
A nomeação do monstro ou do abjeto era um poderoso aliado do que Foucault chamou de sociedade panóptica, na qual comportamentos polimorfos eram extraídos do corpo dos homens mediante múltiplos dispositivos de poder. Apontar a monstruosidade no outro aliviava a ameaça interna que é co-estruturante do homem, sua finitude, sua imanência.[9]
Paradoxalmente, no contemporâneo, não se tem medo da pornografia e ela é assumida como estandarte por inúmeras pós-feministas que contam em detalhes, sobretudo em “blogs”, suas vidas sexuais. É como se a pornografia fosse uma espécie de fachada sem fundo, aparências que deslizam e se afastam do segredo e da transgressão erótica.
Efeitos eróticos e pornográficos na literatura
O sujeito vem perdendo, hoje, seu “pathos” autoritário, sua referencialidade, estabilidade e controle sobre o objeto, assumindo a etimologia de “subjectum”, assujeitado.
Diminui, sensivelmente, a distância ótima que facultava o discernimento, a classificação e os expurgos efetuados pelos mecanismos da consciência. A tradição filosófica racionalista entra definitivamente em crise com autores como Foucault, Derrida, Deleuze que radicalizaram as tarefas realizadas por Freud, Nietzsche e Marx. O descentramento do sujeito, sua sobredeterminação, sua complexidade são discutidos.[10] Ora, como bem acentua Henri-Pierre Jeudy[11], a partir de Nietzsche, o corpo pensa na imanência mais radical e a representação desta atividade pela consciência corresponde apenas a uma pequena razão, mais grosseira que o pensamento necessário ao nosso organismo. O corpo como irrepresentável impõe, para além de nossa consciência e a despeito dela, sua própria razão expressa, por vezes, em signos e sintomas julgados patológicos, abjetos. É na linha desta perda de controle da subjetividade cartesiana, construída com tanto apreço, que buscamos pensar o pornográfico na literatura paralelamente a publicidade estilo pornô na sociedade do espetáculo.
Em seu artigo sobre a imaginação pornográfica, Susan Sontag[12] fala de três aspectos considerados a propósito do tema: a visão sócio-histórica, a questão psico-sexual e o enfoque artístico. A autora busca livrar o registro artístico da condenação moral de que foi alvo como o provaram processos judiciais contra as obras de James Joyce, D. H. Lawrence, Nelson Rodrigues ou Rubem Fonseca, questionando as justificativas anglo-americanas sobre a diferença de construção e codificação da literatura erótica em relação à pornográfica. Esta última seria mais objetiva, visando a excitação do leitor, seria gratuita e descontextuada, descuidada com a linguagem, meramente instrumental implicando desprezo pela relação entre pessoas, atenta às transações infatigáveis e imotivadas de órgãos despersonalizados. Ora, tais “defeitos estéticos” podem eventualmente funcionar como recurso determinante da coerência literária no diálogo com o contexto de determinada época.
Literatura e pornografia não são antitéticas e a matéria da arte é a variedade de formas de consciência propostas. A escala humana da “conduta normal” parece mal colocada quando se aplica à arte. Um dos meios de fascinação do artista contemporâneo é avançar na dialética do ultraje. O artista moderno é um “corretor da loucura” já que sua autoridade dependerá da consciência do público. Tal arte não pode ser realista e, na realidade, aproxima-se da ficção científica. A pornografia seria um dos ramos da literatura – ao lado da ficção científica – voltados para a desorientação e o deslocamento psíquico. Por outro lado, o uso de obsessões sexuais como tema da literatura assemelha-se ao uso de um tema literário cuja validade bem poucas pessoas contestariam: as obsessões religiosas.
A Sacher-Masoch desagradaria ver seu romance Vênus de peles integrando um quadro de sexualidade patológica, justamente porque, conforme ressaltou Deleuze[13], sua obra discutia a possibilidade de transcender o humano, sua contingência, por meio do desvelamento artístico. O processo compreendia lentidão, silêncio, concentração, características comuns à arte e ao erotismo.
Contra a velocidade, como forma de êxtase presenteada pela revolução técnica, Kundera, por sua vez, opôs a lentidão e seu valor erótico. É sugestiva passagem em que se refere a uma jovem americana que discursa sobre a liberação sexual, repetindo a palavra “orgasmo” 43 vezes. Comenta o autor: “o culto do orgasmo: o utilitarismo puritano projetado na vida sexual; a eficácia contra o ócio […]”[14]. As pessoas, segundo ele, na sua maioria desconhecem o encantamento. Empobrecem de tanto falar, de se ativar. Desdenha-se o esforço que vem de dentro, a esperança das metamorfoses e da espera.[15]
Autores como Sade, Bataille e outros, trabalham a fronteira do erotismo com a vida e a morte. O pensamento trágico de Bataille aponta as ilusões do humanismo numa estética que pretende descer ao inesgotável segredo do corpo. Sade é fonte de inspiração.
Nesta linha, é importante pensar o corpo fantasmático, proposto por Freud, contra as interpretações biológico-comportamentais. O corpo é linguagem atravessada por fantasmas e constituído, basicamente, por uma sexualidade auto-erótica que, posteriormente e secundariamente, cria a ficção de uma unidade, um ideal de “eu”. Corpo é desejo que inclui mesmo aqueles contra a auto-preservação. Eros é pulsão de vida e de morte, e assim foi pensado na literatura erótica.
A literatura que se desdobra no eixo do erotismo, assim como no da abjeção pornográfica, articula um ir além do normalizado, do real, do estereotipado e do crível e desafia as fronteiras com a matéria, a animalidade e o artifício, como bem sublinha Eliane Robert Moraes[16]. Para João Silvério Trevisan[17], a literatura é a arte do desequilíbrio sempre renovado.
Os materiais das obras pornográficas tidas como literatura são, precisamente, uma das formas extremas de consciência humana. Sem dúvida, muitas pessoas concordariam que a consciência sexualmente obcecada pode, em princípio, ingressar na literatura como forma de arte. Mas, em seguida, elas comumente acrescentam uma cláusula ao acordo, que na prática acaba por anulá-lo. Exigem que o autor tenha a adequada “distância” de suas obsessões para que possam considerá-las literatura. Tal padrão é mera hipocrisia, revelando, mais uma vez, que os valores usualmente aplicados à pornografia são, afinal, os pertencentes à psiquiatria e aos estudos sociais, mais que à arte.[18]
O que faz de uma obra de pornografia parte da história da arte, ao invés de pura escória, não é a distância, a superposição de uma consciência mais conformável à da realidade comum sobre a “consciência desordenada” do eroticamente obcecado. Em vez disso, é a originalidade, a integridade, a autenticidade e o poder dessa própria consciência insana.[19]
O importante na literatura é, certamente, sua estruturação simbólica, sua literariedade. É ela que transforma as cenas detalhadas de perversão sexual da História do olho, de Georges Bataille[20], em exemplo máximo de literatura erótica. Eliane Robert Moraes, em prefácio à tradução brasileira[21], comenta que a objetividade da narrativa contrasta com o caráter insólito das fantasias, criando correspondências cósmicas e uma sucessão de metáforas inesperadas do olho que se desdobram em cenário fantástico.
A propósito da relação entre desejo, escrita e visual, Massimo Canevacci[22] fala de uma eróptica em que a racionalidade do olhar se transforma em “tornar-se olho”. “O olho, em seu fazer-se olhar, não tem nada de natural, contudo ele se desloca para novas interzonas fluidas – colíricas – de “comunicacionalidade” fetichista. O olho não é mais apenas o instrumento sensorial do “voyeur”, mas órgão reflexivo que se torna ele mesmo fetiche”. O autor sublinha a importância do olho participante, erotizado, absorvedor e narra o percurso do olho discriminante ao olho destronado de seu poder espiritual, em direção ao olho contaminado, liberado da civilidade de seu poder purificador e metafísico. Bataille[23] e Bellmer[24] são alguns dos autores por meio dos quais Canevacci pensa a multiplicidade, o polissensorial do ir além do corpo. Por outro lado, critica Deleuze & Guattari[25]: quando em Mil platos, enrijecem as categorias das chamadas “perversões”, em suas várias tipologias corpóreas: masoquista, drogado, paranóico etc. Na sua ótica, CsO não é a multiplicidade do eu: é a sua subtração zeradora. “O CsO destrói qualquer significante/significado, subjetividade, organismo”.[26]
A pornografia faria parte de recursos que visam a explorar a dinâmica corpo/mente, dominação/minoria, consciente/inconsciente, inscreve-se num quadro de apropriação/desapropriação corporal. O corpo e seus vários eus, ainda segundo Canevacci, constróem uma eróptica como percepção dilatada pelo desejo que percorre o inédito, o obscuro, o marginal, costura carne e espírito.[27]
O segredo erótico
Na introdução ao livro Intimidades [28], composto por dez contos eróticos de escritoras brasileiras e portuguesas, Luisa Coelho reflete sobre a relação erotismo, pornografia e literatura. Obviamente, apontando para a variação dos conceitos no decorrer da história, a organizadora da coletânea considera pornográfico o discurso em que a descrição das partes do corpo, do ato sexual, bem como o intuito explícito de excitar um terceiro é o objetivo maior da narrativa, esvaziando a sexualidade e seus mistérios. Seria pornográfica, em sua opinião, a representação de uma pulsão primária a-subjetiva, imbuída de uma violência sobre outra pessoa, campo de exercício de poder. É a sexualidade expurgada do erotismo que, por sua vez, mistura instinto e fantasia, interdito e prazer. Já aí fica subentendido o universo mais amplo e enigmático do erotismo. Conclui a autora que os contos apresentados se inscrevem nesta linha.
Em Intimidades, autoras já consagradas dão ao sexo um tratamento erótico/amoroso onde o termo revelação parece recorrente nas muitas narrativas que, trabalhando a memória desvelam segredos antigos, fortes, profundos, de pregnância mortal por vezes. As estratégias da pornografia sem serem predominantes freqüentam os textos. A lógica parece ser a do segredo que é desvelado no embate com as palavras. Seria interessante contrapor esse universo de sedução, mistério e tom menor, à publicidade dada ao sexo na obra de autoras como Clarah Averbuck, Lolita Pille, cujos universos estariam mais próximos do pornográfico, do apelativo e, talvez, não literário. “Reality Shows”, entretenimento para “voyeurs” da sociedade “écran”? Somente um exame atento de cada obra poderia decidir sobre a questão.
Esta dúvida sobre o valor literário da sexualidade narrada não paira sobre os textos da coletânea acima referida. As narrativas com títulos sutis são muito bem estruturadas, não pecam por excesso, nomeiam com precisão afetiva as emoções que preparam e atravessam o encontro amoroso bem como a memória deste, freqüentemente, indelével. A contextuação é variada, indo do mais cotidiano a alusões ao cenário político, da cultura erudita a cheiros nauseabundos que atraem: “havia outro cheiro, característico, excluído da literatura por razões misteriosas e que até a mim custa a dizer: a sangue”. (Rita Ferro – O segredo de chiffon, p. 145). A lembrança de desejos perversos infantis, paixões maduras na ponta de uma arma, (Nélida Piñon – O revólver da paixão), amores brutos entre paredes esburacadas de quartos de pensão, são aguçados por contrastes onde reina, soberana, a paixão fatal. O perigo e o interdito são escalados entre golpes e transes: “talvez para morrer eu precise do amor e da família. Mas para acabar de viver, só preciso de ti, desta febre azul a que os outros chamam só sexo”. (Inês Pedrosa – Só sexo, p. 66).
Uma escrita pornográfico-política
A propósito do filme de Pasolini, Salo ou les Cent Vingt Journées de Sodome, livremente inspirado em Sade, Vincent Borel[29] comenta como o cineasta opera uma inversão radical interditando ao espectador toda a possibilidade de identificação com o que é mostrado. Nesta linha, a literatura de Dalton Trevisan parece ilustrar um uso político das estratégias pornográficas.
Se, usualmente, a obra pornô é realista e quase redundante em seu desejo de atender ao seu público, Dalton Trevisan faz justamente o contrário, quando retira qualquer excesso de sentido e mesmo o subtrai do leitor, na linha que poderíamos, na pista de Adorno, chamar de arte crítica, ao contrário das estratégias da indústria cultural na sua ânsia de preencher expectativas. Nesse sentido, ele efetua uma desconstrução do imaginário burguês com sua técnica que coloca em cena personagens desviantes do corpo e do sexo glorioso. São desempregados, bêbados, velhos e todo o tipo de desconformidade, apresentadas de forma grotesca, nada apolínea. A desconstrução dos mitos burgueses se dá, justamente, pela atribuição da fala mítica burguesa a personagens, a significantes que, pela inadequação a tais valores, levam-nos a curto-circuitalos. A fala do poder perde seu suporte.
A figura do Perverso Polimorfo e sua sexualidade infantil, de pulsões parciais e descontroladas parece dominar a obra de Dalton Trevisan. O Perverso Polimorfo representa o deboche, a anarquia, a falta de seriedade e decência, a incapacidade de amar, a ausência de valores espirituais mais nobres, os desregramentos do desejo louco, a violação inconseqüente de qualquer ordem estabelecida, a irreverência pelas tradições, o desrespeito pelo passado, pelos amigos, pela família, a promiscuidade, o arbítrio, a inconstância, a traição, o oportunismo. É o aventureiro sem pátria e sem história.
A incidência de comportamentos perversos indiciam a rebelião contra a submissão da sexualidade à ordem da procriação e contra as instituições que garantem essa ordem? Excluindo ou impedindo a procriação, as práticas perversas representariam uma oposição à continuidade da cadeia de reprodução e, por conseguinte, da dominação paterna – uma tentativa para impedir o reaparecimento do pai, em todos os níveis de sua representação?[30] A A obra do autor não se deixa capturar por nenhuma dialética simplista que silencie a multiplicidade de forças em jogo. Não há as figuras subjetivas típicas da vítima e do algoz, avessos especulares de uma mesma lógica.
O livro “Pico na veia” mantém a linha do autor, sempre mais telegráfico, com traços expressionistas e, vez por outra, poéticos. A tônica é a metonímia que se articula perfeitamente com o mundo fragmentário e mesmo compulsivo descrito pelo autor. É a parte pelo todo, bem longe de qualquer totalidade, como afirma em conto sumário: “Um bom conto é um pico certeiro na veia”.[31]
Fundamental é a exploração do grotesco, a mistura e profanação de espaços e toda sorte de perversão imersas numa naturalidade provinciana desculpabilizada que não parece ter acesso ao simbólico.
“Gorda grotesca de coxa grossa/mestra no embuste doutora na fraude/famosa cafetina do talento alheio/galinha pesteada que come os olhos dos pintainhos/falsa loira cavadora de louros/bicha cabeluda onde toca espirram verrugas negras/toupeira cevada nas larvas da traição/entre a vassoura e o chinelo corre maldita corre/ó barata leprosa de botinha e liga roxa“.[32]
O tratamento que dá ao sadomasoquismo é carregado de anticlímax, quebrando desta forma o contrato deste tipo de perversão tal qual descrito por Sacher-Masoch.
– Ergue a blusa.
– …
– Baixa a calcinha.
– …
– Fica de joelho.
– Pede perdão, sua…
– Ai, não. E o chicotinho, pô? Esqueceu? De novo, João?[33]
A fala final da personagem feminina denuncia o não cumprimento do pacto sadomasoquista e quebra qualquer identificação do leitor com a situação.
Mário Perniola[34] chama atenção para o fato de que Bataille a certa altura de seus escritos critica uma certa transcendência e positividade atribuída as posturas do surrealista Breton. Em Bataille temos a negatividade pura, o irremediavelmente baixo do comportamento humano, sem qualquer aposta de redenção. Tal parece ser a postura do autor Dalton Trevisan que não se inscreve nem na sofisticação da literatura dita erótica, nem nos objetivos da pornografia cultivada pela indústria cultural.
O interessante na obra é a ambigüidade do ponto de vista que oscila entre um distanciamento crítico e uma simpatia por tais seres transgressores “no fundo de cada filho de família dorme um vampiro”. Se predomina a transcrição de diálogos sem narrador, por vezes utiliza a primeira pessoa. “Ai ser a liga roxa que aperta a carne fosforescente de brancura. Ai, o sapato que machuca o pé. E sapato ser esmagado pela dona do pezinho, e morrer gemendo. Como um gato”.[35]
Enfocando a pornografia como conhecimento, subjetivação incorporada, só podemos voltar ao início de nosso texto e, com Jabour e Rita Lee, filosofar: pornografia é isto, erotismo é aquilo. E coisa e tal… E tal e coisa…
*Nízia Villaça – Professora Titular da Escola de Comunicação da UFRJ, Pesquisadora do CNPq, Coordenadora do Grupo Ethos. Autora, entre outros livros, Em nome do corpo, Ed. Rocco, 1998 (co-autoria com Fred Góes); Em pauta: corpos, globalização e novas tecnologias, Mauad, 2000; Impresso eletrônico. Mauad, 2002 e organizadora de O novo luxo. Ed. Anhembi/Morumbi, 2006 ; e Plugados na moda. Ed. Anhembi/Morumbi, 2006.
NOTAS
[1] Dictionnaire de la pornographie. Philippe di Folco (org.); préface de Jean-Calude Carrière. Paris: PUF, 2005. Sobre a temática ver também: OGIEN, Ruwen. Penser la pornographie. Paris: PUF, 2003 e MARZANO, Michela.La pornographie ou l’épuisement du désir. Paris: Buchet-Chastel, 2003.
[2] KÉCHICHIAN, Patrick. “Penser la pornographie”. In: Le Monde, 11 de novembre de 2005. p. 8.
[3] Folha de S. Paulo, Primeiro caderno, 14 de novembro de 2005, p. A 12.
[4] Jornal do Brasil, 21 de fevereiro de 1999, Caderno Cidade, p. 25.
[5] Veríssimo, Luís Fernando. O Globo, 25 de fevereiro de 1999, p. 7.
[6] www.diesel.com e www.satyros.com.br.
[7] CASTRO, Daniel. “Canal de sexo virou “cult”, diz socióloga”. In: Folha de S. Paulo, Caderno Ilustrada, 17 de outubro de 2005, p. E 6.
[8] FREIRE, João. “Prazeres desprezados: a pornografia, seus consumidores e seus retratores”. In: Lugar Comum: estudos de mídia, cultura e democracia. n. 12, setembro-dezembro, 2000. pp. 65-86.
[9] SILVA, Tomas Tadeu da. (Org.) Pedagogia dos monstros: os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 46.
[10] DELEUZE, Gilles. “À propos de… Différence et Répétition”. In: Sciences Humaines, Hors-Série Spécial nº 3, mai-juin, 2005. p. 79.
[11] JEUDY, Henri-Pierre. “O corpo da moda intelectual”. Texto mimeo, a ser publicado em janeiro de 2006 no livro Plugados na moda. São Paulo: Anhembi Morumbi.
[12] SONTAG, Susan. “A imaginação pornográfica”. In: A vontade radical. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
[13] DELEUZE, Gilles. Apresentação de Sacher-Masoch: o frio e o cruel. Com o texto integral de A Vênus de peles; tradução Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Taurus, 1983.
[14] KUNDERA, Milan. La Lenteur. Paris: Gallimard, 1994. p. 11.
[15] KUNDERA, Milan. Apud, VILLAÇA, Nízia. “O sadomasoquismo em dois tempos”. In: Lugar comum, nº 12. Setembro-dezembro 2000. pp. 51-63.
[16] MORAES, Eliane Robert. O corpo impossível. São Paulo: Iluminuras, 2002.
[17] TREVISAN, João Silvério. Pedaço de mim. Rio de Janeiro: Record, 2002.
[18] SONTAG, Susan. Op., cit. p. 51
[19] Idem, ibidem. p. 52.
[20] BATAILLE, Georges. História do olho; tradução Eliane Robert Moraes. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
[21] MORAES, Eliane Robert. “Um olho sem rosto”. Introdução a BATAILLE, Georges. História do olho.
[22] massimo.canevacci@fastwebnet.ir
[23] BATAILLE, Georges. História do olho. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
[24] BELLMER, Hans. Anatomia dell’immagine. Milão: Adelphi, 2001.
[25] DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil platos: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 2004.
[26] CANEVACCI, Massimo. Op. cit.
[27] Ver Klossowski Pierre. “La messe de Georges Bataille”. In: La chair et l’esprit. Art press 121.Paris: Baudoin Lebon, mars 1988.
[28] Intimidades (organizadora) Luisa Coelho. Rio de Janeiro: Record, 2005.
[29] BOREL, Vincent. Le Monde, 11 de novembro de 2005, p. 8.
[30] VILLAÇA, Nízia. Cemitério de mitos: uma leitura de Dalton Trevisan. Rio de Janeiro: Achiamé, 1984. p. 50.
[31] TREVISAN, Dalton. “Conto 3”. In: Pico na Veia. Rio de Janeiro: Record, 2002. p. 9.
[32] Idem, ibidem.. “Conto 148”. p. 177.
[33] Idem, ibidem. “Conto 11”. p. 17.
[34] PERNIOLA, Mário. L’instant Éternel: Bataille et la pensée de la marginalité; tradução François Pelletier. Collection “Sociologies au quotidien”, dirigée par Michel Maffesoli. Paris: Meridiens/Anthropos, 1982.
[35] TREVISAN, Dalton. O vampiro de Curitiba. 4 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973. (90. p. 5).